segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

VERGILIANA, de Maria Lúcia Dal Farra









Descansa comigo
sobre a folhagem nova!
Tenho frutas maduras, castanhas assadas,
fartura de queijo.
Ao longe um telhado fumega.

Nem de arbustos e tamarindos
os poemas se fazem.
É certo que assim verdejam
mas também em cinza se convertem.
Elevemos o canto: falemos da grande ordem,
da totalidade das coisas,
dos anéis de Saturno
do menino que há pouco nasceu.

Os meses correm:
úmido mel destilam as mangueiras,
heras vicejam sobre o mato,
vermelhos pendem dos espinhais incultos.

As Parcas os seus fusos correm
e a lã não mais imitará a cor:
o próprio carneiro, no prado,
vai transformar seu velo em púrpura
ou dourado açafrão;
já dispensam foices as videiras.

Alcemo-nos para as grandes honrarias!
Um século há de vir em que o alento
torne o mundo poesia.



(Livro de Possuídos)

(Ilustração:  Eliseo Visconti - gioventù, 1898)






sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

'LEITURA DE MASSA É FOLHETIM', de Ernesto Luiz Maia









Os escritores no Brasil parece que são intermitentes. De repente escrevem muito numa média de um livro por ano e depois somem por um tempo indeterminado. É lógico que nos referimos aos escritores não bissextos, isto é, àqueles que mesmo longe do público permanecem trabalhando e procuram realizar alguma obra. Mas é preciso fazer também um outro esclarecimento porque a palavra escritor está tomada aqui num sentido restrito, excluindo o trabalhador da imprensa que, evidentemente, não está longe do público em ocasião alguma, podendo, quando muito, ficar irreconhecível atrás de um pseudônimo ou do anonimato. Refere-se mais ao romancista, ao poeta e ao novelista.

Desse modo, distanciado dos escritores, o público não sabe muito o que pensar deles. Cada um vai inventando sua própria explicação que à força de não ser contestada termina por se tornar irrevogável. Inventam-se pontos de vista de fulano e de sicrano, agrupam-se pessoas inteiramente à revelia delas, determinam-se "gerações" literárias e influências diversas num esforço de mera explicação pessoal que não tem, frequentemente, o menor valor positivo. E não é só isso. Na interpretação do conjunto literário cada um de nós vai criando um sistema: isso aconteceu porque o escritor ganha pouco; foi assim porque não se pode escrever sem fazer enormes concessões aos editores; porque há necessidade de climas políticos determinados para a literatura; e por aí vai tudo.

Para corroborar cada um desses pontos de vista levantam-se montanhas de "exemplos" e se prova por A mais B que a literatura foi assim e assado porque houve isso e aquilo.

Quase nunca alguém vai procurar saber a opinião dos próprios escritores a respeito.

Mas há outros fatos também.

Fica-se dizendo que o romancista A é mais popular do que o romancista B e não se cuida ao menos de fixar um conceito sobre o que é popular ou sobre o que deixa de ser.

Para explicar a falta de penetração de muitos escritores na massa vai-se dizendo que é porque eles escrevem sobre misérias de que o pobre está farto. Cada um vem dar a última palavra e ora o analfabetismo, ora a falta de instrução, às vezes o preço dos livros, encontram maior número de adeptos.

E raramente são os próprios escritores (no sentido em que se toma aqui) que dizem o que acham a respeito. Dizem uma vez ou outra, pela boca de uma personagem sua ou num artigo ou entrevista. Mas como as personagens não estão defendendo teses, os artigos são raros e as reportagens difíceis de fazer, vai ficando tudo assim.

Foi por isso que o repórter pensou em entrevistar um escritor representativo para inquiri-lo sobre esses aspectos todos e mais outros. Mas para isso era preciso procurar um escritor e conseguir dele essas respostas todas ou, pelo menos, parte, que mais vale pouco do que nada. O caso é que o repórter não conhecia escritor nenhum e além disso nunca tinha feito reportagem. E se ele quisesse entrevistar um literato qualquer era muito fácil, porque podia ir à Academia e procurar um canastrão aposentado dos que lá existem, doidos por uma entrevistazinha, ou um político manhoso amante do fardão.

Mas o que interessava era saber alguma coisa vinda de alguém que se preocupe com o povo, em cogitar se conseguiu ou não identificar-se com a massa e ser lido por ela.

Foi por isso que a escolha recaiu em Graciliano Ramos. Basta olhar seus romances para ver que ele está com o povo. E quem achar que isso é muito abstrato procure concretização num célebre relatório que ele fez.

O repórter foi, na companhia de um amigo comum, procurar o autor de São Bernardo e fez o possível para fazê-lo falar. Mas Graciliano parece que não gosta de ser entrevistado e pergunta muito mais do que responde. Começou dizendo que não havia motivo que justificasse aquilo e, mesmo depois de aceder, aproveitou todas as ocasiões para despistar e fugir do assunto. E não foi só: muitas vezes falava mas dizia ao repórter que não podia publicar o que estava ouvindo. Foi, portanto, difícil a entrevista. E se não foi, vejamos:

- Pode alguém, no Brasil, viver exclusivamente de escrever?

- Os tabeliães estão aí...

- Bem, eu sei que o Olegário continua vivo... Mas se deixarmos de lado o reconhecimento de firmas e o registro de contratos, o senhor acredita que alguém possa viver como escritor?

- Os jornalistas...

- Quer dizer, então, que podemos falar de uma classe de escritores profissionalmente definida?

- Classe?!!! O que chama você de "classe" de escritores profissionalmente definida? O termo não cabe aqui, mesmo porque enquanto uns literatos servem a uma classe, outros servem a outra (o repórter pensou no Tristão como um tipo e no Jorge Amado como outro). Há escritores e nada mais.

- E eles podem encontrar editores sem fazer concessões?

- Os editores não influem. Pode ser que outros fatores muito mais positivos coajam o escritor, mas os editores não. Nunca tive de mudar qualquer trecho de livro porque um editor pedisse. É verdade, porém, que nunca andei atrás de editor para livro meu. Se andasse talvez aparecesse alguma exigência. Mas não conheço nenhum exemplo. Não, os editores não influenciam absolutamente.

Evidentemente, o repórter estava infeliz: depois de uma "blague", uma correção e, depois de uma correção, uma negativa. Era melhor mudar de assunto e arriscar ver se Graciliano acreditava na existência de escritores populares no Brasil.

- Não acredito não. Acho que as massas, as camadas populares, não foram atingidas e que nossos escritores só alcançaram o pequeno burguês. Por quê? Porque a massa é muito nebulosa, é difícil interpretá-la, saber de que ela gosta. Além disso, os escritores, se não são classe, estão em uma classe, que não é, evidentemente, a operária. E do mesmo jeito que não puderam penetrar no povo, não podem dizer o motivo pelo qual não conseguiram isso. Somente um inquérito entre o próprio povo poderia dizer dos motivos, e eis aí ótimo tema para uma investigação. Talvez seja isso mesmo: talvez porque um escritor não sente os problemas como o povo, este não o deixe penetrar nele.

