segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

FOGO DO FINAL, de Ana Cristina César

 




Escrevendo no automóvel.

Pedra sobre pedra: você estava pra chegar.

Numa providência, me desapaixonei, num risco, numa frase:

Não adiantam nem mesmo os bilhetes profanos pela grande imprensa.

Saudades do rigor de Catarina, impecável riscando o chão da sala.

Ancorada no carro em fogo pela capital: sightseeing no viaduto para a Liberdade. Caio chutando pedrinhas na calçada, damos adeus passando a mil, dirijo em círculo pelo maior passeio público do mundo, nos perdemos - exclamo num achado -, é tardíssimo, um deserto industrial com perigosas bocas imperguntáveis.

Não precisa responder.

Envelopes de jasmim.

Amizade nova com o carteiro do Brasil.

Cartões postais escolhidos dedo a dedo.

No verso: atenção, estás falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como um marinheiro na ponta escura do cais.

É para você que escrevo, hipócrita.

Para você - sou eu que te seguro os ombros e grito verdades nos ouvidos, no último momento.

Me jogo aos teus pés inteiramente grata.

Bofetada de estalo - decolagem lancinante baque de fuzil. É só para você y que letra tán hermosa. Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a tua cabeleira de um só golpe, e o teu espanto!

Não tenho pressa.

Neste lago um vapor, neste lago.

Por enquanto não tem luz de lado amenizando a noite; nem um abajur.

Uma sentinela: ilha de terrível sede.

Hoje não estou me dando com mulheres, ele responde, enfurecido, e bate o telefone num tropel.

As mulheres pedem: vem cá, te trato, faço um chá, mas nada, ele não vai mais à casa de ninguém e faz récita sozinho, como se não fosse com ninguém.

Meu velho:

Antes te dava chás de cadeira alternados com telefonemas de consultas: que faço com a mulher que mente tanto e me calunia pelas costas, ou o homem que pede que eu apenas faça sala para o seu silêncio?

O chá abria, mas eu queria uma quiromancia, um olho clínico, mundano, viajado, uma resposta aguda, uma pancada no miolo. Quem sabe uma corrida por fora da tabela, meio em zigue-zague, motorista de perícia desvairada.

Comprou carteira no Detran? E suicidaram-se os operários de Babel. Isso foi antes. Agora irretocável prefiro ficar fora, só na capa do seu livro.

Este é o jasmim.

Você de morte.

Não posso mais mentir. Corto meu jejum com dedos de prosa ao telefone, meu próprio fanatismo em ascensão: "O silêncio, o exílio, e a astúcia"?

Engato a quarta ao som de Revolution.

Descontinuidade. Iluminações no calçadão

Ultimamente deu pra me turvar a vista,

Atleta não sou mais a mesma, vertigem das alturas.

Você está errado: não é O romance da longa vida que começa. Não foi nossa razão que deu com os burros n'água. Nem o frio na espinha dentro do ar engarrafado no aterro do Flamengo. Rush. Não foi a pressa. O estabanamento na escada em espiral. O livro que falta na estante e no entanto deveria ficar lá onde está. A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila adentro e bate na janela e me entrega o envelope pelo nome. Os grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo grande mundo, suas retiradas para dentro da sólida mansão. Não foi nada disso. Então O quê?

26 de março.

Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de dar recados. Uma imitação da lavanderia com suas máquinas a seco e suas prensas a vapor. Um relatório do instituto nacional do comércio, ríspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso. Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós. Digo tudo com ais à vontade. E recolho os restos das conversas, ambulância. Trottoir na casa. Umas tantas cismas. O terapêutico não se faz de inocente ou de rogado. Responde e passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata.

E de novo.



(A teus pés)



(Ilustração: Alyssa Monks)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

SATÂNIA, de Olavo Bilac

  




Nua, de pé, solto o cabelo às costas,

Sorri. Na alcova perfumada e quente,

Pela janela, como um rio enorme

De áureas ondas tranquilas e impalpáveis,

Profusamente a luz do meio-dia

Entra e se espalha palpitante e viva.

Entra, parte-se em feixes rutilantes,

Aviva as cores das tapeçarias,

Doura os espelhos e os cristais inflama.

Depois, tremendo, como a arfar, desliza

Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,

Como uma vaga preguiçosa e lenta,

Vem lhe beijar a pequenina ponta

Do pequenino pé macio e branco.



Sobe... cinge-lhe a perna longamente;

Sobe... — e que volta sensual descreve

Para abranger todo o quadril! - prossegue.

Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,

Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,

Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo

Da axila, acende-lhe o coral da boca,

E antes de se ir perder na escura noite,

Na densa noite dos cabelos negros,

Para confusa, a palpitar, diante

Da luz mais bela dos seus grandes olhos.



E aos mornos beijos, às carícias ternas

Da luz, cerrando levemente os cílios,

Satânia os lábios úmidos encurva,

E da boca na púrpura sangrenta

Abre um curto sorriso de volúpia...

Corre-lhe à flor da pele um calafrio;

Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso

Apressa; e os olhos, pela fenda estreita

Das abaixadas pálpebras radiando,

Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam,

Fitos no vácuo, uma visão querida...



Talvez ante eles, cintilando ao vivo

Fogo do ocaso, o mar se desenrole:

Tingem-se as águas de um rubor de sangue,

Uma canoa passa... Ao largo oscilam

Mastros enormes, sacudindo as flâmulas...

E, alva e sonora, a murmurar, a espuma

Pelas areias se insinua, o limo

Dos grosseiros cascalhos prateando...



Talvez ante eles, rígidas e imóveis,

Vicem, abrindo os leques, as palmeiras:

Calma em tudo. Nem serpe sorrateira

Silva, nem ave inquieta agita as asas.

E a terra dorme num torpor, debaixo

De um céu de bronze que a comprime e estreita...



Talvez as noites tropicais se estendam

Ante eles: infinito firmamento,

Milhões de estrelas sobre as crespas águas

De torrentes caudais, que, esbravejando,

Entre altas serras surdamente rolam...

Ou talvez, em países apartados,

Fitem seus olhos uma cena antiga:

Tarde de Outono. Uma tristeza imensa

Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa

Das tamareiras, meio adormecido,



Fuma um árabe. A fonte rumoreja

Perto. À cabeça o cântaro repleto,

Com as mãos morenas suspendendo a saia,

Uma mulher afasta-se, cantando.

E o árabe dorme numa densa nuvem

De fumo... E o canto perde-se à distância...

E a noite chega, tépida e estrelada...



Certo, bem doce deve ser a cena

Que os seus olhos extáticos ao longe,

Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam.



Há pela alcova, entanto, um murmúrio

De vozes. A princípio é um sopro escasso,

Um sussurrar baixinho. Aumenta logo:

É uma prece, um clamor, um coro imenso

De ardentes vozes, de convulsos gritos.

