sábado, 28 de maio de 2022

AO LUAR, de Auta de Souza

 







(A Maria Fausta e a Mercês Coelho)



Astros celestes, docemente louros,

Giram no espaço, em luminoso bando;

Ouve-se ao longe um violão plangente

E, mais além, n’um soluçar dolente,

Canções serenas, ao luar voando.



Quanta tristeza pela noite clara!

Quanta saudade pelo azul boiando!

Cuida-se ouvir, n’um dolorido choro,

As preces tristes de um magoado coro

De almas penadas ao luar rezando.



O céu parece uma igrejinha antiga

Que a lua branca vai alumiando...

E essas estrelas, muito além dispersas,

São rosas brancas no Infinito imersas,

Monjas benditas, ao luar chorando.



Os pirilampos, pelas moitas tristes,

Voam, calados e sutis, brilhando...

Lembram descrenças, a bailar sombrias,

Ilusões mortas de esquecidos dias,

Almas de loucos, ao luar passando.



Flocos de nuvens pela Esfera adejam,

Barcos de neve pelo Azul formando...

Semelham preces que se vão da terra,

Almas mimosas, que este mundo encerra,

De criancinhas, ao luar sonhando.



Eles parecem também velas brancas

Soltas, à toa pelo mar vogando...

Leves e tênues, a correr imensas,

Folhas de lírios pelo Ar suspensas,

Aves saudosas, ao luar chorando.



Ai! quem me dera ser também criança!

Ai! quem me dera andar também voando!

Fazer dos astros um barquinho amado,

N’ele vagar por todo o Céu dourado,

As minhas dores ao luar cantando!



(Horto, 1900)



(Ilustração: Paul Klee - full moon)

quarta-feira, 25 de maio de 2022

A DECISÃO E A MORTE, de Ernesto Sábato





O morrer, essa intangível ação que se cumpre obedecendo,

ocorre para além da realidade, em outro reino.

M. Zambrano 

Cada hora do homem é um lugar vivo da nossa existência que ocorre uma única vez, insubstituível para sempre. Nisso reside a tensão da vida, sua grandeza, a possibilidade de que a incapturável fugacidade do tempo seja preenchida de instantes absolutos, de tal maneira que, ao olhar para trás, o longo percurso se mostre como um desfiar de dias sagrados, inscritos em diferentes tempos ou épocas.

Deter a vida, seu inefável transcurso, não apenas é impossível, mas, se o fizéssemos, cairíamos na mais negra das depressões; nossos dias passariam carentes de qualquer transcendência, teríamos tempo de sobra e poderíamos desperdiçá-lo banalmente, já que nada de essencial estaria em jogo. A vida do homem se reduziria à felicidade que ele conseguisse forjar, como se a mais grandiosa das existências fosse a que mais se assemelhasse a um cruzeiro num navio de luxo.

Penso que o essencial da vida é a fidelidade ao que acreditamos ser nosso destino, que se revela nesses momentos decisivos, nessas encruzilhadas tão difíceis de suportar, mas que nos defrontam às grandes opções. São momentos muito graves, porque a escolha nos ultrapassa, não enxergamos à frente nem atrás, como se uma névoa nos cobrisse na hora crucial, ou como se tivéssemos que escolher a carta decisiva da existência de olhos fechados.

É um pouco essa a situação que estamos vivendo hoje, quando milhões de pessoas percebemos a urgência que nos reclama, mas não atinamos a divisar a luz que nos oriente. Unidos na entrega aos outros e no desejo absoluto de um mundo mais humano, resistamos. Isso bastará para esperarmos o que a vida nos deparar.

Desde jovem tenho vivido o embate da liberdade. Passei momentos de angústia sem saber o que fazer, sem compreender as consequências de uma escolha grave, diante da qual nunca pude avaliar os fatos com prudência. Lembro de mim como quem corresse um trecho por uma trilha perdida e em seguida voltasse atrás, sem achar o dado definitivo que provasse ser aquele um bom caminho. Pendulava à deriva, até o momento crucial em que a decisão me chegava à alma, e então eu avançava sem medir as consequências.

São os valores que nos orientam e presidem as grandes decisões. Infelizmente, pelas condições desumanas do trabalho, por educação ou por medo, muitas pessoas não se atrevem a decidir conforme sua vocação, conforme esse apelo interior que o ser humano escuta no silêncio da alma. E tampouco se arriscam a errar várias vezes. E, no entanto, a fidelidade à vocação, esse misterioso chamado, é o fiel da balança em que a existência é posta em jogo, quando se tem o privilégio de viver em liberdade.

Há momentos decisivos na vida dos povos, assim como na dos homens. Hoje estamos atravessando um desses momentos, com todos os riscos inerentes; mas toda desgraça é frutífera, quando o homem é capaz de suportar o infortúnio com grandeza, sem claudicar em seus valores.

Assim como a vida dos homens, as culturas atravessam períodos fecundos em que as horas de dor e de alegria se alternam sob o mesmo céu; os povos seguem o curso da vida com um olhar legado por gerações e incorporam as mudanças a um sentido que os transcende.

Este não é um desses momentos. Pelo contrário, é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta.

Nossa cultura vem dando sinais inequívocos da proximidade de seu fim. Vê-se permanentemente obrigada a reinventar notícias, modas ou novas variantes, porque nada do que extrai de si é perdurável, fecundo ou sanativo. Como quando uma pessoa está gravemente doente e o médico lhe receita um remédio novo a cada dia, e a família, em seu desespero, muda repetidas vezes de médico e de tratamento. É isso que está acontecendo conosco, confundimos notícia com novidade. O decisivo é não acreditar que tudo continuará igual nem que este modo de vida ainda há de durar muito mais.

A capacidade de persuasão de nossa civilização é quase nula e se limita a convencer as pessoas da excelência de suas bugigangas, oferecidas no mercado aos milhões, sem levar em conta a imensidão do lixo produzido a cada hora e que a terra não pode assimilar. A globalização, que tanta amargura me causou, tem sua contrapartida: não existe mais a possibilidade de os povos nem as pessoas fazerem as coisas por conta própria. O momento é decisivo não para este ou aquele país, mas para a terra inteira. O destino pesa sobre nossa geração, é essa nossa responsabilidade histórica.

Estes tempos modernos do Ocidente, hoje em sua fase terminal, legaram aos homens uma cultura que lhes deu amparo e orientação. Sob seu firmamento, os seres humanos atravessaram com euforia momentos de esplendor e sofreram com integridade guerras e misérias atrozes. Hoje a duras penas começamos a aceitar sua morte, seu necessário inverno, sabendo que foi construída com o empenho de milhões de homens que lhe dedicaram sua vida, seus anos, seus estudos, a totalidade de suas horas de trabalho e o sangue de todos os que caíram, com sentido ou inutilmente, para o bem ou para o mal, durante cinco séculos.

A modernidade começou com o Renascimento, um tempo inigualável em criações, inventos e descobertas. Foi uma etapa que, como a infância, ainda se desenvolvia sob o olhar de seus predecessores. Sua verdadeira independência veio com o racionalismo.

Os caminhos da cultura humanista foram percorridos até o abismo. Aquele homem europeu que entrou na história moderna cheio de confiança em si mesmo e em suas potencialidades criadoras agora sai dela com a fé em farrapos.

Estamos indubitavelmente diante da mais grave encruzilhada da história, pois é impossível continuar avançando pelo mesmo caminho. Faz tempo que o sentimento humanista da vida perdeu seu frescor; no interior dele rebentaram contradições destrutivas: o ceticismo minou seu ânimo. A fé no homem e nas forças autônomas que o sustentavam foi profundamente abalada. As altas torres desabaram. Demasiadas esperanças ruíram no coração dos homens. Era o destino do ser humano buscar sua supremacia e sua independência? Esta hora já estaria inscrita nos papiros da eternidade?

Confesso que durante muito tempo acreditei e afirmei que este era um tempo final. Por causa dos fatos que chegam ao meu conhecimento ou do meu próprio estado de espírito, por vezes volto a ter pensamentos catastróficos, que não deixam lugar para a existência humana sobre a terra. Mas por vezes, ao contrário, a capacidade da vida para encontrar brechas onde voltar a criar me deixa pasmo, como quem percebe que a vida nos ultrapassa, superando tudo o que podemos pensar sobre ela.

