quarta-feira, 30 de novembro de 2022

MODOS DE AMAR , de Maria Tereza Horta

 





Modo de amar – I



Lambe-me os seios

desmancha-me a loucura



usa-me as coxas

devasta-me o umbigo



abre-me as pernas

põe-nas nos teus ombros



e lentamente faz o que te digo:



Modo de amar – II



Por-me-ás de borco,

assim inclinada...



a nuca a descoberto,

o corpo em movimento...



a testa a tocar

a almofada,

que os cabelos afloram,

tempo a tempo...



Por-me-ás de borco;

Digo:

ajoelhada...



as pernas longas

firmadas no lençol...



e não há nada, meu amor,

já nada, que não façamos como quem consome...



(Por-me-ás de borco,

assim inclinada...



os meus seios pendentes

nas tuas mãos fechadas.)



Modo de amar – III



É bom nadar assim

em cima do teu corpo

enquanto tu mergulhas já dentro do meu



Ambos piscinas que a nado atravessamos

de costas tu meu amor

de bruços eu



Modo de amar – IV



Encostada de costas

ao teu peito



em leque as pernas

abertas

o ventre inclinado



ambos de pé

formando lentos gestos



as sombras brandas

tombadas no soalho



Modo de amar – V



Docemente amor

ainda docemente



o tacto é pouco

e curvo sob os lábios



e se um anel no corpo

é saliente

digamos que é da pedra

em que se rasga



Opala enorme

e morna

tão fremente



dália suposta

sob o calor da carne



lábios cedidos

de pétalas dormentes



Louca ametista

com odores de tarde



Avidamente amor

com desespero e calma



as mãos subindo

pela cintura dada

aos dedos puros

numa aridez de praia

que a curvam loucos até ao chão da sala



Ferozmente amor

com torpidez e raiva



as ancas descendo como cabras

tão estreitas e duras

que desarmam

a tepidez das minhas

que se abrem



E logo os ombros

descaem

e os cabelos



desfalecem as coxas que retomam

das tuas

o pecado

e o vencê-lo

em cada movimento em que se domam



Suavemente amor

agora velozmente



os rins suspensos

os pulsos

e as espáduas



o ventre erecto

enquanto vai crescendo

planta viva entre as minhas nádegas



Modo de amar – Vl



Inclina os ombros

e deixa

que as minhas mãos avancem

na branda madeira



Na densa madeixa do teu ventre



Deixa

que te entreabra as pernas

docemente



Modo de amar – VII



Secreto o nó na curva

do meu espasmo



E o cume mais claro

dos joelhos

que desdobrados jorram dos espelhos



ou dos teus ombros os meus:

flancos

na luz de maio



Modo de amar – VIII



Que macias as pernas

na penumbra



e as ancas

subidas

nos dedos que as desviam



Entreabro devagar

a fenda – o fundo

a febre

dos meus lábios



e a tua língua

Vagarosa:



toma – morde

lambe

essa humidade esguia



Modo de amar – IX



Enlaçam as pernas

as pernas

e as ancas



o ar estagnado

que se estende

no quarto



As pernas que se deitam

ao comprido

sob as pernas



E sobre as pernas vencem o gemido



Flor nascida no vagar do quarto



Modo de amar – X



A praia da memória

a sulcos feita

a partir da cintura:



a boca

os ombros



na tua mansa língua que caminha

a abrir-me devagar

a pouco e pouco



Globo onde a sede

se eterniza

Piscina onde o tempo se desmancha

a anca repousada

que inclinas

as pernas retesadas que levantas



E logo

são os dentes que limitam



mas logo

estão os lábios que adormentam

no quente retomar de uma saliva

que me penetra em vácuo

até ao ventre



o vínculo do vento

a vastidão do tempo



o vício dos dedos

no cabelo



E o rigor dos corpos

que já esquece

na mais lenta maneira de vencê-los



Modo de amar – XI



((Teu) Baixo ventre)



Nunca adormece a boca no

teu peito



a minha boca no teu baixo

ventre

a beber devagar o que é

desfeito



Modo de amar – XII

(Os testículos)



Tenho nas mãos

teus testículos

e a boca já tão perto



que deles te sinto

o vício

num gosto de vinho aberto



Modo de amar – XIII



(As pedras – As pernas)



São as pedras

meus seios

São as pernas



pele e brandura

no interior dos

lábios



rosa de leite

que sobe devagar

na doce pedra

do muco dos meus lábios



São as pedras

meus seios

São as pernas



Pêssegos nus corpo

descascados



Saliva acesa

que a língua vai cedendo



o gozo em cima...

na pedra dos meus

lábios



Jogo do corpo

a roçar o tempo

que já passado só se de memória,

a mão dolente

como quem masturba entre os joelhos...

uma longa história...



Estrada ocupada

onde se vislumbra

(joelhos desviados na almofada)



assim aberta o fim de que desfruta

o fruto do odor

o fundo todo

do corpo já fechado.



Modo de amar – XIV

(As rosas nos joelhos)



São grinaldas de rosas

à roda

dos joelhos



O âmbar dos teus dentes

nos sentidos



O templo da boca

no côncavo do espelho

onde o meu corpo espia

os teus gemidos



É o gomo depois...

e em seguida a polpa...



o penetrar do dedo...

O punho do punhal



que na carne enterras

docemente

como quem adormenta

o que é fatal



É a urze debaixo

e o fogo que acalenta

o peixe

que desliza no umbigo



piscina funda

na boca mais sedenta bordada a cuspo

na pele do umbigo



E se desdigo a febre

dos teus olhos

logo me entrego à febre

do teu ventre



que vai vencendo

as rosas – os escolhos

à roda dos joelhos, docemente.



Modo de amar – XV



(A boca – A rosa)



Entreabre-se a boca

na saliva da rosa



no raso da fenda

na fissura das pernas



Entreabre-se a rosa

na boca que descerra

no topo do corpo

a rosa entreaberta



E prolonga-se a haste

a língua na fissura

na boca da rosa

na caverna das pernas



que aí se entre-curva

se afunda

se perde



se entreabre a rosa

entre a boca

das pétalas





(Ilustração: Vincent Desiderio)



domingo, 27 de novembro de 2022

O QUE A MEMÓRIA AMA FICA ETERNO, de Adélia Prado

 


Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender.

O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano.

É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade.

Diante do tempo, envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória, ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem.

Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo.

A capacidade de se emocionar vem daí, quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de uma fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, aquela época…

Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debiloides, como éramos há 20, 30 ou 40 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos… mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas.

A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre “as crianças”, não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Pra eles, a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite… ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou.

Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial.

Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve daqui, seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.



(Ilustração: Marc Chagall)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

EL DESPERTAR / O DESPERTAR, de Alejandra Pizarnik

 




Señor

La jaula se ha vuelto pájaro

y se ha volado

y mi corazón está loco

porque aúlla a la muerte

y sonríe detrás del viento

a mis delirios



Qué haré con el miedo

Qué haré con el miedo



Ya no baila la luz en mi sonrisa

ni las estaciones queman palomas en mis ideas

Mis manos se han desnudado

y se han ido donde la muerte

enseña a vivir a los muertos



Señor

El aire me castiga el ser

Detrás del aire hay monstruos

que beben de mi sangre



Es el desastre

Es la hora del vacío no vacío

Es el instante de poner cerrojo a los labios

oír a los condenados gritar

contemplar a cada uno de mis nombres

ahorcados en la nada.



Señor

Tengo veinte años

También mis ojos tienen veinte años

y sin embargo no dicen nada



Señor

He consumado mi vida en un instante

La última inocencia estalló

Ahora es nunca o jamás

o simplemente fue



¿Cómo no me suicido frente a un espejo

y desaparezco para reaparecer en el mar

donde un gran barco me esperaría

con las luces encendidas?



¿Cómo no me extraigo las venas

y hago con ellas una escala

para huir al otro lado de la noche?



