sábado, 30 de dezembro de 2023

HOMEM SOLTEIRO, RAIVOSO, HÉTERO... PROCURA SEMELHANTES: A HOMOFOBIA COMO DESEJO REPRIMIDO, de Jesse Bering

 




Eu gostaria de poder dizer que decidi sair do armário com vinte e poucos anos por razões mais admiráveis - como amor ou o princípio da coisa. Mas a verdade é que passar por heterossexual havia se tornado tal amolação que não me parecia valer a pena. Desde a terceira série, eu havia despendido muitos recursos cognitivos valiosos inventando esquemas enganosos para encobrir o fato de que eu era gay.

Na verdade, minha primeira tática consciente para encobrir minha homossexualidade envolvia ser grotescamente homofóbico. Quando eu tinha oito anos de idade, imaginei que se usasse a palavra "bicha" a torto e a direito e expressasse minha repugnância por gays em todas as ocasiões possíveis, os outros pensariam obviamente que eu era hétero. Embora isso parecesse bom na teoria, eu não era muito hostil por temperamento e tinha dificuldade em analisar minha indignação fictícia numa prática convincente.

Posso ter fracassado como homofóbico, mas muitas pessoas têm êxito. E o que se revela é que podemos ter algo em comum: muitos homens jovens homofóbicos podem alimentar secretamente desejos homossexuais (quer estejam tentando conscientemente enganar o mundo a respeito de si mesmos, como eu, ou não tenham sequer ciência de que eles existem). Uma das linhas de trabalho mais importantes nessa área remonta a um artigo publicado em 1996 no Journal of Anormal Psychology em que os pesquisadores Henry Adams, Lester Wright e Bethany Lohr relatam evidências de que homens jovens homofóbicos podem ter secretamente impulsos gays.

Nesse estudo, 64 homens que se diziam heterossexuais com idade média de vinte anos foram divididos em dois grupos ("homens não homofóbicos" e "homens homofóbicos") com base em seus escores num questionário que media a aversão a homens gays. Aqui, a homofobia foi operacionalmente definida como o grau de "pavor" experimentado quando posto em estreita proximidade com um homossexual - basicamente, quão confortável ou desconfortável a pessoa se sentia ao interagir com gays. (Há um debate na literatura clínica sobre a semântica desse termo, com alguns estudiosos introduzindo outros construtos como "homonegativismo" para sublinhar a natureza mais cognitiva da postura antigay de algumas pessoas.)

Em seguida cada participante concordava em prender um pletismógrafo peniano a seu, bem, "eu inferior". Esse aparelho [...] é "um extensômetro circunferencial de mercúrio em elástico usado para medir respostas eréteis a estímulos sexuais. Quando preso, mudanças na circunferência do pênis causam mudanças na resistência da coluna de mercúrio". Pesquisas anteriores com esse aparelho (o plestimógrafo, não o pênis - bem, na verdade, com ambos) haviam confirmado que mudanças significativas na circunferência ocorrem apenas durante a estimulação sexual e o sono.

Em seguida, os participantes foram levados para uma câmara privada onde lhes foram mostrados três breves segmentos de pornografia gráfica. Os três trechinhos de vídeo representavam pornografia heterossexual (cenas de felação e intercurso vaginal), pornografia lésbica (cenas de cunilíngua ou de "tribadismo", que é, essencialmente, a fricção das vulvas) e pornografia masculina gay (cenas de felação e intercurso anal). Após cada apresentação aleatoriamente ordenada, cada participante classificou o grau em que se sentira sexualmente excitado e também o grau de sua própria ereção peniana. Adivinhe os resultados.

Ambos os grupos - homens não homofóbicos e homofóbicos - mostraram significativo engurgitamento diante da pornografia hétero e lésbica, e suas classificações subjetivas da própria excitação corresponderam às medidas do pletismógrafo peniano para esses dois tipos de vídeo. No entanto, tal como previsto, somente os homens homofóbicos mostraram um significativo aumento da circunferência peniana em reação à pornografia masculina gay: especificamente, 26% desses homens homofóbicos mostraram "tumescência moderada" (seis a doze milímetros) diante desse vídeo, e 54% mostraram "clara tumescência" (mais de doze milímetros). (Em contraposição, para os homens não homofóbicos, essas porcentagens foram 10% e 24%, respectivamente.) Além disso, os homens homofóbicos subestimaram significativamente seu grau de excitação sexual diante da pornografia gay.