Sei que esta carta irritará muita gente, eu mesmo a teria repudiado anos atrás, quando confundia resignação com aceitação. Resignar-se é uma covardia, é o sentimento que justifica o abandono daquilo pelo qual vale a pena lutar; de certo modo, é uma indignidade. A aceitação é o respeito pela vontade do outro, seja ele um ser humano ou o próprio destino.

Não nasce do medo, como a resignação; é como um fruto.

Não sei se alguém antes de Berdiaev previu que teríamos uma nova Idade Média. Seria possível, e também sanativo. De fato, parece haver elementos que indicam semelhanças com o início daquele período, como por exemplo o estado de degradação do poder de Roma, onde o cuidado na eleição dos sucessores do César decaiu até a irresponsabilidade, o que é um grave sintoma, ou a tendência à enfeudação diante das ameaças externas. Naquele tempo, assim como agora, não havia segurança e a violência dizimava aqueles que não estavam protegidos entre muralhas. Também a drástica divisão entre poderosos e pobres, a crescente religiosidade. Na época, as estradas foram cortadas; hoje teriam de ser os cabos, salvo que eles fossem “convertidos” e a televisão passasse a servir às pessoas.

Estamos habituados a sentir a Idade Média como uma noite, um tempo severo, austero, quando todo o esplendor da civilização romana foi apagado. Berdiaev diz:

A noite não é menos maravilhosa que o dia, não é menos divina, e o brilho das estrelas a ilumina, e a noite encerra revelações que o dia ignora. A noite é mais afim que o dia aos mistérios das origens. O abismo só se abre com a noite.

Para nossa cultura, a noite seria a perda dos objetos, que é a luz que nos ilumina.

Quem poderá nos guiar hoje? Onde estão esses seres humanos que, como Joana d’Arc ou o pequeno Davi, são capazes de transformar toda uma história valendo-se apenas de sua fé e sua coragem?

Assim como na morte individual algo ocorre no espírito, e é isso que permite a aceitação da morte, é importante que nossa cultura viva seu outono até o fim. Toda conversão, como a própria morte, implica uma passagem, um tempo para abandonar os traços do passado e aceitar a história assim como se aceita a velhice. Devemos tornar-nos cúmplices do tempo para que caiam os véus e a verdade simples se desnude. Se algo se deve aos homens, é a possibilidade de que a verdade amadureça e enfim se mostre por inteiro, sem as distorções da propaganda nem dos oportunismos.

Sinto entusiasmo ante essa possibilidade de encontrarmos outra maneira de viver. O que ajuda a tomar essa decisão é o sedimento acumulado de fatos isolados, que agora começam a se interligar, de imagens que nos surpreendem, de livros que lemos. As pessoas com que convivemos, um sentimento de pátria quando estamos no exílio. Algo diferente que se valoriza, que nos assombra e que sentimos como uma utopia capaz de nos aproximar. A mudança se dá quando nosso olhar não se dissocia dela.

Não podemos esquecer que nestes velhos tempos, já gastos em seus valores, há quem não acredita em nada, mas também há multidões de seres humanos que trabalham e permanecem à espera, como sentinelas. Na história, os cortes não são terminantes: nos estertores do Império Romano, seus cidadãos já freqüentavam seus vizinhos bárbaros e certamente já tinham amores com eles; do mesmo modo, os praticantes de outro modo de vida já estão entre nós. Hoje, assim como naquela época, há multidões de pessoas que já não pertencem a esta civilização, à civilização pós-moderna. Muitas estão tragicamente excluídas e muitas outras parecem ainda formar parte das instituições sociais, mas sua alma está prenhe de outros valores.

A passagem implica um passo atrás para que uma nova sensação do universo vá tomando o lugar da velha, assim como no campo se levantam os restolhos para que a terra nua possa receber a nova semeadura.

Quem dera nos apaixonássemos por essa passagem!

Quem dera, em vez de alimentarmos os caldos do desespero e da angústia, avançássemos com paixão, revelando um entusiasmo pelo novo que expressasse a confiança que o homem pode ter na própria vida, justamente o contrário da indiferença! Parar de erguer muros em volta de nós mesmos, desejar um mundo humano e já estar a caminho dele.

Como a luz da aurora que se pressente na escuridão da noite, a morte já está perto de mim.

É uma presença invisível.

Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento da morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.

Sua chegada não será uma tragédia como teria sido antes, pois a morte não me arrebatará a vida: já faz tempo que estou esperando por ela.

Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la.

Quando as pessoas me param na rua para me dar um beijo, para me abraçar, ou quando compareço a algum evento, como a Feira do Livro, onde uma multidão espera por mim durante horas e me cobre de afeto, uma invencível sensação de despedida nubla minha alma.

Cada vez dou menos importância aos exercícios racionais, como se já não tivessem muito a me dar. Como bem disse Kierkegaard, “a fé começa justamente onde termina a razão”. Há momentos em que navego mar adentro sem perguntas, sem reparar na chuva nem no frio. E outros em que me agarro a velhas sabedorias esotéricas, encontrando calor em suas antigas páginas como nas pessoas que me rodeiam e cuidam de mim. Sinto vergonha ao pensar nos velhos que estão sozinhos, abandonados ruminando seu triste inventário de perdas.

Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometeicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais.

Mas agora que a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime.

Esqueci grandes trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditam em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer.



(A Resistência; tradução de Sérgio Molina)




(Ilustração: Arnold Bocklin - La Chapelle)


domingo, 22 de maio de 2022

SÓ DE SACANAGEM, de Elisa Lucinda

 

 

    



Meu coração está aos pulos!

Quantas vezes minha esperança será posta à prova?

Por quantas provas terá ela ainda que passar?

Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam

entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo

duramente para educar os meninos mais pobres do que eu,

e para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus

pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e

eu não posso mais.

Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança

vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança

vai esperar no cais?

É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o

aprendiz, mas não é certo que a mentira de maus

brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao

conselho simples de meu pai, minha mãe, meus avós e

dos justos que os precederam: “Não roubarás”, “Devolva

o lápis do coleguinha”,

“Olha, esse apontador não é seu, minha filhinha”.

Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido

que escutar.

Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca

tinha ouvido falar e sobre a qual minha pobre lógica

ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao

culpado interessará.

Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do

meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear:

mais honesta ainda vou ficar.

Só de sacanagem!

Dirão: “Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo

o mundo rouba” e eu direi: Não importa, será esse

o meu carnaval, vou confiar mais, mais e outra vez. Eu, meu

irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a

quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.

Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o

escambau.

Dirão: “É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde

o primeiro homem que veio de Portugal”.

Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Ouviram?

Eu repito, ouviram? IMORTAL!

Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente

quiser, vai dar para mudar o final!




(Ilustração: Tarsila do Amaral - a cuca)

quinta-feira, 19 de maio de 2022

MODESTA PROPOSTA PARA EVITAR QUE AS CRIANÇAS DA IRLANDA SEJAM UM FARDO PARA OS SEUS PAIS OU PARA O SEU PAÍS, de Jonathan Swift


É um Foco de ira* para aqueles que andam por esta grande Cidade ou viajam para o Interior, quando veem as Ruas, as Estradas e as Soleiras das Casas abarrotadas de Mendigas seguidas por três, quatro ou seis Crianças, todas em trapos e importunando cada um dos Passantes por uma Esmola. Essas Mães, em vez de poderem trabalhar para seu sustento honesto, são obrigadas a empregar todo seu tempo em Perambulações para implorar sustento a suas Crianças desamparadas, que, à medida que crescerem, ou viram Ladrões por falta de trabalho, ou deixam sua Terra Mãe querida para lutar pelo pretendente na Espanha ou se vender aos Barbados.

Acho que é um consenso de todas as Partes que esse prodigioso número de Crianças nos Braços, nas Costas ou nos Calcanhares de suas Mães, e frequentemente de seus Pais é, do deplorável presente estado do Reino, um considerável malefício adicional; e, portanto, quem quer que pudesse encontrar um método justo, barato e fácil de tornar essas Crianças úteis e saudáveis Membros dos Bens-comuns, mereceria ter por parte do público a sua Estátua como preservador da Nação.

