sexta-feira, 31 de julho de 2020

A DEFESA DO POETA, de Natália Correia




Senhores juízes sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.



Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.



Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.



Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.



Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.



Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

dou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis.



Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.



Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs em ordem?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?



Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.



Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de paixão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.



Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!



A poesia é para comer.



(Poesia completa, 1999)



(Ilustração: Gerda Wegener 1925 - Les Delassements d'Eros)

terça-feira, 28 de julho de 2020

MEDITAÇÃO SOBRE A MEDITAÇÃO, de H. L. Mencken




A capacidade do homem para o pensamento abstrato, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, sem dúvida conferiu-lhe seu atual domínio sobre a superfície da Terra — um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insetos e organismos microscópicos. Este pensamento abstrato é o responsável por sua sensação de superioridade e por que, sob esta sensação, existe uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o fato de que a capacidade de desempenhar um ato não é, de forma alguma, sinônima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa a ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afetam mais desesperadamente o seu bem-estar. 

Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia, a danação infantil ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de fato, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas conflitantes — um deles baseado em argumentos prováveis e racionais, o outro disparando em direção ao erro mais óbvio —, ela, quase invariavelmente, adotará este último. Isto se aplica à política, que consiste inteiramente numa sucessão de asneiras, muitas das quais tão idiotas que existem apenas como palavras de ordem ou demagogia, não podendo ser reduzidas a qualquer declaração lógica. 

Acontece o mesmo na religião, que, como a poesia, não passa de uma partitura orquestrada para negar as mais óbvias realidades. E é assim em quase todos os campos do pensamento. As ideias que mais rapidamente conquistam a raça, levantam os mais vibrantes entusiasmos e são defendidas com a maior tenacidade, são justamente as mais insanas. Isto pode ser provado desde que o primeiro gorila “avançado” vestiu cuecas, franziu a testa e saiu por aí dando conferências. E será assim até que os poderes superiores, finalmente cansados desta farsa, exterminem a raça com um gigantesco e definitivo coquetel de fogo, gases mortais e estreptococos. 

Não surpreende que a imaginação do homem seja a culpada por esta singular fraqueza. Tal imaginação, eu diria, foi o que lhe permitiu dar o seu primeiro salto sobre seus colegas primatas. Permitiu-lhe visualizar uma condição de existência melhor do que a que ele vinha experimentando e, pouco a pouco, tornou-o capaz de retocar o quadro com uma certa realidade crua. E até hoje ele continua do mesmo jeito. Quer dizer, ele pensa em qualquer coisa que gostaria de ser ou ter, algo bem melhor do que ele já é ou já tem, e, então, por um processo custoso e difícil de erros e acertos, gradualmente chega ao que quer. Durante o processo, muitas vezes é severamente punido por seu descontentamento com as sagradas ordens de Deus. Rói as unhas, coça o queixo, tropeça e cai — e, finalmente, o prêmio que ele tanto buscava derrete em suas mãos. Mas, aos pouquinhos, ele segue em frente ou, na pior das hipóteses, passa o bastão a seus herdeiros ou sucessores. Pouco a pouco, ele asfalta o caminho para sua perna restante e conquista belos brinquedos para a mão que lhe resta, com os quais brinca, e permite a seu olho ou ouvido sobrevivente desfrutar aquela delícia. 

Infelizmente, nunca se contenta com este processo lento e sanguinário. Está sempre em busca de algo cada vez mais distante. Vive imaginando coisas além do arco-íris. Este corpo de imagens constitui seu estoque de doces credulidades, fé e confiança — em suma, seu fardo de erros. E este fardo de erros é o que distingue o homem, mesmo acima de sua capacidade de chorar, seu talento para mentir, sua excessiva hipocrisia e bazófia, de todas as outras ordens de mamíferos. O homem é o caipira par excellence, um ingênuo incomparável, o bobo da corte cósmica. Ele é crônica e inevitavelmente tapeado, não apenas pelos outros animais e pelas artimanhas da natureza, mas também (e mais particularmente) por si mesmo — por seu incomparável talento para pesquisar e adotar o que é falso, e por negar ou desmentir o que é verdadeiro. 

A capacidade para discernir a verdade essencial, de fato, é tão rara nos homens quanto comum entre os corvos, sapos ou sardinhas. O homem capaz desse discernimento é de uma qualidade mais do que extraordinária — mesmo, talvez, que seja profundamente mórbido. Demonstre uma nova verdade lastreada de qualquer plausibilidade natural para uma multidão, e nem uma pessoa em 10 mil suspeitará de sua existência, e nem uma em 100 mil irá adotá-la sem feroz resistência. Todas as verdades duradouras que se impuseram ao mundo no decorrer da História foram mais combatidas do que a varíola, e todo indivíduo que as recebeu bem e lutou por elas foi, absolutamente sem exceção, denunciado e punido como um inimigo da espécie. Talvez o “absolutamente sem exceção” seja um exagero. Eu o substituiria por “cinco ou seis exceções”. Mas quem seriam essas cinco ou seis exceções? Deixo a resposta a cargo de vocês; eu próprio não conheço nenhuma. 

Mas, se a verdade é sempre mal recebida, o erro é recebido de braços abertos. Qualquer homem que invente uma nova imbecilidade recebe salvas de palmas e torna-se o dono da verdade; para as grandes massas, ele é o beau ideal da humanidade. Dê um giro pelos últimos mil anos da História e você descobrirá que 90% dos ídolos populares do mundo — não me refiro aos heróis de pequenas seitas, mas a ídolos mundialmente populares — não passaram de mascates baratos de nonsense. Tem sido assim em política, religião e em qualquer outro departamento do pensamento humano. Mesmo tal mascate já enfrentou alguma oposição, uma vez ou outra, de críticos que o denunciaram como charlatão e o refutaram assim que ele abriu a boca. Mas, ao lado de cada um deles, havia a titânica força da credulidade humana, e isto bastava para destruir seus inimigos e estabelecer sua imortalidade. 



(1920) 



(O livro dos insultos; tradução de Ruy Castro) 



(Ilustração: Alfedo López - sans frontières)



 


sábado, 25 de julho de 2020

TALKING NEW YORK / O ASSUNTO É NOVA YORK, de Bob Dylan





Ramblin’ outa the wild West

Leavin’ the towns I love the best

Thought I’d seen some ups and downs

’Til I come into New York town

People goin’ down to the ground

Buildings goin’ up to the sky



Wintertime in New York town

The wind blowin’ snow around

Walk around with nowhere to go

Somebody could freeze right to the bone

I froze right to the bone

New York Times said it was the coldest winter in seventeen years

I didn’t feel so cold then



I swung onto my old guitar

Grabbed hold of a subway car

And after a rocking, reeling, rolling ride

I landed up on the downtown side

Greenwich Village



I walked down there and ended up

In one of them coffee-houses on the block

Got on the stage to sing and play

Man there said, “Come back some other day

You sound like a hillbilly

We want folk singers here”