El principio ha dado a luz el final

Todo continuará igual

Las sonrisas gastadas

El interés interesado

Las preguntas de piedra en piedra

Las gesticulaciones que remedan amor

Todo continuará igual



Pero mis brazos insisten en abrazar al mundo

porque aún no les enseñaron

que ya es demasiado tarde



Señor

Arroja los féretros de mi sangre



Recuerdo mi niñez

cuando yo era una anciana

Las flores morían en mis manos

porque la danza salvaje de la alegría

les destruía el corazón



Recuerdo las negras mañanas de sol

cuando era niña

es decir ayer

es decir hace siglos



Señor

La jaula se ha vuelto pájaro

y ha devorado mis esperanzas



Señor

La jaula se ha vuelto pájaro

Qué haré con el mied



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Senhor

A gaiola virou pássaro

e voou

e meu coração está louco

porque uiva para a morte

e sorri detrás do vento

aos meus delírios



Que farei com o medo

Que farei com o medo



Já não baila a luz em meu sorriso

nem as estações queimam pombas em minhas ideias

Minhas mãos se desnudaram

e foram-se para onde a morte

ensina a viver os mortos



Senhor

O ar castiga-me o ser

Detrás do ar há monstros

que bebem meu sangue



É o desastre

É a hora do vazio nenhum vazio

É a hora de colocar ferrolho nos lábios

ouvir os condenados gritarem

contemplar a cada um de meus nomes

enforcados no nada.



Senhor

tenho vinte anos

Também meus olhos têm vinte anos

e no entanto não dizem nada



Senhor

Consumou-se minha vida em um instante

A última inocência explodiu

Agora é nunca ou jamais

ou simplesmente fui



Como não me suicido defronte a um espelho

e desapareço para reaparecer no mar

onde um grande barco me esperaria

com as luzes acesas?



Como não retiro minhas veias

e faço com elas uma escada

para ouvir o outro lado da noite?



O princípio deu à luz o fim

Tudo continuará igual

Os sorrisos erodidos

O interesse interessado

As perguntas de pedra em pedra

As gesticulações que arremedam o amor

Tudo continuará igual



Mas meus braços insistem em abraçar o mundo

porque ainda não lhes ensinaram

que já é demasiadamente tarde



Senhor

Expulsa os féretros de meu sangue



Recordo minha meninice

quando eu era uma anciã

As flores morriam em minhas mãos

porque a dança selvagem da alegria

destruía-lhes o coração



Recordo as negras manhãs de sol

quando era menina

é como dizer ontem

é como dizer há séculos



Senhor

A gaiola virou pássaro

e devorou minhas esperanças



Senhor

A gaiola virou pássaro

Que farei com meu medo





(Ilustração: Hannah Yata - Crazy Erotic Paintings)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A VELHA QUERIDA, de Dalton Trevisan


 

O calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina — "Eis que eu vejo a sarça ardente" —, o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. "É um enterro", disse consigo, "mas não há morto". Arrastava se o estranho cortejo por dois ou três quarteirões e voltava sobre os passos na busca aflita do defunto, com grupos que, ao longo das portas, apertavam-se e de repente se desfaziam — "Onde está Verônica", indagou ele, "que não canta?" Procissão triste e preguiçosa, metade a ir ou voltar e a outra metade imóvel, enquanto o cadáver, cujo fedor sebento empesta o ar e move a asa alucinada das moscas, jazia no interior de uma das casas, ainda que ninguém soubesse qual — os curiosos insinuavam as cabeças à sua procura pelas portas e janelas escancaradas. Procissão ou enterro, seguia um destino conhecido de todos. Ele abriu caminho por entre os outros, alerta para não atropelar aqueles que estacavam sem aviso ou faziam meia volta ou enfiavam de repente a cabeça por uma das portas e tão-somente a cabeça — raríssimo o que por elas entrava. Às portas e janelas, no místico velório, estavam alinhadas as viúvas que carpiam o mesmo defunto e pareciam de ouro na sua cara pintada. Enquanto os homens (era enterro ou procissão unicamente de homens) estavam decentemente trajados, as mulheres, empurrando-se às janelas e portas, em virtude do fogo que ardia no porão das casas decrépitas, vestiam apenas calcinha e porta-seio de cores berrantes, onde predominavam o vermelho, o azul e o amarelo e, assim à vontade, eram damas de grande luxo, uma ou outra com sandália de púrpura.

Solitárias à janela ou amontoadas uma atrás da outra, nos degraus vacilantes da escada, afundados no meio, de tantos passos que os subiram e desceram, todas elas, serenas ou entoando ladainha em voz baixa e lamuriosa, repetiam o mesmo gesto em que, as pontas unidas do polegar e indicador em círculo perfeito, concebiam o símbolo da inocência perdida e, sem que movessem o braço, agitavam incansavelmente a mão em todas as portas e janelas, de tal modo sincronizadas que o rapaz de linho branco acreditava-se numa loja de relógios, com seus pêndulos balançando, e única diferença era que tais pêndulos (as mãos dessas senhoras) trabalhavam sem ruído. Assim estivesse atrás de um relógio, examinava cada uma, detendo-se às portas e, como os outros, introduzia a cabeça a fim de encarar as damas ou relógios que marcavam todos a mesma hora.

Quase nada empertigado, observava duro e fixo à sua frente, no cuidado do bêbado que não quer parecer que o é, e o faz planejar lucidamente (segundo ele) seu movimento seguinte, esquecendo sempre um pequeno detalhe que afinal o denuncia, assim por exemplo depois de se despir sem um erro à vista inquisitorial da esposa, apaga enfim a luz e imagina que está salvo, eis quando ouve a pergunta melifluamente simplória — "Querido, agora dorme de pijama e sapato?"

Com toda a cautela, pois, de não parecer embriagado, o rapaz analisava criteriosamente o mostruário de ponteiros e, consoante o seu hábito quando alcoolizado, permitia-se um comentário em tom levemente sarcástico. Resistindo aos sorrisos aliciantes dos dentes de ouro — "Olá, querida, as suas prendas morais quais são?" —, arrepiava caminho sob a lancinante queixa das carpideiras, indiferente ou insensível à dor que as fazia insistir no apelo monocórdio — "Vem cá, benzinho ... vem cá, benzinho . . . vem cá, amorzinho. . ." e algumas, indignadas de não serem atendidas por ele ou pelos outros (distinto senhor de guarda-chuva no braço, marinheiro bêbado, negro de pé descalço), depois de inúmeros acenos da mão livre — sem adiantar ou atrasar a marcha do pêndulo à direita —, furiosas de tanto gemer em vão, enlouquecidas por um gesto ou simples olhar, davam um passo à frente e, prendendo-lhes a mão ou o braço, atraíam-nos patamares adentro e eles se deixavam conduzir ou então lutavam por se desvencilhar. Soltando-os, prosseguiam tranquilamente no movimento pendular, de tal sorte automático que, conversando volúveis ou absortas em meditação, não o interrompiam e as que se ocupavam em acender o cigarro, chupar sorvete ou descascar tangerina, faziam-no com a outra mão (a esquerda).

Após longa espreita, no meio da rua a princípio, depois na calçada e afinal no limiar, ele subiu os degraus de madeira, enquanto se defendia de uma mulata gorda, que lhe enlaçou perdidamente o pescoço, mas como permanecesse, o pé no ar, vigiando impávido em frente, deixou-o seguir, não sem que ele notasse numa das coxas a tatuagem do coração azul e, dentro do coração, um nome que, por coincidência, era o seu próprio. Havia cinco senhoras no corredor, além da mulata, e as que se dispunham ao longo dos degraus abriam alas para as últimas, sentadas em cadeiras comuns, das quais (mulheres) uma — a derradeira e a que buscara com tanto afã, impaciência e uma ponta de desespero — instalara-se em cadeira antiga de vime, a única que poderia descansá-la, após tão implacável perseguição. Fitaram-no com sorrisos insinuantes, não ela, olhos tímidos sobre as mãos fatigadas. O rapaz estava de linho branco e gravata de bolinhas e, posto nem uma desconfiasse do seu negro coração, a velha — pois era uma velha — mantinha a cabeça baixa e, na postura indefesa e nostálgica, parecia capaz de chorar por ele que, vencido o quarto degrau, alcançou o corredor e até que enfim a cadeira. De pé a seu lado, notou que aparava furtiva com uma tesourinha a unha grossa do polegar, e com voz que não era a sua, de tão rouca:

— Você é toda minha, querida?

