segunda-feira, 31 de março de 2014

O PRESENTE É AFILHADO DO PASSADO, de Marcelo Rubem Paiva

  



Levei minha afilhada para dar um rolê pelo meu passado. 

Tomamos café. Pão francês quente estalando com dois jornais. Deixaram na madrugada na porta de serviço. Ensinei a ler jornal, virar uma página, sem esfregar os dedos na foto, para não deixar sujos de tinta. Descemos. Estranhou a porta do edifício escancarada. Nada de guarita, grades, cercas, câmeras. Estranhou o porteiro roncando, apesar do radinho de pilha ligado: "Acorda gorda!". Saímos sem incomodá-lo.

Nas casas vizinhas, pão e leite encaixados nas janelas sem grades. Vamos de táxi. Um Fusca vermelho à frente. Fiz o sinal. Perto, reparei que estava ocupado. Lá vinha outro Fusca. Verde. Parou, abriu a porta da frente, deu bom-dia, pulamos para o banco traseiro, puxou a corda de nylon amarrada na porta, para fechá-la. Vamos para o metrô. Nem precisei indicar a estação. Só havia uma linha. 

A menina riu. É, os táxis não seguiam um padrão. Cada um era de uma cor. Fuscas não tinham banco de passageiro na frente. Eram raros carros quatro portas no Brasil. Só para os ricos.

No entanto, apontei, olha lá, os ônibus são padronizados, todos da mesma companhia, CMTC, todos com listas, azul e branco, como pijama de presidiário, ônibus sonolentos, que soltam fumaça escura, fedorenta. O taxista acendeu um cigarro e me ofereceu. Fumamos ouvindo pelo rádio Zé Bettio, com sotaque caipira: "Acorda, gorda!". Em BG, barulhos de passarinho, de gado. "Sete e treze em São Paulo. Acorrrdaaa!" Minha sobrinha ria. Mal sabia que era o programa primeiro lugar em audiência. Que ele era o maior salário da rádio brasileira. Que milhões o escutavam às manhãs: "Gorda, acorda!"

Fomos de metrô até a Estação São Bento. "Não é perigoso, tio?" Não, aqui é tranquilo. Perigoso é só na Praça da Sé, onde tem uns gatunos. Pelo resto da cidade, não tem problema.

Um grupo se acumulava na lateral da banca de jornal. Lia as capas expostas, pregadas como roupas num varal. Nos juntamos a eles. De repente, alguns jornais eram trocados. Por suas versões matinais. Porque tinham as edições noturnas, matinais e vespertinas. Tinham os tabloides eventualmente recolhidos pela censura. Uma banca de jornal era movimentada. Sempre cercada. Era o ponto de encontro de cada quarteirão. "Como o Twitter", ela disse. Como.

Descemos a Rua Direita, atravessamos o Viaduto do Chá e fomos tomar um café na Leiteria Americana. Sentamos numa mesa com toalha branca e cheirosa e guardanapos brancos e cheirosos. Um garçom com calça preta e avental branco nos atendeu. "Uma vez, minha mãe quando era estudante viu o Oswald de Andrade naquela mesa, tomando café. Ele frequentava este lugar." A menina perguntou se pediu autógrafo, falou com ele. "Ela diz que não. Que, naquela época, não se interrompia os devaneios de um escritor, de uma pessoa famosa."

"Nem fotos?" 

Não, garota, ninguém carregava uma câmera fotográfica portátil no bolso acoplada a um mini telefone, com toda coleção de discos, álbuns de fotos, agenda, banco de dados, bússola, TV, despertador, correio, até aplicativos para transações bancárias, compras de passagem, que cabe na palma da mão. A maioria das pessoas nem telefone tinha.

Demos uma volta pelas livrarias da Barão de Itapetininga. Eram enormes, entulhadas. Pelas lojas de disco da 24 de Maio. Ela se surpreendeu, pois loja de sapato se chamava Sapataria, loja de roupa, Casa das Camisas, Casa dos Ternos, Casa das Cuecas, que lanchonetes se chamavam Lanchonete, Sucos, Sanduíches, que quem vendia óculos era Ótica, e relógios, Relojoaria. Que os únicos ambulantes tinham placas com dizeres "Compro Ouro". Que as ruas eram limpas, as pessoas, elegantes e magras. 