Mas minha intenção está muito longe de se limitar a prover apenas Filhos dos proferidos Mendigos. É de uma Extensão muito maior e deve englobar o Total de Crianças em determinada Idade, tanto nascidas de Pais efetivamente pouco capazes de sustentá-las, quanto aquelas que demandam a nossa Caridade nas Ruas.

Da minha parte, tendo debruçado meus pensamentos por muitos Anos sobre este Importante assunto, e tendo pesado maduramente as Propostas de outros Planejadores, Eu sempre os achei grosseiramente enganados em seus cálculos.

É claro que uma criança recém-saída de sua Mãe pode ser sustentada por seu Leite por um Ano Solar com um pouco mais de alimento, provavelmente com não mais do que a Quantia de dois Shillings, que a Mãe pode certamente conseguir, ou o valor em migalhas, por sua legal Ocupação de Mendigar. E é exatamente com um Ano de Idade que eu proponho olhar por elas de tal maneira que, em vez de serem um Fardo para seus pais, ou para a Paróquia, ou querendo Comida e Roupa para o resto de suas Vidas, elas deverão, pelo Contrário, contribuir para a Alimentação e em parte pelo Vestuário de muitos Milhares.

Há igualmente outra grande Vantagem em meu Projeto, que prevenirá aqueles Abortos Voluntários e aquela horrenda prática de Mulheres assassinando seus Filhos Bastardos infelizmente frequente demais entre nós, Sacrificando os pobres inocentes Bebês, desconfio que mais para evitar as Despesas do que a Vergonha, o que traz Lágrimas e Pena até ao mais Selvagem e desumano peito.

Sendo o número de Viventes neste Reino geralmente estimado em um Milhão e meio, desses calculo que deva haver mais ou menos duzentos mil Casais cujas Mulheres sejam Parideiras, número do qual subtraio trinta Mil Casais capazes de manter seus próprios Filhos, embora tema que possam não ser tantos, com as atuais Aflições do Reino. Mas, assim sendo, sobrarão cento e setenta Mil Reprodutoras. Novamente Subtraio cinquenta Mil, para aquelas Mulheres que abortam naturalmente ou cujas Crianças morrem por acidente ou doença durante o primeiro Ano de Vida.

Sobram apenas cento e vinte Mil Filhos de Pais Pobres nascidos anualmente.

Logo, a pergunta é: como serão criados e sustentados? Como já disse, nas atuais Circunstâncias, é terminantemente impossível pelos Métodos propostos até agora, pois não podemos empregá-los na Indústria ou na Agricultura; nem construímos casas (digo, no Campo) ou cultivamos Terra: eles raramente podem ganhar a Vida Roubando, antes de chegar aos seis Anos, a não ser que sejam muito Precoces, embora, confesso, eles aprendam os Fundamentos bem mais cedo. Durante este período, entretanto, podem ser considerados apenas Aprendizes, como fui informado por um cavalheiro dirigente no Condado de Cavan que me assegurou que nunca soube de mais de um ou dois Casos abaixo dos seis Anos, mesmo em uma parte do Reino tão conhecida pela mais ágil competência nesta Arte.

Foi-me assegurado por nossos Mercadores que um Garoto ou uma Garota antes dos doze anos não é uma Mercadoria vendável; mesmo quando atingem essa idade não rendem, na troca, mais do que três Pounds, ou três Pounds e meia Coroa, no máximo, o que não pode reverter em Lucro nem para os Pais ou para o Reino, pois O Custo em Alimentação e Trapos é de pelo menos quatro vezes este Valor.

Devo agora, portanto, humildemente expor meus próprios Pensamentos, que espero não sejam passíveis da menor Objeção.

Foi-me assegurado por um americano muito entendido, amigo meu em Londres, que uma Criancinha saudável bem tratada é, com um Ano, um Alimento delicioso e nutritivo, seja Cozida, Grelhada, Assada ou Fervida; e eu não tenho dúvidas de que serviria também em um Guisado ou um Ensopado.

Eu, então, humildemente ofereço à apreciação do público que das cento e vinte Mil crianças já calculadas, vinte Mil sejam reservadas para Reprodução, das quais um quarto seriam Machos, mais do que admitimos para Ovelhas, Bovinos ou Suínos. Meu Argumento é que essas Crianças raramente são Frutos do Matrimônio, uma Circunstância não muito levada em conta por nossos

Selvagens, sendo portanto um Macho suficiente para servir quatro Fêmeas. Que as cem Mil restantes, com a Idade de um ano sejam postas à Venda para pessoas de Boa Posição Social e Fortuna em todo o Reino, sempre aconselhando a mãe que as deixem Sugar abundantemente durante o último Mês, de modo que as entreguem Gordas e Rechonchudas para uma boa Mesa. Uma Criança daria dois Pratos em uma Recepção para os Amigos, e quando a família jantar sozinha, o Quarto dianteiro ou traseiro daria um Prato razoável. Temperado com um pouco de Pimenta ou Sal ficaria muito bom fervido no quarto Dia, especialmente no Inverno.

Calculei que uma criança recém-nascida pesa, em média, umas doze libras e que, em um Ano solar, se razoavelmente bem cuidada, aumentaria para vinte e oito libras.

Admito que esta comida será um tanto cara e, sendo assim, muito apropriada para Senhores de terra que, tendo já devorado a maioria dos pais, parecem ter maiores Direitos sobre os filhos.

A Carne de Bebê seria de Estação durante o Ano inteiro, porém mais abundante em março e um pouco antes e um pouco depois; porque foi dito por um sério Autor, proeminente Médico Francês, que sendo o Peixe um alimento prolífico, existem nos países Católico-Romanos mais crianças nascidas nove meses após a Quaresma do que em qualquer outra época; então, contando um ano após a Quaresma os Mercadores estariam mais cheios do que de costume, pois o número de Bebês Papistas** é pelo menos três para um neste Reino, tendo assim outra Vantagem, que seria a de diminuir o Número de Papistas entre nós.

Já avaliei o Custo para sustentar um Filho de Mendigo (onde incluo todos os Camponeses, Trabalhadores e quatro quintos dos Agricultores), que deve girar em torno de dois Shillings por Ano, Trapos incluídos. Acredito que nenhum Cavalheiro negaria Dez Shillings pela carcaça de uma Criança bem gorda, que, como eu já disse, dará quatro pratos de excelente Carne Nutritiva, quando ele só tivesse um Amigo íntimo ou sua própria Família para o jantar. Assim, o Dono das Terras aprenderá a ser um bom Senhor e se tornará popular entre seus Inquilinos, a Mãe terá Oito Shillings de Lucro líquido e estará apta para trabalhar até que produza outra Criança. Aqueles mais econômicos (e devo admitir que os Tempos pedem isso) poderiam esfolar a Carcaça; a Pele, Artificialmente tratada, daria admiráveis Luvas para as Damas e Botas de Verão para os finos Cavalheiros.

Nota

* Acreditava-se em quatro humores, sendo a Bile Negra um deles, que tornava a pessoa passível a ataque de ódio e ira, descritos como Melancholly.

 

(Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou Modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para o seu país; tradução de Clarah Averbuck)



(Ilustração: John Kenn Mortensen)


segunda-feira, 16 de maio de 2022

MADRIGALE / MADRIGAL, de Torquato Tasso

       




Qual rugiada o qual pianto

quai lagrime eran quelle

che sparger vidi dal notturno manto

e dal candido volto de le stelle?

E perché seminò la bianca luna

di cristalline stelle un puro nembo

a l’erba fresca in grembo?

Perché ne l’aria bruna

s’udìan, quasi dolendo, intorno intorno

gir l’aure insino al giorno?

Fur segni forse de la tua partita,

vita de la mia vita?



Tradução de Érico Nogueira:



Qual orvalho, ou qual pranto,

que lágrimas aquelas

que vi correrem do noturno manto

e do luzente rosto das estrelas?

E por que semeou a branca lua

nuvens negras de gotas cristalinas

à relva das colinas?

