quarta-feira, 30 de março de 2022

NOCHE OSCURA / NOITE ESCURA, de São João da Cruz

 




Canciones de el alma que se goza

de habber llegado al alto estado de la perfección,

que es la unión con Dios,

por el camino de la negación espiritual



En una noche obscura,

con ansias, en amores inflamada,

¡oh dichosa ventura!,

salí sin ser notada,

estando ya mi casa sosegada.



Ascuras y segura,

por la secreta escala disfrazada,

¡oh dichosa ventura!,

a oscuras y en celada,

estando ya mi casa sosegada.



En la noche dichosa,

en secreto, que nadie me veía,

ni yo miraba cosa,

sin otra luz y guía

sino la que en el corazón ardía.



Aquesta me guiaba

más cierto que la luz del mediodía,

adonde me esperaba

quien yo bien me sabía,

en parte donde nadie parecía.



¡Oh noche, que guiaste!

¡Oh noche, amable más que el alborada!

¡Oh noche que juntaste

Amado con amada,

amada en el Amado transformada!



En mi pecho florido,

que entero para él solo se guardaba,

allí quedó dormido,

y yo le regalaba,

y el ventalle de cedros aire daba.



El aire del almena,

cuando yo sus cabellos esparcía,

con su mano serena

en mi cuello hería

y todos mis sentidos suspendía.



Quedéme y olvidéme,

el rostro recliné sobre el Amado,

cesó todo, y dexéme,

dexando mi cuidado

entre las azucenas olvidado.



Tradução de José Bento:





Canções da alma que rejubila

por ter chegado ao alto estado da perfeição,

que é a união com Deus,

pelo caminho da negação espiritual



Em uma noite escura,

com ânsias, em amores inflamada,

oh ditosa ventura!,

saí sem ser notada,

estando minha casa sossegada.



Às escuras, segura,

pela secreta escada, disfarçada,

oh ditosa ventura!,

às escuras e emboscada,

estando minha casa sossegada.



Nessa noite ditosa,

secretamente, que ninguém me via,

de nada curiosa,

sem outra luz nem guia

senão a que no coração me ardia.



Só esta me guiava

mais segura que a luz do meio-dia,

aonde me esperava

quem eu já bem sabia,

em parte onde ninguém aparecia.



Oh noite, que guiaste!

Oh noite, amável mais que a alvorada!

Oh noite que juntaste

Amado com amada,

amada em seu Amado transformada!



Em meu peito florido,

que inteiro só para ele se guardava,

ficou adormecido,

e eu o afagava,

e o leque de cedros brisa dava.




A viração da ameia,

enquanto eu seus cabelos espargia,

com sua mão que enleia

o meu colo feria,

e meus sentidos todos suspendia.



Fiquei e olvidei-me,

O rosto reclinei sobre o Amado;

cessou tudo, e deixei-me,

deixando o meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.




(S. João da Cruz, Poesias Completas)




Tradução de Jorge de Sena:



Em uma Noite escura,

com ânsias em amores inflamada,

ó ditosa ventura!

saí sem ser notada,

estando minha casa sossegada.



A ocultas, e segura,

pela secreta escada, disfarçada,

ó ditosa ventura!,

a ocultas, embuçada,

estando minha casa sossegada.



Em uma Noite ditosa,

tão em segredo que ninguém me via,

nem eu nenhuma cousa,

sem outra luz e guia

senão aquela que em meu seio ardia.



Só ela me guiava

mais certa do que a luz do meio-dia,

aonde me esperava

quem eu mui bem sabia,

em parte onde ninguém aparecia.



Ó Noite que guiaste!,

ó Noite amável mais que a alvorada!,

ó Noite que juntaste

Amado com amada,

amada nesse Amado transformada!



No meu peito florido,

que inteiro para ele se guardava,

quedou adormecido

do prazer que eu lhe dava,

e a brisa no alto cedro suspirava.



Da torre a brisa amena,

quando eu a seus cabelos revolvia,

com fina mão serena

a meu colo feria,

e todos meus sentidos suspendia.



Quedei-me e me olvidei,

e o rosto inclinei sobre o do Amado:

tudo cessou, me dei,

deixando meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.