É a voz da Carne, é a voz da Mocidade,

— Canto vivo de força e de beleza,

Que sobe desse corpo iluminado...



Dizem os braços: "— Quando o instante doce

Há de chegar, em que, à pressão ansiosa

Destes laços de músculos sadios,

Um corpo amado vibrará de gozo? —"



E os seios dizem: "— Que sedentos lábios,

Que ávidos lábios sorverão o vinho

Rubro, que temos nestas cheias taças?

Para essa boca que esperamos, pulsa

Nestas carnes o sangue, enche estas veias,

E entesa e apruma estes rosados bicos... —"



E a boca: "— Eu tenho nesta fina concha

Pérolas níveas do mais alto preço,

E corais mais brilhantes e mais puros

Que a rubra selva que de um tino manto

Cobre o fundo dos mares da Abissínia...

Ardo e suspiro! Como o dia tarda

Em que meus lábios possam ser beijados,

Mais que beijados: possam ser mordidos —"



Mas, quando, enfim, das regiões descendo

Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia

Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo,

Veste-se, e aos olhos ávidos do dia

Vela os encantos, - essa voz declina

Lenta, abafada, trêmula...



Um barulho

De linhos frescos, de brilhantes sedas

Amarrotadas pelas mãos nervosas,

Enche a alcova, derrama-se nos ares...

E, sob as roupas que a sufocam, inda

Por largo tempo, a soluçar, se escuta

Num longo choro a entrecortada queixa

Das deslumbrantes carnes escondidas...



(Sarças de fogo)



(Ilustração: Kiéra Malone)



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

ARARIBOIA - ILUSTRÍSSIMO CHEFE INDÍGENA, de Maria Regina Celestino de Almeida

 



Frente a frente com um representante do rei, o índio cometeu uma descortesia: sentou-se sobre as pernas cruzadas. O ato foi imediatamente repreendido, mas em vez de se penitenciar, o índio decidiu confrontar a autoridade. “Não sem cólera e arrogância”, respondeu o seguinte: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não retornarei mais à tua corte”.

O episódio, verídico ou não, foi relatado por frei Vicente de Salvador e teria ocorrido em 1575, quando o novo governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, foi recebido por personalidades locais. Entre os presentes àquela importante recepção estava o líder indígena temiminó conhecido como Arariboia.

A forma altiva e orgulhosa como respondeu à reprimenda do governador é reveladora da posição que este indígena ocupava diante das autoridades portuguesas. Arariboia demonstra consciência sobre seu papel na defesa da terra e como intermediário entre duas culturas diferentes. Por isso portou-se como um grande chefe ofendido com outro que não lhe prestara o devido respeito. E sua ameaça – “não retornarei mais à sua corte” – não se concretizou. Como um dos principais responsáveis pela conquista da Baía de Guanabara, e pela consequente fundação do Rio de Janeiro, Arariboia continuou gozando de grande prestígio entre os portugueses.

Antes que os portugueses se lançassem na guerra pela ocupação da Guanabara, os índios que ocupavam a região hoje conhecida como Ilha do Governador eram chamados de maracajás (“índios do Gato”, em tupi), liderados por Maracajaguaçu (o “Grande Gato”). Viviam em guerra com os vizinhos tamoios. Sentindo-se ameaçados, solicitaram aos portugueses quatro embarcações, a fim de fugirem para a capitania do Espírito Santo, onde se estabeleceram em 1555. Em terras capixabas, surgem as primeiras menções aos temiminós liderados por Arariboia, grupo que talvez tenha se originado de uma dissidência dos maracajás. O que se sabe é que, ao chegarem ao Espírito Santo, alguns desses índios provenientes do Rio se embrenharam pelo sertão e só seriam aldeados em 1562, com um novo chefe. Este já seria Arariboia.

A aliança com os portugueses era estratégica para os grupos indígenas. Para muitos deles, era conveniente ingressar em aldeias estabelecidas pelas autoridades coloniais – isso significava segurança, algo cada vez mais difícil de ser alcançado nos sertões onde guerras, massacres e escravizações eram frequentes. Tornavam-se índios aldeados e súditos cristãos do rei. Apesar dessa situação subalterna, sujeita ao trabalho compulsório, tinham algumas vantagens, diante do caos da colonização. A legislação estabelecia, por exemplo, a doação de terras e o direito de não serem escravizados.

No Espírito Santo, a parceria com os temiminós rendeu a Portugal importantes ações de defesa do território. Os índios destacaram-se na luta contra outras tribos hostis e contra piratas na costa. Tanto que, em 1564, Arariboia e seus liderados juntam-se a Estácio de Sá (1520-1567) em investidas contra os franceses, com o objetivo de fundar a povoação do Rio de Janeiro. “Acompanhava a frota um índio, de nome Arary-boia – que ficou registrado na história do tempo como Martim Afonso Arariboia – e que era amigo dos portugueses desde a época em que a terra de Piratininga fora desbravada. Agora, fizera companhia a Estácio para o ajudar a estabelecer-se na terra dos Tamoios”, relata o padre José de Anchieta (1534-1597).

Além de manterem a aliança com os portugueses, para os temiminós a volta para o Rio de Janeiro era uma oportunidade que tinham de combater seus antigos inimigos, os tamoios, reconquistando o território que haviam abandonado.

Em 1565, com a expulsão dos franceses, deu-se a fundação da cidade do Rio de Janeiro. E o papel de Arariboia na conquista foi devidamente reconhecido. Três anos depois, foi-lhe dado o direito de escolher uma parte das terras da “banda d’além”, ou seja, do outro lado da Baía, para se estabelecer com sua gente. Recebida na forma de sesmaria, a área passou a abrigar a aldeia de São Lourenço, origem da cidade de Niterói (ou “águas escondidas”, na língua indígena), oficialmente criada em 1573.

Os portugueses tinham o hábito de valorizar os líderes nativos que os apoiavam. Os chefes indígenas recebiam concessão de favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio. Arariboia foi batizado de Martim Afonso de Sousa, agraciado com o Hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo, e recebeu uma tença (pensão) de 12 mil-réis. Para completar, recebeu o posto de capitão-mor da aldeia de São Lourenço e tornou-se proprietário de casas na Rua Direita (atual 1º de Março), onde residiam os notáveis do Rio de Janeiro, incluindo o governador. Seu casamento foi realizado com grande pompa, digna dos altos mandatários do Reino.

