segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

SONETO OCO, de Carlos Pena Filho

 


Neste papel levanta-se um soneto,

de lembranças antigas sustentado,

pássaro de museu, bicho empalhado,

madeira apodrecida de coreto.



De tempo e tempo e tempo alimentado,

sendo em fraco metal, agora é preto.

E talvez seja apenas um soneto

de si mesmo nascido e organizado.



Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,

pois não sei como foi arquitetado

e nem me lembro quando apareceu.



Lembranças são lembranças, mesmo pobres,

olha pois este jogo de exilado

e vê se entre as lembranças te descobres.





(Ilustração: Francisco de Goya y Lucientes - retrato do escritor Gaspar Melchor de Jovellanos)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O LEGADO ARTÍSTICO DE DÜHER, de Juliana Vannucchi

 


Caríssimos leitores, abaixo, prazerosamente compartilharei com vocês as principais percepções que tive com as pinturas de Düher, como elas me afetaram esteticamente e por que tanto me intrigam todas as vezes em que as aprecio e a elas me entrego.

Antes de mais nada, ouso dizer que talvez Düher tenha sido o pintor mais extraordinário de toda a vasta história da arte, embora, de certa forma, seu talento tenha sido parcialmente ofuscado por outros grandes artistas renascentistas de sua geração. Se não foi o mais primoroso e talentoso que já existiu, certamente é um dos que mais se destacou e, muito possivelmente é o pintor mais brilhante que já surgiu na Alemanha.

Comecei a explorar o universo de Düher há cerca de dois anos, e a porta de entrada para as obras deste grande gênio foi uma gravura sombria, datada de 1513, na qual ele retratou a morte, o diabo e um cavaleiro juntos. Quando vi essa impactante imagem pela primeira vez, fiquei fascinada e instigada, tentando supor que tipo de discussão e/ou reflexão poderia surgir entre tais personagens. Que encontro inusitado: um mortal, a morte, em si, representada fisicamente, e o diabo, um antigo e familiar companheiro do ser humano. O que será que um representa para o outro? O que um sente pelo outro? A morte segura uma ampulheta e parece estar tentando mostrá-la ao cavaleiro que, por sua vez, aparentemente (ainda que assombrado, sufocado, talvez), persiste em ignorar as duas aterrorizantes figuras que o cercam e que, abruptamente interromperam sua trajetória. E que aspecto simbólico: penso que o Diabo e a morte, de uma maneira ou de outra, sempre, ainda que em diferentes intensidades e tempos, interrompem a jornada da maior parte dos seres humanos, assim como, na gravura de Düher, interromperam friamente o caminho do cavaleiro. É também possível observar um crânio no chão (lado esquerdo da imagem), na frente do cavaleiro, que talvez represente seu inevitável destino – e não seria essa a marca da finitude que se encontra adiante de nossa estrada, de nossa vida? Mais claramente falando, o crânio, parece-me, expressa a morte, o fim que se expõe no caminho que o homem percorre.

Às minhas curiosas e intermináveis especulações, somou-se a admiração pelas incríveis qualidades técnicas da pintura deste grande artista alemão, que se fazem presentes não apenas nesta pintura em questão, mas também em todas as outras que foram por ele produzidas. Düher criou obras cujos detalhes minuciosos são deslumbrantes. Os desenhos de cunho realista, isto é, aquelas em que ele retrata objetos baseados no mundo real, como, por exemplo, uma lebre, leão, mãos e plantas, possuem uma notável harmonia e uma refinada sutileza em cada mínimo aspecto, sendo que tais características resultam num incrível perfeccionismo, de tal forma que as pinturas parecem ser verdadeiras fotografias. A habilidade de Düher era imensa e esse tipo de produção realista, evidencia tal fato. O pintor, inclusive, chegou a escrever um livro sobre geometria, o que demonstra sua afinidade e atenção pela perfeição das formas, pelo equilíbrio e pela simetria de imagens.

