quarta-feira, 25 de maio de 2022

A DECISÃO E A MORTE, de Ernesto Sábato





O morrer, essa intangível ação que se cumpre obedecendo,

ocorre para além da realidade, em outro reino.

M. Zambrano 

Cada hora do homem é um lugar vivo da nossa existência que ocorre uma única vez, insubstituível para sempre. Nisso reside a tensão da vida, sua grandeza, a possibilidade de que a incapturável fugacidade do tempo seja preenchida de instantes absolutos, de tal maneira que, ao olhar para trás, o longo percurso se mostre como um desfiar de dias sagrados, inscritos em diferentes tempos ou épocas.

Deter a vida, seu inefável transcurso, não apenas é impossível, mas, se o fizéssemos, cairíamos na mais negra das depressões; nossos dias passariam carentes de qualquer transcendência, teríamos tempo de sobra e poderíamos desperdiçá-lo banalmente, já que nada de essencial estaria em jogo. A vida do homem se reduziria à felicidade que ele conseguisse forjar, como se a mais grandiosa das existências fosse a que mais se assemelhasse a um cruzeiro num navio de luxo.

Penso que o essencial da vida é a fidelidade ao que acreditamos ser nosso destino, que se revela nesses momentos decisivos, nessas encruzilhadas tão difíceis de suportar, mas que nos defrontam às grandes opções. São momentos muito graves, porque a escolha nos ultrapassa, não enxergamos à frente nem atrás, como se uma névoa nos cobrisse na hora crucial, ou como se tivéssemos que escolher a carta decisiva da existência de olhos fechados.

É um pouco essa a situação que estamos vivendo hoje, quando milhões de pessoas percebemos a urgência que nos reclama, mas não atinamos a divisar a luz que nos oriente. Unidos na entrega aos outros e no desejo absoluto de um mundo mais humano, resistamos. Isso bastará para esperarmos o que a vida nos deparar.

Desde jovem tenho vivido o embate da liberdade. Passei momentos de angústia sem saber o que fazer, sem compreender as consequências de uma escolha grave, diante da qual nunca pude avaliar os fatos com prudência. Lembro de mim como quem corresse um trecho por uma trilha perdida e em seguida voltasse atrás, sem achar o dado definitivo que provasse ser aquele um bom caminho. Pendulava à deriva, até o momento crucial em que a decisão me chegava à alma, e então eu avançava sem medir as consequências.

São os valores que nos orientam e presidem as grandes decisões. Infelizmente, pelas condições desumanas do trabalho, por educação ou por medo, muitas pessoas não se atrevem a decidir conforme sua vocação, conforme esse apelo interior que o ser humano escuta no silêncio da alma. E tampouco se arriscam a errar várias vezes. E, no entanto, a fidelidade à vocação, esse misterioso chamado, é o fiel da balança em que a existência é posta em jogo, quando se tem o privilégio de viver em liberdade.

Há momentos decisivos na vida dos povos, assim como na dos homens. Hoje estamos atravessando um desses momentos, com todos os riscos inerentes; mas toda desgraça é frutífera, quando o homem é capaz de suportar o infortúnio com grandeza, sem claudicar em seus valores.

Assim como a vida dos homens, as culturas atravessam períodos fecundos em que as horas de dor e de alegria se alternam sob o mesmo céu; os povos seguem o curso da vida com um olhar legado por gerações e incorporam as mudanças a um sentido que os transcende.

Este não é um desses momentos. Pelo contrário, é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta.

Nossa cultura vem dando sinais inequívocos da proximidade de seu fim. Vê-se permanentemente obrigada a reinventar notícias, modas ou novas variantes, porque nada do que extrai de si é perdurável, fecundo ou sanativo. Como quando uma pessoa está gravemente doente e o médico lhe receita um remédio novo a cada dia, e a família, em seu desespero, muda repetidas vezes de médico e de tratamento. É isso que está acontecendo conosco, confundimos notícia com novidade. O decisivo é não acreditar que tudo continuará igual nem que este modo de vida ainda há de durar muito mais.

