quinta-feira, 25 de junho de 2015

UM RELATÓRIO PARA UMA ACADEMIA, de Franz Kafka







Conferem-me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório sobre a minha pregressa vida de macaco.

Não posso infelizmente corresponder ao convite nesse sentido. Quase 5 anos me separam da condição de símio; espaço de tempo que medido pelo calendário talvez seja breve, mas que é infindavelmente longo para atravessar a galope como eu o fiz, acompanhado em alguns trechos por pessoas excelentes, conselhos, aplauso e música orquestral, mas no fundo sozinho, pois, para insistir na imagem, todo acompanhamento se mantinha bem recuado diante da barreira. Essa realização teria sido impossível se eu tivesse querido me apegar com teimosia à minha origem e às lembranças de juventude. Justamente a renúncia a qualquer obstinação era o supremo mandamento que eu me havia imposto; eu, macaco livre, me submeti a esse jugo. Com isso porém as recordações, por seu turno, se fecharam cada vez mais para mim. O retorno, caso os homens o tivessem desejado, estava de início liberado através do portal inteiro que o céu forma sobre a terra, mas ele foi se tornando simultaneamente mais baixo e mais estreito com a minha evolução, empurrada para a frente a chicote; sentia-me melhor e mais incluído no mundo dos homens; a tormenta cujo sopro me carregava do passado amainou; hoje é apenas uma corrente de ar que me esfria os calcanhares; e o buraco na distância, através do qual ela vem e através do qual eu outrora vim, ficou tão pequeno que eu me esfolaria no ato de atravessá-lo, mesmo que as forças e a vontade bastassem para que retrocedesse até lá. Falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra - do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.

No sentido mais restrito, entretanto, posso responder à indagação dos senhores e o faço até com grande alegria. Sem dúvida não poderia dizer nem a insignificância que se segue, se não estivesse plenamente seguro de mim e se o meu lugar em todos os grandes teatros de variedades do mundo civilizado não tivesse se firmado a ponto de se tornar inabalável.

Sou natural da Costa do Ouro. Sobre como fui capturado, tenho de me valer de relatos de terceiros. Uma expedição de caça da firma Hagenbeck - aliás, com o chefe dela esvaziei desde então algumas boas garrafas de vinho tinto - estava de tocaia nos arbustos da margem, quando, ao anoitecer, eu, no meio de um bando, fui beber água. Atiraram; fui o único atingido; levei dois tiros. Um na maçã do rosto: esse foi leve, mas deixou uma cicatriz vermelha de pelos raspados, que me valeu o apelido repelente de Pedro Vermelho, absolutamente descabido e que só podia ter sido inventado por um macaco, como se eu me diferenciasse do macaco amestrado Pedro - morto não faz muito tempo e conhecido em um ou outro lugar - somente pela mancha vermelha na maçã da cara. Mas digo isso apenas de passagem.

O segundo tiro me acertou embaixo da anca. Foi grave e a ele se deve o fato de ainda hoje eu mancar um pouco. Li recentemente, num artigo de algum dos 10 mil cabeças-de-vento que se manifestam sobre mim nos jornais, que minha natureza de símio ainda não está totalmente reprimida; a prova disso é que, quando chegam visitas, eu tenho predileção em despir as calças para mostrar o lugar onde aquele tiro entrou. Deviam arrancar um a um os dedinhos da mão do sujeito que escreveu isso. Eu – eu posso despir as calças a quem me apraz; não se encontrará lá nada senão uma pelúcia bem tratada e a cicatriz de um tiro delinquente. Se, ao contrário, aquele escrevinhador despisse as calças diante da visita que chega, isso sem dúvida teria um outro aspecto e quero considerar como sinal de juízo se ele não o fizer.

Depois daqueles tiros eu acordei - e aqui, aos poucos, começa a minha própria lembrança - numa jaula na coberta do navio a vapor da firma Hagenbeck. Não era uma jaula gradeada de 4 lados; eram apenas 3 paredes pregadas num caixote, que formava portanto a quarta parede. O conjunto era baixo demais para que eu me levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado para o caixote, uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém e desejava estar sempre no escuro, enquanto por trás as grades da jaula me penetravam na carne. Consideram vantajoso esse tipo de confinamento de animais selvagens nos primeiros tempos e hoje, pela minha experiência, não posso negar que seja assim do ponto de vista humano.