Tudo me encantou nesse brilhante homem! Além dos desenhos de cunho realista, há também certos simbolismos místicos e celestes flutuando em grande parte de suas telas, embora tais elementos estejam “ocultos”, apenas esperando que os espectadores tentem desvelá-los (tal como eu mesma fiz acima). Conforme o artista alemão escreveu certa vez: “Só uma mente árida não possui autoconfiança para encontrar o caminho de algo que está além, arrastando-se por alguma trilha gasta, contente de imitar os outros e sem a iniciativa de pensar em si mesma”.

“Melancolia I” (1514), por exemplo, consiste numa verdadeira e atraente complexidade de enigmas. Já me deparei com inúmeras e divergentes interpretações dessa obra, mas acredito que seja inútil tentar desvendá-la. Há duas figuras angelicais centrais na gravura. Há também materiais de construção espalhados pelo ambiente. Além disso, note-se que um dos seres celestiais carrega consigo uma chave. Pendurados na parede encontram-se um quadrado contendo números, e uma ampulheta. É possível perceber também um terceiro objeto: uma balança (que se liga, inclusive, com um dos signos do zodíaco – libra, significando o equilíbrio), além de uma escada. Há ainda algumas figuras geométricas preenchendo o ambiente da tela.

Perceba que acima realizei uma descrição puramente física, e é extremamente dificultoso especular se há ligação lógica entre os elementos mencionados (ou seja, se existe encadeamento, se havia uma ideia primordial de Düher em ligá-los uns aos outros e atribuir-lhes sentido), ou se se trata somente de um monte de itens despojados intuitivamente de forma desconexa. Seriam os sagrados espíritos, um prelúdio da melancolia? Será que estes seres são os arquitetos deste sentimento que assola os homens?


No quadrado mágico (que se tornou bastante conhecido), é possível notar que a soma de todas as fileiras horizontais ou verticais, culmina curiosamente no número 34. Esse resultado também é obtido numa soma feita na diagonal e também em várias outras combinações. Além dessa intrigante observação, é um tanto complicado fazer suposições. Conforme já citei, existem diversas interpretações e leituras a respeito. Pode, por exemplo, ser referência a uma data uma passagem bíblica ou outra coisa. Certamente esse tipo de especulação cabe mais a matemáticos e apreciadores de numerologia. Será que os anjos se aborreceram por suas criações ou destinos divinos? Estão cercados de instrumentos e de ferramentas, mas parecem exaustos e entediados. Ou estariam eles simbolizando o próprio ser humano em seus momentos de angústia? O fato é que essa misteriosa e complexa obra de Düher, que é tão hipnótica e envolvente, certamente jamais será desvendada em sua plenitude, e isso a torna extremamente fascinante.

O que vemos até hoje em relação ao legado de Düher, é uma sucessão de tentativas subjetivas de interpretar os símbolos dispostos em suas várias telas, mas não há nenhuma conclusão final, objetiva e plausível, e esta situação proporciona uma atmosfera abstrata e misteriosa ao legado desse grande pintor alemão. Há vários caminhos e possibilidades de interpretação que podem ser tomados, mas de maneira geral, as produções de Dürer ainda permanecem sendo um dos grandes mistérios da história da arte.



CRÉDITOS DAS IMAGENS:

Imagem 1: Melancolia I. Date: 1514. Credit line: Harris Brisbane Dick Fund, 1943. In: Metropolitan Museum Of Art (US).


Imagem 2: Knight, Death, and the Devil, Date: 1513. Credit line: Harris Brisbane Dick Fund, 1943. In: Metropolitan Museum Of Art (US).

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

BALADA DO POEMA QUE NÃO HÁ, de Manuel Alegre

 