Enquanto as demais senhoras, nos degraus e nas cadeiras, eternamente a girar seus pêndulos, viravam-se para ele, admiradas da emoção que lhe gemia na voz — e deveras comovido porque ia finalmente ter a sua velha — a velha (que podia ser a mãe e a avó de todas e não se confundia com nem uma outra até você descobrir que simplesmente estava vestida) ergueu-se com dificuldade, apoiada nos braços da cadeira e, sem interesse ao menos de olhá-lo, enfiou pelo corredor escuro, indicando com voz cansada e displicente, de tantos anos esquecida na cadeira amarela de vime:

— Por aqui.

Desconsolada ou preguiçosa, seguiu à sua frente, estalando o chinelinho de pano. Ao passo que não sentira curiosidade pela nudez das outras, sugerida ou devassada por entre a calcinha e o porta-seio, tremia ao sonhar com as intimidades da velha, pois pensava nela como "A sua velha", merecida e enfim conquistada na mais feroz caça às velhinhas de Curitiba, a qual trajava — apesar do calor e do traje oficial de duas peças coloridas — vestido singelo de algodão, sem mangas e outrora encarnado. Arrastava os chinelos, com pés inchados de gordas veias azuis e, atrás dela, sem que pudesse adivinhar-lhe as formas, porque era antes mortalha o tal vestido vermelho, o rapaz enxugava o suor das mãos na expectativa do mistério daquele enterro ou procissão que, se bem não o merecesse, por certo lhe desvendaria graças aos inúmeros lustros de vivência. No fim do corredor em penumbra, que exalava forte à creolina, a velha abriu uma porta, os dois entraram.

O quarto era separado do corredor por um tabique pouco mais alto que as cabeças e mobiliado apenas de cama e mesa de cabeceira. Olhando a pobre cama coberta por uma colcha esverdinhada, estendida com desleixo ou às pressas, quem sabe usada havia pouco, o moço voltou-se para a companheira imóvel ao lado da porta aberta:

— A boneca? Onde está a boneca?

Era verdade, sentia a ausência da boneca de cachos, sentadinha na colcha purpurina e, encontrando os olhos ausentes ou distraídos da criatura, já se apressava a corrigir, enquanto reconhecia com espanto que não envelhecem os olhos — ao menos os azuis —, dirigindo-lhe o primeiro dos galanteies que se atropelavam nos lábios sôfregos:

— Ela é você, querida. É você a boneca.

Ela sorriu com a dentadura antiga, em que as gengivas eram de qualquer tonalidade menos de carne e os dentes alvares como dentes jamais usados. Despindo-se, eis que se persignava — "Deus louvado, tenho a minha velha, eu que não mereço a última das mulheres, nenhuma é suficientemente indigna para mim" —; enquanto ela, com a mão na bola da maçaneta, o que a fazia mais desejável, assim quisera fugir-lhe antes que a pudesse ter, espiava-o a despir-se com inesperada pressa, pendurando o paletó no prego que ela indicou atrás da porta, estendendo a calça e a camisa ao pé da cama. Já descartava o sapato, e somente então — ainda se recusando como se nunca fosse ganhá-la — a velha murmurou em voz baixa, onde percebeu acento estrangeiro:

— Já volto, nón?

Deixou de escutar os chinelos, estendeu-se apenas de meias na cama e, por maior que fosse o terror de percevejo, largou todo o peso sobre a colcha assinalada aqui e ali de manchas.

Estava em paz consigo, pensava que estava ou procurava fingir que estava, até que descobriu dois ou três orifícios no tabique por onde o olho que tudo vê, seja ou não olho de Deus, poderia espioná-lo e, cruzando as mãos na nuca, pois a cama não tinha travesseiro, observou a lâmpada que sobre a sua cabeça pendia de um fio pontilhado de moscas mortas. Depois de admirar a lâmpada enrolada em papel de seda escarlate e a parede manchada de goteiras, identificou atrás da porta o retrato colorido de Ramon Novarro(*), do qual desviou depressa os olhos, porque um dia — ai, que náusea lhe vinha daquele dia — quisera ser Ramon Novarro enquanto, lá do corredor, chegava o eco das carpideiras. Sem ouvi-las dialogar, distinguia as vozes apenas quando elevadas ao tom mais alto de sua monótona litania -— "Vem cá, amorzinho... vem cá, meu bem... vem cá, benzinho... ó você aí, ó zarolho, vem cá... ó belezinha, vem cá. . ."

Não tinha janela o quarto, de repente aflito. "Não é um quarto", pôs-se a repetir, "é a alcova da perdição". Gemia de impaciência com a demora da velha e, se não voltasse, temia pelo que pudesse acontecer. Já pensava em iniciar padre-nosso ou ave-maria quando ela entrou, desdenhosa de sua nudez e belezas que o próprio Ramon Novarro invejaria.

— Quer pagar, bem?

Fechou a porta apenas com a maçaneta, impassível ao lado da cama e, embora fosse uma súplica no ritual da paixão, não estendia sequer os dedos. Sem discutir o preço, ele apanhou do bolso da calça a maior nota:

— O troco é seu, querida.

Primeira vez ela sorriu e tudo nela era primeira vez. Segurou o dinheiro e o óculo na mão, enquanto se desfazia do vestido pela cabeça, a despentear o cabelo grisalho na testa e nas têmporas.

— Quer que tire?

Depois de arrumar o vestido ao pé da cama, indicou o porta-seio de algodão, sob o qual o rapaz podia adivinhar os seios pesados e murchos, quem sabe com cabelo no biquinho preto.

Resposta negativa, ela que conservava o dinheiro na mão, dobrou-o três vezes e o guardou no porta-seio. Ainda de pé, abriu-lhe os moles braços alvacentos de mãe d’água, nos quais surpreendeu o primeiro sinal de sedução: axila depilada, e pensou — "Sob a velha dorme a cortesã" que, com algum esforço, ajoelhou-se na cama e, ao tilintarem duas ou três medalhinhas no pescoço, atirou-as para as costas. Afastou-as simplesmente, não as atirou, pois tal verbo sugere ação de qualquer maneira apressada, a velha era lerda e trazia nos gestos graves o sossego adquirido na cadeira de vime e, enquanto isso, o rapaz percorria-lhe vagarosamente as costas lisinhas com os dedos de quem acaricia um bicho de estimação até que encontraram caroço ou verruga, começando então a descrever lentos círculos, que fugiam e voltavam sempre àquele duro nódulo, e ele se pôs a engolir em seco. Mão viscosa de suor, agarrou brutalmente a nuca da velha, que tinha os cabelos curtos e, atraindo-a para si, constatava a relutância dela ainda se negando ao seu feroz desejo. Girando de leve a cabeça para a mesa, onde havia um rolo de papel, quis estender a mão, porém o rapaz a impediu e, já de olho fechado, aproximava-lhe aos poucos a cabeça da sua, entre os protestos inúteis de — "Nón... nón... Na boca nón...", beijando-a enfim e, até no beijo, a velha resistia, sem descerrar os lábios frios e enrugados, presa a dentadura com a ponta da língua no céu da boca.

Compunha a dama as dobras da mortalha quando ele abriu os olhos em agonia, pois o amor não o esvaziara do desprezo de si mesmo. Ao erguer-se da cama, a colcha colada de suor nas costas e três vezes imundo, decidiu que não se lavaria, para conservar entre as mãos peganhentas o odor de carne mofada da velha que, com toda a febre da luxúria, não tinha uma gotícula no rosto. Nem um dos dois se penteou e, com a ponta dos dedos, um dos quais enfeitado por anel de falso rubi, alisando os cabelos brancos e alvoroçados na nuca, ela pediu:

— Tire o batón.

O rapaz não aceitou o retalho de papel e esfregou a boca no lenço:

— A mais doce lembrança!

Quedaram-se diante da porta e, primeira vez, ela o encarava:

— Volta, nón?

— Como é seu nome?

— Pergunta por Sofia.

Ele não pode abrir a porta, com a bola amarela a escorregar entre os dedos.

— Eu sabe o jeito, bem.

Desta vez o moço seguiu na frente. No umbral do corredor ensolarado, as mulheres estavam no mesmo lugar e a mulata chupando uma laranja e cuspindo as sementes, que bem podiam ser as da inveja, resmungou para os dois — "Eu, hein? Eu, hein?"