- E o que diria o senhor sobre a questão de tema e tratamento? Eu me explico: será o assunto que afasta o escritor da massa ou o êxito depende muito mais do modo como foi escrito?

- Acho que não é o tema que tem a maior importância. A miséria, por exemplo, pode não dar a quem a trata a mesma impressão que naquele que a sofre.

- Nesse caso porque não foi tratada objetivamente...

- Até pelo contrário. Objetivamente ela pode ter sido. O objeto, a coisa, não está ali dentro do livro? Justamente o que desafinou foi a parte subjetiva. E sem ela não pode haver obra alguma, porque qualquer um só pode escrever o que sente e não o que os outros estão sentindo ou poderiam sentir.

- Somente um proletário pode escrever efetivamente para o proletário?

- Sim. Um burguês só pode fazer contrafação quando trata um tema proletário. Mas eu já lhe disse que o porquê da coisa somente o próprio povo poderia dizer. Como iria eu dizer por que um operário não gosta de um livro, se não sou operário? O que nossos escritores podem alcançar é a pequena burguesia.

- Mas então é lógico que se não foi o tema, foi o tratamento que afastou o povo. É porque as camadas desfavorecidas (com eufemismo e tudo) não têm, ainda, uma instrução suficiente para apreciar uma literatura melhor, admitindo-se, a priori, que o escritor seja bom.

- Você não vai querer dizer com isso que o escritor passe a escrever mal... Ou vai?

- De modo algum, é claro. Mas eu pergunto, então, se o senhor acha que um gênero, uma escola, influi. Se a poesia, por exemplo, tem mais possibilidades do que o romance, entre o povo, ou se é o teatro que reúne maiores condições de êxito.

- Nas massas iletradas, o romantismo é de mais fácil êxito. Mas o que vigora mesmo é o folhetim, que a massa vai aceitando como entorpecente... Olhe bem, eu não estou citando ninguém... Mas o fato é este: o que se lê entre a massa é o folhetim.



(Entrevista de 1944, publicada em OESP/Sabático, 20 de outubro de 2012)



(Ilustração: Paul Cadmus)



terça-feira, 25 de dezembro de 2012

VELETA / CATA-VENTO, de Federico García Lorca








Viento del Sur,

moreno, ardiente,

llegas sobre mi carne,

trayéndome semilla

de brillantes

miradas, empapado

de azahares.

Pones roja la luna

y sollozantes

los álamos cautivos, pero vienes

¡demasiado tarde!

¡Ya he enrollado la noche de mi cuento

en el estante!



Sin ningún viento,

¡hazme caso!,

gira, corazón;

gira, corazón.



Aire del Norte,

¡oso blanco del viento!

Llegas sobre mi carne

tembloroso de auroras

boreales,

con tu capa de espectros

capitanes,

y riyéndonte a gritos

del Dante.

¡Oh pulidor de estrellas!

Pero vienes

demasiado tarde.

Mi almario está musgoso

y he perdido la llave.



Sin ningún viento,

¡hazme caso!,

gira, corazón;

gira, corazón.



Brisas, gnomos y vientos

de ninguna parte.

Mosquitos de la rosa

de pétalos pirámides.

Alisios destetados

entre los rudos árboles,

flautas en la tormenta,

¡dejadme!

Tiene recias cadenas

mi recuerdo,

y está cautiva el ave

que dibuja con trinos

la tarde.

Las cosas que se van no vuelven nunca,

todo el mundo lo sabe,

y entre el claro gentío de los vientos

es inútil quejarse.

¿Verdad, chopo, maestro de la brisa?

¡Es inútil quejarse!



Sin ningún viento,

¡hazme caso!,

gira, corazón;

gira, corazón.


Tradução de William Angel de Mello:




Vento do Sul,

moreno, ardente,

que passas sobre minha carne

trazendo-me semente

de brilhantes

olhares, empapado

de flores de laranjeira.

Tornas vermelha a lua

e soluçantes

os álamos cativos, mas vens

demasiado tarde!

Já enrolei a noite de meu conto

na estante!



Sem nenhum vento,

acredita em mim!,

gira, coração;

gira, coração.



Ar do norte,

urso branco do vento!

Que passas sobre minha carne

tremente de auroras

boreais,

com tua capa de espectros

capitães,

e rindo estrepitosamente

do Dante.

Oh! polidor de estrelas!

Mas vens

demasiado tarde.

Meu armário está musgoso

e perdi a chave.



Sem nenhum vento,

acredita em mim!,

gira, coração;

gira, coração.



Brisas, gnomos e ventos

de nenhuma parte.

Mosquitos da rosa

de pétalas pirâmides.

Alísios destetados

entre as rudes árvores,

flautas na tormenta,

deixai-me!

Tem fortes cadeias

minha recordação,

e está cativa a ave

que desenha com trinos

a tarde.

As coisas que vão não voltam nunca,

todo o mundo sabe disso,

e entre o claro gentio dos ventos

é inútil queixar-se.

Não é verdade, choupo, mestre da brisa?

É inútil queixar-se!



Sem nenhum vento,

acredita em mim!

gira, coração;

gira, coração.


(Obra Poética Completa)



(Ilustração: Kay Sage - I saw tree cities)