Well, I got a harmonica job, begun to play

Blowin’ my lungs out for a dollar a day

I blowed inside out and upside down

The man there said he loved m’ sound

He was ravin’ about how he loved m’ sound

Dollar a day’s worth



And after weeks and weeks of hangin’ around

I finally got a job in New York town

In a bigger place, bigger money too

Even joined the union and paid m’ dues



Now, a very great man once said

That some people rob you with a fountain pen

It didn’t take too long to find out

Just what he was talkin’ about

A lot of people don’t have much food on their table

But they got a lot of forks ’n’ knives

And they gotta cut somethin’



So one mornin’ when the sun was warm

I rambled out of New York town

Pulled my cap down over my eyes

And headed out for the western skies

So long, New York

Howdy, East Orange



Tradução de Caetano W. Galindo:



Sumindo do oeste distante

Deixando as cidades que eu mais amo

Achei que vi poucas e boas

Até chegar à vila Nova York

Gente entrando no chão

Prédios saindo pro céu



Inverno na vila Nova York

Vento soprando neve por tudo

Ando por tudo sem ter aonde ir

Você podia congelar até o osso

Eu congelei até o osso

O New York Times falou que este foi o inverno mais frio dos últimos dezessete anos

Eu não sentia tanto frio naquele tempo



Grudei no meu violão velhinho

Catei um vagão de metrô

E depois do embalo, depois da onda, do tranco da ida

Desci lá do lado de Downtown

Greenwich Village



Andei por lá e acabei

Num daqueles cafés lá da quadra

Subi no palco pra cantar e tocar

O cara lá disse, “Volte outro dia

Você é meio caipira

A gente quer mais o pessoal do folk”



Bom, consegui um emprego tocando gaita, comecei

A estourar os pulmões a um dólar por dia

Soprava do avesso e de ponta-cabeça

O cara lá disse que adora o meu som

Não parava de falar que adorava o meu som

Que valia um dólar por dia



E depois de semanas, semanas ali

Finalmente encontrei um emprego na vila Nova York

Num lugar maior, com grana maior também

Até entrei pro sindicato e paguei minha taxa



Mas um grande sujeito um dia me disse

Tem gente que te assalta com uma caneta-tinteiro

Não demorou muito pra eu entender

Exatamente o que ele queria dizer

Um monte de gente não tem tanta comida na mesa

Mas não sente falta de garfos e facas

E precisam cortar alguma coisa



Então numa manhã quando o sol estava quente

Eu sumi da vila Nova York

Baixei o boné por cima dos olhos

E segui rumo aos céus lá do oeste

Adeus, Nova York

Salve, East Orange



(Letras – 1961-1974)



(Ilustração: Michael Accorsi - New York skyline)




quarta-feira, 22 de julho de 2020

A MÚSICA, ESSE TERRÍVEL EXCITANTE, de Leon Tolstói




— Parece-me escusado dizer que, nesse tempo, eu era muito vaidoso. Hoje em dia, quem não possui um pouco de vaidade não tem um fim na vida. Preparei pois com esmero e gosto o jantar e a soirée musical do domingo. Fui eu que tratei do menu e que fiz os convites. Os nossos convidados chegaram às seis horas. Troukhatchevsky veio de casaca com uma abotoadura em brilhantes de muito mau gosto. Estava bem-disposto e conversava com espírito. Procurei encontrar-lhe defeitos e notava-os com prazer. Sentia-me tranquilizar. Decerto não poderia conquistar o coração de minha mulher. Nunca poderia interessá-la. Ela não desceria até ali. Reprimi o ciúme, tentando assim evitar a mim próprio a tortura atroz que esse sentimento me infligia. Mas, mau grado meu, não desviava deles o olhar, procurando sempre surpreender um gesto, um sorriso. O jantar foi, como sempre, aborrecido. Seguiu-se a música. 

Ele foi buscar o violino. Minha mulher dirigiu-se para o piano, escolhendo as partituras. Não esqueci um só dos pormenores dessa noite! Ele chegou com a caixa, abriu-a, tirou a manta, bordada por mãos de mulher, e começou afinando o violino. Minha mulher queria aparentar tranquilidade, mas via-se que estava nervosa, receosa de não tocar bem. Sentou-se e deu o lá. Ouço ainda os pizzicati do violino, vejo-os dispor a música, percorrerem a sala com o olhar, trocarem algumas palavras e começarem tocando a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. Conhece o primeiro presto? Conhece? Oh! Oh! 

Pozdnychev suspirou profundamente e permaneceu silencioso durante muito tempo. 

— É espantosa essa sonata! E esse presto é a parte mais terrível. De resto, toda ela é espantosa! O que é a música? Como pode produzir tais efeitos? E dizem que eleva as almas? Mentira! Estupidez! Exerce um grande poder sobre nós, mas não eleva as almas, não! Excita-nos! Vou explicar-me. A música domina-me. Faz-me esquecer de mim, leva-me a crer no que não creio, faz-me compreender o que não compreendia; cede-me um poder que não possuo. Produz-me o efeito do riso ou do bocejo, quando ouço rir ou bocejar. Assim a música me conduz à mesma disposição moral em que se encontrava o autor quando a escreveu. Confundo a minha alma com a sua e vibro do mesmo sentimento. Por quê? Não sei. 

Mas Beethoven, quando escreveu a Sonata a Kreutzer, sabia muito bem donde provinha esse estado que o levara a praticar certas e determinadas ações que, para ele, tinham uma razão de ser e que para mim não a tinham. Eis o motivo por que a música excita em vão. A marcha ajuda a caminhar, uma valsa faz-nos dançar, a música sacra arrasta-nos aos pés do altar. Esta tem razão de ser. Dá um resultado. Mas a outra não. É pura excitação, sem um fim, sem um resultado prático. Daí provêm todas as funestas consequências da música. 

Na China, o governo tem o monopólio da música. Todos os governos deviam fazer o mesmo. Como pode ser permitido hipnotizar tanta gente para obter tudo o que possa desejar-se? E consentir que exerça esse poder um homem qualquer, sem escrúpulos, sem consciência? Hoje a música é uma arma terrível nas mãos de alguns... Essa Sonata a Kreutzer, esse presto (e há muitas assim!) não devia ser permitido executá-lo numa sala onde há senhoras decotadas, não devia ser permitido aplaudi-lo, e passar adiante... Essa música só deveria fazer-se ouvir em certos e determinados momentos. Nada mais perigoso do que provocar desejos que não podem nem devem manifestar-se. 

Essa música exerceu sobre mim um poder estranho, único! Sentia de um modo diverso, parecia-me possuir uma outra alma. Não sentia ciúmes. Encarava os homens sob um outro prisma. Essa Sonata transportou-me a um outro mundo onde não podiam existir os zelos, que nos apareciam como futilidades indignas de prender-nos a atenção. Depois da Sonata executaram vários trechos, entre eles uma elegia de Ernst. Eram arrebatadores, mas não produziam a impressão do primeiro. Senti-me bem-disposto durante o resto da noite. Quanto a minha mulher, nunca a vira assim; com aquele ar tão digno, aquele olhar tão cintilante e o sorriso doce e tocante com que agradecia. Vi tudo isto, mas não lhe liguei importância. Julguei que ela vibrara como eu ao sentir a música despertar-lhe na alma sentimentos até então desconhecidos. 