Por que na noite escura

se ouviram, como gritos, mundo afora

caçar o vento a aurora?

Foram sinais, talvez, de que partiste

e eu, mudo, fiquei triste?



(Ilustração: Rene Magritte)



sexta-feira, 13 de maio de 2022

O MASSAGISTA, de Toni Bentley

 




Esta cama é teu centro, estas paredes tua esfera.

JOHN DONNE



Meu primeiro caso começou uma semana depois do fim de meu casamento. É incrível o que dois telefonemas podem fazer: um terminou um relacionamento de dez anos e o outro marcou uma massagem de uma hora que deu início ao resto de minha vida.

O adorável massagista. Eu já tinha feito duas massagens com ele por causa de meu quadril lesionado, e tinha prendido a respiração para ocultar meu desejo: eu ainda era casada. Mas na massagem seguinte não era mais, e dei meu primeiro passo ousado. Eu sabia que ele era muito profissional para dar alguma abertura, então decidi que dependia de mim. Planejei antecipadamente que se (ha!) eu ficasse excitada de novo, diria alguma coisa ao fim da sessão — mas o quê? Eu não queria me causar embaraço; o risco era alto.

No fim daquela terceira massagem, pingando uma década de desejo sublimado, perguntei a ele de uma maneira generalizada: "Suas clientes ficam excitadas de vez em quando?"

"Ficam", ele arriscou, e levantou‐se da cadeira do outro lado da sala para voltar à mesa onde eu estava deitada. "Mas eu simplesmente deixo rolar."

Ele era jovem e bonito, com grandes olhos azuis e lábios carnudos e suaves, mas essa não era a fonte da minha atração. Eram aquelas mãos mágicas. Ele colocou uma abaixo da minha garganta e perdi toda a decência e o autocontrole. Ele não recuou; deslizou sua mão sob o lençol. Nas horas seguintes, aprendi como sua boca e sua língua guardavam a mesma corrente mágica de suas mãos, e pensei que morreria com o prazer que ele me deu.

Era um sonho de prazer, de amor — sim, amor, amor físico. E nada de foder, só lamber.

Quando ele saiu eu estava deslumbrada: nunca tinha sido tão receptiva. Meu clitóris tinha saído da hibernação, não se escondia mais, não se assustava mais, mas crescia, crescia para o contato direto com o paraíso. Pela primeira vez eu estava submissa a meus próprios orgasmos, tentando apenas sobreviver às contrações para ficar consciente apesar do prazer aniquilador.

Eu soube então que a decisão de deixar meu casamento e quebrar aqueles votos diante de Deus valera a pena. Tudo aquilo valera a pena por causa daquelas duas horas. Eu estava certa, claro, de que não aconteceria de novo.

Por que seria eu tão abençoada quando também me sentia tão culpada?

Culpa, prazer e o homem impossível: os ingredientes do êxtase sexual estavam vindo à tona.

Esperei a semana passar, contando os dias, e liguei para marcar outra massagem, sem esperar nada, querendo tudo. Pulei quando a campainha tocou: banhada, perfumada e obcecada. Aconteceu de novo. E de novo e de novo e de novo.

Um dia ele sugeriu algumas regras — ele tinha andado pensando, como eu, sobre como fazer essa coisa acontecer quando ela não deveria acontecer. Ele não brincava com clientes: eu era a primeira, então mantenha segredo, muito segredo.

Claro. Outra regra: nada de penetração. Sem problemas. "Nós vamos apenas brincar'', ele explicou, e entendi o que significava apenas brincar. Foder não era tão interessante para mim, de qualquer forma. Na melhor das hipóteses era uma recompensa oferecida por receber uma boa lambida. Agora lamber era a única atividade. E ele nunca, jamais, em todo o tempo que nos conhecemos, tirou os sapatos. Seus sapatos tornaram‐se nosso sinal mútuo de que ainda estávamos dentro dos nossos limites de decência. Mais ou menos.

Ele me presenteou com o primeiro sexo que jamais tive no qual eu pensava em palavras, que eu queria descrever e preservar em palavras. E então começou a escritura. Toda vez que ele vinha e ia embora, eu ia direto para meu caderno e escrevia tudo. Estava experimentando um prazer impossível, e tê‐lo no papel provaria que o impossível existia.

Eu sabia que algo profundo havia acontecido comigo: tinha me transformado daquela pessoa pequena, machucada, ferida e infeliz em um canal de prazer que era bem maior que eu, um prazer que não pertencia a mim, mas que eu podia sentir. E não podia experimentar isso em silêncio. Eu tinha de contar a alguma plateia desconhecida e indefinida. Talvez aquela plateia na verdade fosse eu mesma, meu ser inacreditavelmente ateísta escutando meu ser sexualmente transformado falar sobre esperança.

Ele beija minha barriga, entre minhas coxas, meus pelos púbicos. Finalmente, com uma língua muito suave, muito gentil, faz contato com minha boceta, meu clitóris. Meus olhos se abrem. Vejo seus adoráveis olhos, olhando para mim, a boca enterrada em minha xoxota. Meus joelhos abrem‐se 180 graus, meus pés pressionam os lados de seu peito, minha boceta é empurrada para dentro de sua boca, contato, contato, contato. Ele fica ali por muito tempo. Tenho muitos orgasmos pequenos e intensos. Ele move a língua e a boca rapidamente de lado a lado, depois para no ponto mais alto, no meu centro, um pequenino ponto onde está concentrado todo o meu ser de emoção, poder e amor. As pernas e a barriga entram em convulsão, contraem, vibram. Através dessa liberação eu sei que não terminou, não acabou. Possuída, rebento. Meu torso levanta‐se da mesa mais e mais, sua língua trabalha furiosamente, minhas pernas estão totalmente para cima, meus braços se debatendo. Estou chorando, gemendo, nunca antes tão consciente das lágrimas de alegria, de que alguém tenha sido tão bom comigo.


Toda vez que eu telefonava, o prazer era dado e recebido. Sua língua próxima, suave e rápida no meu clitóris tornou‐se o centro do universo. E dedos por toda parte — dedos no meu grelo, dedos na minha boceta, dedos no meu cu — quantas ramificações pode ter um homem? Parei de dar gorjetas a ele. Mas paguei uma série de dez massagens por preço reduzido.

Ele insistiu, por seu próprio bem‐estar moral (e talvez para o meu), em sempre me fazer uma massagem — embora em mais de uma ocasião a massagem viesse depois.

Fiquei surpresa com o quanto gostei de chupar seu pau. Era porque ele tinha me mostrado amor primeiro e, cheia de gratidão, segui na direção de baixo.

Paguei a esse cara o primeiro bom boquete da minha vida, que veio de minhas entranhas e trouxe lágrimas aos meus olhos. Era a primeira vez que eu ficava tão grata a um homem.

Nunca nos víamos fora do quarto em meu apartamento. Ficávamos no quarto, só indo à cozinha buscar líquidos e ao banheiro para lavagens. O quarto era o mundo. Nada de jantares, nada de encontros, apenas telefonemas para marcar uma hora. Porque meu quadril machucado tinha terminado com minha carreira de bailarina, as massagens eram pagas pelo seguro. Seguro para a ressurreição de meu desejo sexual profundamente ferido.

Fiquei obcecada por meu massagista. Tentava preencher o tempo entre as sessões, imaginando: "Eu vivo para vê‐lo ou o vejo para poder viver?"

Aprendi com ele que sou mais viva, mais observadora e mais inteligente quando estou sexualmente comprometida. E experimentei pela primeira vez a intensa beleza de ter hora e lugar para um amante quando o prazer sexual é o objetivo mútuo, a única intenção consciente. Apesar de tudo, nunca se sabe onde vai terminar um jantar. Quase sempre a conversa não dá certo e acaba com a possibilidade de fazer sexo depois. Gosto de saber quando vou fazer sexo — isso é muito importante para deixar nas mãos do destino.

As fronteiras do erótico... Minha teoria ganhou asas. Um quarto, uma cama, dois corpos, música, sem intrusões. Essa era a vida que eu queria ter e tinha — uma vez por semana durante um ano. "A moldura é uma fronteira que sela hermeticamente o objeto, para que tudo o que você experimenta, tudo o que importa, esteja dentro daquela fronteira'', escreveu Joseph Campbell. "É um campo sagrado e você se torna o puro sujeito de um puro objeto."