sábado, 22 de dezembro de 2012

BRIGA DE MENINOS, de Henry Miller








Estou pensando agora na briga a pedradas que tivemos uma tarde de verão há muito tempo quando eu estava na casa de minha tia Caroline perto de Hell Gate. Meu primo Gene e eu havíamos sido encurralados por um bando de meninos quando brincávamos no parque. Não sabíamos de que lado estávamos lutando, mas lutávamos muito a sério no meio do monte de pedras à margem do rio. Tínhamos de demonstrar ainda mais coragem que os outros meninos porque suspeitavam que fôssemos maricas. Foi assim que aconteceu de matarmos um menino do bando rival. Quando estavam nos atacando meu primo Gene investiu contra o chefe do bando e acertou-lhe na barriga uma pedra de bom tamanho. No mesmo instante eu joguei outra, que lhe acertou na têmpora. Quando ele caiu ficou tombado de uma vez e não abriu mais os olhos. Alguns minutos depois chegaram os guardas e viram que o menino estava morto. Tinha oito ou nove anos, mais ou menos a mesma idade que nós. Não sei o que nos teriam feito se nos apanhassem. Seja como for, para não despertar suspeitas corremos para casa. Limpamo-nos um pouco no caminho e penteamos os cabelos. Entramos parecendo quase tão limpos como quando havíamos saído de casa. Tia Caroline deu-nos como de hábito duas grandes fatias de pão de centeio com manteiga fresca e um pouco de açúcar por cima. Sentamo-nos à mesa da cozinha ouvindo-a com um sorriso angelical. Era um dia extremamente quente e ela achou que seria melhor ficarmos em casa, na grande sala da frente onde as persianas tinham sido fechadas, e jogar bolinhas de gude com nosso amiguinho Joey Kasselbaum. Joey tinha a reputação de ser um pouco retardado e geralmente nós o limpávamos, mas naquela tarde, por uma espécie de silencioso entendimento, Gene e eu deixamos que ele ganhasse tudo quanto tínhamos. Joey ficou tão contente que mais tarde nos levou ao porão de sua casa e fez sua irmã erguer o vestido para mostrar-nos o que havia por baixo. Weesie era como a chamavam e lembro-me que gostou de mim instantaneamente. Eu vinha de outra parte da cidade, que lhes parecia tão distante a ponto de ser quase como vir de outro país. Pareciam mesmo pensar que eu falava diferente deles. Enquanto os outros moleques pagavam para Weesie erguer seu vestido, para nós isso era feito por amor. Depois de algum tempo convencemo-la a não fazer mais aquilo para os outros meninos - estávamos amando-a e queríamos que ela fosse direita.



Depois que deixei meu primo no fim do verão, não voltei a vê-lo durante vinte anos ou mais. Quando nos encontramos o que me impressionou profundamente foi o ar de inocência que ele tinha - a mesma expressão do dia da briga a pedradas. Quando lhe falei sobre a briga fiquei ainda mais espantado ao descobrir que ele se esquecera de termos sido nós que havíamos matado o menino. Lembrava-se da morte do menino, mas falava nele como se nem ele nem eu tivéssemos tido qualquer participação. Quando lhe mencionei Weesie teve dificuldade em lembrar-se dela. Não se lembrava do porão da casa vizinha... Joey Kasselbaum? Ao ouvir esse nome um débil sorriso surgiu em seu rosto. Achou extraordinário que eu me lembrasse de tais coisas. Ele já estava casado, era pai e trabalhava em uma fábrica de estojos para cachimbos. Achou extraordinário lembrar acontecimentos que haviam ocorrido em passado tão distante.




Após separar-me dele naquela noite senti-me terrivelmente abatido. Era como se ele tivesse tentado arrancar de minha vida uma parte preciosa e com ela arrancar também a si próprio. Pareceu-me mais apegado aos peixes tropicais que colecionava do que ao maravilhoso passado. Quanto a mim, lembro-me de tudo, de tudo quanto aconteceu naquele verão e particularmente da briga a pedradas. De fato, há ocasiões em que o gosto da grande fatia de pão de centeio que sua mãe me deu naquela tarde é mais forte em minha boca do que o alimento que estou realmente saboreando. E a vista do botaõzinho de Weesie é quase mais forte que o contato real daquilo que tenho na mão. A maneira como o menino ficou lá caído depois que o derrubamos é muito, mas muito mais impressionante que a história da Guerra Mundial. De fato, todo o longo verão parece um idílio saído das lendas do Rei Artur. Às vezes pergunto a mim mesmo o que houve neste determinado verão que o torna tão vívido em minha memória. Basta-me fechar os olhos por um momento para reviver cada um daqueles dias. A morte do menino certamente não me causou angústia - foi esquecida depois de uma semana. A vista de Weesie em pé na penumbra do porão com o vestido erguido também passou facilmente. Por estranho que pareça, a grossa fatia de pão de centeio que sua mãe me dava todo dia parece ter mais potência que qualquer outra imagem daquele período. Pergunto-me por quê... pergunto-me profundamente. Talvez seja porque sempre que me dava a fatia de pão era com uma ternura e uma simpatia que eu nunca antes conhecera. Era uma mulher muito sem graça, minha tia Caroline. Tinha o rosto marcado por bexigas, mas era uma fisionomia bondosa e cativante que nenhuma deformação poderia desfigurar. Era enormemente robusta e tinha uma voz muito macia e muito cariciosa. Quando falava comigo, parecia dedicar-me mais atenção, mais consideração, do que a seu próprio filho. Eu gostaria de ter ficado sempre com ela; eu a teria escolhido para minha mãe se me permitissem. Lembro-me distintamente como minha mãe, quando chegou para uma visita, pareceu agastada pelo fato de eu estar tão contente com minha nova vida. Chegou a observar que eu estava sendo ingrato, observação de que nunca me esqueci, porque percebi então pela primeira vez que ser ingrato era talvez necessário e bom para a gente. Quando cerro os olhos agora e penso naquilo, na fatia de pão, penso quase imediatamente  que naquela casa eu nunca soube o que fosse ser repreendido. Acho que se tivesse contado a tia Caroline que havia matado um menino no parque, se lhe tivesse contado exatamente como acontecera, ter-me-ia abraçado e perdoado - instantaneamente. Por isso talvez aquele verão é tão precioso para mim. Foi um verão de tácita e completa absolvição. É por isso que não posso também esquecer-me de Weesie. Era cheia de bondade natural, uma criança que tinha amor por mim e que não fazia censuras. Foi a primeira pessoa de outro sexo a admirar-me por ser diferente. Depois de Weesie, aconteceu o contrário. Fui amado, mas fui odiado também por ser o que era. Weesie fez um esforço para compreender. O próprio fato de eu vir de um país estranho, de falar outra língua, aproximou-a de mim. A maneira como seus olhos brilhavam quando me apresentava a seus amiguinhos é coisa de que nunca me esquecerei. Seus olhos pareciam estar estourando de amor e admiração. Às vezes nós três íamos passear na beira do rio ao anoitecer e, sentados na margem, falávamos como crianças falam quando estão longe das vistas dos mais velhos. Falávamos então, sei bem disso agora, com mais intimidade e profundidade do que nossos pais. Para dar-nos aquela grossa fatia de pão todo dia os pais tinham se sofrer pesado castigo. O pior castigo era que se tornavam estranhos a nós. Isso porque, a cada fatia que davam, nós nos tornávamos não só mais diferentes a eles, mas também mais e mais superiores a eles. Em nossa ingratidão residia nossa força e nossa beleza. Não sendo devotados éramos inocentes de todo crime. O menino que eu vi cair morto, que lá ficou imóvel, sem soltar o mais leve gemido ou lamúria, a morte daquele menino quase parece uma ação limpa e saudável. A luta pela comida, por outro lado, parece suja e degradante; quando estamos na presença de nossos pais sentimos que eles chegaram a nós sujos e por isso nunca podemos perdoá-los. A grossa fatia de pão à tarde, precisamente porque não era ganha, tinha sabor delicioso. Nunca mais o pão terá esse sabor. Nunca mais será dado desse jeito. No dia do assassínio foi ainda mais saboroso do que nunca. Tinha um ligeiro gosto de terror que vem faltando desde então. E foi recebido com a absolvição tácita mas completa de tia Caroline.