(Poesia de 26 Séculos)



(Ilustração: Ary Scheffer - Os fantasmas de Paulo e Francesca aparecem a dante e Virgilio – 1835)

sábado, 26 de março de 2022

A ESTÓRIA DA SALAMANCA DO JARAU, de Érico Veríssimo

 


Em dezembro daquele ano de 1951, aconteceu a Tibério algo que lhe mudou a vida por completo, fazendo-o esquecer as humilhações a que o Presidente o submeteu.

Um dia o telefone de sua casa tilintou, e ele pegou o fone, já irritado, como sempre, pois não se havia habituado ainda àquela engenhoca, pela qual tinha uma má vontade atávica.

– Pronto! – gritou como quem espera ouvir e dizer desaforos.

– É o Cel. Tibério? – perguntou uma voz melíflua de mulher. 

– Quem deseja falar com ele?

– A Venusta.

Ao ouvir o nome da caftina, Tibério olhou instintivamente dum lado para outro para verificar se havia alguém mais na sala ou proximidades. Pigarreou e disse:

– Um momento. – Largou o fone e foi fechar a porta. Não haveria perigo de outra pessoa escutar a conversação, pois aquele era o único aparelho existente no casarão. – Pronto. Pronto!

– É a Venusta.

– Já ouvi! Mas você não devia telefonar pra minha casa, ora essa! Já lhe disse isso mil vezes.

– Não fique brabo, coronel. É um assunto importante. Tenho um presente de Natal pro senhor.

Ele escutava, desconfiado. Aquilo só podia ser um subterfúgio para um pedido de dinheiro. Havia anos ele ajudara Venusta, uma prostituta aposentada, a montar o bordel mais fino de Antares. Emprestando-lhe dinheiro a juro baixo e prazo longo.

– Que negócio é esse de “presente”? – indagou, cauteloso.

– Eu não me esqueço do que o senhor fez por mim, Cel. Tibério.

– Está bem, está bem, fale baixo. E não precisa pronunciar o meu nome.

– Estou sozinha aqui em casa. Descobri a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos, coronel! O senhor vai ficar maravilhado.

– Novinha, hem? – Soltou uma risada áspera de tabagista. – E você vai enrolar a menina em papel celofane e me mandar por portador, hem? Quanto vai me custar essa brincadeira?

– Não estou pensando em negócio. – Como Venusta ceceava, a palavra negócio soou quase como negófio. – Não sou mal-agradecida.

– Como é a moça? Ruiva? Muito branca? Morocha?

– Morena jambo. Mas não adianta descrever pelo telefone. O senhor tem que ver ela pessoalmente.

– Onde está a bichinha?

– Aqui comigo, guardadinha no refrigerador – disse a alcoviteira com uma risadinha despudorada. – Olhe, coronel, a menina caiu na vida não faz nem uma semana.

Logo que botei o olho nela pensei no senhor. É órfã de pai e vivia com a mãe. Agora está comigo há dois dias e não foi mais pra cama com ninguém. Não deixei. Reservei ela pro senhor. Venha ver. Se não gostar, fica o dito pelo não dito. 

– E se eu gostar?

– É sua.

– Está bem. Hoje de noite apareço aí.

Ao jantar tomou apenas uma sopa leve. Depois disse à mulher que ia ao clube e provavelmente voltaria tarde. Saiu de casa a pé, mas entrou num carro de aluguel do outro lado da praça e pediu ao motorista que o deixasse à esquina duma determinada rua, na parte baixa da cidade.

O bordel da Venusta ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu pequeno quintal um portão que dava para um terreno baldio – espécie de entrada secreta ou pelo menos discreta, geralmente usada pelos senhores respeitáveis da cidade que queriam entrar naquela casa de rendez-vous sem serem vistos. Tibério apertou o botão da campainha da porta dos fundos. Venusta em pessoa veio recebê-lo, recendente a Tabu, com um vestido de algodão estampado, a cara exageradamente pintada, os cabelos oxigenados de fresco. Era uma cinquentona de carnes balofas e muito alvas, que Tibério tinha levado algumas vezes para a cama nos tempos em que ela era moça e não de todo destituída de atrativos. Subiram uma pequena escada e entraram num corredor estrategicamente mal iluminado e por fim pararam diante da porta dum quarto.