Daí a dois dias devia partir para tomar parte na assembleia de Zemstvo. Ao despedir-se, Troukhatchevsky perguntou-me quando eu regressava, pois desejava despedir-se de nós antes de deixar Moscovo. Depreendi dessa pergunta que ele compreendera que não devia frequentar-me a casa durante a minha ausência. Como devia partir antes do meu regresso, era evidente que nos não tornaríamos a encontrar. E despedimo-nos. Pela primeira vez lhe apertei a mão com verdadeiro prazer, agradecendo-lhe os bons momentos que nos proporcionara. Despediu-se de minha mulher, que me pareceu natural e simples. Tudo acabara bem. Eu e minha mulher estávamos encantados com a nossa festa. Falámos das impressões recebidas. Sentíamo-nos bem-dispostos um para com o outro. Havia muito que não experimentávamos esse sentimento de mútua cordialidade. 

Dois dias depois, deixava minha mulher e partia para o Zemstvo na melhor das disposições. O distrito estava animadíssimo. Havia todo um mundo aparte de pequenos comerciantes. Durante dois dias tive sessões que duravam dez horas. Na segunda noite, ao regressar a casa, encontrei uma carta dela. Falava-me das crianças, do tio, de várias compras e de uma visita de Troukhatchevsky, que lhe fora levar umas partituras. Tinha-lhe pedido para tocarem qualquer coisa, mas ela recusara. Não me recordava de ter ouvido falar em tais partituras. Parecera-me até que ele se havia despedido definitivamente e a notícia da sua visita impressionou-me desagradavelmente. Reli a carta. Pareceu-me forçada, tímida. O ciúme abrasou-me. Senti-me feroz, como o animal ferido. Tentei conter-me. Para que ter ciúme? Nada mais natural do que essa visita. Deitei-me e adormeci sem pensar em minha mulher. 

Em geral dormia pouco durante o período das assembleias do Zemstvo. Nessa noite adormeci logo. Mas, de súbito, acordei com o pensamento nela. Recordei o nosso amor sensual, pensei em Troukhatchevsky. Tive a sensação de que se entendiam. De novo senti no coração a raiva e o ciúme. De novo tentei dominar-me. É estúpido, pensava eu, não tenho razão para ciúmes. Nada existe entre eles. Para que aviltá-la com tão disparatado ciúme? Ele, um violinista a quem se paga e minha mulher! É verdade que ele tem fama de conquistador, mas ela é honesta e digna. É absurdo. Mas... por quê? Podem perfeitamente amar-se. O sentimento que me fez seu marido foi o desejo, o amor carnal. Ele e outros podem bem sentir por ela a mesma coisa. Ele é celibatário, robusto, eu notei como ele quebrava com os dentes os ossos das costeletas e como bebia bem. Bem alimentado, bonitas maneiras, deve ter como princípio aproveitar todos os prazeres. A música, esse terrível excitante, deve ser um traço de união entre ambos. O que pode retê-lo? Nada. Pelo contrário, tudo o atrai. E ela? Ela é ainda o que sempre foi para mim: um enigma. Dela apenas conheço a parte animal. Ora o animal não deve conter-se ou ser contido. 

Recordava a expressão dos seus rostos ao findarem a Sonata a Kreutzer e depois, ao executarem um trecho qualquer excessivamente sensual. Como pude eu partir?, pensava, evocando essa visão. É claro que estavam de acordo. Via-se-lhe no rosto, no olhar, no embaraço dela. Revi-a sorrindo docemente, o olhar iluminado, radiante. Não se atreviam a fitar-se e, só à ceia, quando ele lhe deitou água no copo, é que trocaram um olhar e um impercetível sorriso. Com que terror eu evocava agora esse sorriso e esse olhar. Está perdida, dizia. E uma outra voz murmurava no meu íntimo: Não. É impossível. És vítima de uma obsessão. 

A escuridão pesava-me. Acendi a vela. Impressionou-me mal o quarto, pequeno, forrado de amarelo. Pus-me a fumar cigarros, uns sobre outros. Não consegui tornar a adormecer. Às cinco horas, conquanto ainda fosse noite, resolvi partir. Chamei o porteiro e mandei-o buscar uma carruagem. Escrevi para Zemstvo, pedindo para me substituírem por outro, pois que negócio urgente me chamava a Moscovo. Às sete horas subia para o tarantass[*] e partia. 



Nota: 

[*] Tarantass: carro de viagem, bastante vasto. 



(Sonata a Kreutzer; tradução de Maria Benedita Pinho – 1864-1939) 



(Ilustração: Marc Chagall)



 


domingo, 19 de julho de 2020

O PINHEIRO, de João Simões Lopes Neto




Quem tem pinheiros tem pinhas

Quem tem pinhas tem pinhões,

Quem tem amores tem zelos

Quem tem zelos tem paixões.



Quem tem pinheiro tem pinha,

Quem tem pinha tem pinhão,

Do homem nasce a firmeza,

Da mulher a ingratidão.



Oh! Que pinheiro tão alto,

Com tamanha galharada;

Nunca vi moça solteira

Com tamanha filharada...




Oh! Que pinheiro tão alto,

Que por alto se envergou.

Que menina tão ingrata,

Que d´ingrata me deixou!





(Ilustração: Pedro Wingatner (1853-1929) - tempora mutantur)


 


quinta-feira, 16 de julho de 2020

TIA PHASIE E O BRUSCO ESTRONDO DOS TRENS, de Émile Zola





Com passadas rápidas, Jacques atravessou o estreito quintal e entrou na casa. No meio do primeiro cômodo, uma ampla cozinha em que se comia e se vivia, tia Phasie, como ele a chamava desde criança, estava só, sentada junto à mesa numa cadeira de palha, as pernas agasalhadas por um xale velho. Era prima do seu pai, da mesma família Lantier.[1] Além disso, era também sua madrinha e o aceitara em casa, quando tinha seis anos e os pais, hoje mortos, se mudaram para Paris. Ele continuou em Plassans, onde mais tarde seguiu cursos da Escola de Artes e Ofícios.[2] Guardou pela tia muita gratidão, dizendo sempre ser a quem devia o caminho feito. Quando se tornou maquinista de primeira classe na Companhia do Oeste, após dois anos na Estrada de Ferro de Orléans, voltou a encontrar a madrinha, casada pela segunda vez com um guarda-cancela chamado Misard, exilada com as duas filhas do primeiro casamento naquele buraco perdido de Croix-de-Maufras. Agora, mesmo tendo apenas quarenta e cinco anos, a bonita tia Phasie de antigamente, tão grande e forte, aparentava sessenta, emagrecida e amarelada, sacudida por contínuos tremores. 

Ela deu um grito de alegria. 

