quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

SATÂNIA, de Olavo Bilac

  




Nua, de pé, solto o cabelo às costas,

Sorri. Na alcova perfumada e quente,

Pela janela, como um rio enorme

De áureas ondas tranquilas e impalpáveis,

Profusamente a luz do meio-dia

Entra e se espalha palpitante e viva.

Entra, parte-se em feixes rutilantes,

Aviva as cores das tapeçarias,

Doura os espelhos e os cristais inflama.

Depois, tremendo, como a arfar, desliza

Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,

Como uma vaga preguiçosa e lenta,

Vem lhe beijar a pequenina ponta

Do pequenino pé macio e branco.



Sobe... cinge-lhe a perna longamente;

Sobe... — e que volta sensual descreve

Para abranger todo o quadril! - prossegue.

Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,

Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,

Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo

Da axila, acende-lhe o coral da boca,

E antes de se ir perder na escura noite,

Na densa noite dos cabelos negros,

Para confusa, a palpitar, diante

Da luz mais bela dos seus grandes olhos.



E aos mornos beijos, às carícias ternas

Da luz, cerrando levemente os cílios,

Satânia os lábios úmidos encurva,

E da boca na púrpura sangrenta

Abre um curto sorriso de volúpia...

Corre-lhe à flor da pele um calafrio;

Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso

Apressa; e os olhos, pela fenda estreita

Das abaixadas pálpebras radiando,

Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam,

Fitos no vácuo, uma visão querida...



Talvez ante eles, cintilando ao vivo

Fogo do ocaso, o mar se desenrole:

Tingem-se as águas de um rubor de sangue,

Uma canoa passa... Ao largo oscilam

Mastros enormes, sacudindo as flâmulas...

E, alva e sonora, a murmurar, a espuma

Pelas areias se insinua, o limo

Dos grosseiros cascalhos prateando...



Talvez ante eles, rígidas e imóveis,

Vicem, abrindo os leques, as palmeiras:

Calma em tudo. Nem serpe sorrateira

Silva, nem ave inquieta agita as asas.

E a terra dorme num torpor, debaixo

De um céu de bronze que a comprime e estreita...



Talvez as noites tropicais se estendam

Ante eles: infinito firmamento,

Milhões de estrelas sobre as crespas águas

De torrentes caudais, que, esbravejando,

Entre altas serras surdamente rolam...

Ou talvez, em países apartados,

Fitem seus olhos uma cena antiga:

Tarde de Outono. Uma tristeza imensa

Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa

Das tamareiras, meio adormecido,



Fuma um árabe. A fonte rumoreja

Perto. À cabeça o cântaro repleto,

Com as mãos morenas suspendendo a saia,

Uma mulher afasta-se, cantando.

E o árabe dorme numa densa nuvem

De fumo... E o canto perde-se à distância...

E a noite chega, tépida e estrelada...



Certo, bem doce deve ser a cena

Que os seus olhos extáticos ao longe,

Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam.



Há pela alcova, entanto, um murmúrio

De vozes. A princípio é um sopro escasso,

Um sussurrar baixinho. Aumenta logo:

É uma prece, um clamor, um coro imenso

De ardentes vozes, de convulsos gritos.

É a voz da Carne, é a voz da Mocidade,

— Canto vivo de força e de beleza,

Que sobe desse corpo iluminado...



Dizem os braços: "— Quando o instante doce

Há de chegar, em que, à pressão ansiosa

Destes laços de músculos sadios,

Um corpo amado vibrará de gozo? —"



E os seios dizem: "— Que sedentos lábios,

Que ávidos lábios sorverão o vinho

Rubro, que temos nestas cheias taças?

Para essa boca que esperamos, pulsa

Nestas carnes o sangue, enche estas veias,

E entesa e apruma estes rosados bicos... —"



E a boca: "— Eu tenho nesta fina concha

Pérolas níveas do mais alto preço,

E corais mais brilhantes e mais puros

Que a rubra selva que de um tino manto

Cobre o fundo dos mares da Abissínia...

Ardo e suspiro! Como o dia tarda

Em que meus lábios possam ser beijados,

Mais que beijados: possam ser mordidos —"



Mas, quando, enfim, das regiões descendo

Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia

Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo,

Veste-se, e aos olhos ávidos do dia

Vela os encantos, - essa voz declina

Lenta, abafada, trêmula...



Um barulho

De linhos frescos, de brilhantes sedas

Amarrotadas pelas mãos nervosas,

Enche a alcova, derrama-se nos ares...

E, sob as roupas que a sufocam, inda

Por largo tempo, a soluçar, se escuta

Num longo choro a entrecortada queixa

Das deslumbrantes carnes escondidas...



(Sarças de fogo)



(Ilustração: Kiéra Malone)



Nenhum comentário:

Postar um comentário