– A menina está lá dentro à sua espera, coronel. Ela já sabe quem o senhor é e está até meio nervosinha.

– Mas eu ainda não sei direito quem ela é...

– Ora, ninguém de circunstância. O pai era ferroviário e morreu esmagado por um trem, há uns quatro anos... acho que o senhor se lembra do fato. A mãe costura pra fora. Gente muito pobre. Um caixeiro-viajante fez mal pra menina e desapareceu. A mãe descobriu a coisa e botou a boca no mundo. A moça então veio pra cá, mas ninguém ainda sabe que ela está comigo. Acho que é fácil acomodar a velha com uns cobres. Deixe a coisa por minha conta.

– Essa estória está me cheirando mal. A menina é menor, a mãe pode me incomodar, fazer chantagem. Não sei... Tenho muitos inimigos. Não sei... Nunca falta um rábula filho da mãe pra pegar uma causa dessas e me extorquir dinheiro... Não sei.

Ficou ali na frente da porta murmurando “não sei... não sei...”. Mas seu corpo sabia, da cabeça aos pés, sabia com uma intensidade que aumentava com o passar dos minutos, o sangue batendo-lhe com força nas fontes, toda a sua virilidade já agressivamente esculpida, intumescida e latejante.

– Está bem – disse por fim, com voz opaca. – Já não estou pensando mais com a cabeça, mas com outra parte do corpo. Seja o que os anjos quiserem.

Venusta abriu a porta e ele penetrou no quarto como um Miúra que entra na arena.

Mais tarde, naquela mesma noite, no leito conjugal, com Lanja a seu lado, ressonando tranquilamente, Tibério recordou a hora que passara com a rapariga. Que fêmea mais bemfeita de corpo! Uma potranca de raça – cabocla de pele acetinada cor de areia úmida, seios miúdos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentira-se com vinte anos menos. E, depois de descarregar a sua primeira e furiosa onda de desejo, ficara ofegante e feliz, deitado ao lado da criaturinha.

– Onde nasceste?

– No Cacequi.

– Como é o teu nome?

– Me chamo mesmo Cleopatra, mas me tratam por Cleo.

– Bonito nome, Cleo...

E então ele pusera-se a apalpá-la devagarinho, para sentir nos dedos a contextura daquela epiderme, a elasticidade daqueles músculos, o desenho daquele corpo. Chegara a inventar um brinquedo:

– Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?

– Nunca.

– Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis.

– Credo!

– Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...

Com os dedos indicador e médio da mão direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o braço e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte.

– De repente Blau avista um cerro...

E os dedos de Tibério escalam o seio direito de Cleo e quando chegam ao cume dessa macia elevação brincam com seu mamilo – “Uma pedra?” – e a rapariga se retorce, cosquenta.

“Ai! Ai! Ai!”

– Então Blau Nunes desce do cerro e começa a andar por uma linda várzea...

E agora os dedos de Tibério caminham pelo ventre levemente côncavo da menina, com lenta volúpia.

– De repente Blau Nunes avista um capão...

– Não!

E ela ergue as pernas, cruza as coxas, num movimento instintivo de defesa, procurando esconder sua furna. Mas Blau Nunes continua a andar... lá dentro está a entrada da Salamanca, do tesouro...

E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. “Ai!” – suspira ela. – “Ai!”. Blau Nunes está alucinado.

– Onças de ouro! – exclama Tibério. – Dobrões de ouro! Joias!

E Cleo se retorce toda, rindo, excitada. Tibério Vacariano levantou-se num prisco. Lanja acordou, alarmada.

Que foi, Tibé? Estás sentindo alguma coisa? Sentado na cama, meio ofegante, ele murmurou:

– Não é nada. Perdi o sono.

– Decerto tornaste muito café.

– Pois é. O calor também está brabo. Mas não é nada, Lanja. Dorme. Eu me arranjo...