Quero escrever um poema

Um poema não sei de quê

Que venha todo vermelho

Que venha todo de negro

Às de copas às de espadas

Quero escrever um poema

Como de sortes cruzadas



Quero escrever um poema

Como quem escreve o momento

Cheiro de terra molhada

Abril com chuva por dentro

E este ramo de alfazema

Por sobre a tua almofada

Quero escrever um poema

Que seja de tudo ou nada



Um poema não sei de quê

Que traga a notícia louca

Da história que ninguém crê

Ou esta afta na boca

Esta noite sem sentido

Coisa pouca coisa pouca

Tão aquém do pressentido

Que me dói não sei porquê



Quero um poema ao contrário

Deste estado que padeço

Meu cavalo solitário

A cavalgar no avesso

De um verso que não conheço



Que venha de capa e espada

Ou de chicote na mão

Sobre esta noite acordada

Quero um poema noitada

Um poema até mais não



Quero um poema que diga

Que nada há que dizer

Senão que a noite castiga

Quem procura uma cantiga

Que não é de adormecer



Poema de amor e morte

No reino da Dinamarca

Ser ou não ser eis a sorte

O resto é silêncio e dor

Poema que traga a marca

Do Castelo de Elsenor



Quero o poema que me dê

Aquela música antiga

Da Provença e da Toscânia

Vinho velho de Chianti

Com Ezra Pound em Rapallo

E versos de Cavalcanti

Ou Guilherme de Aquitânia

Dormindo sobre um cavalo



E com ele então dizer

O meu poema está feito

Não sei de quê nem sobre quê



Dormindo sobre um cavalo



Quero o poema perfeito

Que ninguém há-de escrever

Que ele traga a estrela negra

Do canto e da solidão

Ou aquela toutinegra

De Camões quando escrevia

Sôbolos rios que vão



Que venha como um destino

Às de copas às de espadas

Que venha para viver

Que venha para morrer

Se tiver que ser será

E não há cartas marcadas

Só assim poderá ser

O poema que não há





(Babilónia, 1983)



(Ilustração: Nicolai Abildgaard - Frederik II Builds Kronborg Castle at Elsinore)

sábado, 18 de fevereiro de 2023

INTÉRPRETE, PRECISA-SE, de José António Baço

         



Imagine, leitor brasileiro, como seria se, num passe de mágica, você pudesse viver um dia da sua vida em Portugal. Ou seja, de um momento para outro viver um dia à portuguesa.

Pensa que seria fácil?

O problema é que mesmo as coisas simples no dia-a-dia exigiriam uma adaptação. Ou, talvez, até mesmo um intérprete.

O que vem a seguir é uma descrição do que seria um dia em terras lusas. Acha que conseguiria safar-se? Por via das dúvidas, as palavras diferentes estão numeradas e os significados no final do texto. O significado de algumas é fácil depreender. Outras, nem tanto.

Vamos imaginar como seria o dia de um brazuca em Portugal.

Logo ao acordar pela manhã, enquanto veste as peúgas (1) e aperta os atacadores (2), você ouve na telefonia (3) o aviso de que o trânsito está virado num oito (4).

É que houve um toque (5) entre uma carrinha e um TIR (6) e, apesar de os socorristas já terem retirado os veículos para a berma (7), há ainda alguns troços (8) condicionados, onde os condutores (9) permanecem no para-arranca (10).

Há bichas (11) por todos os lados e talvez as melhores alternativas sejam o autocarro (12) ou o comboio (13).

Você toma o último gole da sua bica (14), termina o pequeno-almoço (15) e, como tem que levar os putos (16) ao infantário (17), a única hipótese é mesmo ir de cu-tremido (18). Depois de uma seca (19) de quase três quartos de hora (os portugueses medem o tempo por quartos de hora) no trânsito, finalmente chega ao trabalho e logo recebe uma ligação.

A telefonista avisa que para atender a chamada na sua extensão (20) tem que carregar (21) no botão. Do outro lado da linha está a sua mulher a lembrar que é a semana de pagar a mulher-a-dias (22) e pede que passe no multibanco (23) para levantar (24) dinheiro, porque o livro de cheques (25) acabou.

Você vai ligar o computador e tem um post-it pregado no ecrã (26). Logo percebe que vai ficar entalado (27). É um recado do seu chefe a avisar que hoje não vem trabalhar. Quer dizer: ele se baldou (28) e você tem que resolver os todos problemas.

Depois de uma intensa azáfama (29), lá pelo final da manhã a barriga já está a dar horas (30). Mas ao invés de ir almoçar à tasca (31) de todos os dias, prefere comer apenas uma sandes (32) no “snack” (33) da esquina. É que assim tem mais tempo para ir até o pronto-a-vestir (34) comprar a prenda de anos (35) da mulher. Fica indeciso entre um fato-de-treino (36) e umas cuequinhas (37) de renda mesmo a matar (38). Mas acaba por levar uma camisola (39) em xadrez castanho e encarnado que estava na “montra” (40).