Fomos até a Praça da República e, num banco, sob o sol que confrontava a névoa, tomamos um sorvete. "Estudei naquela escola no primário", apontei para o prédio do Caetano de Campos. "Minha avó morava naquele prédio", apontei para o luxuoso edifício da 7 de Abril. "Eu fugia da aula, pedia para alguém me ajudar a atravessar a avenida, a pessoa me dava a mão, atravessávamos, e me deixava naquela portaria. De uniforme. Bermuda azul, camisa de abotoar branquinha, meia até o joelho e sapato engraxado. Eu mesmo engraxava." "Você tem saudades?" "Claro que não. Você ia demorar para nascer." 

Pegamos o trólebus até a Estação da Luz. Subimos a Rua Mauá. Na Praça General Osório, barricadas impediam a passagem de pedestres. Precisávamos atravessar a rua e caminhar pelo outro lado da calçada. Antes que ela perguntasse, expliquei: "Este prédio é o Dops. Ninguém pode passar em frente."

Na Estação Júlio Prestes, pegamos o trem húngaro até Campinas. Rápido, confortável, com ar condicionado. Em 50 minutos, passeávamos pelo centro de Campinas. Fizemos um piquenique no coreto da Praça Carlos Gomes.

"As pessoas são emburradas", comentou.

"As pessoas têm medo."

"De gatunos?"

"Não. Não deles."

"Teu passado parece triste."

"Um pouco. Todos devem ser. Quer voltar pro presente?"

Ela fez afirmativo. Não deu tempo para mostrar as pensões em que morei. Pensei que o passado era mais feliz. Mas passado não é melhor nem pior. Existe porque ainda estamos no presente. Que existe graças ao passado. Mais que parente, o presente é seu afilhado. E as tristezas, relegadas. Voltamos num Cometa.



(OESP, 13.7.2013)




(Ilustração: São Paulo 1970 - Ponte de pedestre sob Viaduto do Chá, 1970 - foto do blog São Paulo de Minhas Memórias (http://saopaulominhasmemorias.blogspot.com.br/)





















sexta-feira, 28 de março de 2014

MIRROR / ESPELHO, de Sylvia Plath









I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see, I swallow immediately.
Just as it is, unmisted by love or dislike
I am not cruel, only truthful —
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me.
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.




Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça:


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.




(Poemas)


(Ilustração: Damian Klaczkiewicz)




segunda-feira, 24 de março de 2014

O CRIME DE LORDE ARTHUR SAVILE, de Oscar Wilde

  





Às duas da manhã, ele se levantou e perambulou até o Blackfriars. Tudo parecia irreal! Tal qual um sonho estranho! As casas do outro lado do rio aparentavam ter se erguido das trevas. Poder-se-ia dizer que prata e sombras haviam novamente forjado o mundo. A enorme cúpula da São Paulo avultava-se como uma bolha em meio ao ar empoeirado. Ao se aproximar da Agulha de Cleópatra, ele viu um homem inclinado sobre o parapeito e, quando se acercou dele, o sujeito olhou para cima, a luz do lampião a gás incidindo plenamente em seu rosto. Era o Sr. Podger, o quiromante! Ninguém poderia confundir sua face gorda e flácida, óculos de armação dourada, o doentio e débil sorriso, a boca sensual. Lorde Arthur parou. Uma ideia brilhante percorreu sua mente e, sorrateiro, ele se achegou para trás. Num instante, havia agarrado o Sr. Podgers pelas pernas e o lançado ao Tâmisa. Houve uma imprecação vulgar, uma forte pancada na água e depois quietude. Lorde Arthur olhou ansiosamente para o rio, mas não pôde ver sinal do quiromante além de uma cartola, fazendo piruetas num redemoinho iluminado pelo luar. Depois de um tempo, também afundou e mais nenhum vestígio do Sr. Podgers continuou visível. Assim que julgou vislumbrar uma figura disforme e desajeitada debatendo-se em direção à escada da ponte, uma sensação horrível de fracasso apoderou-se dele, mas, no fim, tudo não passou de um reflexo. E quando a Lua tornou a brilhar, saindo de trás de uma nuvem, a imagem esvaiu-se. Por fim, ele pareceu ter-se dado conta do decreto do Destino. Soltou um pesado suspiro de alívio e o nome de Sybil veio aos seus lábios.