A morte de Arariboia é um assunto controverso. Dizem que morreu afogado, mas é possível também que tenha sido vítima de uma epidemia. O fato é que seu prestígio sobreviveu, estendendo-se às gerações posteriores. O cargo hereditário de capitão-mor da aldeia de São Lourenço passou a ser ocupado por seus descendentes. Estes sempre faziam questão de mencionar Arariboia em petições encaminhadas ao rei, identificando-se pelo nome de batismo e pela aldeia em que moravam. As autoridades, por sua vez, reconheciam e valorizavam a prestigiosa memória de Arariboia, contribuindo para perpetuá-la. O governador Salvador Correa de Sá e Benevides (1637-1642), ao conferir a Brás de Souza o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, declarou que o nomeava “visto ser descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo… e gozará de todas as honras e proeminências que tem e gozaram os mais Capitães seus antecessores”. Os grandes feitos do líder temiminó e de seus seguidores eram trunfos devidamente ressaltados nesses documentos.

Durante o século XIX, com o argumento de que os índios já estavam civilizados e deveriam ser assimilados como cidadãos do Império, todas as aldeias foram extintas e suas terras incorporadas ao patrimônio dos municípios. Foi o que aconteceu com a aldeia de São Lourenço em 1866. Ainda assim, a imagem de Arariboia, construída por índios e portugueses em relações de alianças e conflitos, deixou raízes que resistiram aos séculos. Apesar das imensas diferenças que separavam o Arariboia do século XVI e seus descendentes dos séculos seguintes, percebe-se a identificação entre eles pelo sentimento de pertencer à aldeia e liderar um grupo étnico e social específico – os índios aldeados de São Lourenço, com direito à terra coletiva e à vida comunitária. José Cardoso de Souza (1782-1837), considerado o último capitão-mor da aldeia de São Lourenço, ainda em 1820 protestava judicialmente contra particulares que esbulhavam terrenos dos índios.

No século seguinte, a nobre memória de Arariboia continuava viva e forte em Niterói. Em 1930, um dos membros da Comissão Glorificadora a Arariboia era José Luiz de Arariboia Cardoso, arquivista e zelador da Igreja de São Lourenço dos Índios, que com orgulho afirmava sua ascendência indígena. Para José Luiz, Arariboia fora mais do que o fundador de Niterói e do Rio de Janeiro. Cabia ao índio o mérito de ter inaugurado “a nacionalidade brasileira”.

Mais de quatro décadas depois, na comemoração oficial dos 400 anos de Niterói, em 22 de novembro de 1973, coube ao prefeito partir o bolo, oferecendo em seguida o primeiro pedaço a uma das mulheres presentes. Sem saber, estava homenageando o precursor do município. Foi o que Gilda Rodrigues tratou de informar a Iohana Freitas, Marilia dos Santos e Tarso Vicente, alunos do curso de História Oral da UFF, em entrevista realizada em fevereiro de 2003, pois era descendente do grande Arariboia.

Como entender a persistência dessa memória, manifestada por Gilda e José Luiz – e também pelos inúmeros grupos emergentes no Nordeste, por longo tempo confundidos com a massa da população, que aparecem agora reivindicando a identidade indígena e buscando suas origens nas aldeias coloniais?

Os índios insistem em continuar existindo e impõem aos historiadores e antropólogos a tarefa de rever conceitos e teorias, reinterpretar documentos e contar uma outra história sobre sua presença e atuação na América portuguesa. Afinal, a História do Brasil nos ensina que os índios perderam suas culturas, identidades étnicas e quaisquer possibilidades de resistir e atuar na colônia, diluídos entre os escravos e a população pobre.

A trajetória dos temiminós revela uma realidade bem diferente. Em vez de desaparecerem, reelaboraram culturas, memórias e identidades que lhes permitiram sobreviver por três séculos como índios da aldeia de São Lourenço. Esta identidade, sugerida ou imposta pelos colonizadores, foi por eles apropriada e amplamente utilizada, como demonstram as petições dos líderes que enfatizam a procedência do grupo a partir do estabelecimento da aldeia e da doação de terras. Esses documentos são mais uma evidência de que os índios da Colônia não desapareceram, nem deixaram de ser agentes da História.



(Ilustração: escultura de Araribóia em Niterói - RJ)


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

VELOZES E FURIOSOS 7, de Rubens Akira Kuana

 




não é de toda

força ou modéstia

que se faz uma canoa



você encontra

uma canoa e deseja

rebaixá-la

levá-la junto com sua família

adotiva



this is brazil



escuta em um trailer

após o jogo

condecorativo

hoje

a floresta Amazônica

está pronta



para receber eventos

deste porte

uma proliferação

de agências de turismo

mosquitos

mordaças



sua família está a salvo

sua reputação está a salvo

seu investimento está a salvo



this is brazil



você cria um alter ego

silvio santos

explode cais e banco

com as mãos atadas

tira a camisa e resgata



o ritual

uma aldeia

o clube inteiro



compartilha



porque todo homem é um totem



pela safra seguinte

já constrói canoas

penhora-as e reclama

o reembolso



estes remos não remam

estes jeans encolhem

rápido, melhor

cultivar algodão transgênico

exigir cosméticos

mercenários

1, 2, 3

mas oi



peguem logo

os seus malditos macacos



this is brazil



cadê dinheiro



(Ilustração: Benedito Calixto de Jesus - casa de caiçara)





terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

DIREITO À PREGUIÇA (E AO ÓCIO) – PAUL LAFARGUE, de José Manuel de Sacadura Rocha

 



Em 1880, Paul Lafargue, publicou no Semanário L’Egalité, o seu DIREITO À PREGUIÇA. Na prisão, em 1883, Lafargue escreveu suas notas ao texto original, com o mesmo brilhantismo e antecipação dos males do trabalho que, ao contrário do que se supõe, proporciona aos produtores diretos e a toda a sociedade.

Lafargue explica por que o trabalho (industrial, assalariado) escraviza e empobrece continuamente os trabalhadores e reduz os homens de forma geral à condição de servos e lhes enfraquece o espírito. Tanto no final do século XIX, como hoje, no século XXI, portanto 140 anos depois do texto de Lafargue, a idiotice da defesa do trabalho como categoria genérica só fez embrutecer mais e mais a humanidade, para não falar dos flagelos e da tirania provocados aos trabalhadores. De fato, sem precisar que tipo de trabalho se trata e em que condições jurídicas a sociedade capitalista se organizou para subtrair de forma privada dos assalariados a sua potencialidade de gerar riqueza, a defesa inconteste do trabalho é uma perversidade que encontra na modernidade o respaldo na tirania jurídica-político da produção, imposta pelos proprietários das forças de produção, dos meios de troca e circulação de capitais.