Ao final do expediente, você está com os azeites (41) e, para complicar, o trânsito está novamente um caos. Então só lhe resta pegar no telemóvel (42) e avisar a sua mulher que vai demorar a chegar. É o cabo dos trabalhos (43).

Bem... o dia ainda não acabou, mas a esta altura você já deve estar convencido de que precisa mesmo de um intérprete. Ou não?



DICIONÁRIO



(1) peúgas, meias

(2) atacadores, cadarços

(3) telefonia, rádio

(4) virado num oito, caótico

(5) um toque, uma pequena batida

(6) TIR, jamanta

(7) berma, acostamento

(8) troços, trechos

(9) condutores, motoristas

(10) para-arranca, andamento lento

(11) bichas, filas

(12) autocarro, ônibus

(13) comboio, trem

(14) bica, café

(15) pequeno-almoço, café da manhã

(16) putos, crianças

(17) infantário, jardim de infância

(18) de cu-tremido, de carro

(19) seca, espera

(20) extensão, ramal

(21) carregar, apertar

(22) mulher-a-dias, diarista

(23) multibanco, caixa 24 horas

(24) levantar, sacar

(25) livro de cheques, talão

(26) ecrã, tela

(27) ficar entalado, com problemas

(28) se baldou, tirou o corpo

(29) azáfama, correria

(30) a dar horas, com fome

(31) tasca, restaurante simples

(32) uma sandes, sanduíche

(33) “snack”, lanchonete

(34) pronto-a-vestir, loja de roupas

(35) prenda de anos, presente de aniversário

(36) fato-de-treino, agasalho esportivo

(37) cuequinhas, calcinha

(38) a matar, bonitas

(39) camisola, camisa

(40) “montra”, vitrine

(41) com os azeites, irritado

(42) telemóvel, celular

(43) cabo dos trabalhos, uma coisa muito difícil



(Ilustração: Francis Smith – Alfama, Lisboa - Portugal – 1920)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

ORIGEM, de Adalcinda Camarão

  


Eu queria mesmo, ó grande mar azul

que conhecesses o meu cabelo solto ao vento,

tão parecido com o teu pensamento

livre, crescendo sempre...

Eu fazia questão que ouvisses o meu soluço abafado

como de tuas ondas,

que mal põem à tona a cabeça o vento esmaga.

Eu queria, afinal, que me visses despida

com a tua correnteza que passa

sem pudor ou malícia - transparente.

Tu reconhecerias

no contorno transluzente do meu corpo

a desordem ritmada da tua carícia que minha mãe bebeu

no dia em que se banhou nas tuas espumas,

quase ao me dar à luz,

e mergulhou, afinal, sondando-te a profundidade,

onde encontrou minhalma!

 

(Antologia Poética. Belém: 1995)

 

(Ilustração: Victor Meirelles – Moema)

 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

UM ÔNIBUS NA ESTRADA, de Ugo Giorgetti

    



O ônibus Mercedes-Benz novinho entrava na Via Anchieta em velocidade moderada. Estava quase lotado. Seus confortáveis assentos eram ocupados por pessoas de várias idades e aspectos, desde crianças até senhores de idade já meio avançada. Todos se comportavam como passageiros em ônibus de viagem. Olhavam a paisagem, alguns liam, uma ou outra mãe comentava alguma coisa com sua criança. Num dos assentos centrais sentava-se um senhor, inegavelmente estrangeiro, talvez do Leste Europeu, olhar bondoso e azul que passava lentamente de uma pessoa a outra, de algo mais longe para algo mais perto, sempre com um quase sorriso perpétuo nos lábios. Devia ser padre porque se vestia como padre.