- Deixou cair alguma coisa, Senhor? - disse repentinamente uma voz às suas costas. Ele se virou de supetão e viu um policial com uma lanterna.

- Nada de importante, sargento - respondeu, sorrindo e acenando para um cabriolé que passava. Saltando para seu interior, disse ao condutor que rumasse à praça Belgrave.




(Lord Arthur Savile's crime; citado em "Do Inferno", de Alan Moore e Eddie Campbell; tradução de Jotapê Martins)



(Ilustração: Agulha de Cleópatra - Cleopatra's needle - London; foto da internet, sem indicação de autoria).




quarta-feira, 19 de março de 2014

FRUTOS E FLORES, de Marina Colasanti





Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.

As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.




(Ilustração: Andrzej Malinowski - Pomme endormie)


segunda-feira, 17 de março de 2014

EUCARISTIA, de Andréa del Fuego





                     


Bárbara ama seu esposo. Mas deseja muito mais.

Nem ela sabe o que sente. Filhos e esposo não desconfiam da languidez dos pensamentos. O companheiro não usa como ela os porões da alma. Seu fascínio é arranhado pelas forças externas e por ela mesma, que não se desvenda. 

Bárbara aclama São Jorge. Não há manifestação em que acredite mais, em que confie tanta profundeza e pele. As vizinhas foram se aproximando pelas respostas que nutriam alguma coisa, elas não sabiam o quê. Bárbara nunca soube de sua importância e assim foi melhor.

Acordou cedo, as pálpebras se abriram para o branco do teto, nem eram seis da manhã. Os ombros ajeitaram a cabeça dando a visão das samambaias que choravam do vaso ao chão. Levantou. Banhou o corpo com água quente. Passou um café forte acordando pelo cheiro a família. O chefe da casa saiu para o trabalho vestindo duas tonalidades de azul, cores que a empresa exigia de seus motoristas. Com cinco salários não era possível saciar os desejos de uma mulher e dois filhos. Por isso, Bárbara vende bijuteria e lingerie para as vaidades. Rendas beges, correntes e pingentes de bonequinhos representando a prole. 

Sabia-se o sexo da ninhada pelo colar folheado a ouro. Bastava uma delas usar algo diferente para que desencadeasse uma uniformização no bairro. Unidas as mulheres. Quarentonas, dissolviam as tensões na calçada mesmo, debaixo do sol quente, conversando sobre violência, orixás e homens. 

Desde a infância, Bárbara segue procissão pelo Santo Guerreiro. Caminha surda para os batimentos cardíacos do mundo. Caminha como sangue nas veias daquele que entrega a própria espada. 

A chapa delgada e fria estanca a fome dos demônios.

O Guerreiro recebe glórias numa mesinha, baseada no corredor entre quarto e banheiro, é iluminada por grossas e brilhantes colunas de cera. Bárbara bate os joelhos em frente ao altar todos os dias, o cavaleiro de gesso repousa num tecido urdido por suas mãos.

A fé é seu pilar central.

Não teme a morte do corpo, mas as necessárias para se encaixar na órbita dos elétrons, no eterno. 

O filho mais velho sugeriu ao pai que levasse a mãe ao médico, assustado que estava com o olhar longo e fixo que Bárbara dirigia durante horas para o altar.

Não havia nada de estranho na família, aliás, uma família exemplar com as conveniências sociais. Nenhuma doença que entregasse alguém para a morte, nenhum acidente, nenhuma ruptura. Nada que justificasse tal isolamento intenso e estranho.