Percebi que a feiura apenas entra em minha vida amorosa quando a vida real também o faz. Carros, telefonemas, contas, hipotecas, comida, família, horários, dinheiro — esses são os de controvérsia e controle, e eles destroem a ligação erótica.

Será que ele me amava? Será que fantasiava sobre mim? Será que sonhava casar‐se comigo? Será que imaginava se eu tinha outros homens, e odiava isso? Será que eu me infiltrava em todos os momentos que ele passava acordado? Será que ele imaginava como nossos filhos seriam? Se a obsessão mental é a evidência do amor, não acho que ele sentisse amor por mim.

Mas ele me amava quando estávamos juntos. Ele focalizava toda a sua atenção em mim? Era gentil, indecente, charmoso e completamente devotado a multiplicar meus prazeres? Ah, sim, ele me amava totalmente. E esse tipo de amor tornou‐se o tipo que eu queria. Comecei a desconfiar de homens mentais, homens falantes e declarações verbais de amor. Não se pode amar apenas com palavras. Eu tinha tentado isso. Dar e receber palavras de amor, sejam geniais ou shakespearianas, é um ardil apresentado por poetas com paus incapacitados. A pessoa ama quando age. A linguagem pode clarear, explicar e divertir, mas não pode mudar seu ser. A experiência pode.

Certo, eu o amava. Até não o amar mais. Não acredito que o amor só é real quando dura muitos anos e é sinalizado pela aliança de casamento. Minha aliança de casamento só havia me confinado, roubando‐me, por fim, a liberdade e também o amor. O amor, para mim, existe apenas num momento de escolha num determinado instante: não há outra manifestação a não ser aquela disponível agora. Repetir esses momentos é o segredo.

Mas o massagista não era real, decidi. Era apenas meu anjo sexual provisório, que ficava reaparecendo com sua mensagem divina no meu quarto em horas previamente marcadas. Talvez, pensava eu, no fundo de minha alma não examinada, eu realmente fosse uma mulher convencional que simplesmente foi jogada para fora de órbita, e precisa apenas de um namorado. Talvez o massagista soubesse algo que eu não sabia sobre homens e mulheres, amor e sexo. Então também tentei namorar. Seis semanas por homem, direto para o sexo, oral, mas todas as vezes que eles me fodiam eu me sentia fodida e os dispensava, um por um. Eles entravam, saíam, davam a volta e eu me sentia usada e mal paga.

Então continuei chamando o massagista — a quem eu pagava. Era um negócio bem melhor.


(A entrega: Memórias eróticas; tradução de Maria Cláudia Oliveira)



(Ilustração: Suzanne Ballivet, do livro Initiation Amoureuse) 

terça-feira, 10 de maio de 2022

THE LAST ROSE OF SUMMER / A ÚLTIMA ROSA DO VERÃO, de Thomas Moore

 




Tis the last rose of summer

Left blooming alone;

All her lovely companions

Are faded and gone;

No flower of her kindred,

No rosebud is nigh,

To reflect back her blushes,

To give sigh for sigh.



I'll not leave thee, thou lone one!

To pine on the stem;

Since the lovely are sleeping,

Go, sleep thou with them.

Thus kindly I scatter,

Thy leaves o'er the bed,

Where thy mates of the garden

Lie scentless and dead.



So soon may I follow,

When friendships decay,

From Love's shining circle

The gems drop away.

When true hearts lie withered

And fond ones are flown,

Oh! who would inhabit,

This bleak world alone?



Tradução de Ivan Justen Santana:



Eis a última rosa do verão

Deixada a desabrochar sozinha;

Todas suas adoráveis amigas

Feneceram no fim da estação;

Pétala alguma da sua espécie,

Botão nenhum a brotar por perto

Reflete o rubro que lhe aparece,

Repete ao suspiro o rumor certo.



“Eu não deixarei você sozinha

Secando em caule sem mais ninguém;

Co’as adoráveis adormecidas

Você já pode ir dormir também.”

Então gentil eu disperso assim

Pétalas rubras na cama morna

Onde as amigas lá do jardim

Jazem já mortas e sem aroma.



Tão logo eu possa, sigo seu rastro,

Quando amizades forem ao chão;

Do anel brilhante do Amor tão vasto

Os diamantes também se vão.

Quando murchar o peito distante

E seu dileto também se for,

Quem vai restar, último habitante

De um mundo escuro e desolador?



(Ilustração: Jean-Baptiste Corot, 1845 - la liseuse à la couronne de fleurs)


sábado, 7 de maio de 2022

ÀS MULHERES AS PALAVRAS, AOS HOMENS AS ARMAS…, de Tzvetan Todorov

 



No primeiro contato entre a tropa de Cortez e os índios, os espanhóis declaram (hipocritamente) que não buscam a guerra, e sim a paz e o amor; “não se deram ao trabalho de responder com palavras, mas fizeram-no com uma nuvem de flechas” (Cortez, 1). Os índios não se dão conta de que as palavras podem ser uma arma tão poderosa quanto as flechas. Alguns dias antes da queda da Cidade do México, a cena se repete: às propostas de paz formuladas por Cortez, na verdade já vencedor, os astecas respondem obstinadamente: “Por isso não voltem a falar de paz, pois as palavras são para as mulheres e as armas são para os homens!” (Bernal Diaz, 154).

Esta repartição das funções não é fortuita. Pode-se dizer que a oposição guerreiro/mulher com papel estruturador no imaginário social asteca como um todo. Embora várias opções se apresentem para o jovem em busca de uma profissão (soldado, sacerdote, mercador), sem dúvida a carreira de guerreiro é a mais prestigiosa de todas. O respeito pela palavra não chega a erigir os especialistas do discurso acima dos chefes guerreiros (o chefe de estado combina as duas supremacias, pois é simultaneamente guerreiro e sacerdote). O soldado e o macho por excelência, pois tem o poder de dar a morte. As mulheres, geradoras, não podem aspirar a esse ideal; todavia, as ocupações e atitudes delas não constituem um segundo polo valorizado da axiologia asteca; não se surpreendem com a fraqueza das mulheres, mas nunca a elogiam. E a sociedade trata de fazer com que ninguém ignore seu papel: no berço do recém-nascido colocam-se, se for menino, uma espadinha e um escudinho, e se for menina, utensílios para tecelagem.

A pior coisa que se pode fazer com um homem é chamá-lo de mulher; em certa ocasião os guerreiros adversários são obrigados a se vestirem com roupas de mulher, por não terem aceito o desafio que lhes tinha sido feito ao combate. Vemos também que as mulheres assumem essa imagem (de origem masculina, suspeitamos), e elas mesmas contribuem para manter essa oposição, atacando os jovens que ainda não se distinguiram nos campos de batalha assim: ‘De fato, aquele dos longos cabelos trançados também fala! Falas realmente? (…) Tu, com esse topete fedorento, empesteado, não serás apenas uma mulher como eu?”. E o informante de Sahagun acrescenta: “Na verdade, com esse tormento as mulheres podiam incitar os homens à guerra; assim, obrigavam-nos a agir e provocavam-nos; assim as mulheres impeliam-nos a batalha” (CF, II, 23).

Tovar conta uma cena reveladora, da época da conquista, onde Cuauhtemoc, encarnação dos valores guerreiros, ataca Montezuma, assimilado às mulheres, devido a sua passividade. Montezuma fala a seu povo do terraço do palácio onde é mantido prisioneiro pelos espanhóis. “Mal terminara e um valoroso capitão, de dezoito anos, chamado Cuauhtemoc, que já queriam eleger rei, diz em voz alta: ‘Que diz esse covarde do Montezuma, essa mulher dos espanhóis, porque é esse o nome que podemos dar a ele, já que se entregou a eles como uma mulher, por medo, deixando-nos com os pés e mãos atados, atraiu sobre nós todos esses males” (Tovar, pp. 81-2).