Era em frente dele, a um metro de distância, ou pouco mais, que estava colocada a câmera. Atrás da câmera, algumas pessoas se ocupavam em ajustá-la e uma delas dirigia breves palavras ao padre. Como se pode imaginar, tudo naquele ônibus era falso. Os passageiros não eram passageiros reais, mas figurantes, extras, atores secundários contratados para fazer parte de uma cena de filme. O “padre” era um famoso ator, na verdade um lendário ator de teatro, russo de nacionalidade, cujo nome era Eugênio Kusnet, que hoje dá seu nome ao antigo e mitológico Teatro de Arena, no Centro de São Paulo, pertinho da Igreja da Consolação.

O que estava sendo filmado era um comercial da própria Mercedes-Benz destinado a demonstrar o conforto e a comodidade dos novos assentos. Ao “padre” competia apenas simular através de sutis movimentos de corpo e de expressão o bem-estar que a poltrona lhe proporcionava, de tal forma que, não resistindo, caía rapidamente num sono pacífico, beatífico, com o eterno semissorriso que nunca abandonava. Me parecia incrível que um famoso ator, que tinha encerrado sua participação no grande sucesso que foi a peça Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, com direção do então jovem José Celso Martinez Corrêa, pudesse se prestar a fazer um trabalho tão pouco significativo, tão simples, diria quase tão medíocre.

Eugênio Kusnet tinha trabalhado na Rússia com grupos de teatro ligados a Constantin Stanislavski, o criador do famoso método de preparação de atores que correu Europa, Estados Unidos e é largamente utilizado até hoje. Como então um homem que tinha trabalhado e estudado sob a influência direta de Stanislaviski poderia estar em algum lugar da Via Anchieta, num ônibus cheio de figurantes, que aliás não tinham a menor ideia de quem fosse ele, vestindo uma batina de padre, sorrindo como um querubim?

Fiquei observando o homem e pensando como era difícil a profissão de ator no Brasil. Naqueles anos desse longínquo comercial da Mercedes ainda não havia uma poderosa televisão. Ao contrário, a televisão em geral era hesitante, quase tão incerta como o teatro e o cinema como possibilidade de trabalho para atores. Os filmes publicitários se apresentavam como uma saída rápida e, às vezes, salvadora. De qualquer maneira, me surpreendia um ator dessa qualidade naquele papel.

A segunda surpresa, porém, que me tocou bastante, foi verificar a maneira como Kusnet se dedicava ao seu miserável papel. Não o tratava com desprezo, nada em sua atitude demonstrava que estava fazendo um trabalho menor, quase ridículo. Tratava aqueles pequenos movimentos que devia fazer com todo cuidado, repetia várias vezes um mesmo gesto, ouvia atentamente o que o diretor do comercial lhe dizia, com o mesmo interesse como se estivesse no palco do Arena para uma cena importante. Nada lhe escapava, prestava atenção em toda a sua atuação, procurando fazê-la melhor ainda. Dava a impressão de que não estava fazendo um mero comercial, mas teatro. Estava representando, sua tarefa era representar, tinha sido contratado para exercer sua profissão. Não fazia, ao menos não demostrava que fazia, qualquer julgamento sobre o que estava representando. Parecia até não se importar muito com isso. Tudo em sua atitude era de uma dignidade impressionante.

Me deu a certeza de que aquele homem estava atuando em nome da dignidade de sua profissão. O papel podia ser pobre, menor e insignificante, mas a profissão não. E sua dignidade tinha que ser mantida em qualquer circunstância. Deveria estar presente inclusive quando o papel parecesse prescindir dessa dignidade. E dela ele não abria mão. Fez tudo o que o roteiro do comercial exigia. Repetiu as cenas quantas vezes se julgou necessário. A filmagem parava ocasionalmente porque a luz se movia lá fora e muitas vezes era necessário encontrar outro lugar na estrada para que a luz voltasse a ser adequada. A filmagem foi interrompida várias vezes porque o negativo tinha de ser recarregado ou para a troca de lentes ou por outros motivos que eu não compreendia muito bem.