A capacidade de persuasão de nossa civilização é quase nula e se limita a convencer as pessoas da excelência de suas bugigangas, oferecidas no mercado aos milhões, sem levar em conta a imensidão do lixo produzido a cada hora e que a terra não pode assimilar. A globalização, que tanta amargura me causou, tem sua contrapartida: não existe mais a possibilidade de os povos nem as pessoas fazerem as coisas por conta própria. O momento é decisivo não para este ou aquele país, mas para a terra inteira. O destino pesa sobre nossa geração, é essa nossa responsabilidade histórica.

Estes tempos modernos do Ocidente, hoje em sua fase terminal, legaram aos homens uma cultura que lhes deu amparo e orientação. Sob seu firmamento, os seres humanos atravessaram com euforia momentos de esplendor e sofreram com integridade guerras e misérias atrozes. Hoje a duras penas começamos a aceitar sua morte, seu necessário inverno, sabendo que foi construída com o empenho de milhões de homens que lhe dedicaram sua vida, seus anos, seus estudos, a totalidade de suas horas de trabalho e o sangue de todos os que caíram, com sentido ou inutilmente, para o bem ou para o mal, durante cinco séculos.

A modernidade começou com o Renascimento, um tempo inigualável em criações, inventos e descobertas. Foi uma etapa que, como a infância, ainda se desenvolvia sob o olhar de seus predecessores. Sua verdadeira independência veio com o racionalismo.

Os caminhos da cultura humanista foram percorridos até o abismo. Aquele homem europeu que entrou na história moderna cheio de confiança em si mesmo e em suas potencialidades criadoras agora sai dela com a fé em farrapos.

Estamos indubitavelmente diante da mais grave encruzilhada da história, pois é impossível continuar avançando pelo mesmo caminho. Faz tempo que o sentimento humanista da vida perdeu seu frescor; no interior dele rebentaram contradições destrutivas: o ceticismo minou seu ânimo. A fé no homem e nas forças autônomas que o sustentavam foi profundamente abalada. As altas torres desabaram. Demasiadas esperanças ruíram no coração dos homens. Era o destino do ser humano buscar sua supremacia e sua independência? Esta hora já estaria inscrita nos papiros da eternidade?

Confesso que durante muito tempo acreditei e afirmei que este era um tempo final. Por causa dos fatos que chegam ao meu conhecimento ou do meu próprio estado de espírito, por vezes volto a ter pensamentos catastróficos, que não deixam lugar para a existência humana sobre a terra. Mas por vezes, ao contrário, a capacidade da vida para encontrar brechas onde voltar a criar me deixa pasmo, como quem percebe que a vida nos ultrapassa, superando tudo o que podemos pensar sobre ela.

Sei que esta carta irritará muita gente, eu mesmo a teria repudiado anos atrás, quando confundia resignação com aceitação. Resignar-se é uma covardia, é o sentimento que justifica o abandono daquilo pelo qual vale a pena lutar; de certo modo, é uma indignidade. A aceitação é o respeito pela vontade do outro, seja ele um ser humano ou o próprio destino.

Não nasce do medo, como a resignação; é como um fruto.

Não sei se alguém antes de Berdiaev previu que teríamos uma nova Idade Média. Seria possível, e também sanativo. De fato, parece haver elementos que indicam semelhanças com o início daquele período, como por exemplo o estado de degradação do poder de Roma, onde o cuidado na eleição dos sucessores do César decaiu até a irresponsabilidade, o que é um grave sintoma, ou a tendência à enfeudação diante das ameaças externas. Naquele tempo, assim como agora, não havia segurança e a violência dizimava aqueles que não estavam protegidos entre muralhas. Também a drástica divisão entre poderosos e pobres, a crescente religiosidade. Na época, as estradas foram cortadas; hoje teriam de ser os cabos, salvo que eles fossem “convertidos” e a televisão passasse a servir às pessoas.

Estamos habituados a sentir a Idade Média como uma noite, um tempo severo, austero, quando todo o esplendor da civilização romana foi apagado. Berdiaev diz:

A noite não é menos maravilhosa que o dia, não é menos divina, e o brilho das estrelas a ilumina, e a noite encerra revelações que o dia ignora. A noite é mais afim que o dia aos mistérios das origens. O abismo só se abre com a noite.