− É você, Jacques!… Ah, meu menino, que surpresa! 

Ele beijou-a no rosto e explicou que acabava de obter dois dias de folga forçada; a Lison, sua locomotiva, havia quebrado uma biela ao chegar naquela manhã a Le Havre. Como o conserto levaria pelo menos vinte e quatro horas, ele só retomaria o serviço à noitinha do dia seguinte, com o expresso das 18h40. Viera então dar um beijo. Ficava para dormir e pegaria o trem de Barentin às sete e vinte e seis. E mantendo as pobres mãos da madrinha entre as suas disse-lhe o quanto a sua última carta o preocupara. 

− É verdade, meu menino, as coisas não vão bem, nem um pouco… Foi muito gentil, adivinhando o quanto tinha vontade de vê-lo! Mas sei que é ocupado e não me atrevi a pedir que viesse. O que importa é que está aqui, num momento em que tenho o coração aflito! 

Parou para dar uma olhada apreensiva para a janela. Com o dia que terminava, do outro lado da via férrea podia-se ver o marido, Misard, no seu posto de serviço, uma dessas cabanas de tábuas, armadas a cada cinco ou seis quilômetros e ligadas por aparelhos telegráficos, para garantir a boa circulação dos trens. A mulher – agora substituída por Flore − se encarregava da cancela da passagem de nível, e Misard se tornara sinaleiro.[3] Como se o marido a pudesse ouvir, ela baixou a voz, com um tremor. 

− Acho que ele me envenena. 

Jacques se assustou com a confidência e seus olhos, que se dirigiram também à janela, voltaram a se embaçar com aquela mesma estranha perturbação, o ligeiro fumo pardacento que deslustrava o seu brilho negro, diamantado e dourado. 

− Que ideia, tia Phasie! – ele murmurou. – Tem aparência tão dócil e inofensiva. 

Um trem indo na direção de Le Havre acabava de passar e Misard saiu de seu posto para fechar a via. Enquanto manejava a alavanca, passando para o vermelho o sinal, Jacques o observou. Um homenzinho magro, cabelos e barba escassos, sem cor, faces escavadas e miseráveis. Junto a isso, silencioso, apagado, sem raivas, de obsequiosa polidez no trato com os chefes. Voltou à cabana de tábuas para registrar no diário o horário da passagem e apertar os dois botões elétricos, um devolvendo a via livre para o posto precedente e o outro anunciando o trem ao posto seguinte. 

− Ah, não o conhece! – continuou tia Phasie. – Posso jurar que me faz tomar alguma porcaria… Eu que era tão forte, poderia comer ele inteiro, e é esse pedacinho de homem, esse quase nada que está me comendo pelas beiradas! 

Ela febrilmente se exaltava num rancor surdo e medroso, punha para fora o que pesava no coração, contente de finalmente ter quem a ouvisse. Onde é que estava com a cabeça quando se casou com um sonso daqueles, sem um centavo, avaro ainda por cima, cinco anos mais moço, com duas filhas, uma de seis e outra de oito anos? Lá se iam quase dez anos que havia feito a besteira e não passava uma hora sem se arrepender: uma existência de miséria e o exílio naquele lugar gelado do Norte, onde se batiam os dentes, num tédio mortal, sem nunca ter com quem falar, sequer uma vizinha. Misard tinha sido assentador de trilhos e agora ganhava mil e duzentos francos como sinaleiro. Ela, desde o início, tinha cinquenta francos pela cancela de que Flore agora se ocupava. E aí estavam o presente e o futuro, tendo como única esperança apenas a certeza de viver e morrer naquele buraco, a mil léguas dos seres vivos. O que não mencionava eram as consolações que tinha antes de adoecer, quando o marido trabalhava no balastro[4] e ela ficava sozinha com as filhas para guardar a cancela. Pois na época tinha tal reputação, por toda a linha Le Havre−Rouen, que os inspetores da estrada de ferro a visitavam de passagem. Isso havia inclusive gerado rivalidades, com os funcionários da manutenção de um outro serviço redobrando a vigilância, para estar sempre em ronda. O marido não incomodava, obsequioso com todo mundo, passando sem fazer barulho pelas portas, indo e vindo sem nada ver. Mas essas distrações tinham acabado e ali ela estava, por semanas e meses, naquela cadeira, naquela solidão, sentindo o corpo acabando a cada hora. 

− Estou dizendo – repetiu em conclusão −, ele é que tomou a iniciativa e vai acabar comigo, por mais pequenininho que seja. 

Uma campainha repentina fez com que voltasse a olhar assustada para fora. Era o posto precedente que anunciava ao sinaleiro um trem na direção de Paris, com a agulha do aparelho, que ficava junto à vidraça, se inclinando neste sentido. Ele fez cessar o aviso e saiu para sinalizar o trem com dois toques de buzina. Flore, nesse momento, foi descer a cancela e depois se postou, segurando reta a bandeirinha em sua capa de couro. Ouviu-se o trem, um expresso, oculto por uma curva, se aproximar com crescente rugido. Passou como um raio, sacudindo tudo, ameaçando levar junto a casinha baixa, num vento de tempestade. Flore já voltava a seus legumes, e Misard, depois de fechar a via atrás do trem, foi reabrir a via oposta, descendo a alavanca para desligar o sinal vermelho. De novo a campainha, acompanhada pelo movimento da outra agulha, avisava que o trem que passara cinco minutos antes acabava de atravessar o posto seguinte. Ele entrou, preveniu os dois colegas, registrou a passagem e esperou. Sempre a mesma rotina, cumprida doze horas por dia, vivendo ali, comendo ali, sem ler três linhas de jornal, sem parecer sequer haver um pensamento próprio em sua caixa craniana oblíqua. 

Jacques, que antigamente fazia brincadeiras sobre a madrinha e as confusões que ela criava entre os inspetores da via, não pôde deixar de sorrir, comentando: 

− Talvez tenha ciúme. 

Mas Phasie deu de ombros, como se o marido só lhe causasse pena. Ao mesmo tempo, porém, uma risada irresistível iluminou seus pobres olhos descorados. 

− Ai, meu filho! O que está dizendo?… Ele com ciúme!? Nunca ligou para isso, já que não afetava o seu bolso. 

Depois, novamente abalada por tremores: 

− Não, não se importava. Para ele só o dinheiro conta… Sabe o que o irritou? Eu não quis dar a ele os mil francos de papai, ano passado, quando recebi a herança. Avisou que isso ia me causar desgraça… Foi quando fiquei doente. E desde então o mal não me largou mais. Isso mesmo! Começou logo depois! 

O rapaz compreendeu e, impressionado pela morbidez que o sofrimento dava às ideias da tia, tentou dissuadi-la. Mas ela teimava com um movimento da cabeça, como alguém absolutamente convencido do que diz. Ele então acabou dizendo: 

− Pois, nesse caso, é simples! Para acabar com isso, dê a ele os mil francos! 