Às mulheres as palavras, aos homens as armas… O que os guerreiros astecas não sabiam é que as “mulheres” ganhariam a guerra; apenas no sentido figurado, é verdade: no sentido próprio, as mulheres foram e são as perdedoras de todas as guerras. Contudo, talvez a assimilação não seja completamente fortuita: o modelo cultural que se impõe a partir do Renascimento, apesar de ser introduzido e assumido por homens, glorifica o que se poderia chamar de vertente feminina da cultura: a improvisação em lugar do ritual, as palavras em lugar das flechas. Mas não quaisquer palavras: nem as que designam o mundo e nem as que transmitem as tradições, e sim aquelas cuja razão de ser é a ação sobre outrem. A guerra. aliás, não passa de outro campo de aplicação dos mesmos princípios da comunicação servíveis em tempo de paz; logo, encontramos nela comportamentos semelhantes diante da escolha oferecida em cada caso. Pelo menos no início, os astecas conduzem uma guerra que está submetida à atualização e ao cerimonial: o tempo, o lugar, o modo, são previamente decididos, o que é mais harmonioso, porém menos eficaz. “Era costume geral em todas as cidades e todas as províncias deixar, nos limites extremos de cada uma, uma larga faixa de terra deserta, inculta para suas guerras’ (Motolinia, III, 18). O combate tem hora certa para começar e para acabar.

O objetivo do combate não é tanto matar, mas fazer prisioneiros (o que favorece claramente os espanhóis). A batalha começa com um primeiro envio de flechas. “Se as flechas não ferissem ninguém, e o sangue não corresse, retiravam-se como podiam, pois viam nisso um presságio seguro de que a batalha acabaria mal para eles” (Motolinia, “Carta de Introdução”).

Encontramos outro exemplo marcante dessa atitude atual pouco antes da queda da Cidade do México: tendo esgotado todos os outros recursos, Cuauhtemoc decide empregar a arma suprema. O que é? A magnifica roupa emplumada, herdada de seu pai, roupa a qual se atribuía a capacidade misteriosa de fazer o inimigo fugir por sua simples aparição; um valente guerreiro será vestido com ela e lançado contra os espanhóis. Mas as penas de quetzal não trazem a vitória aos astecas (cf. C’F XII, 38).

Assim como há duas formas de comunicação, há duas formas de guerra (ou dois aspectos da guerra, um valorizado aqui e outro lá). Os astecas não concebem e não compreendem a guerra total de assimilação que os espanhóis estão fazendo contra eles (inovando em relação a sua própria tradição); para eles, a guerra deve acabar num tratado, estabelecendo o montante dos tributos que o perdedor deverá pagar ao vencedor. Antes de ganhar a partida, os espanhóis já tinham obtido uma vitória decisiva: a que consiste em impor seu próprio tipo de guerra; a superioridade deles já não é mais posta em dúvida. Atualmente, temos dificuldade em imaginar uma guerra que seja regida por outro princípio que não a eficácia, apesar de a parte do rito não estar completamente morta: os tratados que punem o uso de armas bacteriológicas, químicas ou atômicas são esquecidos no dia em que a guerra é declarada. E, no entanto, era exatamente assim que Montezuma entendia as coisas.



(A conquista da América - a questão do outro; tradução de Beatriz Perrone Moisés)



(Ilustração: Arte azteca - plumas, foto da internet, autoria não identificada)

quarta-feira, 4 de maio de 2022

ЧЁРНЫЙ ЧЕЛОВЕК / O HOMEM NEGRO, de Сергей Есенин / Sierguéi Iessiênin

  




Друг мой, друг мой,

Я очень и очень болен.

Сам не знаю, откуда взялась эта боль.

То ли ветер свистит

Над пустым и безлюдным полем,

То ль, как рощу в сентябрь,

Осыпает мозги алкоголь.



Голова моя машет ушами,

Как крыльями птица.

Ей на шее ноги

Маячить больше невмочь.

Черный человек,

Черный, черный,

Черный человек

На кровать ко мне садится,

Черный человек

Спать не дает мне всю ночь.



Черный человек

Водит пальцем по мерзкой книге

И, гнусавя надо мной,

Как над усопшим монах,

Читает мне жизнь

Какого-то прохвоста и забулдыги,

Нагоняя на душу тоску и страх.

Черный человек

Черный, черный…



“Слушай, слушай,-

Бормочет он мне,-

В книге много прекраснейших

Мыслей и планов.

Этот человек

Проживал в стране

Самых отвратительных

Громил и шарлатанов.



В декабре в той стране

Снег до дьявола чист,

И метели заводят

Веселые прялки.

Был человек тот авантюрист,

Но самой высокой

И лучшей марки.



Был он изящен,

К тому ж поэт,

Хоть с небольшой,

Но ухватистой силою,

И какую-то женщину,

Сорока с лишним лет,

Называл скверной девочкой

И своею милою”.



“Счастье,- говорил он,-

Есть ловкость ума и рук.

Все неловкие души

За несчастных всегда известны.

Это ничего,

Что много мук

Приносят изломанные

И лживые жесты.



В грозы, в бури,

В житейскую стынь,

При тяжелых утратах

И когда тебе грустно,

Казаться улыбчивым и простым –

Самое высшее в мире искусство”.



“Черный человек!

Ты не смеешь этого!

Ты ведь не на службе

Живешь водолазовой.

Что мне до жизни

Скандального поэта.

Пожалуйста, другим

Читай и рассказывай”.



Черный человек

Глядит на меня в упор.

И глаза покрываются

Голубой блевотой.

Словно хочет сказать мне,

Что я жулик и вор,

Так бесстыдно и нагло

Обокравший кого-то.



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .



Друг мой, друг мой,

Я очень и очень болен.

Сам не знаю, откуда взялась эта боль.

То ли ветер свистит

Над пустым и безлюдным полем,

То ль, как рощу в сентябрь,

Осыпает мозги алкоголь.



Ночь морозная…

Тих покой перекрестка.

Я один у окошка,

Ни гостя, ни друга не жду.

Вся равнина покрыта

Сыпучей и мягкой известкой,

И деревья, как всадники,

Съехались в нашем саду.



Где-то плачет

Ночная зловещая птица.

Деревянные всадники

Сеют копытливый стук.

Вот опять этот черный

На кресло мое садится,

Приподняв свой цилиндр

И откинув небрежно сюртук.



“Слушай, слушай!-

Хрипит он, смотря мне в лицо,

Сам все ближе

И ближе клонится.-

Я не видел, чтоб кто-нибудь

Из подлецов

Так ненужно и глупо

Страдал бессонницей.



Ах, положим, ошибся!

Ведь нынче луна.

Что же нужно еще

Напоенному дремой мирику?

Может, с толстыми ляжками

Тайно придет “она”,

И ты будешь читать

Свою дохлую томную лирику?



Ах, люблю я поэтов!

Забавный народ.

В них всегда нахожу я

Историю, сердцу знакомую,

Как прыщавой курсистке

Длинноволосый урод

Говорит о мирах,

Половой истекая истомою.



Не знаю, не помню,

В одном селе,

Может, в Калуге,

А может, в Рязани,

Жил мальчик

В простой крестьянской семье,

Желтоволосый,

С голубыми глазами…



И вот стал он взрослым,

К тому ж поэт,

Хоть с небольшой,

Но ухватистой силою,

И какую-то женщину,

Сорока с лишним лет,

Называл скверной девочкой

И своею милою”.



“Черный человек!

Ты прескверный гость!

Это слава давно

Про тебя разносится”.

Я взбешен, разъярен,

И летит моя трость

Прямо к морде его,

В переносицу…



. . . . . . . . . . . . . . . .



…Месяц умер,

Синеет в окошко рассвет.

Ах ты, ночь!

Что ты, ночь, наковеркала?

Я в цилиндре стою.

Никого со мной нет.

Я один…

И – разбитое зеркало…



Tradução Augusto de Campos e Boris Schnaiderman:



Meu amigo, meu amigo,

Estou muito, muito doente.

De onde veio esta dor, nem mesmo eu lembro.

Seria o vento que assobia

No campo árido e deserto,

Ou talvez como os bosques em setembro

o álcool desfolha o meu cérebro?



Minha cabeça move as orelhas

Como um pássaro as asas.

Ela não consegue mais

Balançar as pernas no pescoço.