Mas tanto quanto essa idolatria sem sentido, essa irracionalidade que massacra a todos, se fez ícone e foi passada pela ideologia penitente e egoísta dos pastores e dos burgueses, afirmar que o trabalho é a pobreza da humanidade e remete os fazedores sempre para se aviltarem a si nos modos em que produzem para o capital, é uma verdadeira heresia tão detestável a todos quanto o matricídio de Orestes ou o parricídio do Rei Édipo, ainda que os assalariados do capital, descaradamente extorquidos de suas forças físicas e espirituais.

Eis as principais teses de Paul Lafargue (1999) e que são mais pertinentes ao nosso DIREITO AO ÓCIO[1]:

• Logo que chega ao poder a burguesia leva até os trabalhadores o discurso moral-religioso do “sofrimento”, ainda que no período da Revolução Francesa tivesse condenado essa mesma moral para obter o apoio do povo contra a oligarquia e a igreja;

• O discurso que enaltece o trabalho condena o trabalhador à condição de máquina “suprimindo suas alegrias e paixões” – o gozo da vida é tão propriedade da classe burguesa como as fábricas;

• Os gregos da época clássica tinham desprezo pelo trabalho deixando-o para os escravos – “o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência”; a filosofia de então ensinava a reflexão enquanto o trabalho era o vilão que retirava o tempo e o espaço para o livre pensar, portanto levava o homem a perder sua liberdade;

• Assim a aceleração da produção imposta pelo “tear” interessa ao patrão na medida em que retira o espaço e o tempo de reflexão do trabalhador; ao mesmo tempo a jornada de trabalho aumenta (mais valor [mais valia] absoluto) como forma de correção do espírito, a fábrica se transforma em casa de correção – o trabalho tiraria os vícios, chamado a “curvar os sentimentos de orgulho e de independência que a preguiça gera”;

• A classe trabalhadora não consegue se livrar dos “preconceitos semeados pela classe reinante”, tanto que após 1848 (Comuna de Paris) aceitou “como conquista revolucionária a lei que limitava a jornada de trabalho a 12hs diárias”, inclusive para mulheres e crianças; portanto, os próprios trabalhadores aceitam “como um princípio revolucionário, o direito ao trabalho” – de certa forma, todos os pesadelos e flagelos praticados contra os trabalhadores assalariados do capital, ainda hoje, são derivações e prolongamentos econômicos, políticos, legais e culturais, materiais e imateriais, objetivados de uma ideia reinante instalada sub-repticiamente na mente dos indivíduos, qual seja, a ideia fixa inquestionável das propriedades saudáveis e morais do trabalho;

• Para enriquecerem na ociosidade os proprietários dão trabalho aos pobres; a classe burguesa não quer trabalhar (a ela a moral da ordem e progresso, e do “sofrimento” dos trabalhadores não se aplica), apenas pretende explorar a força de trabalho dos trabalhadores que geram riqueza, “espremer o trabalho que continham” – isto leva a uma superprodução, e às suas crises, pois por mais que os proprietários e seus agregados só consumam sem nada produzirem, ainda assim haverá muito mais mercadorias para serem consumidas, dado que a “penúria dos compradores” é tão grande que não conseguem adquirir o que eles próprios produzem, nem o mínimo para manterem a sua saúde física e mental;

• Quando os trabalhadores se revoltam contra seus patrões e os gerentes a seu serviço, não deveriam dizer “façam vocês agora o que nós fazemos, venham aqui perto das máquinas, queremos ver se fazem, trabalhem vocês”, mas deveriam dizer “não trabalhamos mais do que 3 a 4hs por dia, e não venham vocês fazerem porque não se precisa, os estoques estão cheios e não tem quem os compre, e se nos pagarem melhor nós mesmos compraremos os vossos estoques, o que nós mesmos produzimos”;

• Na superprodução os trabalhadores são eles mesmos os primeiros a sofrerem mais reverses da irracionalidade do trabalho: com altos estoques os fabricantes precisam diminuir a produção e dispensam os trabalhadores; a miséria e a fome aumentam, e alguns meses depois esses mesmos trabalhadores voltam às fábricas pedindo trabalho, e aceitam receber menos pelas 12 ou 14hs de trabalho (aumento de mais valor) – diminuem os salários e outros trabalhadores perdem o emprego, até o limite necessário para as máquinas não pararem e até os valores mais aviltantes por hora trabalhada, valores reduzidos ao “mínimo do mínimo” para que a mão de obra não morra e fechem todas as fábricas: a engrenagem do trabalho gira mal, mas gira – como n’A Colônia Penal;

• Na superprodução as crises não se resolvem: tendo por trás o crédito dos financistas, as dificuldades para vender são enormes, o desemprego e a redução dos salários não promove a venda das mercadorias produzidas aos milhões; os intermediários e especuladores que têm capital para comprar pagam barato e voltam a vender, inundando o mercado, por um preço maior que pagaram, mas menor do que o estoque da fábrica – a fábrica não pode parar de produzir mercadorias porque daí sai o lucro não só do proprietário, mas de todo o comércio e dos rentistas, porque é o trabalho do trabalhador que produz a riqueza; mas então não tem mais mercado e não resta aos fabricantes outra alternativa que destruir as mercadorias estocadas: “lança-se então tanta mercadoria pelas janelas que não se sabe como elas entraram pela porta”;

• As lutas coloniais, os territórios “apossados”, as escaramuças diplomáticas e as guerras entre os países europeus devem-se à necessidade de possuírem mercados cativos, preferenciais ou de livre trânsito para escoarem-se as mercadorias produzidas pelos trabalhadores extorquidos e miseráveis das fábricas do velho mundo; de certa forma a idolatria sem sentido dos próprios trabalhadores ao trabalho em que são explorados é a causa dos males infligidos aos povos ultramarinos onde as potências industriais desovam seus estoques – os operários poderiam fazer algo importante a respeito disto se exigissem trabalhar apenas 3hs por dia: “tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem”; isto não parece ser menos ético e ferir mais a moral do que as motivações coloniais e as guerras, ou produzir compulsória e planejadamente produtos de qualidade sofrível só para que deteriorem rapidamente obrigando os consumidores a voltarem ao mercado e comprarem outros, infinitamente;

• Pois bem, a máquina deveria libertar o trabalhador do trabalho forçado nas fábricas, da “luxúria” sem propósito do trabalho a não ser para os que enriquecem sem preconceitos ao sofrimento humano e sua deterioração física e mental, mas o operariado, os assalariados do capital de forma geral quiseram disputar a produção com ela, e com isso a superprodução leva a classe dominante para o ócio e os prazeres mais banais, enquanto leva em proporções maiores os trabalhadores e a humanidade para a pobreza, a doença e o desalento; o desemprego galopante desde então é uma forma “precária” de controlar as crises insolúveis de superprodução, simplesmente porque esbarra sempre na falta de consumo capaz de “realizar” os estoques mercantis – o vital era racionalizar essa produção aos bens necessários à dignidade de todos, oferecer formas de distribuir tal riqueza material sem exigir e compelir ideológica e moralmente a humanidade a trabalhar insanamente apenas como propósito de acumulação privada;

• O desemprego e as consequências de extrema miserabilidade e total degradação humana que ele provoca para milhões de pessoas, e as novas colonizações geoeconômicas mortíferas e genocidas, não parece a nossos olhos mais imoral do que reduzir as jornadas de trabalho ao mínimo que nossa tecnologia e ciência permitem hoje, a criar um sistema global de cooperação que liberte a humanidade do jugo do trabalho econômico desnecessário e despropositado apenas para enriquecer vergonhosamente 1% do Planeta.