Algo faz retorcer seu corpo nas oito horas em que dorme, assim igual só o parto. Quando não se lembra dos sonhos, amanhece preenchida de amor. 

Quando se recorda, fica desperta, assombrada. Com medo do esposo, sente que o traiu deitada ao seu lado durante aquelas oito horas. Padece com a distância entre o sonho e o marido. Olha para o companheiro e vê em si a mãe virgem e idolatrada, a culpa seca seus fluidos corporais. Mas só quando olha para ele.

Por onde andará sua alma nas oito horas em que dorme o corpo? 

Plena ou assombrada isola-se naquele corredor estreito para orar sem se importar com a passagem de quem quer que seja.

Na noite deste dia em que o filho se preocupava com a mãe, Bárbara sonhou mais uma vez, passou seu corpo de sonho por entre as grades do inconsciente. Lá, nas temidas delícias, Bárbara vestiu um longo azul. O cabelo era de negro mistério e macio de veludo toque. Sentou-se na perfeita arquitetura, no banco de uma capela.

Sua respiração se ordenou em palavras cantadas. Pontos cantados. Orava hipnótica melodia. As mãos espelhavam um lago, podia fertilizar com a pupila, irradiava. A capela a guardava da maldade não natural das coisas, daqueles que queriam entrar nem que fosse à machadada em seu paraíso.

Deslizando, saiu do templo para fazer as curvas do jardim. Mas um estrondo a interrompeu, na linha que destoa céu e terra, o dragão. A cauda réptil podia cortar até o nunca mais, sem chance de coagulação, de uma conciliação entre glóbulos brancos e vermelhos.

Aproximou-se de Bárbara.

E então, homem e cavalo cruzaram o caminho do irascível.

Vestindo metal, São Jorge dava a sua misericórdia. A lança afiada perfurou as asas do dragão, sem o domínio dos ares, o diabo desistiu de beber no cálice de Bárbara.

São Jorge seguia a brisa vinda dos cabelos dela, perfume. Estava embriagado pelo fermento das uvas de Salomão.

Abraçada pela emanação, ela sabia que era seguida. Não fazia ideia de que aquele homem romperia o resto dos seus himens, membranas que a botavam em cápsula. O leste soprou as mechas negras da devota, São Jorge contemplava vestido e cabelos ondulando como o mar.

Entraram e fecharam as portas da capela.

Abrigaram-se no santo ninho e materializaram a completa união. Quando se tocaram os corpos, nada foi capaz de estagnar as forças. Acenderam a fornalha para a mistura das divinas substâncias.



(Minto enquanto posso)



(Ilustração: Anthony Christian - Lucinda)







quinta-feira, 13 de março de 2014

PEQUEÑO MONUMENTO/ PEQUENO MONUMENTO, de Octávio Paz




    




A Alí Chumacero



Fluye el tiempo inmortal y en su latido


sólo palpita estéril insistencia,

sorda avidez de nada, indiferencia,

pulso de arena, azogue sin sentido.



Resuelto al fin en fechas lo vivido

veo, ya edad, el sueño y la inocencia,

puñado de aridez en mi conciencia,

sílabas que disperso sin rüido.



Vuelvo el rostro: no soy sino la estela

de mí mismo, la ausencia que deserto,

el eco del silencio de mi grito.



Mirada que al mirarse se congela,

haz de reflejos, simulacro incierto:

al penetrar en mí me deshabito.




Tradução de Wagner Mourão Brasil:





Flui o tempo eterno e em sua pulsação

apenas vibra estéril insistência,

surda avidez de nada, negligência,

pulso de areia, azougue sem razão.



Fixado enfim em datas o vivido

Vejo esvaírem-se o sonho e a inocência,

punhado de aridez na consciência,

sílabas que disperso sem ruído.



Volvo o rosto: não sou senão parcela

de mim mesmo, a ausência que deserto,

o eco do silêncio de meu grito.



Olhar que quando se olha se congela,

feixe de reflexos, espectro incerto:

ao penetrar em mim me desabito.