Um homem negro

Negro, negro,

Um homem negro

Senta-se à beira do meu leito.

Um homem negro

Não me deixa dormir a noite inteira.



O homem negro

Move o dedo sobre o livro ignóbil

E nasala sobre mim

Como um monge sobre um defunto,

Lê para mim a vida

De não sei que malandro e vagabundo,

Levando para a alma a angústia e o medo,

O homem negro,

Negro, negro!



“Escuta, escuta –

Murmura para mim –

No livro há muitos belos

Pensamentos e projetos.

Este homem

Vivia no país

Dos charlatões e arruaceiros

Os mais abjetos.



Nessa terra, em dezembro,

A neve é diabolicamente alva,

E as borrascas movem

Alegres rocas.

Aquele homem era um aventureiro,

Mas de mais alta

E da melhor marca.



Ele era elegante

E além do mais poeta,

De força não muito grande,

Mas cheio de vida.

E uma certa mulher

De quarenta e tantos anos

Ele a chamava de menina má

E de sua querida.



A felicidade – dizia –

É a ligeireza de cérebro e dedos.

Todas as almas incapazes

São sempre tidas como infelizes.

Não faz mal

Que a muitos sofrimentos

Levem os gestos

Fingidos e falazes.



Nas tempestades, nas tormentas,

Na algidez da existência,

Quando há perdas penosas

E quando se está triste,

Parecer sorridente e singelo

É a mais alta arte que existe”.



“Homem negro!

Não me fale assim!

Você não está a serviço

Do espírito das águas.

O que tenho eu com a vida

De um poeta escandaloso?



Em outros, que não eu,

Despeje as suas mágoas”.

O homem negro

Fita-me de frente

E os seus olhos se cobrem

De um vômito anil,

Como se ele quisesse me dizer

Que eu sou um malandro, um ladrão

Que assaltou alguém

De modo traiçoeiro e vil.

…………………………



Meu amigo, meu amigo,

Estou muito, muito doente.

De onde veio esta dor, nem mesmo eu lembro.

Seria o vento que assobia

No campo árido e deserto,

Ou talvez como os bosques em setembro

O álcool desfolha o meu cérebro?



Noite fria.

Paz de encruzilhada.

Estou só, à janela,

Não espero hóspede ou amigo.

Toda a planície está coberta

De cal macia e farinhenta,

E as árvores como ginetes

Apeiam em meu jardim.



Em alguma parte chora

Sinistra ave noturna.

Os cavaleiros de madeira

Semeiam as batidas dos cascos.

E de novo o homem negro

Senta-se em minha cadeira,

A cartola do lado, descaídas

As abas do casaco.



“Escuta, escuta! –

Rouqueja, olhando-me na face.

E se inclina para mim

Cada vez mais e mais.

Não vi ninguém

Dentre os canalhas

Que sofresse de insônia

Tão inútil e chinfrim



Ah, admitamos que me engane!

Ainda bem que há de luar.

Que mais este mundinho sonolento

Poderia demandar?

Talvez, de coxas gordas,

“Ela” virá furtivamente,

E lhe dirás um poema

Langoroso e tumular.



Ah, eu gosto dos poetas!

Divertem, com seus versos.

Neles eu sempre encontro

Consolo para o meu mal –

Como se a uma estudante espinhenta

Um mostrengo cabeludo

Falasse de universo,

Extravasando langor sexual.



Não sei, não me lembro,

Em certo povoado,

Talvez em Kaluga

Ou talvez em Riazan,

Vivia, ali, um menino

Numa simples família camponesa,

De cabelos amarelos

E olhos cor de anil…



E eis que ele se tornou adulto

E além do mais poeta,

De força não muito grande,

Mas cheio de vida.

E uma certa mulher

De quarenta e tantos anos

Ele a chamava de menina má

E de sua querida”.



“Homem negro”

És um hóspede maligno.

Há muito se propala

Tua fama infeliz.”

E eu, furioso, febril…

E voa minha bengala

Para o seu focinho,

No meio do nariz…

……………………….



A lua é morta.

A alba azula à janela.

Ah, noite!

Noite, o que me deformaste?

Aqui estou, de cartola,

Ninguém a meu lado.

Estou só.

E o espelho, quebrado.



1925




(Poesia russa moderna)



(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)



 

domingo, 1 de maio de 2022

UMA ESCRUPULOSA SOLICITUDE, de Daniel Arsand

 




De Erzincã a Ercis a viagem correu na monotonia da planície. Em lentas ondas, rebanhos de carneiros vogavam sobre uma relva farta. A caravana não entrou pelo longo desvio que a faria passar diante do monte Ararat e a legítima curiosidade de Vartan de conhecer o berço de seus ancestrais não foi satisfeita. Montefoschi havia explicado a ele que tomar o caminho do Ararat comprometeria a travessia do maciço de Pamir que tinha de ser feita obrigatoriamente antes do inverno. Além do mais, para evitar o excesso de emoções que enfraquece a vigilância necessária durante uma viagem, não seria recomendável visitar um lugar grato desde a infância ao mais profundo do coração pelas lendas e as lembranças dos antigos. Você não sabe o que é o frio que grassa no Pamir, acrescentou Montefoschi para dissuadir definitivamente Vartan de ver de passagem o antigo reino de Urartu. Por trás das sedas de sua liteira, o jovem criou para si uma visão da arca célebre, que seria uma grande massa negra projetando-se sobre a memória de civilizações desaparecidas, como um olho afogado de ironia sobre os homens e sua necessidade de guerrear. Também nessa visão, aquela massa, soberana e indestrutível, surgia aureolada de brumas. Era como um monstro marinho encalhado no cume de um gigantesco rochedo. Vartan submeteu-se à decisão de Montefoschi e esperava agora ver o inverno na cadeia de montanhas de Pamir e conhecer, apesar de tudo, emoções extremas.

A cada parada nos caravançarás, Hovsep continuava a dividir o quarto com Montefoschi. Aceitava as tentativas e as carícias de seu amante com desenvoltura desinteressada.

Nessas noites tornadas tumultuosas pela paixão crescente que lhe votava aquele homem ele se aplicava, afinal, a adquirir a ciência do amor para exercê-la mais tarde na cama de Arnaud de Roanne. Mas eram noites em que ressoava apenas o ronco de um Montefoschi vencido pelo cansaço das estradas. Hovsep deixava então o leito quase conjugal trocando-o pelo pátio do caravançará. Lá, triturava ervas e raízes num pilão ou misturava drogas em um vaso. Trabalhava penosamente como um boticário sem perceber que às vezes o outro, despertado por sua ausência, o observava. Claro, o veneziano considerou a hipótese de que ligações estavam sendo urdidas, ali, entre seu amante e o médico, mas essa suposição ainda não despertou nele o menor ciúme. Dizia a si mesmo, simplesmente, que Arnaud, por bondade, tinha cedido a uma mania de Hovsep. Sabia que o eunuco era invejoso. Seria então provável que tivesse nascido nele a vontade de rivalizar um dia com Arnaud de Roanne na manipulação de beberagens.

Essa ideia fazia Montefoschi sorrir maldosamente: achava seu amigo ridículo.

A um comerciante de panos de Ercis, Hovsep pediu que lhe recortasse de uma peça de seda vermelha uma túnica cujo modelo copiava a de Arnaud, porque ele imitava Arnaud em tudo. Afetava um modo de falar lento e suave, empregava um vocabulário elegante, gabava-se de uma sabedoria milenar. E, nas lojas ou nas ruas, mexia nas dobras de seu traje, como que a mostrar preocupação. A ondulações de fogo correspondiam ondulações de um azul de safira, quando os dois homens passeavam na cidade ou presidiam com Montefoschi a um conciliábulo de mercadores. Mas Arnaud de Roanne o obrigava incessantemente a substituir antigos hábitos por novos. Desde Erzincã, não tratava mais de doentes e agonizantes e não mais manipulava xaropes. Hovsep também abandonava pomadas e unguentos. Arnaud voltava pouco a pouco ao anonimato, e era isso que ele queria. Desejava esse estado para observar melhor o mundo sem ser solicitado a todo momento por doentes. E, afinal, sabia que esse desejo logo seria realizado, pois seu prestígio de médico não tinha atingido as cidades da Ásia. Desfez-se de sua túnica com um comerciante de artigos de segunda mão e recebeu em troca um punhado de rebarbas de cobre que não lhe serviriam de nada… Foi roubado, caçoavam dele. Hovsep, na esteira de Arnaud, também se desfez de sua túnica sem tirar proveito de seu valor. Só o que lhe interessava era a alegria de ter alguma coisa semelhante à de Arnaud. Contentava-se simplesmente em ser a sombra de um homem cuja aparência de repente se tornou tão comum. Era, entretanto, mais facilmente notado do que Arnaud, porque andava com a boca aberta e os braços cruzados sobre o peito. Na intimidade de seus passeios, Arnaud o chamava de Papa Moscas, ao mesmo tempo que se perguntava por que suportava a presença dele. Lembrava-se, porém, de ter feito voto de sondar todo rosto humano. E Hovsep se revelava um bom campo de observação.