Num extraordinário esforço pôs-se de pé, ressuscitada, violenta: 

− Meus mil francos? Nunca! Prefiro morrer… Estão escondidos, bem escondidos, fique sabendo! Podem virar a casa de cabeça para baixo, duvido que encontrem… Aliás, ele já a revirou um bocado, o espertinho! Bem que o ouvi, à noite, batendo nas paredes. Vai procurando, vai procurando! Só o prazer de ver essa frustração já basta para que eu aguente… Vamos ver quem desiste primeiro, ele ou eu. Estou atenta, não engulo mais nada em que ele toque. Se mesmo assim eu me for, que seja! Ele, de qualquer forma, não terá meus mil francos! Prefiro deixar tudo para a terra. 

Sacudida por novo toque de buzina, ela afundou outra vez na cadeira, exausta. Era Misard, que à porta do seu posto de cantoneiro assinalava agora um trem na direção de Le Havre. Apesar da obstinação em que Phasie se trancava, para não entregar a herança, tinha um medo secreto do marido, um medo crescente, o medo que o colosso sente diante do inseto que o devora. E o trem anunciado, um trem parador saído de Paris às doze e quarenta e cinco, ainda estava longe, se aproximando com um rugido surdo. Ouviu-se quando ele saiu do túnel, resfolegando ainda mais alto ao ar livre. Em seguida passou, no estardalhaço das rodas e aquela massa de vagões, com sua força invencível de tufão. 

De olhos erguidos para a janela, Jacques viu o desfile dos quadradinhos de vidro, nos quais se podia distinguir o perfil dos viajantes. Querendo desviar o rumo das ideias sombrias da tia, disse em tom de brincadeira: 

− Madrinha, a senhora reclama de nunca ver ninguém nesse buraco… Mas olhe quanta gente! 

Ela não entendeu de imediato, surpresa. 

− Como assim, gente?… Ah, estou vendo! Gente que passa. Grande coisa! Gente que não conheço, com que não posso conversar. 

Ele continuou a rir. 

− A mim você conhece bem e me vê sempre passar. 

− No seu caso, é verdade, conheço e sei o horário do seu trem. Fico de olho na locomotiva, mas tudo se passa rápido, tão rápido! Ontem fez assim com a mão. Só que não posso responder… Não, realmente, não é uma maneira de se ver o mundo. 

No entanto, aquela ideia da multidão que os trens, indo e vindo, diariamente carregavam bem ali, à frente dela, no grande silêncio da solidão, deixou-a pensativa, olhando a estrada de ferro, na noite que caía. Quando ainda estava bem, andando de um lado para outro, e se plantava diante da cancela, com a bandeirinha na mão, não pensava nesse tipo de coisa. Agora devaneios confusos, mal formulados, se embaralhavam na cabeça, desde que passava os dias naquela cadeira, tendo como reflexão somente a luta surda que travava contra o próprio marido. Isso lhe parecia estranho, viver perdida no fundo daquele deserto sem ter uma alma à qual se confiar, enquanto, de dia e de noite, continuamente, desfilavam tantos homens e mulheres no fragor dos trens, sacudindo a casa e se afastando a todo vapor. É claro que a Terra inteira passava por ali, não só franceses, também estrangeiros, pessoas dos lugares mais distantes, já que ninguém mais era capaz de ficar em casa e todos os povos, como agora se dizia, em breve seriam um só. Era isso o progresso: todos irmãos, rodando juntos, para longe, rumo à terra de leite e de mel. Ela tentava contá-los, tirando a média, imaginando tantos por vagão: era uma quantidade enorme, que ultrapassava a sua capacidade. Às vezes achava reconhecer alguns rostos, o de um senhor de barba alourada, provavelmente inglês, que toda semana fazia a viagem a Paris, e o de uma senhora morena, passando regularmente às quartas e sábados. Mas o trovão os levava embora, ela não tinha certeza de tê-los visto, todos os rostos se apagavam e se confundiam, iguais, dissipando-se uns nos outros. A torrente seguia, sem deixar nada de si. E o que a entristecia era que, por baixo daquele fluxo contínuo, sob o desfile de tanto conforto e tanto dinheiro, ninguém naquela multidão tão sôfrega sabia da sua presença ali, em perigo de vida. E isso a tal ponto que, se o marido a eliminasse uma noite, os trens continuariam a passar próximo ao seu cadáver, sem a menor noção do crime ocorrido no interior daquela casa solitária. 

Phasie manteve os olhos grudados na janela e tentou resumir uma explicação para o que muito vagamente sentia: 

− Ah, é uma bela invenção, não se pode dizer o contrário. Anda-se mais rápido, sabe-se mais… Mas bestas selvagens continuam bestas selvagens; e por mais que inventem mecânicas melhores, ainda assim haverá bestas selvagens lidando com elas. 

Mais uma vez Jacques balançou a cabeça, mostrando concordar com a tia. Há alguns segundos ele olhava Flore, que abria a cancela para uma carroça da pedreira, carregada com dois enormes blocos de pedra. Aquela estrada servia apenas às pedreiras de Bécourt, de forma que, à noite, a cancela era acorrentada, sendo muito raro a moça precisar ser acordada. Vendo-a familiarmente conversar com o carroceiro, um homenzinho moreno, ele exclamou: 

− Como? Cabuche está doente, para que o primo Louis guie os cavalos? Pobre Cabuche! A senhora o vê sempre, madrinha? 

Ela ergueu as mãos sem responder, com um grande suspiro. Tinha sido todo um drama, no outono passado, que em nada tinha ajudado a sua recuperação: a filha Louisette, a caçula, trabalhava como criada na casa da sra. Bonnehon, em Doinville, e fugiu certa noite, apavorada e muito machucada, indo morrer na cabana do seu amigo Cabuche, em plena floresta. Circularam algumas histórias, acusando de violência o presidente Grandmorin, mas ninguém se atrevia a repetir em voz alta. Ela própria, que era mãe, mesmo sabendo do que se tratava, não gostava de tocar no assunto. No entanto, acabou dizendo: 

− Não, ele não vem mais, se tornou verdadeiro bicho do mato… A pobre Louisette, tão bonitinha, tão branca, tão meiga! Era boa comigo, teria cuidado de mim, enquanto Flore, Deus do céu! Não estou reclamando, mas com certeza tem alguma coisa de errado, faz só o que lhe dá na cabeça e desaparece por horas. É cheia de orgulhos e, além disso, violenta! Tudo isso é triste, bem triste. 

Ouvindo, Jacques continuava a seguir com os olhos o carroceiro, que naquele momento atravessava a linha. Mas as rodas se complicaram nos trilhos e ele precisou usar o chicote, enquanto Flore gritava, atiçando os cavalos. 

− Diabos! – exclamou o rapaz. – Não pode um trem chegar agora… Seria um massacre! 