É impressionante a atualidade do texto de Paul Lafargue, século e meio antes de nossa época em que são visíveis por todos os lados os sintomas denunciados por ele quanto a esse verdadeiro martírio destruidor das potências humanas, principalmente se considerar-se que o autor apenas possuía a primeira edição do Livro I d’O Capital (Lafargue cita o t. III), publicado ainda em vida por Karl Marx (Marx faleceu em 14 de março de 1883). É que grande parte das teses defendidas por Lafargue em seu Direito à Preguiça e exploradas por nós, estão mais desenvolvidas por Marx no Livro II (1885) e Livro III (1894) d’O Capital, publicadas postumamente por seu amigo e companheiro Friedrich Engels. O próprio Livro I d’O Capital foi posteriormente corrigido por Engels e Eleanor Marx, esta filha mais nova de Marx, sendo considerada a sua versão definitiva a edição alemã de 1893. Pode-se argumentar que o autor teve acesso aos textos de Marx e de Engels anteriores ao O Capital, citadamente os Manuscritos Econômico-filosóficos que Marx escreveu em 1844, mas que só foram publicados em 1932, quase um século mais tarde, e vinte e um anos após a morte de Lafargue!?

A questão limítrofe das teses exemplares defendidas pelo autor em Direito à Preguiça se dão por conta do estádio de desenvolvimento das forças produtivas aplicadas à produção material econômica das sociedades industriais mercantis, produtoras de mercadorias, capitalistas e de livre mercado. Isso em nada retira o brilhantismo e a perspicácia das ideias apresentadas na obra, pelo contrário, ilustra magistralmente como as sociedades capitalistas de livre mercado já no final do século XIX estavam completamente imersas no processo inescusável de uma revolução da produção, e dos valores, compelida pelo desenvolvimento do regime de acumulação privada nos moldes burgueses do capital e da luta de classes. Efetivamente Lafargue, não só pelos exemplos retrativos de sua época na Europa, pelos desdobramentos coloniais inerentes à produção de mercadorias, e às relações entre as classes e frações da classe proprietária, só fez comprovar irrefutavelmente o que o Mundo contemporâneo assiste quanto à luta concorrencial global pelo estabelecimento dos monopólios capitalistas, com as piores consequências e perspectivas para os milhões de desempregados e precarizados hoje.

A diferença é que em nosso tempo todo o processo se verifica através da aplicação pragmática do mais alto desenvolvimento de tecnologias e ciências aplicadas à produção, consumo e financeirização dos mercados. Isto é o ponto nodal do qual o regime de acumulação concorrencial de capital não pode prescindir e se afastar, levando à precarização do trabalho e dos trabalhadores, não tanto pela exploração do mais valor absoluto em larga escala (mais extensiva ao tempo de Lafargue), mas pela maciça substituição de mão de obra por sistemas mecanizados e robotizados (mais valor relativo), alicerçados em tecnologias de comunicação e informação remotas desenvolvidas por poderosos algoritmos e com base em bancos de dados minuciosos e globais.

A precarização que Lafargue revela e denuncia já era pura desumanidade, miséria e morte para os trabalhadores de então, subsumida a inevitabilidade do trabalho, até pelos mesmos, enquanto hoje o que é real e facilmente observável é o fim do trabalho, o incremento do tempo de trabalho disponível, na verdade a inexigibilidade da mão de obra assalariada do capital. É nos limites do desenvolvimento das forças produtivas e da obsolescência do trabalho assalariado do capital que está dada a possibilidade real e objetiva de as massas de trabalhadores exigirem riqueza para si, a se dedicarem finalmente ao desenvolvimento de sua potencialidade criativa, artística, como Lafargue (em Marx!) o exigia. E se há um século e meio atrás era tão difícil para os trabalhadores se libertarem do “discurso do trabalho moralizante da burguesia e da igreja”, devido às condições reduzidas da sociedade produzir riqueza material necessária para emancipar o homem de seu “castigo icônico bíblico”, hoje é essa realidade bastante possível e real que movimenta cada vez mais setores, comunidades e movimentos sociais para o seu direito libertador ao ócio criativo.

A registrar que durante a pesquisa e confecção do Direito ao Ócio não recorremos ao texto de Paul Lafargue, embora fosse conhecida sua existência prodigiosa, pois se queria manter a distância necessária a evitar certa contaminação, e comprovar por outros caminhos, e pelos autores contemporâneos pós-estruturalistas, que as teses inerentes ao ”desafio ao trabalho” são consistentes a provar não só o brilhantismo de Lafargue, mas a atualidade deste “desafio”. Só o voltamos a ler para este Prólogo. Lafargue obviamente não precisa de defensores. A pesquisa e o pensamento progressista, esse sim, sempre carece de arejamento, e nada de mais que tal ventilação ainda venha de um texto grandioso como o de Paul Lafargue. Isto demonstra ao menos que o método da Economia Política é imbatível tanto quanto mais o regime do capital se desenvolve no caminho de sua superação.



BIBLIOGRAFIA


LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.



[1] O texto aqui publicado refere-se ao Prólogo de nosso livro Direito ao Ócio – Desafio ao Trabalho e Nova Cultura, a ser publicado.



(Ilustração: Virgilio Jatosti - La Paresse)

sábado, 12 de fevereiro de 2022

A LUA NO CINEMA, de Paulo Leminski

      




A lua foi ao cinema,

passava um filme muito engraçado,

a história de uma estrela

que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas

uma estrela bem pequena,

dessas que, quando apagam,

ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,

ninguém olhava pra ela,

e toda a luz que ela tinha

cabia numa janela.

A lua ficou tão triste

com aquela história de amor,

que até hoje a lua insiste:

-Amanheça, por favor!



(Ilustração: Robert Fisher - Starry Night II)



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

ELOGIO DA TRADUÇÃO, de Alessandro Francisco





É […] essencial formular um contraimaginário que se oponha a este imaginário demente de uma sociedade sem estrangeiros.

Achille Mbembe



Bárbaros, nós o seremos, de maneira voraz.