Em adeus à sua querida, beijou a mão gélida da velha. Desceu os degraus, atravessou a rua e piscando ao sol esperou na esquina. A casa tinha uma única janela e aguardou que a mão com o falso rubi acenasse por entre as palhetas verdes da veneziana, e tão-somente a mão, tinha vergonha dele ou por ele. "Posso ir para casa", pensou o moço, "abraçar minha mulher e beijar meus filhos. Agora eu me sinto bem".

Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas balouçavam a mão direita, unindo em círculo perfeito o polegar e o indicador, no convite ao gozo da inocência perdida e recuperada, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e mais uma vez repetiu: "Tudo já passou. Não foi nada. Já passou. Agora estou bem".



(*) Ramón Novarro (Durango, 6 de fevereiro de 1899 — Los Angeles, 30 de outubro de 1968) foi um ator de cinema, teatro e televisão mexicano radicado nos Estados Unidos. Iniciou sua carreira em filmes mudos em 1917 e acabou se tornando uma das principais atrações de bilheteria de década de 1920 e início da década de 1930. Novarro foi divulgado pela MGM como um "amante latino" e ficou conhecido como um símbolo sexual após a morte de Rodolfo Valentino. (Nota do blog)



(Novelas nada exemplares, 1959)



(Ilustração: Hendrick Goltzius - Le jeune homme et la vieille)

sábado, 19 de novembro de 2022

POEMA XIX / POEMA XIX, de Ana Istarú

 




Una luna creciente

cabalga entre mis piernas.



En sus muslos se dora,

corcel, el sol naciente.



Que el marido paloma,

la ciruela rotunda.



Esta esposa que soy

la caracola.



La más morena liebre

en mi varón se eleva.



Horizonte me habita

de guayaba y de curva.



El eje de su cuerpo

de mi cuerpo es el eje.



Un ébano en dos ramos,

una enredada tinta.

Una luna creciente

cabalga entre sus piernas.



En mis muslos se dora,

corcel, el sol naciente.



Tradução de Antonio Miranda:



Uma lua crescente

cavalga entre minhas pernas.



Em suas coxas doura-se,

corcel, o sol nascente.



Que o marido pombo,

a ameixa rotunda.



Esta esposa que sou

a concha.



A mais morena lebre

em meu varão se eleva.



Horizonte me habita

de goiaba e de curva.



O eixo de seu corpo

de meu corpo é eixo.



Um ébano em dois ramos,

uma emaranhada tinta.

Uma lua crescente

cavalga entre suas pernas.



Em minhas coxas se doura,

corcel, o sol nascente.



(La estación de la fiebre)



(Ilustração: Hans Bellmer)


terça-feira, 15 de novembro de 2022

FANTASIAS DE UMA MULHER CASADA, de Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva

  




Com o professor de matemática, o triângulo amoroso foi um resultado não calculado. O produto de olhares sincronizados, durante aquele curso de especialização, foi o tesão. A soma de tantos desejos subtraiu-lhes a repressao, multiplicou-lhes as fantasias e deixou-os divididos em uma equação de amor. Na cama, formavam um par co-eficiente. Na horizontal ou na vertical, tiravam o máximo gozo comum de uma dança impar de eixos coordernados. A conversa fracionada - assim?/ - é.../ /te gosto/ - te amo/ - pode?/ - pode.../ -vem.../ - me abraça/ - me aperta/ - te adoro/ - deixa!?/ - hum, hum.../ - elevava ao cubo aquele momento de gozo. Ela jamais calculara que pudesse ser tão feliz. Os dois corpos, em linhas retas ou curvas, traçavam ângulos de vários graus, formando um teorema do amor.

Com o carteiro, a conversa foi telegráfica. Antes trocaram olhares em um correio tipo mala direta.

- Quer?

-Quero

- Quando?

- Agora.

- Agora?

- É

- Aonde?

- Aqui.

- Aqui?

- É.

No quarto, postaram-se frente a frente e beijaram-se aereamente. Puseram logo as cartas na cama e selaram aquele momento de prazer. Carimbados pelo amor, os dois, ali naquela cama, pareciam um cartão postal carimbado por Eros.

Com o capitalista, dividiu toda a sua afetividade. Resgatou as dívidas de prazer que contraíra consigo mesma ao longo daquele casamento falido e aplicou todo o seu amor naquela sociedade anônima. Suas carências nunca mais ficaram a descoberto. Aquele homem era uma apólice de prazer resgatável em um prazo fixo de cada sete dias. Ele hipotecava juros de amor e o seu desempenho na cama era adicionado a carícias que rendiam infindáveis dividendos. Duplicavam-se os telefonemas durante o resto da semana. Cada telefonema era um cheque em branco em que ela colocava a quantia de felicidade que desejasse. Nunca tivera uma relação afetiva tão lucrativa. Quanto aos orgasmos, às vezes ele ficava em débito, mas prometia-lhe outros, em duplicata, ao curto prazo de uma semana. Ela sempre dava-lhe crédito, pois sabia que os jogos de amor são como as bolsas de valor: há dias de alta e dias de baixa. Havia também os dias de inflação de orgasmos que dava-lhe a impressão de estar saciada para sempre. Aquele homem rendeu-lhe muito prazer. Enquanto durou, ela contabilizava cada momento, somava os beijos e os abraços e depositava na alma todas as palavras doces.

Com o linguista, o sexo era polissêmico. A ele, não faltava competência e seu desempenho era invejável. Dominava a sintaxe do amor, porém não era normativo. Gostava de variações e de uma posição derivava outras. Um de seus traços distintivos era seu alto grau de aceitabilidade das fantasias da parceira. Manipulava as estruturas superficiais até enlouquecer a estrutura profunda. Esforçava-se pelo orgasmo sincrônico, mas às vezes, não resistia à intensidade da excitação. Sexo, para ele, não era apenas sintaxe, era um fenômeno semântico dinâmico, criatividade, inventividade, força criadora presente em todo ser humano. Não aceitava o sexo dentro dos limites do condicionamento social, vinculado à história e à cultura. Tinha seu estilo próprio. Não era fiel. Era profundamente ambíguo. Quando estava com uma mulher, comportava-se como um sufixo único, morfema preso a um único radical. Um minuto depois, transformava-se em um morfema livre, pronto a entrar no primeiro sintagma cuja escolha paradigmática lhe conviesse. Usava e abusava dos empréstimos. I love you e Je t'aime eram clichés fáticos, repetições ritualizadas que substituem o indizível, parte imprescindível do extrato sexo-fônico. Falavam o mesmo dialeto amoroso, eram a mesma substância, a mesma forma.

Com o professor de inglês, o affair não foi o happening esperado. O kick off foi dado em um coktail party onde ela, muito lady-like, usou todo o seu sex-appeal para conquistar mais um partner. Conversaram sobre o que era in e o que era out, big business, cult movies, pop music, best sellers, o crack na bolsa de Nova York, o apartheid e last, but not least, ele fez o convite: "Vamos ao meu flat? Eu tenho uns discos de jazz que você vai adorar!" Ela achou-o super out, old-fashioned mesmo. Esperava um approach mais up-to-date, mas, mesmo assim, deu-lhe seu agreement. O streap-tease foi rápido, Ela, estilo clean. Ele, yuppie, cabelo new wave. Ela sentiu-e uma outsider naquele apartamento americanalhado. Mas a esperança de ouvir "My darling, I love you", durante um show de overdose de sexo, dava-lhe a certeza de um happy-end. Na cama, ele saiu na pole position, como um big boss na hora do rush. No lugar do esperado sexo full time, contentou-se em ouvir blues, em compact disk. Mas ela teve fair-play e fingiu não estar nem um pouco down. Afinal, the show must go on. Ela viu que aquela joint adventure estava mais para help-yourself para ele e do-it-yourself para ela. No dia seguinte, ele apareceu de look novo. Calça Jeans, T-shirt, tennis All Star. Convidou-a para um fast-food. Neste in-between, ela fez um flash back e optou por um farewell dinner.



(Ilustração: Cecily Brown)

sábado, 12 de novembro de 2022

AMOR - POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL, de Carlos Drummond de Andrade

        





Amor - pois que é palavra essencial

comece esta canção e toda a envolva.

Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,

reúna alma e desejo, membro e vulva.



Quem ousará dizer que ele é só alma?

Quem não sente no corpo a alma expandir-se

até desabrochar em puro grito

de orgasmo, num instante de infinito?