(Trópico de Capricórnio, tradução de Aydano Arruda)




(Ilustração:  João Ruas - beggar)



quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O ENAMORADO DAS ROSAS, de Olegário Mariano








Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,

Ouvindo a água da fonte que murmura,

Rego as minhas roseiras com ternura,

Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.




Cada uma tem um suave movimento

Quando a chamar minha atenção procura

E mal desabrochada na espessura,

Manda-me um gesto de agradecimento.




Se cultivei amores às mancheias,

Culpa não cabe às minhas mãos piedosas

Que eles passassem para mãos alheias.




Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,

Alimento a ilusão de que essas rosas,

Ao menos essas rosas, sejam minhas.






(lustração: Jean Bailly)


domingo, 16 de dezembro de 2012

DEUXIÉME LETTRE DE MÉNAGE / SEGUNDA CARTA CONJUGAL, de Antonin Artaud






J'ai besoin, à côté de moi, d'une femme simple et équilibrée, et dont l'âme inquiète et trouble ne fournirait pas sans cesse un aliment à mon désespoir. Ces derniers temps, je ne te voyais plus sans un sentiment de peur et de malaise. Je sais très bien que c'est ton amour qui te fabrique tes inquiétudes sur mon compte, mais c'est ton âme malade et anormale comme la mienne qui exaspère ces inquiétudes et te ruine le sang. Je ne veux plus vivre auprès de toi dans la crainte. J'ajouterai à cela que j'ai besoin d'une femme qui soit uniquement à moi et que je puisse trouver chez moi à toute heure. Je suis désespéré de solitude. Je ne peux plus rentrer le soir, dans une chambre, seul, et sans aucune des facilités de la vie à portée de ma main. Il me faut un intérieur, et il me le faut tout de suite, et une femme qui s'occupe sans cesse de moi qui suis incapable de m'occuper de rien, qui s'occupe de moi pour les plus petites choses.Une artiste comme toi a sa vie, et ne peut pas faire cela. Tout ce que je te dis est d'un égoïsme féroce, mais c'est ainsi. Il ne m'est même pas nécessaire que cette femme soit très jolie, je ne veux pas non plus qu'elle soit d'une intelligence excessive, ni surtout qu'elle réfléchisse trop. Il me suffit qu'elle soit attachée à moi. Je pense que tu sauras apprécier la grande franchise avec laquelle je te parle et que tu me donneras la preuve d'intelligence suivante : c'est de bien pénétrer que tout ce que je te dis n'a rien à voir avec la puissante tendresse, l'indéracinable sentiment d'amour que j'ai et que j'aurai inaliénablement pour toi, mais ce sentiment n'a rien à voir lui-même avec le courant ordinaire de la vie. Et elle est à vivre, la vie. Il y a trop de choses qui m'unissent à toi pour que je te demande de rompre, je te demande seulement de changer nos rapports, de nous faire chacun une vie différente, mais qui ne nous désunira pas.



Tradução de Isaias Edson Sidney:



Eu preciso, ao meu lado, de uma mulher simples e equilibrada, cuja alma inquieta e sombria não fornecesse sem parar um alimento ao meu desespero. Nos últimos tempos, eu não te via mais sem um sentimento de medo e de dor. Eu sei muito bem que é teu amor que te faz inquietar-te por minha causa, mas é tua alma doente e estraordinária como a minha que exacerba essas inquietações e te arruína o sangue. Eu não quero mais viver a teus pés com um sentimento de medo. Eu acrescentarei a isso o fato de que eu preciso de uma mulher que seja unicamente minha e que possa encontrá-la em minha casa a qualquer hora. Eu estou desesperadamente só. Eu não posso mais voltar à tarde a um quarto, sozinho, e sem qualquer facilidade da vida ao alcance de minha mão. Preciso de uma casa, e preciso com urgência, e de uma mulher que se ocupe sem cessar de mim, que sou incapaz de cuidar de qualquer coisa, que cuide de mim nos mínimos detalhes. Uma artista como tu tem sua vida, e não pode fazer isso. Tudo quanto eu te disse é de um egoísmo terrível, mas é assim que são as coisas. Não é nem necessário que essa mulher seja muito bonita, eu não quero nem que seja de grande inteligência, e sobretudo que não pense muito. É suficiente para mim que ela seja afeiçoada a mim. Eu penso que tu saberias apreciar a grande franqueza com que eu te falo e que tu dês a seguinte prova de inteligência: é bom entender que tudo quanto eu te disse não tem nada a ver com a imensa ternura, o extraordinário sentimento de amor que eu tenho e que terei inalienavelmente por ti, mas este sentimento, por ele mesmo, não tem nada a ver com o curso comum da vida. E a vida existe para ser vivida. Há muitas coisas que me unem a ti para que eu te peça um rompimento, eu te peço somente para mudar nosso relacionamento, para fazer com que cada um viva uma vida diferente, mas que isso não nos separe.




(Le Pèse-nerfs, in Oeuvres complètes)



(Ilustração: Damian Klaczkiewicz - morning coffee)




quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

NORDESTINO SIM, NORDESTINADO NÃO, de Patativa do Assaré














Nunca diga nordestino

Que Deus lhe deu um destino

Causador do padecer

Nunca diga que é o pecado

Que lhe deixa fracassado

Sem condições de viver

Não guarde no pensamento

Que estamos no sofrimento

É pagando o que devemos

A Providência Divina

Não nos deu a triste sina

De sofrer o que sofremos

Deus o autor da criação

Nos dotou com a razão

Bem livres de preconceitos

Mas os ingratos da terra

Com opressão e com guerra

Negam os nossos direitos

Não é Deus quem nos castiga

Nem é a seca que obriga

Sofrermos dura sentença

Não somos nordestinados

Nós somos injustiçados

Tratados com indiferença

Sofremos em nossa vida

Uma batalha renhida

Do irmão contra o irmão

Nós somos injustiçados

Nordestinos explorados

Mas nordestinados não

Há muita gente que chora

Vagando de estrada afora

Sem terra, sem lar, sem pão

Crianças esfarrapadas

Famintas, escaveiradas

Morrendo de inanição

Sofre o neto, o filho e o pai

Para onde o pobre vai

Sempre encontra o mesmo mal

Esta miséria campeia

Desde a cidade à aldeia

Do Sertão à capital

Aqueles pobres mendigos

Vão à procura de abrigos

Cheios de necessidade

Nesta miséria tamanha

Se acabam na terra estranha

Sofrendo fome e saudade

Mas não é o Pai Celeste

Que faz sair do Nordeste

Legiões de retirantes

Os grandes martírios seus

Não é permissão de Deus

É culpa dos governantes

Já sabemos muito bem

De onde nasce e de onde vem

A raiz do grande mal

Vem da situação crítica

Desigualdade política

Econômica e social

Somente a fraternidade

Nos traz a felicidade

Precisamos dar as mãos

Para que vaidade e orgulho

Guerra, questão e barulho

Dos irmãos contra os irmãos

Jesus Cristo, o Salvador

Pregou a paz e o amor

Na santa doutrina sua

O direito do bangueiro

É o direito do trapeiro

Que apanha os trapos na rua

Uma vez que o conformismo

Faz crescer o egoísmo

E a injustiça aumentar

Em favor do bem comum

É dever de cada um

Pelos direitos lutar

Por isso vamos lutar

Nós vamos reivindicar

O direito e a liberdade

Procurando em cada irmão

Justiça, paz e união

Amor e fraternidade

Somente o amor é capaz

E dentro de um país faz

Um só povo bem unido

Um povo que gozará

Porque assim já não há

Opressor nem oprimido.



(Ilustração: Ronaldo Mendes - Retalhos)



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

THE SPECTACLE OF SUFFERING / O ESPETÁCULO DO SOFRIMENTO, de Lee Siegel







I would like a day without images. I would like one day to go by without turning on my computer and being inundated by images both tragic and banal. I would like one day to go by without seeing the image of Kim Kardashian displayed alongside the image of a pile of corpses in the Congo.

But even if I boycotted the internet, kept the television turned off, and used my cellphone only for email or texting, the conquering hordes of images would engulf me from the video in the back of a taxi, the video in the bank or supermarket, the television in the waiting room, the images flickering like postmodern fireplaces in the living rooms of neighbors' homes. When my second child was born, a nurse insisted I give her my cellphone and then stood on the other side of the curtain, snapping away as my daughter was lifted out of my wife in a C-section. "How is the baby?"I asked, stretching out my arms to hold my new daughter. The nurse beamed at me and gently put the phone back in my hand. "I got some wonderful shots," she Said. 

Much used to be written about the moral ambiguity of the camera, the great book on the subject being Susan Sontag's "On Photography." Yet philosophical reflection on photography is, by this point, irrelevant. What surrounds us with the encompassing ubiquity of oxygen is not anything like "photography." Photography is the product of purpose and will. Our second-by-second siege of images is entirely random. It is the product not of purpose and will, but of distraction, prurience, and the timeless human impulse to shame and humiliate.

A friend of mine told me that she was walking along a street in Manhattan one day when she came upon a small crowd of people that had gathered on the sidewalk. As she drew closer, she saw that they had surrounded a bird with a broken wing that was struggling for life on the pavement. Evetyone had his digital device out, snapping pictures of the dying creature. 

What was the meaning of it all? Were they merely expressing the human urge to record the life around them, as artists have done from the time of the cave paintings up through the impressionists, to Atget's pictures of Paris, Salgado's photographs of workers, and beyond? Were they using their digital cameras to master a reality that appalled them? Or had they, like the decadent ruling class of the late Roman Empire, grown so indifferent to suffering that the spectacle of suffering had become yet another sensual Pleasure?

And why didn't someone just pick the bird up and try to take it to a place where it could be saved? Before my friend could do so, it died.

It seems that the digital age has brought us to a "tipping point." The curiosity that keeps us engaged with the world and alive to reality has become an obscene detachment that notes horrendous events in a fantasy of immunity from time and circumstance. The photographer, as Sontag noted, has always had to grapple with the fact that "capturing" someone on film confers on the photographer a potentially abusive power. But now no one grapples with anything. They simply snap other people's-or other creature's-agony, upload it and hit "send."

Last week, the New York Post, a tabloid newspaper devoted to florid reporting of lurid events, surpassed itself in the realm of promiscuous images. It published on its front page, over the headline, "DOOMED," and with the caption "PUSHED ON THE SUBWAY TRACK, THIS MAN IS ABOUT TO DIE," the picture of a man standing on the tracks and clinging helplessly to the edge of the subway platform as a train bears down on him. Seconds later he was crushed to death. It turned out that he was a Korean man who had gotten into a fight with a homeless person, who then threw the unlucky man onto the tracks.

The debate, so familiar now in our age of profligate picture-snapping, began once again. Why didn't the photographer try to rescue the man instead of taking his picture? How could even the New York Post publish such a picture, which was sure to wound and outrage the victim's family?

According to the photographer, who says he works freelance for the New York Post, he had only snapped the picture in hopes of using his flash to warn and stop the train. (Yes, and I have a pair of wings that I use to fly to California and back.) He also claimed that the other people on the platform were also taking pictures with their iGadgets instead of helping the Korean man. That I believe.

Yet the debate is beside the point. Pictures like this will continue to appear, and people will continue to elevate voyeurism to a sickening new type of morality. Coldhearted watching-the society of the spectacle, as someone once called it-is a quality of decadence and America is, in certain ways, in its late, decadent stage. And in our age of ascendant technology, our numerous miraculous devices serve, inevitably, as delusions of immortality.

The only answer is to declare war on meaningless or degrading images. Perhaps some genius, a Steve Jobs of the opposition, will invent a new type of digital graffiti. Until then, in this country at least, we must proclaim a national holiday in which everyone has to wear a blindfold for 24 hours. They will end up seeing more in one day than they have seen in years.



Tradução OESP (9.12.2012):




Eu gostaria que houvesse um dia sem imagens. Gostaria de passar um dia sem precisar abrir meu computador e ser inundado por imagens trágicas e banais. Gostaria de passar um dia sem ver a imagem de Kim Kardashian ao lado da imagem de uma pilha de cadáveres no Congo.

Mas mesmo que eu boicotasse a internet, mantivesse o televisor desligado e usasse meu celular só para e-mails e mensagens de texto, as hordas vitoriosas de imagens me envolveriam do vídeo no banco de trás do táxi, do vídeo em um banco ou supermercado, do televisor nas salas de estar de lares vizinhos. 

Quando nasceu meu segundo filho, uma enfermeira insistiu para eu lhe entregar o meu celular e depois ficou parada do outro lado da cortina tirando fotos enquanto minha filha era retirada de minha mulher numa cesariana. "Como está o bebê?", eu perguntei, esticando os braços para segurar minha nova filha. A enfermeira sorriu para mim e suavemente recolocou o celular em minha mão, dizendo: "Tirei algumas fotos maravilhosas".