A partir desses dados, os pesquisadores concluíram que "indivíduos que tiveram escore elevado no questionário de homofobia e admitiam afeto negativo em relação à homossexualidade demonstram significativa excitação sexual diante de estímulos eróticos homossexuais masculinos". Evidentemente, não fica claro se essas pessoas estão se auto enganando de maneira inconsciente ou tentando conscientemente esconder dos outros sua atração secreta por membros do mesmo sexo. O mecanismo de defesa de formação reativa freudiano - no qual os desejos reprimidos das pessoas se manifestam por suas ardorosas reações emocionais e comportamentos hostis em relação à própria coisa que desejam - poderia explicar a primeira hipótese. (Shakespeare escreve em Hamlet: "A senhora protesta demais, ao que me parece.") A segunda sugere um ato de trapaça social deliberada, tal como minha equivocada maquinação aos oito anos. Poderia, é claro, ser um pouco de cada coisa, ou funcionar de maneira diferente para diferentes pessoas. Quem pode dizer se todas aquelas figuras públicas cujo homossexualismo foi inconvenientemente revelado (como os televangelistas Eddie Long e Ted Haggard, o psiquiatra conservador George Rekers e os políticos Mark Foley e Larry Craig) - as próprias encarnações desse fenômeno - estavam se auto enganando ou se sabiam o tempo todo que tinham impulsos homossexuais plenamente desenvolvidos?

A interpretação de Adams e colegas para esses achados obtidos por meio do pletismógrafo não passaram incontestes. Num artigo publicado no Journal of Research in Personality, o pesquisador Brian Meier e colegas afirmam que os achados de Adams podem ser mais bem interpretados como uma "aversão defensiva" de homossexuais gays do que como atração secreta. Recorrendo a uma analogia com outras fobias, eles declaram: "Acreditamos ser inexato afirmar que os fóbicos a aranhas têm um desejo secreto por elas, ou que claustrofóbicos gostam secretamente de ser metidos em espaços escuros e apertados." Esses investigadores raciocinam que a amostra homofóbica de Adams experimentava ereções em resposta à pornografia masculina gay não por excitação sexual, mas em razão da ansiedade que as imagens lhes transmitiam, a qual por sua vez provocava a resposta fisiológica do engurgitamento peniano.

Em minha opinião, contudo, essa reinterpretação de Meier da ereção como expressão de "aversão defensiva" é um pouquinho tortuosa. É verdade que foi demonstrado que a ansiedade ambiente aumenta o grau de excitação sexual em resposta a estímulos que já não são sexualmente excitantes, mas não pude encontrar nenhuma evidência de que a ansiedade por si só pode dar uma ereção a um homem. Pelo menos espero que seja assim. Falar em público me deixa ansioso. Se, como se isso não bastasse, eu tivesse de ter medo de ter uma ereção durante minhas palestras, talvez eu devesse simplesmente cancelar minhas apresentações. Da mesma maneira, pela lógica desses investigadores, aracnófobos do sexo masculino deveriam sentir uma leve comichão lá embaixo sempre que avistam uma aranha correndo por suas mesas de trabalho. Suponho que seja possível, mas me parece bastante improvável.

Se tomarmos os achados de Adams de que homens homofóbicos têm ereções ao assistir à pornografia gay como uma razoável evidência de sua excitação sexual, esses achados assumem enorme importância. Por exemplo, eles podem nos ajudar a compreender algumas das causas psicológicas das agressões físicas violentas a gay. Alguns dos dados mais surpreendentes com que deparei envolvem um levantamento feito em 1998 junto a quinhentos homens heterossexuais na área de São Francisco. Cinquenta por cento desses homens declararam que haviam sido agressivos de alguma maneira contra homossexuais (e estes foram apenas os que admitiram tais atos). E um terço dos que não haviam atacado gays dessa maneira disse que agrediria ou maltrataria um "homossexual que lhes fizesse uma proposta". Se você não percebeu a ironia, isso foi em São Francisco - presumivelmente um dos lugares mais "amigáveis com gays" no mundo.

De fato, um estudo posterior publicado no Journal of Abnormal Psychology por Adams e colegas descobriu que, numa tarefa competitiva, homens homofóbicos se mostravam mais agressivos com homens gays do que com heterossexuais. Nesse estudo, 52 homens que se declaravam heterossexuais com idade média de dezenove anos foram novamente classificados como "homofóbicos" ou "não homofóbicos" com base sem suas respostas a vários itens num questionário de homofobia. Em seguida foi dito aos participantes que eles seriam expostos a tipos aleatórios de estímulos sexuais para determinar o efeito da pornografia no tempo de reação. Na realidade, só lhes foi mostrada pornografia gay.

Antes e depois de assistir a esse vídeo de dois minutos de um casal de homens envolvendo-se em preliminares, felação e penetração anal, os participantes responderam a várias perguntas que mediam seu estado emocional no momento (por exemplo, se sentiam raiva, ansiedade, tristeza e assim por diante). Em seguida passavam à tarefa competitiva de tempo de reação, em que, em vinte provas diferentes, deviam apertar um botão assim que uma luz vermelha se acendesse no console. Os participantes acreditavam que, nessa tarefa, estavam competindo com um outro jogador numa sala vizinha. Na verdade, não havia nenhum outro jogador, e o jogo estava armado de tal maneira que o participante perderia numa metade aleatoriamente distribuída das provas. A cada "vitória", o participante era informado de que poderia dar um choque elétrico de grau e intensidade variados no outro jogador (inexistente); alternativamente, ele tinha a opção de não administrar absolutamente nenhum choque nessa outra pessoa.