Mas então eu não pensava isso. Pela primeira vez na vida estava sem saída; ao menos em linha reta ela não existia; em linha reta diante de mim estava o caixote, cada tábua firmemente ajustada à outra. Sobrevivi a esses tempos. Surdos soluços, dolorosa caça às pulgas, fatigado lamber de um coco, batidas de crânio na parede do caixote e mostrar a língua quando alguém se aproximava - foram essas as primeiras ocupações da minha nova vida. Em tudo porém apenas um sentimento: nenhuma saída. Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a velha verdade do símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe - quanto a isso não há dúvida.

Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! Estava encalhado. Tivessem me pregado, minha liberdade não teria ficado menor. Por que isso? Escalavre a carne entre os dedos do pé que não vai achar o motivo. Comprima as costas contra a barra da jaula até que ela o parta em dois que não vai achar o motivo. Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia viver. Caso permanecesse sempre colado à parede daquele caixote teria esticado as canelas sem remissão. Mas na firma Hagenbeck o lugar dos macacos é de encontro à parede do caixote - pois bem, por isso deixei de ser macaco. Um raciocínio claro e belo que de algum modo eu devo ter chocado com a barriga, pois os macacos pensam com a barriga.

Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei conhecimento com pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz respeito, eu não exigia liberdade nem naquela época nem hoje. Dito de passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais sublimes, também o ludíbrio correspondente figura entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha entrada em cena, um ou outro par de artistas às voltas com os trapézios lá do alto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano”. Ó derrisão da sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso.

Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser apenas um engano; a exigência era pequena, o engano não seria maior. Ir em frente, ir em frente! Só não ficar parado com os braços levantados, comprimido contra a parede de um caixote.

Hoje vejo claro: sem a máxima tranquilidade interior eu nunca teria escapado. E de fato talvez deva tudo o que me tornei à tranquilidade que me sobreveio depois dos primeiros dias lá no navio. Mas a tranquilidade, por sua vez, eu a devo sem dúvida às pessoas do navio.

São homens bons, apesar de tudo. Ainda hoje gosto de me lembrar do som dos seus passos pesados que então ressoavam na minha sonolência. Tinham o hábito de agarrar tudo com extrema lentidão. Se algum queria coçar os olhos, erguia a mão como se ela fosse um prumo de chumbo. Suas brincadeiras eram grosseiras mas calorosas. Seu riso estava sempre misturado a uma tosse que soava perigosa mas não significava nada. Tinham sempre na boca alguma coisa para cuspir e para eles era indiferente onde cuspiam. Queixavam-se sempre de que minhas pulgas pulavam em cima deles, mas nunca ficaram seriamente zangados comigo por isso; sabiam muito bem que nos meus pelos as pulgas prosperam e que as pulgas são saltadoras; conformavam-se com isso. Quando estavam de folga, alguns sentavam-se em semicírculo à minha volta; quase não falavam, mas arrulhavam uns para os outros; fumavam os cachimbos esticados sobre os caixotes; davam tapas nos joelhos assim que eu fazia o menor movimento e de vez em quando um deles pegava um pau e me fazia cócegas onde me era agradável. Se hoje eu fosse convidado a fazer uma viagem nesse navio certamente recusaria o convite, mas é igualmente certo que lá na coberta da embarcação eu não me entregaria apenas a más recordações.

A tranquilidade que conquistei no círculo dessas pessoas foi o que acima de tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga. Da perspectiva de hoje me parece que eu teria no mínimo pressentido que precisava achar uma saída caso quisesse viver, mas que essa saída não devia ser alcançada pela fuga. Não sei mais se a fuga era possível, porém acredito nisso; a um macaco a fuga deveria ser sempre possível. Com os dentes que tenho hoje preciso ser cauteloso até no ato habitual de quebrar nozes, mas naquela época decerto eu teria conseguido, com o correr do tempo, partir nos dentes a fechadura. Não o fiz. O que teria sido ganho com isso? Teriam me prendido de novo, mal a cabeça estivesse de fora, e trancafiado numa jaula pior ainda; ou então poderia ter fugido sem ser notado até o lado oposto, onde estavam os outros animais, quem sabe até as cobras gigantescas, e exalado o último suspiro nos seus abraços; ou então conseguido escapar para o convés e saltado pela amurada: aí teria balançado um pouquinho sobre o oceano e me afogado. Atos de desespero. Não fazia cálculos tão humanos, mas sob a influência do ambiente comportei-me como se os tivesse feito.