O corpo noutro corpo entrelaçado,

fundido, dissolvido, volta à origem

dos seres, que Platão viu completados:

é um, perfeito em dois; são dois em um.



Integração na cama ou já no cosmo?

Onde termina o quarto e chega aos astros?

Que força em nossos flancos nos transporta

a essa extrema região, etérea, eterna?



Ao delicioso toque do clitóris,

já tudo se transforma, num relâmpago.

Em pequenino ponto desse corpo,

a fonte, o fogo, o mel se concentraram.



Vai a penetração rompendo nuvens

e devassando sóis tão fulgurantes

que nunca a vista humana os suportara,

mas, varado de luz, o coito segue.



E prossegue e se espraia de tal sorte

que, além de nós, além da própria vida,

como ativa abstração que se faz carne,

a idéia de gozar está gozando.



E num sofrer de gozo entre palavras,

menos que isto, sons, arquejos, ais,

um só espasmo em nós atinge o clímax:

é quando o amor morre de amor, divino.



Quantas vezes morremos um no outro,

no úmido subterrâneo da vagina,

nessa morte mais suave do que o sono:

a pausa dos sentidos, satisfeita.



Então a paz se instaura. A paz dos deuses,

estendidos na cama, qual estátuas

vestidas de suor, agradecendo

o que a um deus acrescenta o amor terrestre.



(O amor natural)



(Ilustração: Fernando Botero)

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: POR ONDE TUDO COMEÇOU, de Wagner Mourão Brasil

 



Na revista Harvard Business Review do bimestre julho/agosto de 1990 o norte-americano Michael Hammer publicou um artigo intitulado Reengineeiring Work: Don’t Automate, Obliterate [1]. Foi esse o embrião de um livro que Hammer escreveu posteriormente em parceria com James Champy: Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution[3]. Em sua edição inaugural de 1993 o livro continha cerca de 90 páginas, triplicadas na edição de 2003, o que comprova seu enorme sucesso.

Curiosidade: o vocábulo inglês “hammer” é traduzido por “martelo”, em português; enquanto que “ladrillo”, nome com que foi batizado o neoliberalismo no Chile de Pinochet – seu berço ensanguentado –, é traduzido do espanhol por “tijolo”. Essa coincidência, esse simbolismo, são difíceis de serem ignorados, se considerarmos as iniquidades paridas pelo neoliberalismo e a reengenharia mundo afora – um casal perfeito, do ponto de vista do mercado.

Já na Introdução, sem quaisquer traços de modéstia, os autores declaram que suas ideias “são tão importantes para as empresas atuais como as ideias de Adam Smith o foram para os empresários e gerentes dos últimos dois séculos”. Não satisfeitos em se ombrear com um dos fundadores da Economia Política – os outros seriam François Quesnay e os fisiocratas –, Michael Hammer e James Champy ainda declaram que “na reengenharia, o modelo industrial é virado de cabeça para baixo”, metáfora, ao que parece, alusiva ao que escreveu outro revolucionário, Karl Marx, a respeito da dialética de Hegel, que para ele estava de cabeça para baixo: “É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”, como escrito no posfácio da segunda edição do primeiro volume de O Capital.

O que é “reengenharizar”? Michael Hammer explica:

“Em vez de integrar processos obsoletos em silício e aplicativos, deveríamos destruí-los e recomeçar. Deveríamos 'reengenharizar' nossos negócios: usar o poder da tecnologia da informação e reformular radicalmente os nossos processos de negócios para chegarmos a melhorias dramáticas em sua execução.”

O que Hammer não escreveu, ou talvez não tenha sequer imaginado, foi que o significado de “obliterar” – destruir, fazer desaparecer pouco a pouco –, utilizado no título do artigo, foi um mote, um augúrio, um presságio – chamem-no como quiserem – da arrasadora extinção de empregos e direitos e garantias trabalhistas que indelevelmente se associariam ao neologismo “reengenharizar”. O "mercado" absorveu a novidade com a maior satisfação.

Antes de prosseguir convém mencionar o fato de que, dois anos antes do lançamento de Reeginneering the Corporation, o terreno já fora mais que adubado, para seu sucesso nos Estados Unidos, por outra inconteste campeã de vendas, a escritora Ayn Rand, para quem o individualismo radical, o egoísmo e o livre mercado são virtudes e não pecados do capitalismo. “Em pesquisa realizada pela Biblioteca do Congresso e pelo Clube do Livro do Mês, em 1991, os norte-americanos apontaram seu livro A Revolta de Atlas [no qual se encontra o famoso ‘discurso do dinheiro’, um título sugestivo] como o que mais influenciou suas vidas (depois da Bíblia)”[3]. Em 1998, “quando a Modern Library de Nova York solicitou a seus leitores que apontassem os 100 melhores livros do século XX, quatro livros de Ayn Rand encontravam-se entre os dez primeiros: A Revolta de Atlas e A Nascente ocuparam os dois primeiros lugares; outros dois, o sétimo e o oitavo.”[4] Outro indício de sua imbatível primeira posição foi confirmada pelas revistas Forbes e Fortune, que mencionam Ayn Rand como heroína de jovens empreendedores do Vale do Silício, de especialistas em teoria dos jogos e enxadristas, além de se encontrarem entre os mais lidos por executivos de Wall Street. Seu discípulo mais fervoroso e famoso, Alan Greenspan, comandou o Banco Central norte-americano – Federal Reserve – durante o período em que mais foram desregulados o sistema financeiro e o mercado de capitais norte-americanos (1987-2006), o que redundou no desastre que varreu quase que o mundo todo em 2008-2009.

A reengenharia foi e ainda é a mais revolucionária e devastadora técnica de reordenação da pirâmide administrativa empresarial e industrial em novas e flexíveis hierarquias: ela ensina a suprimirem-se degraus da escada que vai do topo da pirâmide administrativa a sua base, promete maximizar lucros, agilizar tomadas de decisão, e, mais que tudo, fazer mais com menos – por menos, infere-se do que se lê nas páginas do livro. Como escrevem seus autores, reengenharia “é o repensar fundamental e a reestruturação radical dos processos empresariais que visam alcançar drásticas melhorias em indicadores críticos e contemporâneos de desempenho, tais como custos, qualidade, atendimento e velocidade”.

Empresas que se contentam em elevar seus lucros, seu padrão de qualidade e o atendimento aos clientes em 10%, e se satisfazem com cortes de 10% em seus custos (neles incluída sua força de trabalho, transformada em custo e, como se lê em Karl Marx, em mercadoria), certamente devem fugir da reengenharia, por não possuírem ambição suficiente para enfrentar o desafio. Ao contrário, as candidatas aos seus drásticos remédios seriam as empresas atoladas em dívidas, as que preveem nuvens negras pela frente ou mesmo “as que já atingiram o seu mais alto patamar de desempenho, mas gerenciadas por gente ambiciosa e agressiva”.

Por tudo isso, depreende-se que a reengenharia é mesmo drástica e radical, como enfatizam seus criadores, e deve ser utilizada quando se pensa em destruir tudo o que existe dentro de uma empresa, principalmente pessoas, pois no ambiente que ela varre, divisões, departamentos e outras estruturas organizacionais tradicionais têm o lixo por destino. Além disso, seus adeptos devem ser individualistas (leia-se: egocêntricos), autoconfiantes, propensos ao risco, inclinados à mudança; ser dotados de “imaginação, pensamento indutivo e um toque de loucura” ao redefinirem processos administrativos – o que vem sendo fartamente comprovado. Sob tal enfoque, “empresas perfeitamente viáveis são estripadas ou abandonadas, empregados capazes ficam à deriva, em vez de ser recompensados, simplesmente porque a organização deve provar ao mercado que pode mudar”[5].