Levantou-se, acendeu um cigarro, começou a passear pela casa, de pijama, sem destino certo. A imagem de Cleo não lhe saía da mente. O cheiro dela estava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. Abriu a janela que dava para a praça e debruçou-se nela. Vaga-lumes lucilavam por entre árvores e arbustos. Tibério olhou para o céu e viu o Cruzeiro do Sul bem por cima da Matriz. O vento morno chegava-lhe às narinas com um cheiro de campo queimado, de mistura com recordações de infância e adolescência.

Ali na janela o Cel. Vacariano pensou na sua idade. Cinquenta e sete na cacunda! Não se podia dizer que fosse já um velho, mas moço, moço mesmo não era mais. Imaginou Cleo instalada na pensão da Venusta, recebendo qualquer homem que tivesse dinheiro para pagar o preço que a caftina pedia pelo seu esplêndido corpo. A ideia lhe era intolerável.

Voltou para a cama e só conseguiu adormecer madrugada alta. Levantou-se às oito horas, sentindo-se um tanto desmoralizado por ter “queimado o assado”, pois entre seus hábitos supersticiosos estava o de saltar da cama antes do sol nascer.

A primeira imagem que lhe veio à cabeça ao despertar foi a de Cleo, como a figura dum sonho bom.

Tornou a procurar a rapariga na noite daquele dia. E noutra manhã, barbeando-se no quarto de banho, conversou em silêncio consigo mesmo, puteou-se afetuosamente, examinou a própria cara no espelho, com um cuidado entre realista e tolerante. “Bonito sei que não sou, mas – que diabo! – há no mundo gente mais feia que eu.”

Tudo aquilo que sentia com relação à moça – refletiu – devia ser consequência da idade crítica. Sim, os homens tinham também o seu climatério. Ouvira esta palavra pela primeira vez da boca de seu médico carioca. O seu climatério finalmente chegara, e com que força!

Decidiu fazer de Cleo sua amante exclusiva, montar casa para ela. Convenceu a mãe da rapariga a vir morar com a filha, arranjou tudo com a colaboração da Venusta. Quando um novo ano entrou o Cel. Vacariano tinha o que em língua de advogado se chama de “mulher teúda e manteúda”. Sentia-se feliz e remoçado. Se Lanja desconfiava de alguma coisa, pelo menos não dava nenhuma demonstração disso.

E agora, cada vez que Tibério queria fazer amor com a amante, bastava dizer-lhe: “Vamos brincar de Salamanca?” Blau Nunes passou a ser uma personagem importante na vida de ambos. E muitas vezes Tibério Vacariano pensou num remoto antepassado seu que, segundo uma lenda da família, tinha um dia entrado na furna encantada do Jarau e andava sempre com as guaiacas cheias de onças de ouro.


(Incidente em Antares)



(Ilustração: Tainá Maneschy)




quarta-feira, 23 de março de 2022

A MULHER NASCIDA NA SERRA DO SEM FIM, de Marceli Andresa Becker

 

        



a mulher nascida na serra sem fim surge nua

não há cor em suas unhas, e os fios dos seu cabelo secam ao natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres das cidades grandes, porque no fim de semana ela caminha descalça no chão de pedra do quintal. estendendo roupa. comendo uva colhida de uma videira tímida

(tímida porque é uma uva que quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem em cultivá-la)

essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo



ela se olha no espelho. tira a calcinha branca de algodão, velha

sei que é velha porque não a imagino mais tendo o aplique de laço que geralmente acompanha o modelo (no meio do laço, no ponto de encontro das curvas do laço, uma pedrinha de strass). o aplique se soltou, por causa do tempo, das tantas lavagens



aos domingos, depois de amar e ser amada, ela costuma dormir, de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa

quero dizer: o telhado da casa como se o tivéssemos visto antes de sua constituição objetiva, numa fase de pré-realidade

ao anoitecer acorda; levanta-se, caminha em silêncio pelo corredor, pela sala



a mulher do interior da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor o espaço-tempo resgata o mar como desolação. e a certa altura do banho nenhum limite separa o que é o vapor da umidade típica de sua respiração e o que é o vapor da água do chuveiro



por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em períodos de chuvas mais intensas, de ventos mais fortes, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico

no dia seguinte a mulher varre o quintal e junta o cadaverzinho com a pá. e ocorre que, em meio às cascas de uvas comidas (um montante delas, reunidas num canto, entre folhas secas), em meio a essa escola rude de tinturaria do que foi vindima

e fome

esse cadaverzinho se torna ainda mais roxo; passa despercebido



o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido. os chuveiros, muito antigos

ao longo desse tempo ela lava a calcinha

molhada de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que

em vez de descer com a água pelo ralo – o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente

ela toma banho. e respira fundo, fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão

depois

com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte (a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça)

anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal



pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor

vestem-nas. passam a tarde com elas.