(Ilustração: Jaroslaw Kukowski)














segunda-feira, 10 de março de 2014

O MEL VERDE, de Umberto Ecco









Depois da saída do Poeta, Abdul morava com Baudolino. Certa noite, Baudolino voltou para casa e encontrou Abdul cantando sozinho uma de suas mais belas canções, na qual sonhava encontrar sua princesa distante, mas de repente, quando a via quase próxima, parecia-lhe que estivesse andando para trás. Baudolino não entendia se era a música ou se eram as palavras, ma imagem de Beatriz, que lhe apareceu enquanto ouvia aquele canto, escapou-lhe, desaparecendo no nada, ao seu olhar. Abdul cantava e seu canto jamais parecera-lhe tão sedutor.

Terminada a canção, Abdul prostrou-se exausto. Baudolino temeu por um instante que estivesse para desmaiar e se debruçou sobre ele, mas Abdul ergueu a mão como que para tranquilizá-lo e começou a rir em voz baixa, sozinho, sem uma boa razão. Ria e seu corpo tremia da cabeça aos pés; Baudolino pensava que estivesse com febre; disse-lhe Abdul,sempre sorrindo, que o deixasse estar que se acalmaria, pois sabia muito bem do que se tratava. E, no fim, pressionado pelas perguntas de Baudolino decidiu confessar seu segredo.

"Ouve, meu amigo. Peguei um pouco de mel verde, um pouco apenas. Sei que é uma tentação diabólica, mas às vezes me ajuda a cantar. Ouve, e não me censures. Quando menino, na Terra Santa, eu ouvia uma história maravilhosa e terrível. Contava-se que existia não muito longe de Antioquia uma raça de sarracenos, que morava entre as montanhas, num castelo inacessível, exceto para as águias. Seu senhor chamava-se Aloadin e incutia grandíssimo terror tanto nos príncipes sarracenos quanto nos cristãos. Com efeito, afirmava-se que, no centro de seu castelo, havia um jardim repleto de todas as espécies de frutas e de flores, onde corriam canais cheios de vinho, leite, mel e água, e a seu redor dançavam e cantavam jovens de incomparável beleza. No jardim podiam viver somente os jovens que Aloadin mandava raptar, e naquele lugar de delícias, adestrava-os apenas para o prazer. E digo prazer porque, tal como sussurravam os adultos - o que me fazia corar, perturbado -, aquelas jovens eram generosas e estavam prontas para satisfazer os hóspedes, proporcionando-lhes felicidades inefáveis e, imagino, extenuantes. Assim, naturalmente, quem entrava naquele lugar não desejava mais sair."

"Nada mal esse teu amigo Aloadin ou que raio de nome tivesse", sorriu Baudolino, passando na fronte do amigo um pano úmido.

"É o que pensas", disse Abdul, "porque não sabes a história verdadeira. Certa manhã, um desses jovens acordou num pátio esquálido, exposto ao sol, e se viu acorrentado. Passados alguns dias de sofrimento, levaram-no à presença de Aloadin, aos pés de quem se lançou, ameaçando suicídio e implorando que o levassem de volta para aquelas delícias, sem as quais não podia viver. Aloadin revelou-lhe, então, que ele caíra em desgraça junto ao profeta e que podia apenas cair de novo em suas graças se estivesse disposto a cumprir uma grande missão. Dava-lhe um punhal de ouro e dizia-lhe que, se partisse em viagem, seguisse para a corte de um senhor seu inimigo e que o matasse. Somente assim poderia merecer de novo o que desejava e, mesmo que morresse naquela missão seria admitido no Paraíso, que era em todo o caso igual ao lugar de que fora excluído, aliás, melhor. Eis por que Aloadin possuía tão grande poder e assustava todos os príncipes vizinhos, mouros ou cristãos, pois seus enviados estavam dispostos a qualquer sacrifício."

"Ora", comentou Baudolino, "é muito melhor uma dessas belas tabernas de Paris, e as suas moças, que podemos ter sem dar garantias. Mas o que tens a ver com essa história?"

"Muito, porque quando tinha dez anos fui raptado pelos homens de Aloadin. E fiquei cinco anos junto com ele."