Para nossa cultura, a noite seria a perda dos objetos, que é a luz que nos ilumina.

Quem poderá nos guiar hoje? Onde estão esses seres humanos que, como Joana d’Arc ou o pequeno Davi, são capazes de transformar toda uma história valendo-se apenas de sua fé e sua coragem?

Assim como na morte individual algo ocorre no espírito, e é isso que permite a aceitação da morte, é importante que nossa cultura viva seu outono até o fim. Toda conversão, como a própria morte, implica uma passagem, um tempo para abandonar os traços do passado e aceitar a história assim como se aceita a velhice. Devemos tornar-nos cúmplices do tempo para que caiam os véus e a verdade simples se desnude. Se algo se deve aos homens, é a possibilidade de que a verdade amadureça e enfim se mostre por inteiro, sem as distorções da propaganda nem dos oportunismos.

Sinto entusiasmo ante essa possibilidade de encontrarmos outra maneira de viver. O que ajuda a tomar essa decisão é o sedimento acumulado de fatos isolados, que agora começam a se interligar, de imagens que nos surpreendem, de livros que lemos. As pessoas com que convivemos, um sentimento de pátria quando estamos no exílio. Algo diferente que se valoriza, que nos assombra e que sentimos como uma utopia capaz de nos aproximar. A mudança se dá quando nosso olhar não se dissocia dela.

Não podemos esquecer que nestes velhos tempos, já gastos em seus valores, há quem não acredita em nada, mas também há multidões de seres humanos que trabalham e permanecem à espera, como sentinelas. Na história, os cortes não são terminantes: nos estertores do Império Romano, seus cidadãos já freqüentavam seus vizinhos bárbaros e certamente já tinham amores com eles; do mesmo modo, os praticantes de outro modo de vida já estão entre nós. Hoje, assim como naquela época, há multidões de pessoas que já não pertencem a esta civilização, à civilização pós-moderna. Muitas estão tragicamente excluídas e muitas outras parecem ainda formar parte das instituições sociais, mas sua alma está prenhe de outros valores.

A passagem implica um passo atrás para que uma nova sensação do universo vá tomando o lugar da velha, assim como no campo se levantam os restolhos para que a terra nua possa receber a nova semeadura.

Quem dera nos apaixonássemos por essa passagem!

Quem dera, em vez de alimentarmos os caldos do desespero e da angústia, avançássemos com paixão, revelando um entusiasmo pelo novo que expressasse a confiança que o homem pode ter na própria vida, justamente o contrário da indiferença! Parar de erguer muros em volta de nós mesmos, desejar um mundo humano e já estar a caminho dele.

Como a luz da aurora que se pressente na escuridão da noite, a morte já está perto de mim.

É uma presença invisível.

Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento da morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.

Sua chegada não será uma tragédia como teria sido antes, pois a morte não me arrebatará a vida: já faz tempo que estou esperando por ela.

Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la.

Quando as pessoas me param na rua para me dar um beijo, para me abraçar, ou quando compareço a algum evento, como a Feira do Livro, onde uma multidão espera por mim durante horas e me cobre de afeto, uma invencível sensação de despedida nubla minha alma.

Cada vez dou menos importância aos exercícios racionais, como se já não tivessem muito a me dar. Como bem disse Kierkegaard, “a fé começa justamente onde termina a razão”. Há momentos em que navego mar adentro sem perguntas, sem reparar na chuva nem no frio. E outros em que me agarro a velhas sabedorias esotéricas, encontrando calor em suas antigas páginas como nas pessoas que me rodeiam e cuidam de mim. Sinto vergonha ao pensar nos velhos que estão sozinhos, abandonados ruminando seu triste inventário de perdas.

Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometeicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais.

Mas agora que a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime.

Esqueci grandes trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditam em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer.



(A Resistência; tradução de Sérgio Molina)




(Ilustração: Arnold Bocklin - La Chapelle)


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