Não fazia cálculos mas sem dúvida observava com toda a calma. Via aqueles homens andando de cima para baixo, sempre os mesmos rostos, os mesmos movimentos, muitas vezes me parecendo que eram apenas um. Aquele homem ou homens andavam pois sem impedimentos. Um alto objetivo começou a clarear na minha mente. Ninguém me prometeu que se eu me tornasse como eles a grade seria levantada. Não se fazem promessas como essa para realizações aparentemente impossíveis. Mas se as realizações são cumpridas, também as promessas aparecem em seguida, exatamente no ponto em que tinham sido inutilmente buscadas. Ora, naqueles homens não havia nada em si mesmo que me atraísse. Se eu fosse um adepto da já referida liberdade, teria com certeza preferido o oceano a essa saída que se me mostrava no turvo olhar daqueles homens. Seja como for, porém, eu os observava desde muito tempo antes que viesse a cogitar nessas coisas - sim, foram as observações acumuladas as que primeiro me impeliram numa direção definida.

Era tão fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias eu já sabia cuspir. Cuspimos então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a sua. O cachimbo eu logo fumei como um velho; se depois eu ainda comprimia o polegar no fornilho, a coberta inteira do navio se rejubilava; só não entendi durante muito tempo a diferença entre o cachimbo vazio e o cachimbo cheio.

O que me custou mais esforço foi a garrafa de aguardente. Que vitória foi quando então uma noite, diante de um círculo grande de espectadores - talvez fosse uma festa, tocava uma vitrola, um oficial passeava entre as pessoas -, quando nessa noite eu agarrei uma garrafa de aguardente, desarrolhei-a segundo as regras, sob a atenção crescente das pessoas, levei-a aos lábios e, sem hesitar, sem contrair a boca, como um bebedor de cátedra, com os olhos virados, a goela transbordando, eu a esvaziei de fato e de verdade; joguei fora a garrafa não mais como um desesperado, mas como um artista; na realidade esqueci de passar a mão na barriga, mas em compensação - porque não podia fazer outra coisa, porque era impelido para isso, porque os meus sentidos rodavam - eu bradei sem mais “alô!”, prorrompi num som humano, saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco - “Ouçam, ele fala!”





(Um médico rural; tradução de Modesto Carone)





(Ilustração: Anderson Bolcato - transmutação vitriólica)






segunda-feira, 22 de junho de 2015

A FÁBRICA DO POETA, de Emílio Moura








Fabrico uma esperança

como quem apaga

algo sujo num muro,

e ali, rápido, escreve:

Futuro.




Fabrico uma pureza

tão menina,

tão cristal e tão fonte

que, de repente,

É meu todo o horizonte.




Fabrico uma alegria

que é de ver as coisas

como se só agora

é que nascesse

a aurora.




Fabrico uma certeza

exata

para cada instante.

A vida não está atrás,

Mas adiante.




Fabrico com o que tiro

de mim mesmo e do mundo

meu dia.

E ao que, em síntese, sou

junto o que queria.




Fabrico uma hora densa,

como quem te descobre.

Ah, quem diria

que essa hora imensa

já é poesia?




(Itinerário Poético Poemas Reunidos)




(Ilustração: Érika Cardoso - catedrais)



sexta-feira, 19 de junho de 2015

JÁ NÃO PODES VIVER MAIS TEMPO CONOSCO, de Cícero






Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?

Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. À morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.

Pois não é verdade que uma personagem tão notável, como era Públio Cipião, pontífice máximo, mandou, como simples particular, matar Tibério Graco, que levemente perturbara a constituição do Estado? E Catilina, que anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra, haveremos nós, os cônsules, de o suportar toda a vida? E já não falo naqueles casos de outras eras, como o facto de Gaio Servílio Aala ter abatido, por suas próprias mãos, Espúrio Mélio, que alimentava ideias revolucionárias. Havia, havia outrora nesta República, uma tal disciplina moral que os homens de coragem puniam com mais severos castigos um cidadão perigoso do que o mais implacável dos inimigos. Temos um decreto do Senado contra ti, Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a decisão clara nem a autoridade da Ordem aqui presente que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os cônsules, é que faltamos.

Decidiu um dia o Senado que o cônsul Lúcio Opímio velasse para que a República não sofresse dano algum. Pois nem uma noite passou. Gaio Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de pai, de avô e de seus maiores, foi morto por causa de certas suspeitas de revolta; juntamente com os filhos foi executado Marco Fúlvio, um consular. Com um mesmo decreto do Senado, foi a República confiada aos cônsules Gaio Mário e Lúcio Valério. Acaso adiaram eles mais um dia sequer a pena de morte, por crime de lesa-república, a Lúcio Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio, um pretor?