A reengenharia também ensina que uma das forças (as outras seriam a concorrência e a mudança) a empurrar “as empresas cada vez mais para dentro de um território assustadoramente desconhecido para seus executivos e gerentes” é o cliente. Ele mesmo, quem poderia imaginar, do qual as empresas só se lembram em campanhas mercadológicas que – robustecidas ad nauseam pelos algoritmos das redes sociais que tudo sabem de toda gente – induzem-no ao consumo conspícuo e irrefletido. Assim hipocritamente definido, além de tanger as empresas rumo ao desconhecido, esse cliente reformulado passa a habitar a mente dos trabalhadores, assombrando-os, pois a reengenharia “exige que os empregados acreditem profundamente que trabalham para os seus clientes, e não para os seus chefes”

Visto que na estrutura administrativa arcaica um gerente supervisionava em torno de sete subordinados, ao passo que a reengenharia afirma que ele pode supervisionar trinta ou mais – hoje muito mais –, começou-se a fatiar a pirâmide administrativa à meia altura do topo, quando, em muitos casos, vários degraus da gerência intermediária foram excluídos. Era a compressão vertical da reengenharia, um de seus instrumentos de corte mais afiados, sendo posta em ação: além de levar ao nivelamento das empresas, ela supostamente delegaria aos trabalhadores o ônus da tomada de decisões autônoma ao dispensá-los de consultar um superior hierárquico já não mais presente. Assim procedendo, e levando-se em conta o novo papel do cliente nessa história toda, ao eliminar os escalões gerenciais intermediários a alta administração empresarial e industrial parece querer demonstrar sua vontade de aproximar-se “mais do mundo real”; aproximar-se mais “dos clientes e dos executantes do trabalho adicionador de valor da empresa”, como reza a reengenharia.

Ora, à medida em que os ocupantes dos cargos intermediários eram degolados os da base da pirâmide, com frequência mais sujeitos ao aniquilamento periódico, aos salários em queda livre e às condições de trabalho mais aviltantes, olhavam aquilo com estranheza, eles que sempre foram os alvos prediletos das ceifadeiras que passavam ao largo, poupando-lhes os pescoços. Mas durou pouco sua inusitada valorização: a ânsia por se chegar também à compressão máxima dos custos e salários, e a um número mínimo de trabalhadores, terminou por prevalecer sobre as demais sugestões da reengenharia. Desde então, em todos os níveis hierárquicos, e em incontidas e sucessivas levas, empregados passaram a ser dizimados aos milhares, da mesma forma que os direitos trabalhistas, a segurança no emprego, a manutenção dos salários em níveis que até então possibilitavam a subsistência, algum conforto e o lazer de suas famílias. Por sua excelência, o procedimento foi alçado à família dos chamados projetos contínuos, aqueles que nunca perecem dentro das organizações, onde evoluem e ganham adendos, pois lá lucubra-se sempre sobre a melhor maneira de exercitá-lo com maior eficácia – eficácia é uma palavra de fortes conotações nesses ambientes. Resulta disso que, “enquanto as empresas consistirem em pessoas”[6], alguém lá dentro vai tentar eliminá-las, pois a cada nova extirpação parece sempre sobrar gente a entulhar o caminho até a calçada, onde os clientes, a cada dia mais necessitados de um emprego que lhes permita consumir e movimentar a economia, anseiam pela deferência de empresários e banqueiros, por seus produtos ISO-isto ou ISO-aquilo.

Superadas as agruras da reestruturação, desempenho e promoção são desvinculados um do outro na pós-reengenharia: a promoção é associada à habilidade; o desempenho, não, mas ao valor que as tarefas adicionam aos produtos manufaturados pela empresa ou aos serviços por ela prestados. Mas o que é adicionar, ou agregar, valor a um produto ou serviço? A reengenharia explica: “coloque-se no lugar do cliente e pergunte: ‘Eu me importo com isso? Se a resposta for não, o trabalho não adiciona valor”. Além disso, para que não reste qualquer traço de dúvida nas mentes de seus seguidores, a reengenharia ainda fornece este exemplo elucidativo, em ríspida dialética: “Os clientes se importam com os controles internos, as auditorias, a administração e os relatórios de uma empresa? Absolutamente não”. Entenda-se isso como se quiser...

Ainda segundo a teoria, admite-se até que um trabalhador possa vir a ser promovido, desde que adquira mais habilidades – esse, o nó górdio da administração de negócios da pós-modernidade, impossível de ser desfeito sem o suporte de um sindicato tão poderoso quanto os exércitos de Alexandre –, pouco importando se esse trabalhador apresenta, ou não, um desempenho fantástico, ou torne-se mais experiente no que faz. “O prêmio”, e não um aumento de salário, “é a recompensa apropriada para o serviço bem-feito. A promoção para um novo cargo não é [uma recompensa]”, o que, até certo ponto, está correto. Errado é o corolário do teorema: os prêmios que o trabalhador excepcional recebe por seu desempenho não só deixam de agregar valor ao seu salário – segundo a terminologia que a teoria utiliza – como também o congela, pois não mais existe progressão salarial dentro de um mesmo cargo do organograma, razão pela qual quem é hoje admitido em uma empresa não mais enxerga uma possibilidade de carreira, dada a exiguidade de degraus a serem escalados. Nesse contexto, a motivação do trabalhador vem, não da vontade de crescer, mas do medo de perder o cargo que ocupa, a cada dia mais escravizador, a cada dia menos valorizado e menos remunerado.

Na verdade, feliz é o trabalhador que ainda tem um salário, mesmo que congelado ou reduzido com o passar do tempo, já que os danos nele causados pela inflação são revertidos em benefícios para quem o emprega. Assim, no ambiente reformulado pela reengenharia, a remuneração passa a ser proporcional ao desempenho, que por sua vez se correlaciona (saiba-se lá por que passe de mágica) com o valor do trabalho agregado aos produtos. Além de tudo, quando determinada tarefa não adiciona valor aos produtos ou serviços, seus executantes são candidatos à extirpação; ou, se lhes sobra alguma sorte, à queda brutal de salários e benefícios da terceirização; ou, pior ainda, ao desamparo total da precarização ou uberização ou do contrato zero ou intermitente de trabalho – deem-lhes o nome que lhes aprouver.

Quanto ao nível de exigência das tarefas reformuladas, depois de reduzidas a cinzas e renascidas sob novas feições, elas se afiguram complexas, como ensina a reengenharia, e demandam gente especializada para executá-las, “quando antes eram simples e não-especializadas”. Ora, como o tempo gasto em trabalhos adicionadores de valor é maior que o despendido nos trabalhos que anteriormente nada adicionavam aos produtos, a teoria ensina ainda que isso aumentaria a contribuição do trabalhador à empresa, razão pela qual “os serviços tendem, globalmente, a ser mais bem remunerados”.

Entretanto, mais à frente isso é contraditado pelo que poderíamos chamar de segunda lei do empresariado, que, em consonância com a segunda lei da termodinâmica, segundo Sir Arthur Stanley Eddington, jamais pode ser posta em dúvida: “Como o desempenho de um trabalhador oscila e pode decair no futuro, os salários básicos tendem a permanecer relativamente constantes, descontada a inflação” – descontada a inflação, ora pois...

Portal através do qual presidentes, diretores e executivos vislumbram a possibilidade de aproximar-se assintoticamente do custo zero de produção – uma obsessão a atormentar-lhes os dias –, o advento da reengenharia, aliado aos malefícios da doutrina neoliberal e da globalização; ao abandono pelos governos das teses acordadas em Bretton Woods, e da desregulação dos mercados marcaram decisivamente o desvio brusco rumo à estratosfera das curvas dos salários e bonificações de presidentes e altos executivos das organizações. Concomitantemente, as curvas que assinalam as tendências dos níveis de emprego, dos salários dos trabalhadores e investimentos governamentais em políticas de bem-estar social se inflectem aceleradamente rumo ao chão. Nesse contexto, só nos resta lembrar da espoliação sofrida pelos antigos artesãos na transição do feudalismo para os tempos sombrios da Revolução Industrial – e de suas piores consequências.