− Quanto a isso não tem perigo – continuou tia Phasie. – Flore pode às vezes ser esquisita, mas sabe o que faz e abre o olho… Graças a Deus, há cinco anos não temos acidente. Antes, um homem foi estraçalhado. Na nossa área, tivemos apenas uma vaca que quase descarrilhou um trem. Pobre animal! O corpo ficou aqui e a cabeça foi parar lá perto do túnel… Mas com Flore, podemos dormir sossegados. 

O carroceiro já havia atravessado e afastavam-se os sacolejos profundos das rodas nas beiradas do caminho. Phasie voltou então à sua preocupação constante, centrada na saúde, tanto dos outros quanto dela mesma. 

− E você, as coisas estão realmente boas, agora? Você se lembra, quando vivia conosco, dos problemas que tinha e dos quais o doutor não entendia nada? 

Voltou aquela vacilação inquieta do olhar de Jacques. 

− Estou muito bem, madrinha. 

− Mesmo? Desapareceu tudo? Aquela dor que atravessava a sua cabeça, por trás das orelhas, e os acessos bruscos de febre, a tristeza que o levava a se esconder como um bicho, no fundo da toca? 

À medida que ela falava, Jacques ia se sentindo cada vez mais perturbado, num tal malestar que acabou se vendo forçado a claramente interrompê-la. 

− Garanto que estou muito bem… Não tenho mais nada, nada mesmo. 

− Que bom, melhor assim, garoto!… Não seria por você estar mal que eu me curaria. Além disso, na sua idade, o normal é ter saúde. Ah, nada melhor do que a saúde! Foi muito amável ter vindo me visitar, em vez de ir se divertir na cidade. Não é mesmo? Vai jantar conosco e dormir lá em cima no sótão, ao lado do quarto de Flore. 

Mas outra vez o som da buzina interrompeu a conversa. A noite havia caído e os dois, voltando-se para a janela, só confusamente distinguiram Misard falando com outro homem. As seis horas acabavam de soar, ele passava o serviço ao substituto, o sinaleiro da noite. Ia finalmente estar livre, depois de doze horas naquela cabana, tendo apenas uma mesinha, sob a prateleira dos aparelhos, um banquinho e um fogão aquecedor, cujo calor intenso o obrigava a manter quase o tempo todo a porta aberta. 

− Pronto, ele vai voltar! – murmurou tia Phasie, voltando a ter medo. 

O trem anunciado vinha chegando, bem pesado e comprido, numa barulheira cada vez mais alta. O rapaz precisou se curvar para que a doente o ouvisse. Comovia-se com o estado miserável em que a via e queria lhe dar algum alívio. 

− Ouça, madrinha, caso ele realmente tenha más intenções, talvez mude de ideia, sabendo que estou envolvido… Seria melhor que confiasse a mim os mil francos. 

Ela novamente se revoltou. 

− Meus mil francos! Nem a você nem a ele! Já disse que prefiro morrer! 

Nesse instante, o trem passou com a sua violência de tempestade, como se varresse tudo à frente. A casa tremeu, resistindo à rajada de vento. Era um comboio que seguia para Le Havre muito carregado, pois no dia seguinte, domingo, haveria festa de lançamento ao mar de um novo navio.[5] Apesar da velocidade, pelos vidros iluminados podia-se ver que os compartimentos estavam cheios, com fileiras alinhadas de cabeças, uma ao lado da outra, perfiladas. Sucediam-se e desapareciam. Quanta gente! Ainda uma multidão, multidão sem fim, no rufar dos vagões, do apito dos aparelhos, da sinalização do telégrafo, do toque dos sinos! Era como um corpo enorme, um ser gigantesco deitado no chão, com a cabeça em Paris, as vértebras ao longo da linha, os membros se expandindo pelos entroncamentos, os pés e as mãos em Le Havre e outras estações de chegada. E essa criatura passava, passava, mecânica, triunfante, seguindo para o futuro com uma retidão matemática, ignorando obstinada o que sobrava de gente, daqueles que ficavam nas duas margens, ocultos e vivos, em eterna paixão e eterno crime. 

Foi Flore quem entrou primeiro. Acendeu uma pequena lamparina a querosene, sem quebra-luz, e pôs a mesa. Não se trocou uma palavra, ela apenas lançou um rápido olhar na direção de Jacques, que estava de pé e de costas, diante da janela. No fogão, uma sopa de repolho se mantinha quente. Já estava sendo servida quando Misard apareceu. Não demonstrou surpresa ao ver o rapaz. Talvez o tivesse percebido ao chegar, mas nada perguntou, sem qualquer curiosidade. Um aperto de mão, três palavras rápidas e nada mais. Jacques precisou repetir, por iniciativa própria, a história da biela quebrada e sua vontade de visitar a madrinha e passar a noite. Misard se contentava em menear a cabeça, aprovando tudo aquilo. Sentaram-se e comeram sem pressa, em silêncio. Phasie, que desde a manhã não havia tirado os olhos do caldeirão em que fervia a sopa de repolho, aceitou um prato. O marido se levantou e pegou para ela sua água férrea,[6] que Flore havia esquecido, uma garrafa com alguns pregos dentro e na qual a doente nem tocou. Sempre humilde, frágil e com uma tosse persistente, ele não parecia notar os olhares ansiosos com que a mulher seguia seus menores movimentos. Ela pediu sal, que não tinha sido posto na mesa, e ele observou que fazia mal salgar tanto a comida. Era o que a deixava naquele estado. Mas se levantou e trouxe uma pitada numa colher, que foi aceita sem desconfiança, uma vez que o sal purifica tudo, dizia ela. Falou-se do tempo realmente ameno dos últimos dias e de um descarrilhamento que acontecera em Maromme. Jacques já estava se convencendo de que a madrinha inventava pesadelos acordada, pois nada via de suspeito no homenzinho solícito, de olhos vagos. Continuaram à mesa por uma hora. Duas vezes, ouvindo a buzina, Flore se retirou por um momento. Os trens passavam, balançavam os copos na mesa, mas ninguém prestava a menor atenção a isso. 

Novo toque de buzina e dessa vez Flore, que tinha acabado de tirar os pratos, não voltou mais. Havia deixado a mãe e os dois homens à mesa, com uma garrafa de aguardente de sidra. Os três lá ficaram por mais meia hora. Em seguida Misard, que há algum tempo fixava olhos perscrutadores num ângulo da sala, pegou seu boné e saiu, dizendo apenas boa-noite. Praticava pesca ilegal em riachos das redondezas, que tinham ótimas enguias, e nunca se deitava sem antes ir ver as armadilhas colocadas. 

Assim que se retirou, Phasie olhou firmemente o afilhado. 

− E agora, acredita? Não viu que ficava olhando aquele canto ali?… Acha que posso ter escondido o dinheiro atrás do pote de manteiga… Não sou boba! Tenho certeza de que hoje à noite vai olhar atrás do pote, para confirmar. 

Mas começou a ter suores e o tremor agitou seus membros. 