Barbara Cassin



O título deste escrito não foi escolhido a esmo. Situa-se na sequência de uma discussão urgente iniciada pelo colega Charles Feitosa, em seu artigo Elogio da migração, publicado [neste mesmo blog].

A discussão é urgente, como o disse, numa era de nazismo montante: há por toda parte um discurso de pureza que se entrelaça nos diálogos mais habituais, presente também nas esferas da Ciência e da Filosofia.

Ao abordar o tema da tradução, tento permanecer no âmbito da discussão inaugurada por Charles Feitosa, percorrendo, entretanto, uma vereda paralela: aquela que me conduz ao encontro da diversidade das línguas. E por isso renuncio, de imediato, a qualquer abordagem normativa ou gramatical. Conquanto reconheça seu valor, a gramática não deixa de ser a abstração de uma língua.

Iniciei a aventura de traduzir provocado pela música, mais precisamente pela ópera. O que dizia a Königin der Nacht (Rainha da noite), em sua primeira aparição na ópera Die Zauberflöte (A flauta mágica) de Mozart, ao enunciar O zittre nicht, mein lieber Sohn? Majestosa, poderosa e brilhante figura que me encanta desde a infância. O que narrava Les oiseaux dans la charmille, cantada pela boneca Olympia, em Les contes d’Hoffmann (Os contos de Hoffmann), de Offenbach? O que tanto tagarelava Don Bartolo a Rosina, em Il barbiere di Siviglia (O barbeiro de Sevilha), de Rossini, na ária A un dottor della mia sorte? Que trava-línguas era aquele que me fazia rir mesmo sem compreendê-lo?

Isso tudo me motivou, muito cedo, a penetrar num mundo insólito, pois eu não falava e sequer compreendia aquelas línguas todas, e reconheço que, ainda hoje, não as domino com a destreza que reivindicam. Cada língua me apresentava um mundo próprio e, para complicar, um mundo em que palavras e sons estavam já costurados num discurso cantado. Todavia, tratava-se, aí, de um exercício até certo ponto solitário: comparava as diversas traduções de uma mesma ária, conforme apresentadas nos livretos dos LPs, e depois dos CDs, recorrendo regularmente aos dicionários de minha mãe e de minha tia. A estes, que, na época, já eram muitos, juntam-se os meus, ocupando atualmente uma estante inteira.

Vários anos depois, foi Salma Tannus Muchail a me provocar. Para a preparação de um seminário, ainda no mestrado, foi preciso traduzir um texto francês. Passamos três madrugadas juntos: o texto e eu. Ao final da tradução, o enviei a dois amigos que dominavam a língua. Me lembro do aprendizado sem tamanho que foi discutir suas observações acerca de excertos de minha versão em língua portuguesa – passagens por vezes titubeantes, outras tantas duvidosas, quase sempre equivocadas. Desde então, não cessei de traduzir e mesmo de, aqui ou ali, me lançar na aventura do intérprete. Loucura! Realizar uma tradução consecutiva é sempre esgotante, embora seja uma oportunidade ímpar de instrução.

Ora, o exercício da tradução se revelou uma atividade de duplo aprendizado: compreender como se diz algo em outra língua – em outra cultura – e perceber o quanto algo dito numa língua é quase sempre intraduzível. Assim, por um lado, se trata de levar algo de uma língua à outra; por outro, de saber que esta migração não se dá por meio da assimilação, mas da diferenciação.

Há línguas, como o árabe e o hebraico, em que a conjugação dos verbos – por intermédio das desinências – diferencia o gênero daquele que fala e de seu interlocutor. Na língua portuguesa, dizemos eu moro em São Paulo e você mora no Rio de Janeiro sem que o gênero esteja explícito no uso do verbo. Na língua inglesa, por exemplo, o pronome you serve tanto nos diálogos formais como nos informais, ou seja, é usado como você e como senhor ou senhora, por seu turno, sem diferenciação de gênero.

A diversidade se dá, igualmente, num registro mais fino: algo que é dito numa língua expressa seu modo singular de ser e a experiência particular que uma dada cultura faz do mundo. Eu gosto de chocolate, j’aime le chocolat, mi piace il cioccolato e ich mag Schokolade são modos diversos de se relacionar com aquilo de que se gosta, que se aprecia, que se deseja. Os verbos gostar, aimer, piacere e mögen nos apresentam não somente nuances distintas de uma mesma experiência, mas também vivências diversas que se fazem do mundo. Não obstante, a tradução constitui sempre a possibilidade de tornar algo compreensível para alguém que não conhece uma dada língua.

Ela propicia ainda o encontro com nossa própria língua. Ao se traduzir um escrito, é possível conhecê-la mais profundamente, compreende-se a singularidade de nossa própria cultura. Verter algo de uma língua estrangeira para a nossa nos arremessa aos dicionários e vocabulários, fazendo-nos resgatar palavras já esquecidas ou de uso raro. É o caso do termo francês ailleurs, que me fez recuperar o nosso alhures. Ou quando descubro que parier (em francês apostar) pode ser dito parear ou parar, ambos também apostar, arriscar.

E se mergulharmos, então, nos diferentes modos de falar a mesma língua? O Brasil, com sua formidável multiplicidade de vocabulários e de entonações, nos convoca continuamente a nos conhecer, a experimentar modos diversos de viver.

A língua nomeia uma coisa e, no ato da nomeação, aporta uma perspectiva que constitui a própria coisa. Ela é aquilo por meio do que pensamos. Em grego, como bem observou a filóloga e filósofa Barbara Cassin – de cujo livro Éloge de la traduction tomei emprestado o título deste artigo –, um vocábulo reúne duas noções diversas, dizendo-as de um só modo: discursividade e racionalidade, em latim orario e ratio, se dizem λόγος (lógos).

Outro pesquisador, o Professor de História da Filosofia Medieval do Collège de France, Alain de Libera, evidencia, em sua aula inaugural de 13 de fevereiro de 2014, que, para um medievalista, por exemplo, editar, analisar e traduzir são práticas indissociáveis. E se traduzir advém do latim tradere – levar algo de um lugar a outro (daí a palavra tradição), a tradução é aquilo que faz migrar, de um espaço a outro, um modo de designar o mundo, uma maneira de se relacionar com ele, um jeito de pensar. Neste movimento migratório, transformam-se a cultura que acolhe o discurso traduzido e o próprio discurso.

Assim sendo, a tradução, compreendida aqui como postura – e não apenas como técnica –, promove a migração do pensamento de um sistema a outro: na mesma cultura em diferentes eras (o português de Antonio Vieira e aquele de Guimarães Rosa); em culturas ocidentais de territórios distintos (o francês de Jean d’Ormesson e o português de José Saramago); em culturas cujas condições de possibilidade dos discursos e mesmo cuja escrita são totalmente díspares (o inglês de Philip Roth, o árabe de Adonis, o hebraico de Amos Oz e o japonês de Kenzaburo Oe). Concomitantemente, abraçar a postura da tradução é deparar os intraduzíveis no próprio ato em que o pensamento se põe a migrar.