Todos os jogadores "perderam" na primeira prova e experimentaram eles mesmos um choque elétrico brando, presumivelmente administrado pelo outro jogador. A manipulação decisiva nesse estudo foi que metade dos participantes pensava estar competindo com um homem gay, ao passo que a outra metade pensava estar competindo com um homem hétero. Antes da tarefa, e após assistir à pornografia gay, os participantes tinham visto um breve vídeo que lhes apresentava esse outro "jogador". Numa condição, esse competidor fictício era mostrado como um homossexual com afetações estereotipadas que dizia ao entrevistador estar numa "relação gay de compromisso com seu parceiro, Steve, há dois anos". Na outra condição, esse mesmo ator fazia o papel de um heterossexual e dizia-se "envolvido numa relação de compromisso com sua namorada há dois anos".

Embora não tenha havido nenhuma diferença significativa entre os grupos homofóbico e não homofóbico na intensidade e duração do choque administrado ao competidor hétero a levar a melhor em provas, o grupo homofóbico administrou choques mais intensos e de maior duração quando pensava que a pessoa na outra sala era gay. Nas classificações subjetivas de disposição de ânimo, a maior diferença entre os dois grupos foi na dimensão raiva-hostilidade: os não homofóbicos mostraram um pequeno sinal positivo no radar nessa dimensão, ao passo que os homofóbicos mostraram um enorme aumento na raiva-hostilidade entre a medição da disposição de ânimo anterior ao vídeo e a classificação posterior. Esses dados sugerem que estímulos homoeróticos - como ver dois homens de mãos dadas - poderiam fazer um homofóbico já irritado perder o controle.

Embora seja certamente verdade que o mundo hoje "aprova" a homossexualidade mais do que há uma década - muitas vezes a contragosto, na minha opinião -, ainda há elementos sociais perigosos e nefastos sob a superfície impedindo a verdadeira aceitação. O dia em que, estando em público em qualquer cidade dos Estados Unidos, eu puder simplesmente ficar de mãos dadas com a pessoa que amo (algo que a maioria dos casais faz sem pensar duas vezes) sem nos expor, a meu parceiro e a mim, a perigo físico - esse será o dia me que ficarei convencido de que fomos além da retórica, com relação a "direitos iguais" e mudamos realmente corações e mentes.

Nesse meio-tempo, na próxima vez que você topar com alguém que se revela especialmente hostil ou crítico em relação a gays, olhe-o nos olhos, coce seu queixo e repita comigo: "Hmm... muito interessante."



(Devassos por natureza - provocações sobre sexo e a condição humana; tradução de Maria Luiza X. de A. Borges).



(Ilustração: Felix D'eon)

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

EŠER / SE, de Can Yücel

 




o kadar da önemli değildir bırakıp gitmeler, arkalarında doldurulması

mümkün olmayan boşluklar bırakılmasaydı eğer.



dayanılması o kadar da zor değildir, büyük ayrılıklar bile, en güzel yerde başlatılsaydı eğer.



utanılacak bir şey değildir ağlamak, yürekten süzülüp geliyorsa gözyaşı eğer



yüz kızartıcı bir suç değildir hırsızlık, çalınan birinin kalbiyse eğer.



korkulacak bir yanı yoktur aşkların,

insan bütün derilerden soyunabilseydi eğer.



o kadar da yürek burkmazdı alışılmış bir ses, hiçbir zaman duyulmasaydı eğer.



daha çabuk unuturdu belki su sızdırmayan sarılmalar, kara sevdayla sarıp sarmalanmasalardı eğer.



belirsizliğe yelken açardı iri ela gözler zamanla, öylesine delice bakmasalardı eğer.



çabuk unutulurdu ıslak bir öpücüğün yakıcı tadı belki de kalp, göğüs kafesine o kadar yüklenmeseydi eğer.



yerini başka şeyler alabilirdi uzun gece sohbetlerinin, son sigara yudum yudum paylaşılmasaydı eğer.



düşlere bile kar yağmazdı hiçbir zaman,

meydan savaşlarında korkular, aşkı ağır yaralamasaydı eğer.



su gibi akıp geçerdi hiç geçmeyecekmiş gibi duran zaman, beklemeye değecek olan gelecekse sonunda eğer.

rengi bile solardı düşlerdeki saçların zamanla, tanımsız kokuları yastıklara yapışıp kalmasaydı eğer.



o büyük, o görkemli son, ölüm bile anlamını yitirirdi, yaşanılası her şey yaşanmış olsaydı eğer.



o kadar da çekilmez olmazdı yalnızlıklar, son umut ışığı da sönmemiş olsaydı eğer.



bu kadar da ısıtmazdı belki de bahar güneşleri,

her kaybedişin ardından hayat yeniden başlamasaydı eğer.



kahvaltıdan da önce sigaraya sarılmak şart olmazdı belki de, dev bir özlem dalgası meydan okumasaydı eğer.



anılarda kalırdı belki de zamanla ince bel,

namussuz çay bile ince belli bardaktan verilmeseydi eğer.



uykusuzluklar yıkıp geçmezdi, kısacık kestirmelerin ardından, dokunulası ipek ten bir o kadar uzakta olmasaydı eğer.