à noite surgem nuas, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração



pela manhã, o sol aparece aos poucos. com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores

a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio

de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde



na casa fabula-se outra casa – em ruínas




(caderno da serra sem fim, excerto de prosa poética maior, narrativa em trabalho)




(Ilustração: 
Niceas Romeo Zanchett - mulher na hora de dormir -1980)


domingo, 20 de março de 2022

REALIDADE DEMENCIAL, de Ernesto Sábato

 



Estava eu numa barca, e a barca deslizava por um lago imenso de águas calmas, negras e insondáveis. O silêncio era angustiante e, ao mesmo tempo, inquietante, pois eu desconfiava de que naquela penumbra (não havia luz solar, mas a luminosidade ambígua e fantasmática vinda do sol noturno) eu não estava só, mas era vigiado e contemplado por seres que não conseguia ver, e que, certamente, moravam fora do alcance de minha visão imperfeita. O que esperavam de mim e, sobretudo, o que me esperava naquela extensão desolada de águas paradas e lúgubres?

Mas eu não conseguia pensar, embora mantivesse uma espécie de consciência vaga e de memória pesada de minha infância. Pássaros cujos olhos eu arrancara naqueles anos sangrentos pareciam voar nas alturas, pairando sobre mim como se vigiassem minha viagem; sem pensar, já que estava privado de pensamento, eu remava numa direção que, pelo visto, era onde o sol noturno se poria horas ou séculos depois. Tive a impressão de ouvir as batidas pesadas de suas grandes asas, como se os pássaros de minha infância tivessem se transformado em pterodátilos enormes ou morcegos gigantescos. Acima e atrás de mim, quer dizer, onde seria o leste do imenso oceano negro, pressentia um ancião que, cheio de ressentimento, também vigiava minha viagem: tinha um só olho na testa, enorme, qual um ciclope, e suas dimensões eram tais que a cabeça estava mais ou menos no zênite enquanto o corpo descia até o horizonte. Sua presença, que eu sentia de modo quase intolerável, a ponto de poder descrever a horrenda expressão de seu rosto, não me deixava virar para trás e mantinha meu corpo e meu rosto na direção oposta.

“Tudo dependerá de eu conseguir chegar à margem antes do pôr-do-sol”, flagrei-me pensando ou dizendo. Remei até lá, mas avançava tão lentamente como nos pesadelos. Os remos afundavam nas águas negras e lamacentas e eu sentia o marulho pesado.

Grandes folhas flutuantes e flores lembrando vitórias-régias, mas lúgubres e podres, se afastavam a cada movimento do remo. Eu tentava me concentrar em minha árdua tarefa, nem querendo imaginar a forma e o horror dos monstros que, tinha certeza, povoavam aquelas águas abismais e infectas: com os olhos cravados no poente, ou no que imaginava ser o poente, limitava-me, amedrontado e tenaz, a remar, tentando chegar antes do pôr-do-sol.

A navegação era angustiantemente difícil e vagarosa. O sol descia com a mesma lentidão, a oeste, e um único pensamento guiava a fúria com que eu movia os remos pesados e lentíssimos: chegar antes do ocaso.