"E com dez anos desfrutaste de todas aquelas jovens de que estás falando? E acaso te mandaram matar alguém? Abdul, o que estas me dizendo?", preocupou-se Baudolino.

"Eu era muito pequeno para ser rapidamente admitido entre os jovens beatos, e fui entregue como servidor a um eunuco do castelo, que se ocupava de seus prazeres. Mas, ouve o que acabei descobrindo. Durante cinco anos nunca vi jardim algum, porque os jovens estava sempre e tão somente acorrentados em fila naquele pátio batido pelo sol. A cada manhã um eunuco tirava de um armário certos vasos de prata, que guardavam uma pasta parecida com mel, mas de cor esverdeada, passava por cada um dos prisioneiros e lhes dava aquela substância. Eles a saboreavam, e começavam a contar a si mesmos e aos outros todas as delícias de que trata a lenda. Passavam o dia de olhos abertos, sorrindo, felizes. Ao anoitecer sentiam-se cansados, começavam a rir, às vezes de forma discreta, às vezes imoderada e depois adormeciam. Conforme crescia, compreendi o engano a que eram submetidos por Aloadin: viviam acorrentados, achando que estivessem no Paraíso, e para não perder aquele bem, tornavam-se instrumento da vingança de seu senhor. E se depois voltavam salvos de suas missões, acabavam novamente acorrentados, mas voltavam a ver e sentir aquilo que o mel verde lhes fazia sonhar."

"E tu?"

"Certa noite, enquanto todos dormiam, entrei onde ficavam os vasos de prata que guardavam o mel verde e provei um pouco. Provei? Engoli duas colheres e de repente comecei a ver coisas prodigiosas..."

"Te sentias no jardim?"

"Não, eles deviam sonhar com o jardim porque, ao chegarem, Aloadin falava com eles do jardim. Creio que o mel verde faz ver o que cada um quer ver no fundo de seu coração. Eu estava no deserto, ou melhor, num oásis, e vi chegar uma esplêndida caravana de camelos, todos enfeitados com penachos e um bando de mouros com turbantes coloridos, que tocavam tambores e címbalos. E atrás deles, num baldaquim levado por quatro gigantes, era Ela quem chegava, a princesa. Já não sei dizer como era, era... como posso dizer... fulgurante, lembro apenas de um raio, de um maravilhoso esplendor..."

"Mas como era o seu rosto, era belo?"

"Não cheguei a ver o seu rosto, estava com um véu."

"Mas, então, por quem te apaixonaste?"

"Por ela, porque não a vi. Uma doçura infinita tomou conta de meu coração, um langor que nunca mais se apagou. A caravana afastou-se rumo às dunas, entendi que aquela visão não voltaria mais, e disse para mim que deveria ter seguido aquela criatura, todavia comecei a rir ao amanhecer, pensando que fosse de felicidade, mas era o efeito produzido pelo mel verde quando seu poder se acaba. Quando acordei o sol já estava alto, e por pouco o eunuco não me surpreendeu adormecido naquele lugar. Desde então, decidi que deveria fugir para encontrar a princesa distante."

"Mas compreendeste que era apenas o efeito do mel verde..."

"Sim, a visão era uma ilusão, mas o que eu sentia agora dentro de mim não era uma ilusão, mas um desejo verdadeiro. Quando sentes um desejo, ele deixa de ser uma ilusão, passa a existir."

"Mas era o desejo de uma ilusão."

"Mas eu não queria mais perder aquele desejo. Era o suficiente para dedicar-lhe a vida".

Em poucas palavras, Abdul conseguiu encontrar uma forma de fugir do castelo, e conseguiu reunir-se com a família, que o considerava perdido. Seu pai, preocupado com a vingança de Aloadin, decidiu afastá-lo da Terra Santa e mandá-lo a Paris. Abdul, antes de fugir de Aloadin, levou um dos vasos do mel verde, mas explicou a Baudolino que não o havia mais tomado, pelo temor de que a maldita substância o levasse para aquele mesmo oásis, a reviver infinitamente o seu êxtase. Não tinha ideia se poderia resistir à emoção. Ademais a princesa já estava com ele, e ninguém poderia tirá-la de si. Melhor desejá-la como meta do que tê-la numa falsa lembrança.