ıssız bir yuva bile cennete dönüşebilirdi belki de, sıcak bir gülüşle ısıtılsaydı eğer.



yoksul düşmezdi yıllanmış şarap tadındaki şiirler böylesine, kulağına okunacak biri olsaydı eğer.



inanmak mümkün olmazdı her aşkın bağrında bir ayrılık gizlendiğine belki de, kartvizitinde ‘onca ayrılığın birinci dereceden failidir’ denmeseydi eğer.



gerçekten boynunu bükmezdi papatyalar, ihanetinden onlar da payını almasaydı eğer.



ıssızlığa teslim olmazdı sahiller,

kendi belirsiz sahillerinde amaçsız gezintilerle avunmaya kalkmamış olsaydın eğer.



sen gittikten sonra yalnız kalacağım. yalnız kalmaktan korkmuyorum da, ya canım ellerini tutmak isterse...

evet sevgili,

kim özlerdi avuç içlerinin ter kokusunu, kim uzanmak isterdi ince parmaklarına,

mazilerinde görkemli bir yaşanmışlığa tanıklık etmiş olmasalardı eğer!!





Tradução de Leonardo da Fonseca:



não é importante deixar e ir

se não houver uma lacuna atrás

é impossível preencher.



já as grandes separações não são difíceis de enfrentar,

se elas começassem nos mais belos lugares.



chorar não é algo do que se deva ter vergonha, se as lágrimas viessem do coração



o amor não tem nada a temer

se alguém pudesse se livrar de todas as peles.



uma voz conhecida não deixaria alguém tão chateado,

se nunca fosse ouvida.



a barreira abraça e talvez fosse esquecida mais facilmente,

se não estivesse envolta em amor passional



já os grandes olhos castanhos comandariam a incerteza, se não parecessem tão loucos.



talvez fosse fácil esquecer o gosto quente de um beijo doce, se o coração não apertasse o peito assim tão forte.



o bate papo da noite inteira poderia ser substituído por algo mais,

se o último cigarro não fosse dividido a cada tragada.



já não nevaria nos sonhos,

se os medos não ferissem o amor nas batalhas.



como o fluir das águas, o tempo, ainda que nunca passasse, valeria a espera de um eventual futuro.



a cor do cabelo nos sonhos enfraqueceria com tempo,

se o seu cheiro inexpressível não agarrasse ao travesseiro.



esse abraço, esse esplêndido fim, a morte, perderia seu sentido,

se vivesse cada coisa que vale a pena viver



a solidão não seria assim insuportável,

se não houvesse um último fio de esperança.



o sol da primavera talvez não aquecesse tanto assim,

se a vida não recomeçasse após cada perda.



talvez fumar antes do café não fosse necessário,

se uma onda gigante de saudades não desafiasse.



talvez esse fino tronco restasse em memórias,

se o chá sem vergonha não fosse dado em um copo fino.



a insônia não se destruiria depois de curtos cochilos, se o toque da pele de seda não estivesse tão longe.



uma baía deserta poderia se tornar um paraíso talvez,

se aquecida por um sorriso caloroso.



poemas com gosto de vinho velho não se sentiriam mal, se houvesse alguém pra sussurrar.



talvez não fosse possível acreditar que cada amor esconde uma separação

profunda,

se não houvesse um cartão com uma etiqueta, ‘‘causador número um de

muitas separações’’.



as margaridas realmente não murchariam, se não tivessem culpa de sua traição.



a solidão não seria dada para as praias,

se você não tentasse se consolar com um passeio sem rumo nas areias.



eu vou estar sozinho depois que você for.

e não vou ter medo de ficar sozinho,

mas se quiseres deixar as suas mãos, meu amor...



sim amada,

quem sentiria falta do cheiro de suor de suas palmas, quem iria querer deitar-se ao longo dos seus finos dedos,

se esses olhos não tivessem testemunhado um período esplêndido em seu

passado!!



(EŠER / SE; tradução de Leonardo da Fonseca)



(Ilustração: Fausto Zonaro, 1854-1929: A Woman)


domingo, 24 de dezembro de 2023

O FILÓSOFO E O POETA, de Jean Lauand

 


O filósofo - diz S. Tomás comentando Aristóteles - assemelha-se ao poeta; o filosofar e o ato poético têm algo em comum.

Para bem entender esta afirmação - clássica no pensamento ocidental - e que situará o filosofar mais próximo da poesia do que das ciências naturais ou exatas, começaremos por - seguindo de perto um ensaio em que Pieper trata do filosofar(1) - descrever brevemente o conceito clássico de filosofar para, em seguida, compará-lo com algumas poesias de nossa música popular.

De início, pois, umas breves considerações sobre o filosofar.

Não se pense que indagando sobre o filosofar (seu princípio, seu fim, suas condições) estejamos lidando com questão menor ou secundária. Pelo contrário, “Nossa pergunta, `o que é filosofar?´, pertence ao campo da Antropologia Filosófica (...) nada se pode dizer sobre a essência da Filosofia e do filosofar sem, ao mesmo tempo, fazer uma afirmação sobre a essência do homem”(2).