O astro já estava perto do horizonte quando senti minha barca tocando o fundo. Larguei os remos e me precipitei para a proa. Lancei-me fora da barca e, com a água lamacenta batendo nos joelhos, andei para a costa, que já avistava na semiescuridão. Logo senti que estava no que se poderia chamar terra firme, mas na verdade era um pântano, onde andar era tão difícil como navegar na barca: dar um passo e avançar exigiam imenso esforço. Mas meu desespero era tamanho que fui andando, devagar e sempre. E, assim como antes minha ideia era alcançar a terra firme, agora me animava a perspectiva de chegar a uma montanha que eu mal vislumbrava a oeste. “Ali está a gruta”, lembro-me de ter pensado. Que gruta? E por que eu precisava chegar lá? Na hora, não formulei essas perguntas, e agora não conseguiria responder a nenhuma delas. Só sabia que precisava chegar e, a qualquer preço, entrar na gruta. Devo dizer que continuava a sentir a presença colossal do desconhecido atrás de mim. Com seu único olho, permanentemente aberto, resplandecendo de ódio, parecia vigiar e até dirigir, como um pérfido oficial de náutica, minha marcha para oeste. Seus braços abertos abarcavam todo o céu atrás de mim, e suas mãos pareciam apoiar-se no norte e no sul, ocupando assim toda a metade da abóbada. Não havia outro jeito senão andar rumo ao poente, o que, nessa realidade demencial, eu considerava uma conclusão lógica e sensata. A ideia era fugir de seu olhar, meter-me na gruta, onde sabia que seus olhos seriam impotentes. Assim caminhei por muito tempo, que para mim pareceu um ano. O astro continuava descendo, e, ainda que a montanha estivesse mais perto, a distância continuava aterradora. Percorri o último trecho lutando contra o cansaço, o medo e a desesperança. Atrás de mim sentia o sorriso sinistro do Homem. Acima de mim sentia o voo pesado dos pterodátilos, que planavam e às vezes até roçavam suas asas em mim. Eu temia não só esse contato gelatinoso e frio, mas a possibilidade de, com seus bicos dentados, finalmente se atirarem em cima de mim e arrancarem meus olhos. Pelo visto, queriam que eu me esgotasse num esforço inútil, durante anos de marcha estúpida e estafante, para, quando eu imaginasse estar o fim ao alcance da mão, arrancar meus olhos e minha esperança desvairada.

Comecei a ter essa sensação no trecho final da marcha, como se tudo tivesse sido planejado para me fazer mal o mais possível. “Pois”, pensava com razoável lucidez, “se tivessem arrancado meus olhos no início eu não teria nenhuma esperança e não teria tentado essa travessia penosíssima por mares desconhecidos e pântanos imundos.”

Senti que o rosto do Ancião irradiava uma espécie de alegria feroz enquanto eu fazia essas reflexões. Compreendi que era tudo verdade e agora me esperava a pior calamidade dessa travessia. Não quis, porém, olhar para cima, e nem precisava: meus ouvidos revelavam que os pássaros, com bicos enormes e afiados, iam planando cada vez mais perto de minha cabeça; percebia suas asas batendo pesadas, asas que deviam ter dois metros, e de vez em quando sentia seu contato leve mas asqueroso, fugacíssimo, nas faces e no cabelo.

Faltava pouco, muito pouco, para chegar à gruta que eu já entrevia numa penumbra fosforescente. Meu corpo estava coberto de lodo pegajoso e eu me arrastava de quatro. Minhas mãos tocavam e afastavam uma profusão de cobras repugnantes que se agitavam no pântano infinito, mas o pavor do que me esperava era tão grande que isso era quase desprezível.

Finalmente, o cansaço venceu o desespero, e caí.

Tentei manter a cabeça fora da lama, com a fronte erguida, enquanto o resto do corpo afundava nas águas nauseabundas.

“Preciso respirar”, pensei.

Mas também pensei: “Assim mantenho meus olhos ao alcance deles”.

E pensei como se estivesse amaldiçoado e condenado à horrível operação, como se eu mesmo me prestasse ao rito atroz e, tudo indica, inelutável.

Afundado na lama, com o coração batendo agitado, em plena imundície, olhando para a frente e para cima, vi os grandes pássaros pairarem vagarosos sobre minha cabeça. Percebi que um deles descia, vindo por trás, e o vi, gigantesco e próximo, recortado contra o ocaso, depois virando-se para mim e pousando na lama com um baque surdo, bem diante da minha cabeça. O bico era afiado como um estilete, sua expressão reproduzia o olhar absorto dos cegos, pois não tinha olhos: consegui ver suas órbitas vazadas. Parecia uma antiga divindade no instante que precede o sacrifício.