Nós, porém, há já vinte dias que consentimos no enfraquecimento do vigor de decisão destes homens. Temos um destes decretos do Senado, mas está fechado nos arquivos como espada metida em bainha; e, segundo esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias ter sido imediatamente condenado à morte. E eis que continuas vivo, e vivo não para abdicares da tua audácia, mas para nela te manteres com inteira firmeza. É meu desejo, venerandos senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de tamanhos perigos da República, não parecer indolente; mas já eu próprio de inacção e moleza me acuso.

Há acampamentos em Itália contra o povo romano. Estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em cada dia o número dos inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e o comandante desses inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e dentro do próprio Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a República. Se, neste momento, eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a tua morte, o que sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos os bons cidadãos me censurem por ter actuado tarde, e não que haja alguém a dizer que usei de crueldade excessiva.

A mim, porém, aquilo que já há muito deveria ter sido feito, fortes razões me levam a não o fazer ainda. Hás-de ser morto, sim, mas só no momento em que já não for possível encontrar-se ninguém tão perverso, tão depravado, tão igual a ti, que não reconheça a inteira justiça desse acto.

Enquanto houver alguém que ouse defender-te, continuarás a viver, e a viver como agora vives, cercado pelas minhas muitas e fiéis guardas, para não poderes sublevar-te contra o Estado. E até os olhos e os ouvidos de muita gente, sem disso te aperceberes, te hão-de espiar e trazer vigiado como até hoje o têm feito.


(As Catilinárias, excerto; manteve-se a ortografia original do tradutor, padre António Joaquim, Portugal)



(Ilustação: Cícero ataca Catilina - afresco do Palazzo Madama, Roma, século 19)


terça-feira, 16 de junho de 2015

HINO À RAZÃO, de Antero de Quental





Razão, irmã do Amor e da Justiça,

Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz dum coração que te apetece,

Duma alma livre, só a ti submissa.




Por ti é que a poeira movediça

De astros e sóis e mundos permanece;

E é por ti que a virtude prevalece,

E a flor do heroísmo medra e viça.




Por ti, na arena trágica, as nações

Buscam a liberdade, entre os clarões;

E os que olham o futuro e cismam, mudos,




Por ti, podem sofrer e não se abatem,

Mãe de filhos robustos, que combatem

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!





(Ilustração: Jules Joseph Lefevbre - La vérité)







sábado, 13 de junho de 2015

CRÔNICA DA CIDADE DE CARACAS, de Eduardo Galeano





— Preciso de alguém que me escute — gritava. — Dizem sempre que é para eu voltar amanhã! — gritava. Jogou a camisa fora. Depois, as meias e os sapatos. José Manuel Pereira estava parado na marquise de um décimo oitavo andar de um edifício em Caracas.

Os policiais quiseram agarrá-lo e não o conseguiram. Uma psicóloga falou com ele da janela mais próxima. Depois, um sacerdote levou a ele a palavra de Deus.

— Não quero mais promessas! — gritava José Manuel. Dos janelões do restaurante da Torre Sul, viam Manuel em pé na marquise, com as mãos pregadas na parede. Era a hora do almoço, e este acabou sendo o tema de conversa em todas as mesas.

La embaixo, na rua, tinha se juntado uma multidão.

Passaram-se seis horas.

No fim, as pessoas estavam cansadas.

— Decida-se de uma vez — diziam as pessoas —. Que se jogue de uma vez e pronto! — pensavam.

Os bombeiros aproximaram uma corda. No começo, ele não deu confiança. Mas finalmente esticou uma das mãos, e depois outra, e agarrado na corda deslizou até o décimo sexto andar. Então tentou entrar pela janela aberta e escorregou e despencou no vazio. Ao bater no chão, o corpo fez um ruido de bomba que explode.

Então as pessoas foram embora, e foram embora os vendedores de sorvete e de cachorro-quente e os vendedores de cerveja e de refrigerantes em lata.


(O Livro dos Abraços; tradução de Eric Nepomuceno)



(Ilustração:  Zdzisaw Beksisk)




quarta-feira, 10 de junho de 2015

BALLADE DU CONCOURS DE BLOIS / BALADA DO CONCURSO DE BLOIS, de François Villon













Je meurs de seuf auprès de la fontaine,

Chaud comme feu, et tremble dent à dent ;

En mon pays suis en terre lointaine ;

Lez un brasier frissonne tout ardent ;

Nu comme un ver, vêtu en président,

Je ris en pleurs et attends sans espoir ;

Confort reprends en triste désespoir ;

Je m'éjouis et n'ai plaisir aucun ;

Puissant je suis sans force et sans pouvoir,

Bien recueilli, débouté de chacun.