Na verdade, na companhia de Arnaud, Hovsep mantinha aparentemente o mesmo ar de admiração a seu respeito, sempre. Mas, sob essa máscara, era possível adivinhar, às vezes, a inquietude, o medo, o desespero.

Arnaud não suportava a falta do que fazer, por se ter acostumado durante muito tempo a manipular seus intermináveis preparados medicinais. Por isso não tinha parada em Ercis, que percorria em todos os sentidos, incessantemente. Em poucas horas, nenhum dos costumes da população lhe era estranho, sabia das especialidades do artesanato local, sabia da cultura do lugar. Infiltrava-se nas grandes aglomerações, ou, numa casa particular a que o tivesse levado o acaso, informava-se sobre as histórias locais.

Estava aqui e ali, sempre se movimentando. De seu passado de estudioso não restava mais do que uma indomável energia. A tudo seu interesse se voltava: fachadas batidas pelo sol, um pedregulho que a luz do dia tornasse brilhante, bestas de carga cansadas e ovelhas pastando, mulheres depenando uma galinha ou mexendo uma sopa. Em companhia de Arnaud de Roanne, a menor aldeota se tornava um labirinto, o menor dos acontecimentos ganhava sentido.

Em Ercis, certa tarde, um homem de voz veludosa o abordou. Com modos de conspirador, o desconhecido fez ao médico uma proposta que o espantou, perturbou-o, deixou-o perplexo. Convidava-o para prazeres que havia muito ele abandonara porque precisara se afastar das tentações da carne a fim de melhor se consagrar a suas pesquisas.

Em resumo, sua ignorância e seu distanciamento das coisas do amor o tornavam, nesse ponto, parecido com um monge. Mas desde que renunciara à atividade de ensinar e à prática da arte de curar, passara a cobiçar frequentemente as moças. O alcoviteiro sem dúvida ganhou disposição para lhe falar depois de ter observado os olhares significativos que ele dirigia às moças que passavam. Arnaud ensaiou o gesto de juntar as pregas de sua túnica, mas se lembrou de que a tinha trocado. Sentiu-se indefeso diante da oferta de seu interlocutor e acabou por balançar a cabeça em sinal de aceitação.

Hovsep, como de costume, estava a alguns passos dali. Sem ter percebido com clareza as palavras, tinha entendido o sentido da conversa. Imaginar Arnaud com uma mulher era para ele coisa totalmente insuportável. De modo que sem refletir ele empurrou violentamente o homem que, num reflexo defensivo, estalou um chicote cujo cabo desaparecia totalmente em seu punho, um chicote que poderia ser um brinquedo de criança. Hovsep apalpou seu estilete. O homem deu uma risada. Então Arnaud se interpôs entre eles e acalmou os espíritos.

Quando viu o médico e o misterioso desconhecido se afastarem, Hovsep mandou-se atrás deles, dizendo a si próprio que era capaz de rolar na cama com uma prostituta.

Hovsep era incompetente para julgar sobre a beleza ou a feiúra das moças que iam e vinham nessa enorme sala de bordel. A quase nudez delas o incomodava. Teria oferecido uma fortuna, que não possuía, a um mago para devolvê-lo à época de suas ladroagens, àquela adolescência em que seus desejos eram unicamente os desejos de derramar sangue, na qual seu destino não estivesse marcado por um médico que lhe dava menos atenção do que à própria sombra. Mas esse milagre não se realizaria nunca. Insanos, para fugir de um tormento ou dos perigos em que a realidade é pródiga, não conseguiam dos bruxos mais do que uma viagem de alguns instantes ao país do esquecimento.

Quando Hovsep se achou num quarto, impediu que a moça que lhe coubera o tocasse. Apesar disso, ela propôs que ele se deitasse na cama. Ele não respondeu. Aparentemente ela adormeceu, fechando os olhos. Mas era só fingimento, logo ele a ouviu renovando com voz clara o convite. Confessou-lhe então ser vítima de um mal que lhe impedia qualquer aproximação. Diante dessa confissão, ela sorriu de modo enigmático. Na companhia dela ele se sentia — e isso era estranho  em paz. Disse isso a ela. Não houve qualquer reação por parte dela, que deu a impressão de não ter escutado suas palavras. Mas a sensação de calma não durou muito. Murmúrios chegavam do quarto vizinho, o que imediatamente pôs Hovsep na defensiva. A moça pulou da cama, caminhou até o tabique que servia de parede e mostrou-lhe uma abertura gradeada que ali era utilizada.

Hovsep pôde então observar dois corpos nus que se confundiam. Enquanto ele observava as brincadeiras dos dois, a mão da sua prostituta segurou-lhe o sexo. Ele se voltou para a moça e a esbofeteou. Bateu outra vez, e ela berrou. Quando ela berrou de novo, a porta do quarto se abriu, Hovsep foi agarrado pelos ombros e foi jogado na rua, indesejável que era.

Aos primeiros gritos agudos que repercutiram no quarto, a companheira efêmera de Arnaud empurrou o corpo que a possuía. Pulou para baixo da cama, depois se enrolou num véu e se precipitou pelo corredor para não mais reaparecer. Sobre a cama que ela tinha abandonado, Arnaud de Roanne maldisse a curiosidade das mulheres e aquela barulheira que tinha ousado interromper um ato incrível e afinal inacabado — voltar a praticá-lo de agora em diante seria para ele mais importante do que tudo, fosse num estábulo, debaixo de uma tenda ou num quarto idêntico àquele. A timidez de um homem virgem, que tinha sido sua atitude no prelúdio daquele ato, cederia lugar pouco a pouco à brutalidade de um veterano grosseiro. Um rosto, por belo que fosse, teria menos atração do que a carne oferecida. A umidade dos lençóis favorecia os pensamentos sensuais.

O homem misterioso irrompeu no quarto e o informou sobre a conduta inqualificável de Hovsep. Entre duas imprecações cuspidas com virulência teatral, aconselhou-o a escolher melhor, dali em diante, seus amigos ou seus criados. Não era homem dado a gentilezas. Brutamontes furibundo, expulsou Arnaud de Roanne do quarto debaixo de pancadas.

E foi sob vaias e um ulular raivoso que o acompanharam até a rua que Arnaud deixou o bordel. Levantando-se penosamente, Hovsep o esperava. Diante do comportamento servil de Hovsep, já inteiramente entregue ao castigo que não deixaria de vir, Arnaud sentiu asco. Até então, esse sentimento lhe era estranho. Assim como não existia nele o espírito de vingança. Mas ele se recusou a partir para a violência contra um homem agora agitado por tremores, porque tinha decidido encarnar aquele que prefere a indulgência ao ódio. Envolveu com o braço o ombro de Hovsep, garantindo-lhe não dar maior importância ao escândalo havido entre as paredes de uma casa que se condenava de ter frequentado. De volta ao caravançará, Arnaud lavou com cuidado o rosto inchado de Hovsep e aplicou um emplastro que rapidamente curaria as equimoses. Essa escrupulosa solicitude deixou impressionado o eunuco, que aceitou tudo como um presente e um testemunho de amizade, ousando enfim se declarar.



(A província das trevas; tradução de Marcos de Castro)



(Ilustração: Guang Ye)