Dirijamo-nos, a seguir, a sistemas de pensamento diversos do ocidental, ainda que estejam circunscritos ao território que porta este nome (Ocidente). No sábado recente tive o prazer de conhecer Jaider Esbell, do povo Macuxi (RR), e Denilson Baniwa, do Alto Rio Negro (AM). Dois grandes artistas, duas pessoas extraordinárias, representantes de culturas riquíssimas, que visitavam os amigos Silvana e Walter Gomes, da Amoa Konoya, casal que também tenho por minha família.

A conversa amistosa se inicia com Jaider, tomando por tema suas pinturas – palavra que reduz sobremaneira seu modo de expressão artístico. Dois sentimentos tomaram conta de mim. Primeiramente fiquei pasmo, perplexo. Em seguida, um pouco incomodado. Jaider expunha o modo como concebeu cada uma de suas telas, em língua portuguesa, fazendo uso de palavras eruditas. Discurso digno de uma conferência universitária. Prontamente, senti-me bastante incomodado, porque ele fizera todo o trabalho por mim, isto é, não houve qualquer dificuldade em compreender o que explicou. Ele expressava com maestria, e mesmo com virtuosidade, toda a sabedoria ameríndia presente numa dada tela utilizando-se da “minha” língua portuguesa. A exposição foi tão esmerada que não pude – porque não precisei – dar qualquer passo em direção à sua cultura e à sua língua. O incômodo que vivenciei decorreu do impecável e rigoroso discurso de Jaider, que não me permitiu – ratifico, porque não foi preciso – experimentar qualquer estranheza no processo de compreensão do Outro.

Denilson, do povo Baniwa, me fez saber, por seu lado, de um encantador evento na esfera da diversidade das línguas ameríndias. Ocasionalmente, se encontra com outros povos e descobre conseguir entender e fazer-se entender num diálogo em que cada qual faz uso de sua própria língua. É o que acontece quando se junta a representantes dos povos Terena e Ashaninka, por exemplo, que partilham com os Baniwa as línguas chamadas arawak.

Nesta conversa sobre as criações artísticas de ambos, o Mesmo e o Outro estavam presentes a todo o tempo: a língua portuguesa, a cultura Ocidental, as culturas ameríndias ditas e pensadas pela língua portuguesa, as culturas ameríndias ditas e pensadas ora na língua macuxi ora em línguas arawak. Fascinante encontro com o Outro que nos nutre.

Voltemos ao Mesmo, ao sistema de pensamento denominado ocidental. Ao retomar a língua grega, em especial no âmbito dos estudos filosóficos, encontro, de tempos em tempos, a experiência do ser, do pensar e do dizer fundidas a tal ponto que me fazem experimentar, não sem fascinação, algo inteiramente outro em relação ao que denominamos pensamento. E, sem tardar, me decepciono, pois não foi esta mesma língua dos helenos a responsável pela designação βάρβαρος (bárbaros), que quer dizer estrangeiro, para qualificar aqueles cuja língua dizia bar-bar-bar, isto é, cujo discurso não era compreensível?

O vocábulo bárbaro foi criado pela língua helênica para qualificar o não-grego. O estrangeiro – não-grego – é o Outro do Mesmo. Dito diversamente, o estrangeiro é o Outro de nós mesmos. Ora, já não nos mostraram, alguns pensadores, que nós próprios fomos outros em períodos distintos de nossa história? Que somos estrangeiros aos nossos próprios olhos se tomarmos o arquivo de outras eras de nossa cultura? Foi o uso que fizemos de nossa própria Razão e de nossas línguas que maculou o estrangeiro, o Outro de nós mesmos, como o étrange (estranho, em francês; de mesma raiz que étranger, estrangeiro), o bizarro, o selvagem. É o uso que fazemos da Razão que, por vezes, impossibilita o oferecimento de nós mesmos ao Outro, considerando-o, ao mesmo tempo, um mundo a descobrir e a aprender, jamais a conquistar.

Ora, a mesma Razão que designou o estranho-estrangeiro pelo termo bárbaro tornou possível, por exemplo, na língua portuguesa, o advento de um novo sentido para este vocábulo, empregado para qualificar, agora, o que é digno de admiração: Que pensamento bárbaro! Esta língua é bárbara! Trata-se, desse modo, de não nos sabermos senão estrangeiros a todo o momento.

O artigo de Charles Feitosa, Elogio da migração, nos convida à abertura para o Outro. De minha parte, empenhei-me, aqui, em fazer ressoar seu convite por meio do tema da tradução. É preciso urgentemente que estejamos abertos a traduzir, a fazer ir e vir o pensamento, a tornar possível a migração de modos de ser para que todos se transformem simultânea e continuamente, descobrindo e potencializando, pelo encontro do Mesmo e do Outro, a polissemia de cada palavra, permitindo a invenção de novas maneiras de saber: sapere vindo de sapidus, ou seja, saboroso, referência que também devo ao querido Alain Grosrichard.

Atendamos, assim, sem demora, ao clamor patente na frase de Barbara Cassin apresentada na epígrafe deste artigo: sejamos bárbaros e de modo voraz!




(Ilustração: Renoir, 1890)







domingo, 6 de fevereiro de 2022

A COISA, de Bráulio Tavares





Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa

que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo

com pernas que ela terá de crescer de si própria;

e que seja ela uma máquina viva, uma máquina

capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.

Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas

e metonímias e quarks e transistores e estames

e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...

Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa

que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam

e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,

e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos

e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,

e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia

tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando

com meus olhos de homem, me sorrindo

com tantas bocas de mulher, me envolvendo

com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,

fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,

como um setor a mais invadido um círculo já completo.

Eu quero que essa coisa existisse, assim como

eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.

Coisa criada, cobra criante, serpente criança,

criatura sentiente, existinte, sente, pensante,

cercada pela linha brusca do seu até-aqui

Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá

como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,

e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.

Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.

Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,

e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus

na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!

O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,

o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro

do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?

Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,

com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:

e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.



(Antologia Sonora)



(Ilustração: Jeff Christensen - desperate times)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

ELOGIO DA MIGRAÇÃO, de Charles Feitosa

 



E há tempos nem os santos

Têm ao certo a medida da maldade

E há tempos são os jovens que adoecem

E há tempos o encanto está ausente

E há ferrugem nos sorrisos

Só o acaso estende os braços

A quem procura abrigo e proteção.