A atitude de Kusnet era sempre a mesma. Nunca demonstrou cansaço ou contrariedade com as interrupções. Nunca perguntou quando aquilo iria acabar. Foi a primeira vez que tive o privilégio de ser o primeiro espectador de um ator exercendo sua arte. E foi a primeira lição que apreendi na atividade de fazer cinema. Outras e outras vezes presenciei atores exercitando sua incrível tarefa. Tive inúmeras oportunidades de me admirar e entusiasmar. Mas essa primeira demonstração de respeito pela própria profissão que, involuntariamente, o grande ator Eugênio Kusnet me deu, nunca esqueci. Ficou muito distante agora, isso aconteceu na metade dos anos 60. Era meu primeiro dia participando de uma filmagem. Não poderia ter sido melhor.



(Ilustração: Eugênio Kusnet - em Pequenos Burgueses - Direção de José Celso Martinez Corrêa - Teatro Oficina - 1963)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

GEOGRAFIA I, de Adalberto de Queiroz


  

Quando a Vila Jaiara era do mundo

O centro vital; se mais longe houvesse,

Lá chegara, aos saltos, de susto tomado

Em mim mesmo; silente rezava o missal.



Corria pelos campos – da savana, cerrado.



O medo do sistema heliocêntrico

Ainda não perdera: o medo de ser

Só. Eu vivia com meus irmãos e irmãs –



Éramos uma centena de bichinhos

Em torno de nossa mãe adotada,

A quem chamávamos de Senhora.



E em torno dela, tudo girava, girava…



Os grandes mandavam-nos, sorrateiros,

Andar pelo cerrado em busca de tudo:

Gabirobas, cajuzinhos, goiabas …

Na Vila Jaiara havia tanta coisa mais.

A casa de Helena; de deuses onde doces.

Que à caminhada tornava clara para nós.

Centro luminoso em que a ceia do Senhor.



Não havia São Paulo ou Rio de Janeiro –

No máximo: Belo Horizonte, Araxá

Povoavam nossos sonhos.

E talvez Ouro Preto e Divinópolis –

Onde Dora reinava…



– Goiânia, São Petersburgo e Tegucigalpa – só no Atlas.



Anápolis era outra estória: a cidade, o comércio longe demais…



Ali na Jaiara estava o centro de tudo

e no centro de tudo o amor:

Laíde Epifânia me nomeara “Maninho”.



Naquele tempo, na nossa vila, não passava um rio.

Mas havia a fábrica de tecidos, onde Jorge –

Noivo de minha irmã – tecia a união e afeto

E me ensinava a andar de bicicleta.



Do Vietnã, só soube no ginásio.




(Cadernos de Sizenando, vol. II, 2016)

(Ilustração: Vila Jaiara - Anápolis - linha de produção da fábrica de tecidos em 1965)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

PERNAMBUCANAMENTE SE DIZ: O CÃO CHUPANDO MANGA, de Raul Lody

 



Gilberto Freyre, sociólogo, antropólogo pernambucano autor de Casa Grande & Senzala, e especialmente para os interessados em gastronomia, também autor de Açúcar (1937), dizia do hábito de comer manga de garfo e faca. Bem, é esse um hábito muito especial, visto que para os apreciadores da manga, fruta oriental, que certamente chegou da Índia para o Brasil, estabelecendo-se uma relação física, quase sexual.

Comer ou chupar manga, como é comum ouvir-se, reveste-se em um ritual que se inicia na escolha olfativa da fruta, que certamente seduz o usuário pelo perfume da terebentina. Depois a cor: mangas rosadas, amarelas, alaranjadas, umas quase vermelhas são identificadas, notando-se ainda volume e assim o tipo ou qualidade de cada espécie. Após a apreciação e seleção, segue-se o toque para saber a textura, e se está no ponto; madura, pronta para ser comida ou chupada.

Então, finalmente, após tantos processos a manga é vorazmente sugada, mordida, chupada, mastigada, retirando-se a fina casca com os dentes, com os dedos, com o uso de uma faca ou joga-se a fruta no chão para ficar cremosa, quando se faz um delicado orifício para sorver um misto de carne-polpa e caldo grosso, delirantemente deliciosos.

Assim, num diálogo corporal que vai além da boca, sujando o rosto, as mãos e outras partes, a manga é plenamente consumida em sequência de ludicidade, de uma fruta que é descoberta até o caroço, também alvo de largas chupadas, algumas “fiapentas”, outras carnudas, ainda rijas, moles, contudo todas deliciosas.