Já se escreveu muita coisa sobre a ambiguidade moral da câmera, e o grande livro sobre o tema é Sobre a Fotografia, de Susan Sontag. No entanto, uma reflexão filosófica sobre a fotografia é, a esta altura, irrelevante. O que nos rodeia com a ubiquidade envolvente do oxigênio não é algo como "fotografia". 

A fotografia é um produto de propósito e vontade. Nosso cerco segundo a segundo por imagens é inteiramente aleatório. É um produto não de propósito e vontade, mas de distração, luxúria e o eterno impulso humano para envergonhar e humilhar.

Uma amiga minha me contou que estava andando por uma rua de Manhattan certo dia quando esbarrou numa pequena multidão de pessoas reunidas na calçada. Quando ela se aproximou, viu que elas estavam rodeando um pássaro com a asa quebrada que lutava pela vida na calçada. Todas brandiam seus aparelhos digitais tirando fotos da criaturinha moribunda.

Qual o significado disso tudo? Estariam simplesmente expressando a necessidade humana de registrar a vida que as cercava, como artistas fizeram desde o tempo das pinturas nas cavernas até os impressionistas, as fotos de Atget de Paris, as fotos de trabalhadores de Salgado, e outros? Ou teriam se tornado, como a decadente classe dirigente do Império Romano tardio, tão indiferentes ao sofrimento que o espetáculo do sofrimento havia se tornado mais um prazer sensual?

E por que alguém simplesmente não pegou a ave e tentou levá-la para um lugar onde ela pudesse ser salva? Antes que minha amiga pudesse fazê-lo, a ave morreu.

Ao que parece, a era digital nos levou a um "ponto de virada". A curiosidade que nos mantém engajados com o mundo e atentos à realidade se transformou num distanciamento obsceno que constata eventos tenebrosos numa fantasia de imunidade de tempo e circunstância. O fotógrafo, como observou Sontag, sempre teve de lidar com o fato de que "capturar" alguém numa película lhe confere um poder potencialmente abusivo. Agora, porém, ninguém lida com nada. As pessoas simplesmente fotografam a agonia de outras pessoas - ou de outras criaturas -, fazem o upload e acionam "enviar".

Na semana passada, o New York Post, tabloide dedicado a reportagens floreadas de acontecimentos revoltantes, se superou no quesito das imagens promíscuas. Ele publicou em primeira página, sob a manchete CONDENADO, e com a legenda EMPURRADO PARA O TRILHO DO METRÔ, ESTE HOMEM ESTÁ PRESTES A MORRER, a foto de um homem de pé sobre os trilhos agarrando-se em desamparo à borda da plataforma enquanto um trem se aproxima para atingi-lo. Segundos depois, ele morreu esmagado. Verificou-se depois que ele era um coreano que havia se envolvido numa briga com um sem-teto, o qual havia atirado o pobre infeliz para os trilhos.

O debate, hoje tão familiar nesta era de captura desregrada de fotos, recomeçou. Por que o fotógrafo não tentou salvar o homem em vez de fazer a sua foto? Como o New York Post foi capaz de publicar tal foto, que seguramente magoaria e indignaria a família da vítima?

Segundo o fotógrafo, que declarou trabalhar como free lance para o New York Post, ele só fez a foto na esperança de usar o flash para alertar e parar o trem. (Sim, e eu tenho um par de asas que uso para ir e voltar voando à Califórnia). Ele também alegou que as outras pessoas na plataforma estavam tirando fotos com suas engenhocas em vez de ajudar o coreano. Nisso eu acredito.

Mas o debate é irrelevante. Fotos como essa continuarão a surgir, e pessoas continuarão alçando o voyeurismo a um repugnante novo tipo de moralidade. A observação indiferente - a sociedade do espetáculo, como alguém um dia a chamou - é uma qualidade de decadência e os Estados Unidos estão, de certo modo, em seu estágio tardio, decadente. E em nossa era de ascendência tecnológica, nossos inúmeros aparelhos milagrosos servem, inevitavelmente, como ilusões de imortalidade.

A única resposta a isso é declarar guerra às imagens degradantes ou sem sentido. Talvez algum gênio, um Steve Jobs da oposição, invente um novo tipo de grafite digital. Até lá, neste país ao menos, precisamos proclamar um feriado nacional em que as pessoas terão de usar uma venda sobre os olhos por 24 horas. Elas acabarão vendo mais em um dia do que viram em anos.



(Ilustração: Felix Nussbaum - camp synagogue)









sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE, de Mário Quintana







Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!




(A Cor do Invisível )


(Ilustração: Edivaldo Barbosa)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O IMPACTO HUMANO DA ERA DE GUERRAS, de Eric Hobsbawm








Falta avaliar o impacto humano da era de guerra, e seus custos humanos. O simples volume de baixas [...] é apenas parte destes. Muito curiosamente, a não ser por motivos compreensíveis, na URSS, os números muito menores da Primeira Guerra Mundial iriam causar um impacto muito maior que as imensas quantidades da Segunda, como testemunham a maior predominância de monumentos e o culto aos mortos da Primeira Guerra Mundial. A Segunda não produziu equivalentes dos monumentos ao "soldado desconhecido", e depois dela a comemoração do "Dia do Armistício" (aniversário do 11 de novembro de 1918) foi perdendo aos poucos sua solenidade de entreguerras. Talvez 10 milhões de mortos parecessem um número mais brutal para os que jamais haviam esperado tal sacrifício do que 54 milhões para os que já haviam experimentado a guerra como um massacre antes.

Sem dúvida, tanto a totalidade dos esforços de guerra quanto a determinação de ambos os lados de travá-la sem limites e a qualquer custo deixaram sua marca. Sem isso, é difícil explicar a crescente brutalidade e desumanidade do século XX. Sobre essa curva ascendente de barbarismo após 1914, voltamos a acostumar-nos, sem grande repulsa, a seu uso em pelo menos um terço dos Estados membros das Nações Unidas, incluindo alguns dos mais velhos e civilizados (Peters, 1985).

O aumento da brutalização deveu-se não tanto à liberação do potencial latente de cureldade e violência no ser humano, que a guerra naturalmente legitima, embora isso certamente surgisse após a Primeira Guerra Mundial entre um certo tivpo de ex-soldados (veteranos), sobretudo nos esquadrões da morte ou arruaceiros e "Brigadas Livres" da ultradireita nacionalista. Por que homens que tinham matado e vista matar e estropiar seus amigos iriam hesitar em matar e brutalizar os inimigos de uma boa causa?