Rien ne m'est sûr que la chose incertaine ;

Obscur, fors ce qui est tout évident ;

Doute ne fais, fors en chose certaine ;

Science tiens à soudain accident ;

Je gagne tout et demeure perdant ;

Au point du jour dis : " Dieu vous doint bon soir ! "

Gisant envers, j'ai grand paour de choir ;

J'ai bien de quoi et si n'en ai pas un ;

Echoite attends et d'homme ne suis hoir,

Bien recueilli, débouté de chacun.





De rien n'ai soin, si mets toute ma peine

D'acquérir biens et n'y suis prétendant ;

Qui mieux me dit, c'est cil qui plus m'ataine,

Et qui plus vrai, lors plus me va bourdant ;

Mon ami est, qui me fait entendant

D'un cygne blanc que c'est un corbeau noir ;

Et qui me nuit, crois qu'il m'aide à pourvoir ;

Bourde, verté, aujourd'hui m'est tout un ;

Je retiens tout, rien ne sait concevoir,

Bien recueilli, débouté de chacun.





Prince clément, or vous plaise savoir

Que j'entends mout et n'ai sens ne savoir :

Partial suis, à toutes lois commun.

Que sais-je plus ? Quoi ? Les gages ravoir,

Bien recueilli, débouté de chacun.





Tradução de Sebastião Uchoa Leite:




Morro de sede quase ao pé da fonte,

Quente qual fogo, mas batendo os dentes;

Em meu país vivo além do Horizonte;

Junto a um braseiro tremo e fico ardente;

Nu como um verme. O traje: um presidente;

Rio no pranto e espero sem esperança;

Conforto acho na desesperança,

E alegro-me sem ter prazer algum;

tenho o poder sem força ou segurança;

E sou bem vindo a todos e a nenhum.




Só me é certo algo com que eu não conte;

nada é obscuro, exceto o que é evidente;

E sem dúvidas, fora as que defronte,

Tomo a ciência por mero acidente;

Conquisto tudo e fico dependente

Digo "Boa noite" se a aurora avança;

Deito-me sem controle em confiança;

Tenho alguns bens, mas sem vintém algum;

Sou um herdeiro mas sem ter herança,

E sou bem-vindo a todos e a nenhum




Descuido-me de tudo e suo a fronte

Para ter bens, sem ter um pretendente;

Com quem mais me afague, me confronte,

Quem mais me é veraz é quem mais mente;

É meu amigo que diz procedente

De um cisne alvo e um corvo a semelhança;

Em quem me nega enxergo uma aliança;

A patranha e a verdade acho comum;

recordo tudo sem a menor lembrança

E sou bem-vindo a todos e a nenhum.




Príncipe brando: se isso não vos cansa,

De tudo eu sei, e a mente não alcança;

Sou faccioso e sigo a lei comum.

Que faço? o quê? dos meus bens a cobrança,

E sou bem-vindo a todos e a nenhum.


(Ilustração: John Singer Sargent - clochard, 1904)



domingo, 7 de junho de 2015

A ALMOFADA DE PENAS, de Horacio Quiroga





Sua lua-de-mel foi um longo estremecimento. Loura, angelical e tímida, o temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de noiva. Ela o amava muito, no entanto, às vezes, sentia um ligeiro estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, olhava furtivamente para a alta estatura de Jordão, mudo havia mais de uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo.

Durante três meses — tinham casado no mês de abril — viveram numa felicidade especial.

Sem dúvida ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, mais expansiva e incauta ternura; mas a impassível expressão do seu marido a reprimia sempre. 

A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Por dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. Ao atravessar um quarto para outro, os passos encontravam eco na casa toda, como se um longo abandono tivesse sensibilizado sua ressonância.

Nesse estranho ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Porém tinha terminado por abaixar um véu sobre os seus antigos sonhos, e ainda vivia dormida na casa hostil, sem querer pensar em nada até o marido chegar.

Não é incomum que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Alicia não melhorava nunca. Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para um e outro lado. De repente Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e Alicia em seguida se quebrou em soluços, e o abraçou. Chorou demoradamente seu discreto pavor, redobrando o choro diante da menor tentativa de carícia. Depois, os soluços foram-se acalmando, e ainda ficou um longo tempo escondido no seu ombro, quietinha, sem pronunciar uma palavra.