Lembro-me em Havana dos chamados Filés de Manga, pedaços generosos, como se fossem filés de carne, para serem misturados às saladas ou então para serem egoisticamente consumidos sozinhos, celebrando a essência da fruta tropical que se mostra em cachos nas mangueiras - lindas árvores que dão sombra e dão sabor.

Pergunta-se: então o que é mesmo o cão chupando manga, expressão popular do Nordeste, especialmente em Pernambuco. O imaginário nasce de uma leitura entre o cão, o diabo e a manga, fruta que exige técnica para ser consumida. Contudo a imagem-metáfora é a do animal tentando comer/chupar uma fruta tão complexa, a manga.

Fica então a cena de um cão chupando manga, ritual que implica em um animal se relacionando com a fruta que lambuza, que mela de amarelo, que faz mais o corpo comer do que a boca. Que cena!



(Ilustração: Rosa Bonheur - A Limier Briquet Hound – 1856)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

ODE À CASSANDRE / ODE A CASSANDRA, de Pierre de Ronsard

 


 



Mignonne, allons voir si la rose

Qui ce matin avait déclose

Sa robe de pourpre au soleil,

A point perdu, cette vêprée,

Lés plis de sa robe pourprée,

Et son teint au vôtre pareil.



Las,voyez comme en peu d’espace

Mignonne, elle a dessus la place

Las, las, ses beautés laissé choir!

O vraiment marâtre Nature.

Puisqu’une telle fleur ne dure

Que du matin jusques au soir.



Donc, si vous me croyez,Mignonne,

‘ Tandis que votre âge fleuronne

En sa plus verte nouveauté,

Cueillez, cueillez votre jeunesse:

Comme à cette fleur, la vieillesse

Fera ternir votre beauté.



Tradução de Andrei Cunha (2019):



Menina, vem ver se a rosa

Que abriu de manhã vaidosa

Ao sol seu vermelho vestido

Guardou numa tarde assim

As dobras da flor tão carmim

Como teu rosto – ou parecido.

Ai, Menina! olha que não!

Em pouco tempo, já está no chão.

Que madrasta essa Natureza,

Que da manhã até o sol se pôr

Não dure uma tão bela flor

E no chão acabe sua beleza.

Então, se me crês, ô Menina,

Enquanto tua tez não declina,

E inda verdes tens amores,

Colhe, e aproveita a meninice:

Pois como a rosa, a velhice

Fará murchar tuas flores.



Tradução de Mário Laranjeira (2004):



Querida, vamos ver se a rosa,

Que esta manhã abriu garbosa

Ao sol seu purpúreo vestido,

Não perdeu, da tarde ao calor,

De sua roupa a rubra cor,

E o aspecto ao vosso parecido.



Ah! Vede como em curto espaço,

Querida, caiu em pedaços,

Ah! ah! A beleza que tinha!

Ó mesmo madrasta Natura,

Pois que uma flor assim não dura

Senão da manhã à tardinha!



Então, se me dais fé, querida,

Enquanto a idade está florida

Em seu mais viçoso verdor,

Colhei, colhei a mocidade:

A velhice, como a esta flor,

Fará murchar vossa beldade.



Tradução de R. Magalhães Jr. (1972):



Vem, amor, vem ver se a rosa

Que ontem, fresca e perfumosa

Se abriu ao sol estival,

Não perdeu o viço ainda

E conserva, rubra e linda,

Cor à de teu rosto igual.



Oh, amor! Vê quão depressa

Fenecendo, a rosa cessa

De ser bela e ser louçã!

Como é madrasta a Natura,

Pois que tal flor jamais dura

Do entardecer à manhã!



Meu conselho é, pois, amor,

Que, enquanto na vida em flor,

Encantos possam sobrar-te

Colhe, colhe a mocidade,

Pois como à rosa a idade

Da beleza há de privar-te.



(Poetas Franceses de Renascença; seleção, apresentação e tradução de Mário Laranjeira)



(O livro de ouro da poesia da França; tradução de R. Magalhães Jr.)



(Ilustração: Claude Mellan (1598-1688)Pierre de Ronsard et Cassandre Salviat)