Aceso o rastilho que espalhou o pavor de se perder o emprego, reduziu-se a pó, no ambiente das empresas, a harmonia que sustentava os alicerces do convívio civilizado entre chefes e subordinados e entre colegas. Por mais que se afirmasse haver chegado ao fim as sucessivas ondas de demissões e revogação de direitos trabalhistas, perdeu-se para sempre a credibilidade de tal assertiva, ou de quaisquer outras de natureza apaziguadora vindas do topo da pirâmide. Como consequência, a antiga disputa mais ou menos civilizada para ascender-se aos cargos superiores, muitos deles hoje extintos, cedeu de vez à luta por garantir-se a todo custo um lugar nessas balsas de Medusa que singram as águas do novo capitalismo. Dando-se conta da ameaça iminente, seus ocupantes procuram defender, nos limites da decência frequentemente ultrapassados, seus lugares sob ameaça. Desse modo, deixando de lado o emparelhamento harmonioso entre chefes e subordinados, os níveis hierárquicos passaram a combinar-se em rimas interpoladas de um soneto à discórdia: o chefe, longe dos tempos em que preparava seu melhor subordinado para que o sucedesse, tenta agora jogar para fora do barco aquele que julga estar cobiçando sua posição; este, procurando a qualquer custo manter-se sobre o casco, e ambicionando o timão a que o seu chefe se agarra, lamuria mágoas aos ouvidos do chefe de seu chefe, insinua competências menosprezadas, coloca sob suspeita as qualidades e as aptidões de quem o gerencia, sibila sua língua bipartida em sub-reptícias sugestões aos ouvidos de quem, ele sabe, também não aprecia ver-se ameaçado pelo subordinado posto em questão, o chefe do insurrecto. Sobre tecido roto, disseminam-se emaranhadas redes de intrigas e mal dissimuladas violações de caráter.

Em ambiente tão conturbado, as promoções, antes vistas como absolutamente normais e recebidas com tranquilidade por agraciados e não-agraciados, transformam-se em outro ponto de discórdia e disputa. Em alguns casos elas passaram a ser secretas, pois, em sua maioria, deixam de obedecer a critérios técnicos e de competência, o que leva a que sejam comentadas à sorrelfa pelos corredores, em sussurros de profunda mágoa, feroz desaprovação e furibunda revolta. Se comunicadas, dão origem a manifestações de afronta incontida a que boa parte dos preteridos se entrega, por não as ter também recebido. Não raro, um encabulado agraciado que bem mereceu sua promoção recebe, quase se desculpando meio envergonhado, felicitações de alguns dos que vão cumprimentá-lo, levando na bagagem derrisórias e mal dissimuladas insinuações de favorecimento ilícito.

Ao mesmo tempo em que o corte drástico era exercitado alhures, no outro extremo da raia a turma da Qualidade, farisaica e compulsiva aspiração que atormenta altos dirigentes, avançava e produzia, a pleno vapor, toneladas de manuais recheados de normas que (augurava-se) seriam capazes de direcionar a qualidade dos produtos produzidos ou serviços prestados rumo à excelência. Mas, como “só na vida de fantasia e muitíssimo bem paga dos consultores pode uma grande organização definir um novo plano de negócios, enxugar-se e ‘replanejar-se’ à perfeição, e depois tocar em frente o novo negócio”[7], chegou-se inesperadamente a um impasse incontornável e – poder-se-ia dizer – inimaginável no ambiente bem planejado das corporações: como operacionalizar toneladas de normas para a melhoria da qualidade dos produtos e serviços se, ao aproximar o presidente da calçada, onde o esperam os ansiosos clientes da empresa, a outra turma, a da guilhotina, eliminara tanta gente; se os poucos que sobraram, desmotivados e tensos em meio à longa travessia, mal dispõem de tempo para estudar e memorizar procedimentos adequados à manufatura de produtos impecáveis; se, para cuidarem de seus afazeres sem as preocupações com um futuro pintado em cores sombrias e melhorar a qualidade dos produtos, a busca obsessiva pelo custo zero de produção impõe metas mais severas de redução de despesas e investimento a cada orçamento anual? Nenhum conflito, pois as empresas da pós-modernidade abominam a hesitação, o titubeio: que a segunda turma continue a burilar suas normas, versões sempre melhoradas de uma mesma coisa, não importando se irão ou não ser honestamente postas em prática. Basta-lhes que sejam aprovadas por algum representante local da severa e celebrada International Organization for Standardization[8]. Uma vez obtida a certificação, não se acusará a empresa de descuidos na produção, e seus produtos serão identificados como sendo produzidos segundo uma norma ISO que lhes atribua confiabilidade, quando estampada nos rótulos dos produtos, na mercadologia de serviços, ou brilhasse no frontão do Edifício Sede.

Dizimados seus quadros mais experientes, as corporações passaram a delegar a auditores e consultores a análise de seus procedimentos administrativos e a viabilização de mudanças bruscas em seu modus operandi. Ao encarregar terceiros de reformular seus procedimentos operacionais ou administrativos, o que é levado a cabo em voos rasantes e sob denso nevoeiro, dirigentes livram-se de risco e ônus a eles inerentes, e também da responsabilidade pelo fracasso de um passo em falso dado no escuro. Por sua vez, donos confiantes e despreocupados do poder paralelo que exercem dentro das organizações, por onde circulam com desenvoltura, consultores descompromissados com os meios que os levarão à consecução de seus projetos dão feição às mudanças por eles sugeridas e avaliadas, seguros de que sempre é possível reverter as turbinas do avião antes da decolagem. Assim confiantes, mal perceberão se o ponto de inflexão que separa a interrupção bem-sucedida do desastre já não foi ultrapassado. Mas quem se importa caso o avião se esborrache no chão? Muitíssimo dinheiro, além de tempo perdido e gente degolada, é jogado no lixo das empresas por conta disso, sem que se cortem cabeças no topo da pirâmide administrativa.

Quanto às consultorias, elas pouco se importam com as consequências, uma vez posto o dinheiro, que não é pouco, no bolso: são sabedoras de que o mercado tem memória curta e necessidades prementes de seus serviços, e que sempre necessitará de bacias profundas onde mãos de dirigentes despreocupados, pois agora livres das auditorias internas e sem compromissos com procedimentos que desencadeiam, possam ser lavadas de qualquer culpa – afinal, só o que hoje interessa aos acionistas majoritários é o quanto a empresa cresceu de um ano para o outro. Tampouco essas consultorias são levadas às barras dos tribunais ou instadas a dar conta do dinheiro investido na canoa furada. Isentas de culpa, continuam a circular por aí, vendendo serviços que são depois auditados por outro ramo do negócio a que pertencem, em um conflito de interesses espúrio e desavergonhado. No fim das contas, as consequências sobrarão para os trabalhadores, que carregam a empresa nos ombros e sempre arcam com os prejuízos, recuperados pela redução de seus salários ou pela degola de alguns deles.

Não é só no interior das empresas que se esbarra com consultores ou seus afeiçoados prosélitos: as revistas de negócios estão sempre recheadas da sabedoria desses mestres manipuladores de bujarronas e velachos das empresas que singram os mares em busca de novos rumos. Sua sabedoria é sempre formulada em conselhos aureolados de esotérica magia, como exemplifica encarte publicitário inserido em número da revista Você S/A [9] (o exemplo é velho, mas tão simbólico de uma época, que julgo por bem mantê-lo vivo), publicada quando os consultores começavam a experimentar o auge de seu esplendor dentro das organizações.

A matéria, intitulada O mundo das consultorias de RH, faz descrições sucintas de alguns serviços disponíveis no mercado de então, entremeadas por pontos de vista de diretores e vice-presidentes de recursos humanos (outra espécie em extinção dentro das corporações, pois que quase dizimadas ou terceirizadas), onde abundam exemplos do seu jargão profissional, a linguagem dos consultores, que também poderíamos chamar de portuglês, tal a sua disseminação desde então e ora utilizada até mesmo pela lanchonete da esquina, que anuncia como vantagens para seus clientes o delivery e o cashback. Sob o primeiro subtítulo, Executive Search – ou, na linguagem corrente, busca por um executivo no mercado – descobre-se que “o mundo das consultorias envolve vários tipos de serviços, alguns contratados por empresas, outros diretamente pelos profissionais. Remunerados com honorários que giram em torno de 33% do pacote de salário anual do executivo pesquisado, os headhunters atuam basicamente na alta administração”. Opinião de um contrariado vice-presidente de RH: “Às vezes o networking é insuficiente ou esbarra em questões éticas. Para posições onde há carência de profissionais, o search amplia o radar e consegue captar mais talentos em campos escassos”, o que não impede um diretor de choramingar: “O preço cobrado é excessivo”. Mais à frente, sob o subtítulo Outplacement, a autora do texto elucida origens e constata a inexorabilidade do desemprego atual, ao escrever que “fusões, reestruturações e novas estratégias que demandam recomposição do quadro funcional são hoje parte do jogo entre empregadores e força de trabalho”. Reforçando essa opinião, uma pragmática diretora de RH reconhece que “a consciência de que, numa organização, estamos todos de passagem já está desenvolvida”, um truísmo do novo capitalismo. Concordando com esse ponto de vista, a redatora do texto acrescenta que “neste contexto, têm ganhado força os serviços de outplacement patrocinados pelas empresas”, que, segundo outra diretora, é o reconhecimento implícito da contribuição dada pelo profissional à companhia. Finalmente, sob o subtítulo “Aconselhamento de Carreira” (estranhamente escrito em português), oferecem-se variados tipos de salva-vidas aos executivos à deriva: “Outra vertente que está conquistando espaço é o das consultorias de aconselhamento de carreira, que oferecem programas em assessment, counseling, mentoring, coaching e congêneres”.