Um motivo importante foi a estranha democratização da guerra. Os conflitos totais viraram "guerras populares", tanto porque os civis e a vida civil se tornaram os alvos estratégicos certos, e às vezes principais, quanto porque em guerras democráticas, como na política democrática, os adversários são naturalmente demonizados para fazê-los devidamente odiosos ou pelo menos desprezíveis. As guerras conduzidas de ambos os lados por profissionais, ou especialistas, sobretudo os de posição social semelhante, nãoe xcluem o respeito mútuo e a aceitação de regras, ou mesmo cavalheirismo. A violência tem suas leis. Isso ainda era evidente entre os pilotos de caças da forças aéreas nas duas guerras, como testemunha o filme pacifista de Jean Renoir sobre a Primeira Guerra Mundial, La grande illusion. Os profissionais da política e da diplomacia, quando desimpedidos pelas exigências de votos ou jornais, podem declarar guerra ou negociar a paz sem ressentimentos contra o outro lado, como boxeadores que se apertam as mãos antes de começarem a luta, e bebem uns com os outros depois. Mas as guerras totais estavam muito distantes do padrão bismarckiano ou do século XVIII. Nenhuma guerra em que se mobilizam os sentimentos nacionais de massa pode ser tão limitada quanto as guerras aristocráticas. E, deve-se dizer, na Segunda Guerra Mundial a natureza do regime de Hitler e o comportamento dos alemães, inclusive do velho exército alemão não nazista, na Europa Oriental, foi o de justificar muita demonização.

Outro motivo, porém, era a nova impessoalidade da guerra, que tornava o matar e estropiar uma consequência remota de apertar um botão ou virar uma alavanca. A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, como não podeiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras de armas de fogo. Diante dos canhões permanentemente fixos da Frente Ocidental estavam não homens, mas estatísticas - nem mesmo estatísticas reais, mas hipotéticas, como mostraram as "contagens de corpos" de baixas inimigas durante a guerra americana no Vietnã. Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser quimadas e evisceradas, mas somente alvos. Rapazes delicados, que certamente não teriam desejado enfiar uma baioneta na barrida de uma jovem aldeã grávida, podeiam com muito mais facilidade jogar altos explosivos sobre Londres ou Berlim, ou bombas nucleares em Nagasaki. Diligentes burocratas alemães, que certamente teriam achado repugnante tanger eles próprios judeus mortos de fome para abatedouros, podiam organizar os horários de trem para o abastecimento regular de comboios da morte para os campos de extermínio poloneses, com menos senso de envolvimento pessoal. As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistemas e rotina, sobretudo quando poderiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais. 




(A Era dos Extremos - O breve século XX - 1914-1991, tradução de Marcos Santarrita)




(Ilustração: Brueghel - mad-meg)








sábado, 1 de dezembro de 2012

ARGILA, de Raul de Leoni







Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...


Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...


É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)


Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

(Ilustraçáo:  Tracey Harris - tricô)



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A CASA DEMOLIDA, de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)







Seriam ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por que guardamos.

Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro felizes anos de minha vida.

Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras! 


Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que, mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.


Esta era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo, enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.


A ideia de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raul de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança.

Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!

Nas paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível "Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido.


Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação.


O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de? Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não mais que na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.


Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa? Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia foi a casa.

Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe.




(A casa demolida)


(Ilustração: Jean Bailly)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A BUSCA, de Márcia Tiburi








Acordo todas as noites às três horas e dezesseis minutos. Vou até o quarto de meu pai que está à espera de remédios para dormir sempre com os olhos abertos dos que morrem assustados. Sentado à beira da cama ele toma na mão esquerda a pequena xícara branca onde um dia lhe servi café. Agora cheia de água quase à borda. Ele toma o comprimido sem esperança alguma de dormir. Faço a conta dos dias em que está assim e me perco. Afrouxo a boca do relógio pensando que relógios não têm boca. Gostaria de saber onde estamos. Meu pai sobre a borda da cama, eu agora à espera de que descanse. Estou sobre o chão, sobre o andar de baixo, sobre o térreo, sobre o concreto, sobre o cascalho, sobre o tijolo em fragmentos. Ainda sobre a terra onde seremos enterrados.

Minha avó lá fora, indignada com a busca de meu avô no meio da noite. Ela sopra a terra impura e me olha de longe. Meu pai me chama pedindo mais água. Ela grita com o que lhe resta de voz que estou errada em cuidar dele, que está morto como está morto meu avô.

Vista por outro ângulo a vida, não estando, se refaz, respondo-lhe chamando-a para dentro de casa. Neste instante ela me diz que eu deveria desistir da busca ingrata sobre a qual nada sei. Dessa busca que matou meu avô, meu pai e que definirá também o meu destino.

Seus olhos já não fixam as pálpebras forçando a visão de coisa alguma. É espantoso que uma mulher tão forte e tão bonita tenha agora apenas este rosto de porca. Que busca, que busca é essa? Insisto para que me diga. Sobre mim caem as gotas de chumbo que encharcam a noite. Vendo-a a arrastar-se na terra iluminada pelas estrelas, sinto vontade de abraçá-la, mas está longe de meu alcance ainda que possamos nos reconhecer. Só o que pronuncia com a insuperável dificuldade suína que agora a consagra é que a busca de seu avô era por um ser humano.

Não sei o que fazer para movê-la de lá. Volto para dentro de casa e meu pai continua no mesmo lugar. O relógio continua parado e eu sei que a vida vai passar.



(Ilustração: Iberê Camargo)


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CAMPO SANTO, de Emílio de Menezes







Eis-me afinal de novo entre os meus bons convivas,
Só com meus sonhos, só, com a minha saudade,
E as mortas ilusões e ilusões redivivas
De que o morto passado a alma toda me invade.

Porque se me hão de impor, fortes e decisivas,
As descrenças dos que, sem fé, sem caridade,
Sem esperança, vêm dessas alternativas
De mal fingido amor e fingida piedade?

Sinto-me preso aqui. Entre angústias me envolvo,
- Esfinge que se envolve entre os arcais da Líbia -
Mas o fatal problema entre audácias resolvo:

Alma! que importa a dor que te devora? Exibe-a
Ante a morte que em seus tentáculos de polvo
Mói crânio contra crânio e tíbia contra tíbia!



(Poemas da morte)

(Ilustração: Angelo Bronzino)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

ANTES DE SE ATIRAR NAS ÁGUAS DO CAPIBARIBE, de Ronaldo Correia de Brito





Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de impulso é apenas a cartada final. 


Homens puxam carroças, indiferentes a Cirilo e ao manguezal sobrevivendo nas margens do rio. Será que o concreto armado substituiu alguma ponte de madeira? Vira-se em busca de trilhos de ferro, imagina se passavam bondinhos por ali. Deseja romper com o cenário em volta, mas não consegue. A memória refaz seus vínculos com o Recife, apega-se covardemente às imagens que afogará no mergulho. Cansou de procurar Geraldo, ausente da família desde que veio morar na cidade. Prometeu à mãe que cuidaria do irmão, vigiaria seus passos. Mas Geraldo sabe aonde vai, ligou-se a um partido político e faz discursos nas praças. Cirilo oscila ao movimento dos ônibus cheios de passageiros, avistados num relance. Exaustos e solitários, eles escurecem igual à tarde em que o sol e a chuva se revezam arbitrariamente.