− Veja só, de novo! Ele me deu alguma coisa, estou com um gosto ruim na boca como se tivesse engolido moedas velhas. E Deus sabe que não aceitei nada que viesse dele! Dá vontade de desistir… Essa noite não aguento mais, é melhor ir me deitar. Vou me despedir logo, meu filho, pois se for sair às sete e vinte e seis será cedo demais para mim. Mas você volta, não é? Vamos esperar que eu ainda esteja por aqui. 

Ele precisou ajudá-la a chegar ao quarto e ela se deitou e dormiu, agitada. Sozinho, ficou na dúvida, achando que devia subir e ir descansar também, no canto previsto no celeiro. Mas eram apenas dez para as oito e teria muito tempo para dormir. Resolveu então sair, deixando arder a luz do querosene na casa vazia e adormecida, sacudida de vez em quando pelo brusco estrondo dos trens. 



Notas: 

[1] Jacques é filho de Gervaise Macquart e Auguste Lantier, que têm sua triste história contada em L’Assommoir, sétimo volume da saga dos Rougon-Macquart. 

[2] A École Nationale Supérieure des Arts et Métiers é hoje uma escola técnica de nível superior. Foi fundada em 1788 peloduque de La Rochefoucauld, precursor da difusão da máquina a vapor na França. Com a crescente industrialização, a Escola foi se especializando cada vez mais, mantendo sempre um espírito liberal, sendo malvista pelos meios mais conservadores. À época do romance, propunha-se a formar “chefes de ateliês e operários especializados nas artes particularmente úteis às indústrias da madeira e do ferro”, segundo o seu programa. 

[3] Os sinaleiros eram encarregados de fechar a passagem atrás de cada trem e telegrafar avisando a proximidade de suachegada ao posto subsequente, para então reabrir a via ao trem seguinte. 

[4[ Pequeno carro mecânico usado em manobras, para transporte de material ou socorro. 

[5] Le Havre é o segundo porto mais importante da França (sendo Marselha o primeiro) e o principal para as ligações com asAméricas. No séc.XIX contava também com importantes estaleiros navais. 

[6]Água em que se esfriava um ferro em brasa ou deixavam-se enferrujar pregos; era considerada revigorante. 





(A besta humana; tradução e notas de Jorge Bastos) 



(Ilustração: Claude Monet)


segunda-feira, 13 de julho de 2020

. ÁLBUM DE FAMÍLIA II: O HOMEM QUE COMEU MINHA MÃE, de Vlado Lima

1

 




o homem que comeu minha mãe -

o primeiro -

era moreno

meio mouro

meio bugre

o cabelo preto muito preto

e uma lábia de vendedor de enciclopédias



o homem que comeu minha mãe

chegou no lombo de uma Caloi

cowboy nordestino

de sapato bico fino

calça pantalona

brilhantina no cabelo

e uma peixeira calibre 22

minha mãe caminhou sobre as águas

tocou banjo com anjos alcoólatras

e passou merthiolate nas chagas de Cristo



o homem que comeu minha mãe

foi embora no intervalo de um Corinthians e Bangu

disse que ia comprar cigarros

e desapareceu numa nuvem de gafanhotos

minha mãe desceu à mansão dos mortos

lambeu as sarnas de Cérbero

e pariu crisântemos nas vielas do inferno

virou uma bruxa chocha com o coração de jiló

que em noites de TPM cospe relâmpagos de sal



às vezes a velha olha através de mim

: tu és a cara do teu pai!






(Ilustração: Gerardo Sacristán Torralba,1929)





sexta-feira, 10 de julho de 2020

SERÁ QUE JOHN CONHECIA TANTA GENTE?, de Maggie O’Farrell








Ainda não consigo acreditar que você foi embora. Antes, eu acordava e ficava pensando por que sentia essa dor no peito e por que meu travesseiro estava molhado. 

Esquecia que era um absurdo para mim viver sem você. Absurdo. 

Mas você morreu. E sem nenhuma razão. 

Uns dias depois da sua morte, os jornais publicaram uma foto do homem que colocou a bomba que acabou com a sua vida. Ele também morreu, era um rapaz jovem, mais jovem que você. Minha família tentou esconder o jornal de mim naquela época, mas eu vi e não senti raiva dele. Tive vontade de falar com o pai e a mãe dele e perguntar como se sentiam. Se estavam se sentindo como digo a mim mesma que eles estão se sentindo. 

Alguém pôs Annie no meu colo. Fico surpresa. Acho que nunca vi ninguém fazer isso. Deve ter sido Kirsty. Viro minha cabeça para a direita. Kirsty também está sentada no banco de trás do carro, olhando pela janela, e nosso pai está entre mim e ela. Minha mãe dirige agarrada ao volante, as mãos cheias de anéis. Ela detesta dirigir em Londres. Beth está ao seu lado. Eu me pergunto vagamente onde estará Neil. Tenho certeza de que o vi antes com o bebê. Jamie. Sinto calor. Estou usando umas roupas engraçadas. Tomei um banho hoje de manhã quando voltei para o quarto, e vi minha mãe junto da janela tirando as etiquetas de uma saia e um casaco novos, murmurando com raiva: 

— Se você vai se encontrar com aqueles cretinos, então vou garantir que você cause uma boa impressão. 

A saia é de lã preta, e a felpa da lã pinica minha pele; as mangas do casaco são curtas demais e a saia tem um comprimento estranho. É justa na altura dos joelhos e eu tenho de dar passos miúdos quando ando. Estou me sentindo esquisita com essas roupas. 

Inclino-me para a frente, minha cabeça encostando na de Annie, e giro a maçaneta da janela algumas vezes. O alto da janela desce, e um jato de ar gelado entra pela fresta. Annie fica rígida nos meus braços, os olhos azuis amendoados muito abertos. Levanta um braço e enfia os dedinhos flexíveis na fresta, mas tira-os imediatamente e põe a mão no peito. Eu dobro meus dedos em volta dos dela. 

— Estava muito frio? — pergunto. 

De súbito, todos no carro viram-se para mim. 

— O que você disse? 

— O que foi? 

— Desculpe? 

— Como? 

— Você disse alguma coisa? — falam todos ao mesmo tempo. 

Olho para Annie. Seu cabelo, crescendo como palha no crânio frágil, é louro esbranquiçado como seda crua. Não me lembro quando foi que ouvi minha voz pela última vez. Limpo a garganta para tentar falar mais, porém meus lábios se juntam e eu digo o nome dele dentro da minha cabeça: John. E digo depois: ele está morto. 

Os olhos de Annie viram para um lado e para o outro, olhando para as ruas por onde passamos. De repente ela levanta o braço de novo e tensiona todo o corpo com o esforço. Os nós de seus dedos têm covinhas e ela estica o dedo indicador. 

— Olo! — exclama com cuidado, olhando para mim como que esperando confirmação. 

Faz-se uma pausa. 

— Ela está dizendo cacholo — explica Kirsty. — Diz isso sempre que vê um cachorro. 