Senti o bico entrando em meu olho esquerdo e por instantes percebi a resistência elástica de minha pupila, e depois o bico penetrando áspera e dolorosamente, enquanto sentia o líquido começando a escorrer por minha face. Por um mecanismo que ainda não consigo entender tendo em vista a sua falta de lógica, eu mantinha a cabeça sempre na mesma posição, como se quisesse facilitar a perversa tarefa, da mesma forma que, mesmo sofrendo, oferecemos a boca e a cabeça ao dentista.

E enquanto sentia a água de meu olho e o sangue descendo pela face esquerda, pensava: “Agora terei de suportar no outro olho”. Com calma, creio que sem ódio, o que lembro ter-me assustado, o grande pássaro terminou seu trabalho no olho esquerdo e, recuando um pouco, repetiu com o bico a mesma operação no olho direito. E voltei a sentir a leve e fugaz resistência elástica de meu olho, e depois a penetração áspera e dolorosa e, mais uma vez, o líquido cristalino e o sangue deslizando por minha face: líquidos que eu diferenciava perfeitamente, por ser, um, o cristalino tênue e gelado, e outro, o sangue quente e viscoso.

Depois o grande pássaro levantou voo e seus companheiros foram atrás, e os ouvi começando a voejar, pesados, e logo se afastando de mim. “O pior já passou”, pensei.

Agora eu não enxergava nada, mas, com a dor imensa e a curiosa repugnância que sentia por mim mesmo, não recuei na intenção de me arrastar até a gruta.

Assim fiz, penosamente.

Pouco a pouco, meu esforço foi recompensado: o pântano ia desaparecendo sob meus pés e minhas mãos, e logo essa espécie de silêncio singular, essa sensação de nevoeiro e também de segurança, revelou-me que, enfim, eu entrara na grande gruta. E desabei no sono. 



(Sobre heróis e tumbas; tradução de Rosa Freire d’Aguiar)



(Ilustração: Odilon Redon - the cyclops)


quinta-feira, 17 de março de 2022

THE MUSIC OF VILLA-LOBOS / A MÚSICA DE VILLA-LOBOS, de Olga Cabral

 



Someone is speaking a lost language.

It is the music of Villa-Lobos.

I try to remember: where was I

born? And from what continent

untimely torn? I might have been

a priestess among the caymans

guarding the eye-jewel of the

crocodile god. I might have sailed

orinocos of diamonds, seas of coconuts,

leased the equator for life and learned

my ancestral language.



But I have only some old sleeves of rain

in a trunk with spiders

to remember my ancestors by.

They have left me

nothing, and I have forgotten

that island of my birth

where the sun in his suit of mirrors

was seen once only with my vast fetal eye.



But in the music of Villa-Lobos

a god with a tower of green faces

comes striding across cities

of permafrost, and I am summoned

once again to the jaguar gardens

guarded by waterfalls

where the hummingbird people are at play

far from the cold auroras of the north.



Beyond modernity, we are warned

by placards in two languages that say

the same thing differently. In the yellow

wood where two roads diverge, we choose

both, not from arrogance but from

indecisiveness, which, like riding

two horses at one time, requires long

legs, strong thighs, and careless good

nature. The world flicks by, each leaf

magnified, as we sample this new bar

soap, that breakfast sandwich. Placards in

two languages praise soft drinks and party

politics. The world flicks by and bites

of speech elude their diagrams to hover

in the yellow wood. It is late and soon

the world will be different.



Tradução de Margarida Vale de Gato:



Alguém fala uma língua perdida.

É a música de Villa-Lobos.

Procuro lembrar-me: onde foi

que nasci? E de que continente

fora de tempo me dividi? Podia

ter sido vestal entre caimões

velando a gema do olho do deus

crocodilo, velejar talvez

por orinocos de diamantes, mares

de cocos, podia assumir toda a vida

o trespasse do equador para aprender

a minha língua ancestral.



Mas tenho só algumas mangas de chuva

num velho baú de aranhas

para lembrar os meus antepassados.

Não me deixaram

nada, e esqueci

essa ilha onde nasci

onde vi uma vez só

com meu vasto olho de feto

o sol no seu fato de espelhos.