Que os menos afeitos à linguagem dos consultores, de presidentes e diretores de empresa e profissionais de recursos humanos não se sintam constrangidos caso as várias palavras encontradas no parágrafo anterior padeçam de significado. Dentre as que merecem a elucidação de seus sentidos encontram-se as enfileiradas na última citação do parágrafo anterior: elas guardam em si tudo o que pais e mães – a que ponto chegamos – fazem quando educam seus filhos segundo preceitos hoje quase ultrapassados: testar e avaliar suas habilidades, encorajá-los, aconselhá-los, acompanhar seu aprendizado e dar um reforço nas tarefas da escola, quando necessário for; quanto a congêneres, que todos sabem o que significa, no contexto a palavra é tão supérflua quanto obscura. Outra delas, outplacement, citada até em demasia, disfarça um rito de despedida encenado nas empresas então temerosas do que vão dizer lá fora os infelizes executivos que recebem (em bom português) um pé na bunda em seu interior. Na verdade, outplacement, palavra e prática hoje em desuso, recende a falso interesse ou, voltando à linguagem dos consultores, a crocodile tears, o nosso bem conhecido “lágrimas de crocodilo”.

Finalmente, na página 25 da revista, a legenda de uma fotografia informa que uma empresa de São Paulo, “encontrou uma forma inusitada de promover a integração de sua equipe: no Dia das Bruxas todos os funcionários de seu Call Center trabalharam fantasiados”. Dessa forma, além de mostrar que, neocolonizados que somos, já importávamos bobagens como o Dia das Bruxas (porque não Halloween?), o texto ainda reforça a suspeita de que os laços afetivos dentro das empresas tornavam-se a cada dia mais tênues e esgarçados até chegarem aos níveis atuais, o que faz com que seja necessário introjetar na mente de seus efêmeros passageiros sentimentos de coleguismo e camaradagem, por meio de artifícios como esse e tantos outros mais.

Outra característica marcante das empresas dos primeiros anos da década de 1990 – mais ainda nas da atualidade – é que desde muito cedo começaram a amoldar seus executivos à feição predatória dos interesses dos grandes capitais; a amestrá-los na arte do egocentrismo e da submissão à cupidez de executivos e acionistas majoritários gananciosos. Arregimentavam-nos ainda imberbes nas melhores universidades, antes que fossem inadvertidamente corrompidos pela ética e pelo ideário do Iluminismo, malvistos dentro das corporações, onde egolatria e sujeição sempre foram e são atributos díspares a conviver em perfeita harmonia na alma de quem almeja subir a todo custo ao topo da pirâmide de cargos. Aqueles de ambição mediana vão, ao longo da carreira, perdendo força na dura escalada, sinal de que os tolhe alguma afeição, mal detectada no aliciamento, à família e aos princípios éticos e morais, o que é mal visto no ambiente onde trabalham; outros tantos, de ambição desmedida e notabilizada pela ânsia de suprir superiores de boas ideias, por vezes alheias, por vezes torpes, são os chamados high-fliers, pássaros de alto voo, esbaforidos novos faustos do novo capitalismo, que cedo se revelam dispostos a vender a própria alma pela efêmera posse de algum poder, graal sequiosamente procurado pelos que fazem de sua busca nunca saciada o objetivo maior de suas existências. Alguns sacrificam o apreço dos colegas, a família e a própria autoestima pela ilusão de escalar o organograma de uma organização que não lhes pertence – embora pensem o contrário – e não hesitará em lançá-los fora de suas engrenagens quando apropriado for (assim funcionam as empresas, em cujo interior não são servidos almoços de graça, como costumam dizer os norte-americanos, mestres do descarte pragmático que cortam empregos em sua própria pátria ao transferirem fábricas inteiras para lugares do mundo, quaisquer lugares, onde possam economizar um punhado de centavos de dólar em salários a cada dia mais miseráveis). Além disso, à medida que escalam a pirâmide, tais alpinistas se revelam grosseiros e mal-educados com os subordinados, que tratam como seus vassalos; outros tantos, dissimulados e de fala mansa, escondem-se sob falsa aparência amistosa: sorrateiros, são os mais maléficos e traiçoeiros. Rapidamente eles sobem aos mais altos postos, não só pela competência profissional, mas pela destreza no manejo da foice, pois as corporações, com sua política de resultado a todo custo e do desprezo à lealdade, estimula e premia sua ambição. Lá chegados, e com raríssimas quebras deste preceito, muitos deles escondem na arrogância seu vazio interior, o despreparo intelectual e emocional para habitar as alturas. Em sua cegueira na busca insaciável de poder e glória – efêmeras ilusões –, morrerão sem saber o que é se emocionar com um trecho de música, com os versos de um poema, com uma pintura de mestre (só adquirida, por vezes a preço exorbitante, por exibicionismo ou investimento), ou com o entardecer, que quase nunca veem, que jamais apreciam. Sob sua guarda, empilha-se dinheiro em suas pirâmides, onde pessoas comuns são destruídas sem condescendência ou remorso.

Precarização, uberização, contrato zero ou intermitente de trabalho são alguns dos nomes de batismo dos filhos bastardos gerados pela união do neoliberalismo com a reengenharia: a extirpação dos direitos trabalhistas – contratos formais de trabalho, férias anuais, progressão de carreira e ascensão a cargos superiores; a não cobertura de riscos (indenização por demissão, coparticipação do empregador na contribuição previdenciária do empregado); a eliminação do poder dos sindicatos e o não acompanhamento sindical nas rescisões de trabalho; a impossibilidade de se processarem empresas por transgressões trabalhistas como um direito e não como risco assumido por quem, lesado em seus direitos trabalhistas, apela a um sistema judiciário corrompido, parcial e favorável aos patrões, e outros tantos mais rebentos de sua inumerável prole, prazerosamente acolhida por Estados e governos ao redor do mundo.

E hebraico, pão e luta (léhem e léham) são indissociáveis, pois proveem de uma mesma raiz semântica, o que nos leva a pensar, por analogia, na angústia que o desemprego e a falta de meios para manter-se uma família produzem; na precária tábua de salvação de trabalhadores que ainda possuem um emprego ou um bico como trabalho; e em suas piores consequências.

Permanência fugaz, submissão a longas jornadas mal remuneradas, doação da própria alma, renúncia ao lazer, conformidade a salários em queda livre, intranquilidade, insegurança, estresse, desespero e surda revolta são as novas palavras de ordem, uma estranha mealha de competências que terminarão por gerar seus próprios remédios, quem sabe, amargos; talvez violentos.



Notas:

[1] "Reengenharia: Não automatize, elimine". Reengineering Work: Don't Automate, Obliterate | Harvard Business Publishing Education.

[2] No Brasil, Reengenharia – Revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência. Rio de Janeiro. Editora Campus.1994.

[3] HELLER, Anne C. Ayn Rand and the world she made. New York. Books. 2009.

[4] Ibidem.

[5] Sennett, Richard. A Corrosão do Caráter. Editora Record. 2000. Rio de Janeiro. p. 59.

[6] Esse fragmento de frase foi extraído de seu contexto original: “Enquanto as empresas consistirem em pessoas, algum grau de verificação e controle será inevitável”, cujo sentido guarda, indubitavelmente, subliminar esperança.

[7] Richard Sennett, op. cit., p. 57

[8] Organização Internacional para a Padronização, fundada em Genebra em 1947, responsável pela padronização de produtos, exceto os elétricos e eletrônicos.

[9] Você S/A. Editora Abril (novembro/2001) pp. 66-70


(Quando florirem os flamboyants)



(Ilustração: Jean Louis Theodore Géricault - A balsa de Medusa -1819)