Eu olho pela janela. A menos de um metro de nós, um casal está passeando na calçada. O homem deslizou a mão para dentro do bolso de trás do jeans da mulher, mas ela está zangada, de sobrancelha franzida. Vira-se para ele, falando aos solavancos, e a cada gesticulação sua o braço preso no bolso do seu jeans balança como se fosse uma marionete. Trotando ao lado deles, com uma tira de couro vermelha na boca, indiferente às manifestações de raiva, vem um cachorro marrom peludo. 

O carro continua. Estico a cabeça para ver os dois, e antes de virarmos em uma esquina, vejo que continuam discutindo. Pararam de andar, e ele tirou a mão do bolso da mulher. Não vejo mais nada. Annie virou-se e está me olhando atentamente. Ela não me vê com muita frequência. Aperta meu queixo com a ponta do indicador. Uma das minhas lágrimas rola pelo seu dedo, pela sua mão e pela manga do seu suéter. Ela puxa a mão e dá uma espiada na manga do suéter. 

O carro para e todos descem. Eu destranco a porta e fico agarrada a Annie. Tenho de dobrar os joelhos e me debruçar para a frente para não bater com a cabeça na porta do carro. Percebo um movimento súbito entre as pessoas que estão na calçada e ouço um som abafado quando meus pés pisam no chão. Estou rodeada de gente que se acotovela, fazendo perguntas e tirando fotos. 

— Sra. Friedmann, tem algum comentário para fazer sobre a morte de seu marido? 

— É verdade que John estava brigado com a família? 

— Alice, esse bebê é seu? É filha de John Friedmann? 

— Alice, pode olhar para este lado? 

Protejo a cabeça de Annie com a mão. Ela se agarra à gola da minha blusa com tanta força que acho que vou ficar sem ar, e seus gritos penetram nos meus ouvidos. Então alguém — um amigo de John do jornal, que apareceu não sei de onde — manda essa gente embora e me puxa pelo braço. Entramos por uma porta, Beth vem para o meu lado, Annie me larga e meu pai me dá a mão. Fica tudo muito silencioso de repente. 

O caixão é um choque. Ali está ele, digo a mim mesma, seu corpo está debaixo daquela madeira. Acho muito importante examinar tudo em detalhes, passar a mão e sentir a granulosidade e os veios da madeira. Estou perto do caixão, posso ver os grandes pregos de cobre fechando a tampa. Sinto uma sufocação no peito. Ponho-me a pensar que tipo de chave de fenda seria preciso para tirar esses pregos, e chego mais perto, muito perto; minha mão está quase tocando a madeira quando alguém me puxa pela outra mão. Intrigada, olho em volta e vejo que meu pai ainda está me segurando. 

— Por aqui, Alice — diz ele — Vamos nos sentar. 

Mas... 

— Vamos — repete ele gentilmente. 

Estou muito perto agora. Mais dois passos e posso passar a mão no caixão. Ele será macio? Será quente? Vou poder encostar o rosto nele? Olho para meu pai. Não seria difícil me desvencilhar dele e dar esses dois passos. Mais adiante, posso ver minha família sentada na primeira fila, todos me olhando ansiosos. Neil está lá também, com Jamie nos braços. Mais adiante ainda há um bando de rostos, muitos rostos — será que John conhecia tanta gente? — me olhando de lado. De repente penso que entre eles talvez esteja o pai de John. Deixo meu pai me levar e sento entre ele e minha mãe. Talvez me deixem tocar no caixão mais tarde. 

Ouço minha própria respiração, inspirando e expirando, meus pulmões enchendo-se e soltando o ar na atmosfera. Imagino o ar entrando em mim como uma luz enchendo um espaço escuro. Então, sem querer, vejo que estou pensando como seria tentar respirar com o corpo coberto de poeira e dióxido de carbono, ou tentar respirar com toneladas e mais toneladas de concreto e metal por cima. Ele teria morrido logo ou ficado consciente durante horas, lutando para respirar, esperando que alguém o salvasse? A polícia não soube dizer. Sinto de novo aquele pânico subindo pelo meu estômago, olho firme para o homem que está à minha frente e me concentro no que ele está dizendo para não gritar. 

É Sam, um amigo de John dos tempos da universidade, que fala sem parar; quando começa uma frase, estica as mãos e abre os dedos como pétalas; quando termina, junta as mãos de novo. Para dentro e para fora, para dentro e para fora. Fico observando-o, mas não ouço nada porque não quero ouvir, porque nada disso me interessa, nada vai trazer John de volta e nada do que digam irá mudar o fato de que John está deitado naquele caixão e que eu quero ir lá tocar nele. Ouço Annie exclamar alguma coisa e Kirsty falar baixinho para ela se calar — a pobrezinha deve estar aborrecida. Então ouço Sam mencionar meu nome, é como uma agulha passando por um disco arranhado, e tenho medo dessas pessoas quererem que eu vá até lá dizer alguma coisa, pois não sei o que eu poderia dizer, não sei o que há a dizer, só quero passar a mão naquele caixão pelo menos uma vez; eu me armaria de coragem e não choraria nem faria uma cena diante de toda aquela gente, pois é isso que preocupa meus pais, eu sei. Diante do pai dele. 

O pai dele. Começo a me mexer na cadeira. Quero ver o pai dele. Examino todos aqueles rostos um a um. Conheço todas aquelas pessoas. Algumas sorriem e outras meneiam a cabeça. Uma delas acena para mim. Eu não me manifesto — e me sinto mal de ignorá-las —, pois só quero olhar para ele. Só quero ver quem ele é, quero que ele olhe para mim e pense, essa é a Alice. 

Minha mãe puxa-me pela manga e sussurra "Alice", e eu sei que ela quer que eu me vire e me sente direito na cadeira, mas eu não quero. Do outro lado da sala, numa parte mais estreita, vejo um grupo de pessoas que não conheço. É a família de John. Sei que é. Seis ou sete pessoas. Quatro são homens de meia-idade, de sobretudos escuros. Noto que estou procurando alguém que se pareça com John, estou procurando um homem mais velho que se assemelhe a ele, mas tudo em vão. 

Uma colega de trabalho de John lê um poema. Ouço as pessoas soluçarem na sala e meu pai, ao meu lado, pôr a mão na testa. É engraçado, eu costumava brincar com John dizendo que aquela mulher tinha uma queda por ele. Já estou para me virar de novo para olhar a família de John quando ouço um som eletrônico estranho. Umas rodinhas debaixo do caixão giram, e o caixão passa lentamente por uma abertura na parede oculta atrás de uma cortina. 

Ninguém tinha me dito que isso iria acontecer. 

Dou um pulo, mal me aguentando nas pernas, mas imediatamente meus pais me seguram e me fazem sentar de novo. 

— Não! Não, por favor, eu só quero... — digo, tentando me desvencilhar deles. 

Meus pais estão esmagando minhas mãos, e eu vejo com horror o caixão entrar lentamente no buraco e desaparecer. Então solto as mãos para cobrir o rosto. Tapo os olhos durante muito tempo porque não quero ver nada nunca mais. 



(Depois que você foi embora; tradução de Vera Whately) 



(Ilustração: Larry Rivers. The Burial, 1951)