Pieper, seguindo a sabedoria dos antigos e com os olhos voltados para a problemática atual, começa por confrontar o filosofar com o mundo do trabalho.

O mundo do trabalho é “o mundo do dia de trabalho, o mundo da utilidade da sujeição a fins imediatos, dos resultados, do exercício de uma função; é o mundo das necessidades e da produtividade, o mundo da fome e do modo de saciá-la”(3).

E filosofar é algo que transcende esse mundo do trabalho. Para entender essa afirmação dos antigos, Pieper sugere um interessante “experimento” filosófico: chegar ao coração do mundo do trabalho – um banco por exemplo, às 13h, em dia de pagamento – e, ao chegar sua vez na fila, formular ao inquieto caixa a questão filosófica: “Mas, por que, afinal existem coisas, e não só o nada?” “Eis a antiquíssima questão filosófica que Heidegger designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será necessário apontar ainda o que de incomensurável tem tal pergunta frente ao mundo diário das utilidades e das oportunidades? Se tal pergunta ressoasse inesperadamente em meio a homens ocupados na produção de bens úteis, será que seu autor não seria tido por louco?”(4).

Não se pense que a afirmação de que o ato de filosofar transcende o mundo do trabalho equivalha a afirmar que aquele seja etéreo, alheio à realidade quotidiana. Platão, após narrar o episódio de Tales caindo no poço, explica o sentido para o que aponta a indignação filosófica (Teeteto, 175): o filósofo quer saber não se um rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que é em si o poder, a felicidade e a miséria. Em si e em suas última razões.

Assim, o filósofo não se afasta de modo algum da realidade quotidiana, mas sim das interpretações e valorações quotidianas do mundo e do trabalho.

E aí temos já uma primeira característica comum, pois também o ato poético transcende o mundo do trabalho.

Ao aproximarmos Filosofia e Poesia não devemos perder de vista também aquilo que as diferencia: a Filosofia apreende a realidade em conceitos que não falam à imaginação, enquanto a Poesia pelo som, ritmo, rima e fluxo da linguagem atinge e apresenta a realidade de modo figurativo(5).

Mas, voltemos às semelhanças. O ato poético e o filosófico têm seu princípio no mirandum, naquilo que causa admiração.

O que é admiração? É um abalo que de subido nos faz reparar que o mundo, a natureza, as pessoas escondem um encanto inesperado, até então despercebido. Claro que o filósofo e o poeta não estão sob o influxo desse abalo 24 horas por dia. Claro que perceber esse misterioso encanto não é privilégio exclusivo de quem filosofa ou é poeta. Mas se todo homem potencialmente é abalável pelo maravilhoso, o filósofo e o poeta são aqueles que respondem a esse abalo de modos peculiares.

Por isso, na base da Filosofia e da Poesia encontra-se a sensibilidade, que é, na frase feliz do filósofo inglês Copleston, “reparar naquilo que todo mundo tinha visto (mas não notado)”. Acho que é isso o que Orwell queria dizer quando escreveu em seu 1984: “Os melhores livros são os que nos dizem o que já sabíamos”.

Tanto o filósofo como o poeta recusam-se a ter uma visão exclusiva e acabada do fato bruto, de um mundo de rotina onde tudo funciona “normalmente”.

Pieper, falando do filosofar, e da sensibilidade admirativa que essa atitude requer, põe o seguinte exemplo: um dia, ao saudar um amigo, “Como vai, meu amigo,”, uma pessoa pode sentir o abalo filosófico que o leva a perguntar pelo ser (“o que afinal é isto, em si e em suas últimas razões”) e indagar-se: Mas, afinal o que a amizade é? Que misteriosos e maravilhosos laços me unem à pessoa amiga fazendo-a minha?

Pode também perguntar “pelo ser do ter”: o que é, afinal ter? O que queremos dizer quando falamos em “meu” amigo, “minhas” idéias, “meu” amor, “meu” cigarro, “meu” Deus?

A admiração, gerando por exemplo poesia ou filosofar, abala a visão rotineira e quotidiana onde o “ter” não constitui problema algum.

Já o poeta e o filósofo (o exemplo é recolhido por Pieper) voltam-se para o maravilhoso e admirável caráter do ter, expresso no Hai-Kai:

“Meu jardim

disse o rico;

o jardineiro, sorriu...”

Mas precisemos um pouco melhor a essência do abalo admirativo: a admiração, fonte do filosofar, versa sobre coisas simples: “A questão filosófica, portanto, diz respeito ao que sucede todos os dias diante de nossos olhos; mas isto que está diante dos olhos... perde a opacidade, a concretitude, o aspecto definitivo, a evidência. As coisas começam a revelar um aspecto estranho, desconhecido, mais profundo”.(6)

É também a temática de Heidegger em “O Caminho do Campo”: “O dom que (o Simples) dispensa se esconde na inaparência do que é sempre o mesmo”(7). Para em seguida fazer agudo diagnóstico dos males do nosso tempo: “O homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só veem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.

O número dos que conhecem o Simples como um bem que conquistaram diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos porém, serão, em toda a parte, os que permanecem”(8).