Mas na música de Villa-Lobos

um deus com uma torre de verdes frontes

cruza a largos passos cidades

de piso gelado, e mais uma vez

convocam-me ao jardim dos jaguares

guardado pelas cascatas

onde brinca o povo dos colibris

longe das frias auroras do norte.



Para lá da modernidade, avisam-nos

placards em duas línguas a dizer

o mesmo de maneira diferente. No bosque

amarelado dividem-se duas estradas. Escolhemos

ambas, e não é por arrogância mas

por indecisão, coisa que, como montar

simultaneamente dois cavalos, requer pernas

compridas, coxas fortes, falta de complexos, boa

têmpera, o mundo passa e cintila, cada folha

ampliada, enquanto tomamos o novo elixir,

em loção, a sandes do pequeno-almoço. Placards

em duas línguas louvam gasosas, campanhas

políticas. O mundo passa e cintila e arranha

frases que driblam os diagramas, para pairarem

no bosque amarelado. É tarde e cedo

o mundo será diferente.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Alguém fala uma língua perdida.

É a música de Villa-Lobos.

Tento lembrar: onde foi que

nasci? E em que continente

precocemente estraçalhado? Devo ter sido

uma sacerdotisa entre os caimães

velando a jóia que é o olho do

deus crocodilo. Devo ter navegado

por orinocos de diamantes, mares de cocos,

aluguei para sempre o equador e aprendi

minha língua ancestral.



Mas só tenho umas velhas capas de chuva

num baú cheio de aranhas

para lembrar meus ancestrais.

Eles não me deixaram

nada, e eu me esqueci

que aquela é a terra de meu nascimento

onde o sol em seu terno de espelhos

avistei por uma só vez com meu olho de feto.



Mas na música de Villa-Lobos

um deus com uma torre de verdes fachadas

com pressa avança pelas cidades

de sobsolo congelado, e sou de novo

convocada aos jardins do jaguar

vigiada por quedas d’água

onde as gentes dos beija-flores se divertem

longe das auroras frias do norte.



Para além da modernidade, somos avisados

em duas línguas pelos cartazes que dizem

a mesma coisa de modo diferente. No bosque

amarelo onde dois caminhos divergem, escolhemos

a ambos, não por arrogância mas por

indecisão, o que, como montar

dois cavalos num só tempo, exige

longas pernas, coxas fortes, e descuidada boa

disposição. O mundo dá uma espiada, cada folha

ampliada, enquanto provamos essa nova sopa

de bar, o sanduíche do desjejum. Cartazes

em duas línguas elogiam bebidas e políticas

de partido. O mundo dá uma espiada e pedaços

de discurso fogem de seus gráficos para perambular

pelo bosque amarelo. É tarde mas logo

o mundo será diferente.



(Ilustração: Vicente Júnior - Vila Lobos)

segunda-feira, 14 de março de 2022

AS EVIDÊNCIAS DO COTIDIANO, de Marilena Chauí


 

Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como "que horas são?", ou "que dia é hoje?". Dizemos frases como "ele está sonhando", ou "ela ficou maluca". Fazemos afirmações como "onde há fumaça, há fogo", ou "não saia na chuva para não se resfriar". Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, "esta casa é mais bonita do que a outra" e "Maria está mais jovem do que Glorinha".

Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: "Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu", e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: "Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender".

Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Frequentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa "é legal".

Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.

Quando pergunto "que horas são?" ou "que dia é hoje?", minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.

Quando digo "ele está sonhando", referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.

Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão.

A frase "ela ficou maluca" contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.

Quando alguém diz "onde há fumaça, há fogo" ou "não saia na chuva para não se resfriar", afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.

Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.

Se, por exemplo, dissermos que "o sol é maior do que o vemos", também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos.

Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos.

Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade.

No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.

Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear.

Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira.

Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira "no duro", "pra valer".

Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.

Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam "objetivas" ou quando falamos dos namorados como sendo "muito subjetivos", também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém "perde" a objetividade, ficando "muito subjetivo".

Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.

Ao dizermos que alguém "é legal" porque tem os mesmos gostos, as mesmas ideias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.

Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio.

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.



(Convite à Filosofia)



(Ilustração: Adolph Menzel - weekday in Paris - 1869)