sexta-feira, 31 de julho de 2009

A HOSPEDAGEM, de Aguinaldo Silva










Era um abrigo comprido, formado por estacas, caibros e velhas telhas, armado no fim da cidade. Não tinha paredes e pouca gente sabia quem mandara armar aquilo. Um prefeito qualquer, durante um dos períodos de estiagem mais violenta, quando o povo começava a descer para o litoral num êxodo renovado. Então muitos ficavam ali, pedindo esmolas, uns poucos trabalhando. O litoral era longe, ali havia a cidade morna, dormente. Muitos ficavam, sempre havia retirantes na Hospedagem. Umas vezes mais, outras menos. Agora, muitos. Chegavam quando o verão forte os expulsava da terra. Vinham vindo pelos caminhos, encontravam um abrigo feito para eles e paravam. Armavam redes nas estacas, cozinhavam por perto, ao ar livre, e faziam precisões num barreiro imundo. A água usada era a do rio e eles tomavam banho no mesmo lugar onde os da cidade banhavam os cavalos. Em outro lugar não era permitido, o delegado mandava prender se soubesse que algum retirante estava tomando banho em outra parte do rio. A Hospedagem parecia um esqueleto com uma porção de vermes por dentro. As mulheres magras e ossudas abriam os vestidos e punham os peitos magros para fora, dando de mamar a uns miseráveis quase mortos. Meninos corriam por perto, descobriam tudo, olhavam com olhares compridos a cidade e os meninos limpos que iam à escola todos os dias levando lanches, sacolas cheias. Os olhares compridos, acompanhando-os. Muitos davam para roubar, ficavam safados, poucos arranjavam emprego. Os homens deixavam-se ficar pelos cantos, sentados no chão a olhar o horizonte, cismando. Era já um começo de morte, devagar. A cidade ajudava aos miseráveis da Hospedagem, mas nada era bastante para eles e pouca a ajuda. Às quintas-feiras as filhas de Maria vinham visitá-los, traziam pão e consolo. Também traziam Deus, espalhavam-no entre os pobres, que murmuravam agradecidos. Esqueciam logo, mas era ainda uma ajuda. Aos poucos, iam se acostumando com aquela miséria, o esqueleto tornava-se para eles um lar, e poucos voltariam para o sertão quando a seca acabasse. Ficavam por ali, mudavam-se para outra cidade onde houvesse também uma Hospedagem, deixavam-se uns com os outros morrer. Já não podiam mais recomeçar, era difícil. As crianças cresciam; quase sempre davam para bêbedos, mendigos ou criminosos. A Hospedagem lá, o esqueleto. A miséria e a maldição.





(Cristo Partido ao Meio)


(Ilustração: Ndambo - maasai carrying wood)



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