De fato, não é preciso muito esforço para verificar como, no nosso tempo, perdemos quase completamente a capacidade de admirar-nos com o Simples. Precisamos mais e mais do estapafúrdio (pense-se nos esoterismos e no pulular de seitas nos dias de hoje) para provocar algo assim como uma pseudo-admiração, prostituída, falsa, sucedâneo para a legítima admiração que reclama respostas filosóficas, poéticas, religiosas, amorosas: formas genuínas de respostas à verdadeira admiração.

“A admiração filosófica não é suscitada pelo ´nunca se viu tal coisa´, por aquilo que é anormal ou sensacional... Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não diário, o mirandum, eis o princípio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristóteles e S. Tomás, o ato de filosofar se assemelha à poesia”(9).

A letra de “Força Estranha” nos fala da arte e do artista, de seus temas, condição e missão: o que o poeta vê, como o vê e expressa. E o que se diz é que o tema e a inspiração da arte procedem da admiração das coisas simples que o poeta vê e – aí está o seu dom – repara: “Eu vi o menino correndo, os cabelos brancos na fronte do artista, a mulher preparando outra pessoa...”

Objetar-se-á que os exemplos – especialmente este último – parecem banais, pouco poéticos, demasiadamente prosaicos (“olhar para aquela barriga”) para as delicadas musas. Como também o ver “muitos homens brigando”.

O poeta responde dizendo que a poesia não tem a necessidade – exageradamente romântica – de fugir à realidade pois “a vida é amiga da arte”. Mas também não precisa cair no estreito e grosseiro “realismo” insensível a tudo o que transcendia o plano meramente material, incapaz portanto de ver, por exemplo, o real encanto do menino correndo ou da nova vida que surge, ou, pelo seu contraste: ver a paz devida, ausente na luta dos homens.

A respeito de realidade e poesia, Caetano diz que é uma questão de sensibilidade, de abrir-se à luz do sol que brilha, ensina, dá a conhecer o jogo das coisas que são e mostra o seu valor.

E assim, podemos nos maravilhar com o menino, com os brancos cabelos do sempre jovem artista e com o surgir da nova vida, sem sermos acusados de querer fugir à realidade pois “aquele que conhece as coisas que são” sabe que há uma realidade de encanto nessas cenas. Note-se que “O tempo parou”, ou a “ausência de tensão do futuro”, é a caracterização que filósofos (como Von Hildebrand ou Pieper) utilizam para falar da contemplação da verdade ou da beleza.

E quem quer que no caminho, na estrada da vida não esteja totalmente cego para essa luz sentir-se-á arrastado – é a experiência relatada desde a Antigüidade por todos os genuínos poetas – por uma estranha força que o compele a externar (“por isso essa voz tamanha”) essas maravilhas.

Quando essa manifestação é de ordem primordialmente estética recebe o nome de arte e seus cultores têm o curioso dom da eterna juventude, por muito que o tempo não pare.

Mas, passemos a outros componentes da postura filosófica platônica. Se o princípio da filosofia é a admiração, seu fim (no sentido da meta) é a “theoria”. Teoria é o simples olhar, “simples visão”(10) contemplativa, desinteressada, ou melhor, desinteresseira: a contemplação pura da verdade e do belo ainda que disso não resulte nada de útil para o “mundo do trabalho”, por exemplo, que não aumente o PIB, mas porque vale “em si”.

Assim Pieper situa a concepção clássica: “Somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relação com o ser, que desde Platão se chama ´teoria´, isto é, aceitação puramente receptiva da realidade... Teoria só existe quando o homem não se tornou cego e insensível ao maravilhoso, ao fato de que alguma coisa existe”(11). E, noutra passagem, teoria, “contemplação é um conhecimento com amor. É a visão do objeto amado”(12). Confronte-se com a antológica “Que maravilha” de Jorge Ben:

Lá fora está chovendo

Mas assim mesmo eu vou correndo

Só para ver

O meu amor...

Que maravilha, que coisa linda

é o meu amor

Registre-se também a oposição que o poeta faz entre a “teoria” (“só para ver...”) e o mirandum (o maravilhoso, que maravilha...) e o “mundo do trabalho”:

Por entre automóveis

Bancários, ruas e avenidas

Milhões de buzinas

Tocando sem cessar...

Se a admiração nos levou à contemplação (teoria), leva-nos também a uma determinada afirmação do mistério como condição do filosofar.

Também aqui devem ser evitadas as confusões: mistério não deve ser entendido como algo esotérico, mas o mistério do simples, dessa realidade quotidiana que, pelo abalo da admiração, manifesta-se misteriosa: o que é o amor?, o que é a dor?, o que o homem é?

Filósofo algum jamais poderá dar resposta plena e acabada a essas e a tantas outras questões. Por isso, Platão personifica o filosofar em Eros, pois Eros é filho de Poro e de Pênia (da abundância e da penúria). Eros (o filosofar, o homem) herdou do pai, Poro, o desejo de conhecer que, nesta vida, não se realizará plenamente (pois Eros é também filho de Pênia).