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte amanheceu desacordada. O médico de Jordão a examinou com toda a atenção, recomendando muita calma e repouso absolutos.

— Não sei — disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda baixa. — Tem uma grande debilidade que não consigo explicar, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela acordar igual a hoje, você me chama depressa.

No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não teve mais desmaios, mas ia visivelmente andando para a morte. Durante o dia todo, o quarto estava com as luzes acesas e em total silêncio. As horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava. Jordão vivia quase que definitivamente na sala, também com as luzes acesas. Andava sem cessar de um extremo para outro, com incansável obstinação. O tapete abafava seus passos. Algumas vezes entrava no quarto e continuava seu mudo vaivém ao longo da cama, olhando para sua mulher cada vez que caminhava na sua direção.

Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Uma noite ela ficou repentinamente com o olhar fixo. Em seguida abriu a boca tentando gritar, e suas narinas e lábios se molharam de suor.

— Jordão! Jordão! — gritou, rígida de espanto, sem parar de olhar o tapete.

Jordão correu para o quarto, e, ao vê-lo aparecer, Alicia deu um brado de horror.

— Sou eu, Alicia, sou eu!

Alicia olhou para ele com olhar extraviado, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um longo momento de estupefata confrontação, serenou. Sorriu e pegou entre as suas as mãos do marido, fazendo carícias e tremendo.

Entre suas alucinações mais obstinadas, houve um antropoide, apoiado no tapete sobre os próprios dedos, que mantinha os olhos fixos nela.

Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora, sem se saber absolutamente por quê. Na última consulta, Alicia jazia em estupor, enquanto eles a pulseavam, passando de um para outro o pulso inerte. Observaram-na um longo momento em silêncio e encaminharam-se para a sala.

— Pst... — Deu de ombros, desanimado, seu médico. — É um caso sério... pouco se pode fazer...

— Era só o que me faltava! — gritou Jordão. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.

Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, que se fazia mais grave pela tarde, mas que cedia sempre nas primeiras horas da manhã. Durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento não a abandonou mais. Apenas podia mexer a cabeça. Não deixou que pegassem na sua cama, nem sequer que arrumassem a almofada. Seus terrores crepusculares avançaram na forma de monstros que se arrastavam até sua cama e subiam com dificuldade pela colcha.

Perdeu depois o conhecimento. Nos dias finais, delirou sem cessar a meia-voz. As luzes continuavam fúnebres e acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abafado dos eternos passos de Jordão.

Alicia morreu, por fim. A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou um momento com estranheza para a almofada.

— Senhor! — chamou ao Jordão em voz baixa. — Na almofada há manchas que parecem ser de sangue.

Jordão se aproximou rapidamente. Também se agachou. Efetivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cavidade que tinha deixado a cabeça de Alicia, se viam algumas manchinhas escuras.

— Parecem picadas — murmurou a empregada depois de um momento imóvel na observação.

— Aproxime-o da luz - disse Jordão.

A moça levantou a almofada, mas em seguida deixou-a cair, e ficou olhando para ele, lívida e trêmula. Sem saber por quê, Jordão percebeu que seus cabelos se eriçavam.

— O que é que há? — murmurou com voz rouca.

— Pesa muito — falou a empregada, sem parar de tremer.

Jordão levantou a almofada; pesava extraordinariamente. Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão cortou a fronha e a capa. As penas superiores voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca inteiramente aberta, levando as mãos crispadas às bandós. Sobre o fundo, entre as penas, mexendo devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca.

Noite após noite, a partir do dia em que Alicia tinha ficado doente, ele tinha aplicado sigilosamente sua boca — sua tromba, melhor dizendo — às têmporas da mulher, chupando-lhe o sangue. A mordida era quase imperceptível. A remoção diária da almofada tinha impedido sem dúvida seu desenvolvimento, mas assim que a jovem não conseguiu mais se mexer, a sucção foi vertiginosa. Em apenas cinco dias e cinco noites, tinha esvaziado Alicia. 

Esses parasitos das aves, diminutos no seu meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser para eles particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nas almofadas de penas.



(Contos Latino-Americanos Eternos; tradução de Alicia Ramal)



(Ilustração: Damian Klaczkiewicz)






quinta-feira, 4 de junho de 2015

COLLOQUE SENTIMENTAL / COLÓQUIO SENTIMENTAL, de Paul Verlaine








Dans le vieux parc solitaire et glacé

Deux formes ont tout à l’heure passé.