Legião Urbana, Há Tempos (1989)



Existem no mundo, segundo pesquisas de 2017, cerca de 345 milhões de migrantes, representando 3% da população mundial. O Brasil sempre foi historicamente uma meta dos fluxos migratórios, mas recentemente está se tornando também um dos países que mais exporta migrantes no planeta. O Itamaraty estimou, em 2017, que cerca de três milhões de brasileiros vivem no exterior, a maioria no Estados Unidos, Europa e América do Sul. Ao mesmo tempo, o número estimado de estrangeiros que moram no Brasil é 700 mil, cerca de 0,3% da população. Pesquisas recentes mostram que 62% dos jovens brasileiros querem deixar o país, e que cresceu em 19% a migração brasileira para Portugal em 2017. Simultaneamente, somos informados que oficialmente 1336 compatriotas foram barrados e devolvidos ao país pelas autoridades lusitanas e, finalmente, que cresceu em 20% o número de brasileiros desencantados com o eldorado ibérico, a ponto de solicitar ajuda estatal para poder voltar para casa. Dentro desse contexto, é com tristeza e revolta que assistimos às recentes imagens de brasileiros em Roraima expulsando migrantes venezuelanos com extrema violência ao som do hino nacional, ao mesmo tempo em que somos informados de que o relatório da ONU, com dados de 2017, indica que havia, pelo menos até a crise se acentuar, mais brasileiros vivendo na Venezuela do que venezuelanos no Brasil.

A situação de Roraima é complexa, envolvendo uma equação delicada entre poderes locais, crises econômicas e éticas; contextos históricos de disputas territoriais, típicos de regiões de fronteira. Mas não tem como não deixar explodir diante de nós a questão: como é possível que um povo constituído por filhos e/ou pais de migrantes ouse não ser hospitaleiro e solidário com outros povos em condições similares ou ainda piores? O fato é que o lado mais sombrio do patriotismo, a xenofobia, está de volta aos noticiários e talvez seja uma boa hora para conversar de novo sobre a questão da migração do ponto de vista da filosofia.

Nada melhor nessa oportunidade do que fazer ecoar novamente a voz de alguém como Vilém Flusser, que foi filósofo, brasileiro (por opção) e migrante. Flusser nasceu em 1920 em Praga, estudou filosofia na universidade de Praga a partir de 1939, mas teve que interromper os estudos com a invasão de Hitler à república tcheca. Emigrou então para Londres e depois para o Brasil. Sua família foi toda dizimada em campos de concentração. No Brasil, durante a década de 1940 realizou diversos trabalhos para sobreviver, continuando seus estudos de filosofia de maneira informal e autodidata. Nos anos 1950, apareceram as primeiras publicações em jornais e revistas sobre problemas de filosofia da linguagem e fenomenologia do cotidiano. De 1965 a 1972, divide a tarefa de lecionar filosofia na faculdade humanística do ITA, de São José dos Campos, com a publicação de diversos artigos em jornais e revistas, além de palestras como professor visitante em Yale, Barcelona e Berlim. Em 1972, começa a enfrentar problemas com o regime militar e decide emigrar novamente, dessa vez para a França. A partir de 1975, torna-se professor da escola nacional de fotografia de Aix-en-Provence, onde prosseguirá suas pesquisas sobre novas mídias e cultura até sua morte, em 1991, em um acidente automobilístico.



Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua “filosofia da migração” nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes, a partir da sua própria experiência de vida. Em primeiro lugar, o filósofo afirma que a dificuldade dos enraizados em lidar com os migrantes é sintoma não apenas de limitações ético-políticas, mas também de um adoecimento estético. A boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tudo que parece familiar reflete nossa própria face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio. O que vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. O patriotismo exacerbado é, portanto, uma incapacidade de perceber a beleza diferente do outro. Por isso o migrante é, para o enraizado, alguém ameaçador, que expõe a banalidade e a fragilidade do lar tido como sagrado.

O problema não é do migrante, mas daqueles que acreditam que têm raízes fixas em algum lugar. As “raízes” do homem representam uma ilusão sem futuro, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes para Flusser faz o homem parecer um legume: fixado inexoravelmente à terra. Ao contrário, a filosofia da migração flusseriana defendia que precisamos reconquistar o desenraizamento como nossa condição humana fundamental. A dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, sempre a cada vez diferente dos outros, um outro com os outros: “A pátria do apátrida é o outro”. Por isso, só quem se sente estrangeiro na sua própria pátria é capaz de desenvolver também responsabilidade pelos que chegam à nossa casa, igualmente em processo de “despatriação”.

É obvio que dá trabalho não ceder ao mito das “raízes a serem fincadas e defendidas a qualquer preço”, e é por isso que Flusser considera a chegada dos migrantes enriquecedora para os moradores originais. Os migrantes são os desenraizados, que procuram desenraizar tudo a sua volta. Os migrantes nos obrigam a rever nossos hábitos, que são como um cobertor de algodão que cobre todos os cantos e abafa os sons, é anestésico, esconde informações. O hábito faz tudo ficar bonito e tranquilo. Tira-se o cobertor e tudo fica monstruoso, inabitual, entsetzlich (deslocado/apavorante em alemão). Através dos migrantes surge a oportunidade de reaprender a própria casa com outros olhos, vislumbrando outras e melhores perspectivas para o viver em comum.

A migração é um tema filosófico por excelência, porque fazer filosofia também é uma espécie de migração interior. Pensar é se exilar em si mesmo, elevando a cobertura do habitual que repousa sobre as coisas. É sintomático que a maioria dos textos, anotações e projetos de livros de Flusser que tinham como tema a migração tenham sido escritos em meados da década de 1970, depois do seu banimento por causa da ditadura militar. É também sintomático que o tema da xenofobia reapareça agora, em tempos em que a volta do regime militar é reivindicada em nome da instalação da ordem e do progresso.



Pode parecer um pouco utópico, mas a hipótese flusseriana carrega uma proposta alternativa para o futuro e vale tanto para os brasileiros autoexilados nos EUA ou em Portugal, como para os sírios e venezuelanos refugiados no Brasil. E vai ainda além, na medida em que considera a migração não apenas um processo geopolítico, mas o próprio modo de ser do humano. Todos nós temos que aprender a migrar da infância para a vida adulta; todos nós teremos que aprender a migrar, se tivermos sorte, da vida adulta para a terceira idade. E todos nós, vivendo na pós-modernidade, estamos tendo que migrar dos textos lineares para a hipertextualidade da era digital. Enfim, viver consiste em ser constantemente expulso de algum território (geográfico ou simbólico) e reaprender a morar em terras novas. Como vamos esperar que acolham a nós ou a nossos filhos nos novos continentes do futuro, quaisquer que sejam, se nós mesmos não formos capazes de estender os braços a quem procura abrigo e proteção?



(Ilustração: António Pereira - mulheres de Cabo Verde)