O filosofar, dizíamos, manifesta o que o homem é. E nessa estrutura dual do mistério e da admiração, misto de ter e não-ter, ânsia de posse que não chega a se perfazer (“...amor é sede depois de se ter bem bebido” – Guimarães Rosa) manifesta-se a estrutura ontológica da criatura humana: uma estrutura de esperança, um não-ter-ainda, não-ser-ainda; intermediária entre a plenitude da divindade e a opacidade do bruto.

O mistério é o claro-escuro: sim, sabemos o que é por exemplo o amor, mas, ao mesmo tempo, não sabemos o que o amor é.

A razão pela qual a realidade é misteriosa para o homem não está na falta de luz mas no excesso, no fato de ter sido criada por Deus, fonte de luz-ser e de inteligibilidade. A realidade é cognoscível para o homem porque é criada por Deus. Uma afirmação que requer a devida complementação: a realidade é inexaurível para o homem porque é criada por Deus.

À luz destas considerações, trataremos a seguir do samba “Sei lá, Mangueira”.

SEI LÁ MANGUEIRA

(Paulinho da Viola – Hermínio B. de Carvalho)

Vista assim, do alto

Mais parece um céu no chão

Sei lá...

Em Mangueira a poesia

Feito o mar se alastrou

E a beleza do lugar

Pra se entender

Tem que se achar

Que a vida não é só isso que se vê

É um pouco mais

Que os olhos não conseguem perceber

E as mãos não ousam tocar

E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei

Não sei se toda beleza

De que lhes falo

Sai tão somente do meu coração

Em Mangueira a poesia

Num sobe-desce constante

Anda descalça ensinando

Um modo novo da gente viver

De pensar e sonhar de sofrer

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei não

A Mangueira é tão grande

Que nem cabe explicação

Esta canção está de tal modo marcada pelo sentido clássico de mistério, que, literalmente, podemos colocá-la lado a lado com trechos filosóficos de Pieper:

O filósofo:

"O verdadeiro sentido da admiração é que o mundo é mais profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao conhecimento comum”(13).

O poeta:

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei

Não sei se toda a beleza

de que lhes falo

sai tão-somente do meu coração

O filósofo:

“Mistério significa que uma realidade é inconcebível, porque sua luz é inesgotável e inexaurível. É o que experimenta quem se admira”(14)

O poeta:

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei não

A Mangueira é tão grande

Que nem cabe explicação

Admiração, contemplação e mistério, bem como outros componentes do filosofar, apontam para algo ainda mais profundo: encarar o mundo como criação de Deus!

Só podemos maravilhar-nos, só é digno de contemplação, só há o excesso de luz e a grandeza do mistério, se o mundo possui algo do encanto de Deus.

Seja-me permitida ainda mais uma vez intercalar num parágrafo de Pieper trechos de “Sei lá Mangueira”.

Pieper:

“Se dos antigos se aproximasse um discípulo dizendo que era sua intenção aprender e considerar um determinado objeto de maneira filosófica, os antigos mestres replicariam: ´Estás convencido de que a realidade do mundo é algo de divino...

Sei lá Mangueira:

Visto assim do alto

Mais parece um céu no chão...

Pieper:

... a realidade do mundo é algo de divino e, por isso mesmo, digno de veneração...´” (15)

Sei lá Mangueira:

Que as mãos não ousam tocar

E os pés recusam pisar...

Pode-se dizer, pois, que o tema, - tão fundamental para os grandes antigos – da reverência como condição para o conhecimento (e que para o homem de hoje, é de tão difícil compreensão...) foi também plena e retamente captado por Paulinho-Hermínio:

“Pra se entender

Tem que se achar

Que a vida não é só isso que se vê

É um pouco mais

Que os olhos não conseguem perceber

e as mãos não ousam tocar...”



Notas:

(1) Was heisst Philosophieren? 8a. ed. München, Kösel, 1980 (seguirei, por vezes, a tradução brás. Cit. Em (13)

(2) ibidem, p. 11.

(3) ibidem, p. 12.

(4) ibidem, p. 17.

(5) cfr., p. ex. PIEPER, Verteidigungsrede für die Philosophie, München, Kösel, p. 111.

(6) op. Cit. (1) p. 63.

(7) HEIDEGGER, Sobre o problema do ser. O caminho do campo. São Paulo, Duas Cidades, 1969, p. 69.

(8) ibidem, p. 70.

(9) op. Cit. (1), p. 66-67.

(10) PIEPER, J. Lazer e Culto. São Paulo, Herder, 1969, p. 108.

(11) op. Cit. (1), p. 66.

(12) op. cit. (10), p. 60.

(13) PIEPER, O que é filosofar? O que é Acadêmico? São Paulo, EPU, 1981, p. 29.

(14) ibidem, p. 29.

(15) ibidem, p. 64.