Leurs yeux sont morts et leurs lèvres sont molles,

Et l’on entend à peine leurs paroles.



Dans le vieux parc solitaire et glacé

Deux spectres ont évoqué le passé.



- Te souvient-il de notre extase ancienne?

- Pourquoi voulez-vous donc qu’il m’en souvienne?



-Ton coeur bat-il toujours à mon seul nom?

Toujours vois tu mon âme en rêve? - Non.



–Ah! les beaux jours de bonheur indicible

Où nous joignions nos bouches! - C’est possible.



-Qu’il était bleu, le ciel, et grand l’espoir!

- L’espoir a fui,vaincu, vers le ciel noir.



Tels ils marchaient dans les avoines folles,

Et la nuit seule entendit leurs paroles.





Tradução de Wagner Mourão Brasil:





No solitário e velho parque congelado

Seguidamente duas formas têm passado.



Seus olhos estão mortos, seus lábios, pendidos,

E os seus colóquios mal e mal são percebidos.



No solitário e velho parque congelado

Dois espectros vão recordando o seu passado.



- Tu recordas dos nossos êxtases de outrora?

- Por que quereis que sejam lembrados agora?



- De meu nome o som faz vibrar teu coração?

Sempre vês a minh’ alma nos teus sonhos? – Não.



- Ah! Os belos dias, felicidade indizível

Quando uníamos nossas bocas! - É possível.



- Como era azul o céu, e a esperança, elevada!

- A esperança foi-se na noite, derrotada.



Desse modo seguiam por entre a folhagem

E só a noite fria entendeu a sua parolagem.





Tradução de Onestaldo de Pennafort:






No velho parque frio e abandonado

duas sombras passaram, há bocado.



Dos olhos mortos, seus lábios, tristes, pendem

e as palavras que dizem mal se entendem.



No velho parque frio e abandonado,

dois espectros evocam o passado.



– Recordas-te do nosso enlevo, outrora?

– Para que queres que me lembre agora?



– Ainda, se ouves meu nome, o coração

te bate? Ainda me vês em sonho? – Não.



– Ai, o bom tempo de êxtase indizível

em que as bocas unimos! – É possível.



– Como era azul o céu e esperançoso!

– A esperança se foi no céu umbroso.



Tais, pela relva trêmula seguiam

e só a noite ouviu o que diziam.





Tradução de Guilherme de Almeida:





No velho parque frio e abandonado

Duas formas passaram, lado a lado.



Olhos sem vida já, lábios tremendo,

Apenas se ouve o que elas vão dizendo.



No velho parque frio e abandonado,

Dois vultos evocaram o passado.



– Lembras-te bem do nosso amor de outrora?

– Por que é que hei de lembrar-me disso agora?



– Bate sempre por mim teu coração?

Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.



– Ah! aqueles dias de êxtase indizível

Em que as bocas se uniam! – É possível.



– Como era azul o céu, e grande, o sonho!

– Esse sonho sumiu no céu tristonho.



Assim por entre as moitas eles iam,

E só a noite escutou o que diziam.





Tradução de Paulo Azevedo Chaves:





Num parque solitário e gelado


Um casal caminhava apressado.



O olhar era vazio, cada boca, uma cava


E o que diziam bem mal se escutava.



Num parque solitário e gelado


Dois vultos relembravam o passado.



– Lembras-te de nosso amor, amigo?


– Tolice... um caso já tão antigo!




– Nada restou de tua paixão?


Nunca pensas em mim? – Não.


– O êxtase era indescritível


A cada beijo. – É possível.



– O céu era claro, parecia belo o futuro.


– O futuro envileceu, o céu ficou escuro.


Assim iam eles pelas aleias, de olhar fito,


E só a noite escutou o que foi dito.



(Ilustração: Jacques de Gheyn the Elder - Vanitas still life)






segunda-feira, 1 de junho de 2015

POR EXTENSO, Luísa Costa Gomes







Quero o maior! – desde pequeníssima, sempre o maior. O urso : o maior. O cãozinho : o maior. O livro, se o escolhia : o maior, o com mais cores , o com a letra mais gorda. E, na comida: o prato maior, a fatia maior, a posta maior. O bolo : evidentemente, o maior. Poupada apenas nisto das letras. Abreviaturas, simplificações. Escolhido para nome Nê, porque encontra muito comprido o que lhe impuseram – Ana Lúcia é o seu nome da escola, com que assina os testes e os trabalhos, e Nê o seu nome livre.