Entre o impulso do corpo e o salto para baixo, nesse tempo mínimo, Cirilo se despede das coisinhas pequenas, sem significado aparente. Os olhos, doentes de tudo querer ver, enxergam aguapés na correnteza lamacenta e flores semelhantes ao lótus. Sujeira borra as pétalas aquáticas e refaz lembrança de outros rios e flores, num lampejo de gosto pela vida. E se desistir de morrer? As mãos se crispam na balaustrada da ponte entre ilhas do Recife, cidade cujo destino é inundar-se no Atlântico. Ele também irá sumir; encher os pulmões de lama podre e sepultar-se entre algas marinhas que o olhar não alcança. Caso sobreviva ao afogamento, morrerá de pneumonia ou remorso pelo crime de João Domísio, o fantasma cuja história o persegue desde criança. 



Sabe que no último instante lançará pedidos de salvação. Sempre se deixou conduzir por um rio invisível, debatendo-se em vez de nadar aprumado como os atletas das piscinas. Enquanto a mão esquerda o afastava do desespero, a direita anotava em cadernos o que lhe parecia necessário dizer, sobrevivendo através desses sinais. Quem garante a um náufrago que seu testamento escrito num pedaço de pano, enfiado numa garrafa e atirado ao mar, será lido? E que importância tem que seja lido ou não, se ao escrever o autor se liberta da apreensão, deixando seu testemunho sobre as ruínas? Centenas de escritos se guardaram por anos debaixo da terra, em túmulos ou edifícios soterrados, à espera de quem os libertasse da mudez. O que está sob a terra é nada. Olhar para cima e encarar a luz é bem mais aprazível que morrer. Pensa nessas coisas, porém nunca lembra quem as escreveu.



O sol do Recife cega. Não menos intenso brilhava numa cidade longe sobre a cabeça da avó, do pai, da mãe e dos irmãos, no dia em que se despediram chorando à porta de casa, a mãe recuada uns passos para que não vissem suas lágrimas. O pai levaria Cirilo à rodoviária, ao ônibus e à promessa ameaçadora do Recife. Altivo, parecia alheio à contração dos dentes do filho, à força com que segurava o choro porque era interditado aos homens da família chorar. Caminhava à frente, como o deus Hermes conduzia as almas ao inferno. Na véspera, Luis Eugênio narrara a história do rei que possuía três filhos homens e cada um deles, ao atingir a idade adulta, pedia licença para deixar a casa paterna. Geraldo, o mais velho, fora embora havia quatro anos, um pouco antes do golpe militar. "Você quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?", perguntava o pai da história, e apenas o filho mais novo escolhia a bênção e um caminho espinhoso. 



Adianta recompor os cenários que o cercam, se tem certeza de que irá morrer? Importa se nesse lugar onde se equilibra precariamente existiu, no século dezenove, uma ponte de ferro ou de madeira? A concretude da ponte não diminui seu desejo de evadir-se para fora da luz, num salto que ainda não aconteceu. Fugir significa delegar a morte para outro? Quem pulará da ponte no seu lugar? Geraldo não aceita os traçados da família, as árvores genealógicas que a mãe desenrola sobre a mesa após a janta, buscando nos rostos dos filhos sinais que apenas ela reconhece. Qual ponte do Recife Geraldo cruza nesse momento, indiferente às aflições da mãe? Em casa, o pai arrancou da moldura o retrato do filho primogênito, deixando um vazio na parede, uma ausência que nenhuma imaginação preenche. 



Depois de chuvas prolongadas, casas e prédios do Recife se intumescem, rebocos largam os tijolos e as pinturas das paredes mostram camadas superpostas de cores: borrões abstratos que nenhum pintor conseguiria imitar. Fedorentas e tristes de tão escuras, as ruas lembram uma cidade bombardeada. Cirilo se desloca de um mastro a ponto de desmoronar e caminha para o outro lado da ponte. Acende um farol imaginário, sinalizando em busca de salvação. Avista a rua larga da Benfica, gradis de ferro, pinhas e capitéis de passado mourisco, azulejos portugueses brilhando no sol que apenas de vez em quando mostra a cara. Poderia subir à torre mais alta do castelo construído por um senhor de engenho, enriquecido no comércio de açúcar pelo sacrifício de escravos. Senhores opulentos e arrogantes, a mesa farta de sabores. Sente um oco no estômago, não comeu quase nada desde o café. Os bolsos vazios de dinheiro, a barriga vazia de alimentos. E se despisse a roupa antes de atirar-se nas águas? Achariam que desejava se banhar no Capibaribe, do mesmo jeito que se banhava no rio Jaguaribe. O morto boiando nu pareceria desvalido, sozinho e despojado do sobrenome Rego Castro que tanto orgulha a mãe. Encontraram o tio João Domísio com todos os sinais da nobreza: jaqueta de veludo, camisa fina com abotoadores de prata, botinas de couro curtido, um anel de ouro com arabescos de flores e ramos entrelaçados. No meio das águas barrentas, o corpo preso aos destroços das margens, morto com três tiros no peito esquerdo. Longe do Recife que ele tanto amou, onde Cirilo desceu de um ônibus empurrado pela vontade do pai, arrastando a mala de sola com poucas roupas e uma caixa de livros. Ansiando por encontrar o irmão, mas sem querer repetir a história do tio assassino.



A ponto de invadir as ruas, águas barrentas cobrem as pilastras de sustentação da ponte e não é possível enxergar os moradores habituais do mangue, os caranguejos de patas sorrateiras, que nas marés baixas escalam paredes como soldados as muralhas de uma fortaleza, para tomá-la de assalto. Formam escadas uns sobre os outros, desmoronam e caem. Os de baixo desistem de sustentar os de cima, abandonam a posição inferior que ocupam na escada de equilibristas e todos retornam à lama. Dizem que a sociedade recifense reproduz o comportamento dos caranguejos: ninguém gosta de ver o outro subir na vida. Cirilo inquieta-se, acende um cigarro, procura saber a hora. Por que a preocupação com o tempo? Escuta a voz de Álvaro, um amigo com quem divide angústias e o quarto de estudante: 



- Aproveita o impulso! Ou queres te matar depois de reflexões? 



Álvaro cita o que os outros disseram como se fosse próprio. Fragmenta os pensamentos alheios e dessa maneira constrói seu discurso. Argumenta que os bens de cultura são propriedade de todos, estão aí para serem usados, e profetiza que a assinatura irá desaparecer em breve. 




(Estive Lá Fora)


(Ilustração: Frans Post - Recife em 1645)