(Originalmente, “Que há de comum entre estes dois senhores?” e “Filosofia e Poesia”, artigos publicados no Jornal da Tarde, resp. 15-8-81 e 19-6-82)



(Ilustração: Di Cavalcanti – Samba)


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

终南山 / DO MONTE ZHONGNAN, de 王維 / Wang Wei

 





太乙近天都

连山到海隅

白云回望合

青霭入看无

分野中峰变

阴晴众壑殊

欲投人处宿

隔水问樵夫



Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao:



obra suprema imitação celeste

cidade aberta entre montanhas mares

as nuvens brancas fecham-se ao olhar

cintilações em verde se dispersam

revolve o pico ao centro aparta estrelas

escuro-claros se desdobram vales

descer e a noite passar entre os homens

ao rio perguntar onde ao lenhador



(Poemas Celestiais: Li Bai, Wang Wei e Yu Xuanji; tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao)


(Ilustração: Montanha Zhongnan, foto da internet, autoria não identificada)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A MAIS TERRÍVEL DE NOSSAS HERANÇAS, de Darcy Ribeiro

 


Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas.

Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e nos punhos, era arrematado.

Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso.

Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob 300 chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.



(O povo brasileiro, 1995)



(Ilustração: José Carlos Miranda Brito - Cabo Verde)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

山中问答 / RESPOSTA NA MONTANHA, de 李白 / Li Bai

 




问余何意栖碧山

笑而不答心自闲

桃花流水窅然去

别有天地非人间





Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao:



por que razão morar nestas verdes montanhas

responde só o sorriso o coração sereno

a flor do pessegueiro cai as águas seguem

entrando a um outro mundo além do meio humano




(Poemas Celestiais: Li Bai, Wang Wei e Yu Xuanji; tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao)


(Ilustração: Ma Lin)

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

PRIMEIRO DE ABRIL: NASCIA UM PARAÍSO, de “O Globo”(Editorial de 2/4/1964)

 


Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.

Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.

Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.

Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.

Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.

As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, "são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI."

No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.

Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.

Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.

A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.

Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.



(Ilusração: Vladimir Herzog - jornalista assassinado em out. de 1975 pela ditadura - foto oficial simula suicídio)

sábado, 9 de dezembro de 2023

LA GRAMÁTICA DE MARCEAU / A GRAMÁTICA DE MARCEAU, de Leonel Alvarado


que sua gramática le viene de Rodin

dice Marcel Marceau. en um gesto

imperceptible demuestra que el mimo

es la escultura que se echa a andar

a la primera palavba de Dios, sus gestos

 

son el eco de la voz de un dios que habla dormido

y que solo los mudos pueden entender.

así debió ser como los dioses se entendiam

em la Gran Nada. de esa forma de mover

el dedo en el aire apareció la tierra, el diluvio

de una lágrima y de um bosetzo de Bip los huracanes.

 

el mimo alarga el brazo para tocar los pensamientos

de Dios antes de que se conviertan em varón y hembra

pero em la oscuridad las cosas son más frágiles y la mano

derriba las lámpadas que alumbram la inteligência divina

como el enfermo que busca el vaso de agua em la mesita de noche.

 

antes del amanecer la hembra ya se piensa en la costilla

de Marcel y en esa herida que nunca cicatriza

el mimo pierde y gana el Paraíso.

 

Tradução de Adriana Lisboa:

 

sua gramática vem de Rodin

diz Marcel Marceau. em um gesto

imperceptível demonstra que o mímico

é a escultura que se põe a andar

ante a primeira palavra de Deus, seus gestos

 

são o eco da voz de um deus que fala dormindo

e que só os mudos podem entender.

devia ser assim que os deuses se entendiam

no Grande Nada. dessa forma de mover

o dedo no ar apareceu a terra, o dilúvio

de uma lágrima e de um bocejo de Bip os furacões.

 

o mímico estica o braço para tocar os pensamentos

de Deus antes que se transformem em homem e mulher

mas na escuridão as coisas são mais frágeis e a mão

derruba as lâmpadas que iluminam a inteligência divina

como o doente que procura o copo d’água na mesa de cabeceira.

 

antes do amanhecer a mulher já se pensa na costela

de Marcel e nessa ferida que nunca cicatriza

o mímico perde e ganha o Paraíso.

 


(Ilustração: foto de Martha Swope: Marcel Marceau na Broadway, 1983)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

HISTÓRIA COMUM, de Machado de Assis


 

... Caí na copa do chapéu de um homem que passava... Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.

Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus, ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.

Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil.

Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa; de manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos alfinetes, não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele; mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.

— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?

— Que meias, nhanhã?

— As que estavam na cadeira...

— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.

E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette, para o corpo das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.

— Meninas, são horas!

— Lá vou, mamãe! disseram todas.

E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.

— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído...

Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:

— Pode ser.

— Pode ser? Vai ficar mesmo.

— Clarinha, só se espera por você.

— Pronta, mamãe!

Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.

Na sala estava a família, dois carros à porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram; mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.

— Não é preciso, sinhá; aqui está um.

Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores... Ah! enfim! eis-me no meu lugar.

Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.

— Não se vexe; não é preciso que me diga nada; basta que me aperte a mão.

Clarinha apertou-lhe a mão; ele levou-a à boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.

— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio; amanhã mesmo escreverei a seu pai.

Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.

— Tome...

E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua... Caí na copa do chapéu de um homem que passava e...



(Obra Completa)



(Ilustração : Lucille Lee - femme avec une broche rouge)