Vai agora a atravessar a passadeira de peões e a escrever uma sms ao mesmo tempo. É um truq q costuma fzer para mostrar q tanto se lhe dá. Que é forte. Um carro para, os travões guincham, os pneus até dtm fmo, a mulher baixa o vidro e grita-lhe :

- Ó menina, quer ir já para o céu, tão novinha?

Nê treme tanto que os dentes chocalham na boca, o carro a dois milímetros dos ténis de plataforma que nesse dia estreia, o telemóvel na mão onde a sms começada ainda enlanguesce : “vmos hje ao cc cnema k v o k?”; e a condutora olha-a de dentro da carrinha familiar, sorrindo, cínica e arrancando, em esfogueteada primeira, grita:

- Menina (...) ! Menina Qualquer Coisa, palavra que ela não percebe e escreve no tlm “ia sendo atropelada! tou aq td a trmer!” e envia à Ana Márcia que lhe responde logo “táse!”.

Aq palavra q ela não percebeu teve um efeito curioso em Ana Lúcia. Começou a tomar mais atenção ao mundo, a estar mais alerta para td o que ia e vinha à sua volta, à espera de a reconhecer. Podia acontecer em qualquer lado, na piscina, a meio de um salto da prancha, e ter a orelha tapada pela touca. No polivalente, à passagem de alguém, embora lhe parecesse pouco provável. No polivalente havia sobretudo ruído. Mas era preciso estar preparada. No café, ao interv do almoço, no meio da vozearia dos rapazes que se batiam por td e por nada, ouviu a palavra “desconchavada” vinda de uma mesa de mulheres-gralhas e achou q não era Aquela a Que Demandava, mas acabou por ficar.

Agora, em vez de responder “táse” quando o tio António, o meio tolinho meio irmão do pai q vive na cave, lhe pergunta com um olho meio fechado : “Q tal o dia...? Na escola...?”, ela diz “Olha, tive um dia mesmo desconchavado”, deixando a Leila interdita, com a franja a encaracolar-se-lhe e a escova de alisar o cabelo a pilhas rodando estupidamente na mão. Foi lanchar, quase sem fome, escolhendo a fatia maior. Leila disse, no dia seguinte, afundada na torrente de palavras sem sentido com q normalmente a enviava para a escola: “encardida”. “O quê?”, perguntou. “O quê o quê?”, perguntou a Leila. “Disseste que a camisola estava o quê?”. “Encardida?”. A palavra que Ana Lúcia buscava não era “encardida”, mas passou a usá-la tb. na frase “ Sinto esta fase da minha vida um bocado encardida”. E comeu pouco ao pequeno almoço.

SMS para cá e para lá nas aulas. O tema: um MMS da Ana Sandra que mostrava um homem todo nu com uma grande cabeça de abóbora. Mas Nê já estava noutra. Achou os colegas todos “lúgubres”. E, no interv das dez e meia, espantou a Ana Margarida ao dizer que a comida do refeitório era “sórdida”, que o Paulo andava “sorumbático” e “extravagante”, mas sorriu ao nome da namorada dele, quando lho disseram : Mirtília Túlia. Não era de troça, era um nome q era um nome verdadeiro. E a frase favorita : “ O Paulo é cá um lapa”. E o filme de murros no centro comercial? “Inane”, comentou. Procurou (sem realmente procurar) os sítios onde seria mais provável ouvir o que não percebera da primeira vez. A casita onde morava com o meio tio e a mulher, Leila, passou a ser uma “choça” e o carro deles um “chaço”. Olhou Silvestre, o misterioso vizinho que estudava matérias misteriosas, com nova motivação. Espiava-o do seu pátio em frente à garagem e achava tudo feio – fora a cameleira, “deslumbrante”. E pequenos musgos no muro, “pitoresco”. Não falava muito. Ficava a apreciar o pouco que tinha, procurando as palavras mais apropriadas com gula. Não era, por exemplo, paixão o que sentia por Silvestre, mas “encantamento”, e em outros momentos, “delírio”. De vez em quando escrevia uma palavra no muro, de líquen a líquen. Silvestre, entretanto conquistado pelo prolongado silêncio dela, convidou-a para tomar um café. Acompanhou-a à vitrina.

- É um pastelzinho, por favor – pediu Ana Lúcia - aquele ali.

E apontou, discreta. Era o mais humilde, mas foi dito por extenso, com um belo sorriso de amor, com as letras todas.




(Setembro) 




(Ilustração: Balthus - Therèse awake)