sábado, 18 de fevereiro de 2023

INTÉRPRETE, PRECISA-SE, de José António Baço

         



Imagine, leitor brasileiro, como seria se, num passe de mágica, você pudesse viver um dia da sua vida em Portugal. Ou seja, de um momento para outro viver um dia à portuguesa.

Pensa que seria fácil?

O problema é que mesmo as coisas simples no dia-a-dia exigiriam uma adaptação. Ou, talvez, até mesmo um intérprete.

O que vem a seguir é uma descrição do que seria um dia em terras lusas. Acha que conseguiria safar-se? Por via das dúvidas, as palavras diferentes estão numeradas e os significados no final do texto. O significado de algumas é fácil depreender. Outras, nem tanto.

Vamos imaginar como seria o dia de um brazuca em Portugal.

Logo ao acordar pela manhã, enquanto veste as peúgas (1) e aperta os atacadores (2), você ouve na telefonia (3) o aviso de que o trânsito está virado num oito (4).

É que houve um toque (5) entre uma carrinha e um TIR (6) e, apesar de os socorristas já terem retirado os veículos para a berma (7), há ainda alguns troços (8) condicionados, onde os condutores (9) permanecem no para-arranca (10).

Há bichas (11) por todos os lados e talvez as melhores alternativas sejam o autocarro (12) ou o comboio (13).

Você toma o último gole da sua bica (14), termina o pequeno-almoço (15) e, como tem que levar os putos (16) ao infantário (17), a única hipótese é mesmo ir de cu-tremido (18). Depois de uma seca (19) de quase três quartos de hora (os portugueses medem o tempo por quartos de hora) no trânsito, finalmente chega ao trabalho e logo recebe uma ligação.

A telefonista avisa que para atender a chamada na sua extensão (20) tem que carregar (21) no botão. Do outro lado da linha está a sua mulher a lembrar que é a semana de pagar a mulher-a-dias (22) e pede que passe no multibanco (23) para levantar (24) dinheiro, porque o livro de cheques (25) acabou.

Você vai ligar o computador e tem um post-it pregado no ecrã (26). Logo percebe que vai ficar entalado (27). É um recado do seu chefe a avisar que hoje não vem trabalhar. Quer dizer: ele se baldou (28) e você tem que resolver os todos problemas.

Depois de uma intensa azáfama (29), lá pelo final da manhã a barriga já está a dar horas (30). Mas ao invés de ir almoçar à tasca (31) de todos os dias, prefere comer apenas uma sandes (32) no “snack” (33) da esquina. É que assim tem mais tempo para ir até o pronto-a-vestir (34) comprar a prenda de anos (35) da mulher. Fica indeciso entre um fato-de-treino (36) e umas cuequinhas (37) de renda mesmo a matar (38). Mas acaba por levar uma camisola (39) em xadrez castanho e encarnado que estava na “montra” (40).

Ao final do expediente, você está com os azeites (41) e, para complicar, o trânsito está novamente um caos. Então só lhe resta pegar no telemóvel (42) e avisar a sua mulher que vai demorar a chegar. É o cabo dos trabalhos (43).

Bem... o dia ainda não acabou, mas a esta altura você já deve estar convencido de que precisa mesmo de um intérprete. Ou não?



DICIONÁRIO



(1) peúgas, meias

(2) atacadores, cadarços

(3) telefonia, rádio

(4) virado num oito, caótico

(5) um toque, uma pequena batida

(6) TIR, jamanta

(7) berma, acostamento

(8) troços, trechos

(9) condutores, motoristas

(10) para-arranca, andamento lento

(11) bichas, filas

(12) autocarro, ônibus

(13) comboio, trem

(14) bica, café

(15) pequeno-almoço, café da manhã

(16) putos, crianças

(17) infantário, jardim de infância

(18) de cu-tremido, de carro

(19) seca, espera

(20) extensão, ramal

(21) carregar, apertar

(22) mulher-a-dias, diarista

(23) multibanco, caixa 24 horas

(24) levantar, sacar

(25) livro de cheques, talão

(26) ecrã, tela

(27) ficar entalado, com problemas

(28) se baldou, tirou o corpo

(29) azáfama, correria

(30) a dar horas, com fome

(31) tasca, restaurante simples

(32) uma sandes, sanduíche

(33) “snack”, lanchonete

(34) pronto-a-vestir, loja de roupas

(35) prenda de anos, presente de aniversário

(36) fato-de-treino, agasalho esportivo

(37) cuequinhas, calcinha

(38) a matar, bonitas

(39) camisola, camisa

(40) “montra”, vitrine

(41) com os azeites, irritado

(42) telemóvel, celular

(43) cabo dos trabalhos, uma coisa muito difícil



(Ilustração: Francis Smith – Alfama, Lisboa - Portugal – 1920)

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