Depois, com o passar do tempo, e par encontrar força para as suas canções, nas quais estava a sua princesa, presente na distância, decidiu correr o risco de tomar um pouco do mel, muito pouco, na ponta da colher, o suficiente para dar gosto à língua. Tinha êxtases de pequena duração, e assim fizera naquela noite.





(Baudolino, tradução de Marco Lucchesi)




(Ilustração: Angelo Bronzino - Allegorie des Glüks, alegoria da felicidade)










sexta-feira, 7 de março de 2014

A LECTURE UUPON THE SHADOW / PRELEÇÃO SOBRE A SOMBRA, de John Donne








Stand still, and I will read to thee
A lecture, love, in love's philosophy.
These three hours that we have spent,
Walking here, two shadows went
Along with us, which we ourselves produc'd.
But, now the sun is just above our head,
We do those shadows tread,
And to brave clearness all things are reduc'd.
So whilst our infant loves did grow,
Disguises did, and shadows, flow
From us, and our cares; but now 'tis not so.
That love has not attain'd the high'st degree,
Which is still diligent lest others see.


Except our loves at this noon stay,
We shall new shadows make the other way.
As the first were made to blind
Others, these which come behind
Will work upon ourselves, and blind our eyes.
If our loves faint, and westwardly decline,
To me thou, falsely, thine,
And I to thee mine actions shall disguise.
The morning shadows wear away,
But these grow longer all the day;
But oh, love's day is short, if love decay.
Love is a growing, or full constant light,
And his first minute, after noon, is night.



Tradução de Aíla de Oliveira Gomes:



Espera, que uma preleção eu vou te ler,
Amor, sobre o amor e sua filosofia.
Nessas três horas de nosso lazer,
Aqui vagando, um par nos precedia
De sombras, que eram por nós mesmos projetadas;
Ora o sol está a pino sobre nós, tu vês,
E nossas sombras, sob nossos pés;
E tudo se reduz à brava claridade.
Assim, ao que nosso amor infante crescia,
Nossas sombras, o nosso disfarce, sumia
De nós e nossos medos; mas avança o dia.
Nenhum amor atinge o seu mais alto grau
Enquanto a vista alheia teme, como um mal.


A menos que o amor no zênite haja parado,
Produziremos novas sombras do outro lado.
Se as primeiras servem a nos ocultar,
Aos outros cegando; estas, a atuar
Atrás de nós, é qual a nós mesmos cegar.
Se nosso amor definha e declina no poente,
Tu a mim e eu a ti, falsamente,
Nossas ações deixamos se disfarcem
Entre nós. As sombras da manhã se desfazem;
Estas crescem sempre mais, todavia,
Pois, ai! se o amor se esvai, curto é o seu dia.
O amor é uma luz sempre crescente e constante;
Seu primeiro minuto após meio-dia é noite.



(Ilustração: Hans Galcung Grien - ages woman death)



terça-feira, 4 de março de 2014

A SOMBRA DAS NUVENS NO MAR, de Inês Pedrosa







Só nos livros o amor racha corações em relâmpago.

Dinamene tomava vagares e quando atingia o sobressalto do sossego do acordo consigo mesma, o seu corpo mudava-se. De negro, fazia-se branco, de branco doirado, e depois moreno espesso. Talvez fora da ilha o tempo voltasse e Dinamene pudesse conquistar a efémera angustia de uma identidade de mulher. Tentara barcos e pássaros, as ondas e depois o fundo do mar, mas as águas e os ares devolviam-na repetidamente. Queria morrer e flutuava. Queria amar-se e mudava. Acordava sem saber de si, o sangue em forma de pedra, as pernas de âmbar, os cabelos de cedro velho e o rosto de mogno com uma mobília de palácio.

A mágoa das matérias – pedra ou barro – chorava em círculos pesados dentro dela. Se ao menos tivesse memória. Olhava e tudo o que via era beleza: encostas verdes carregadas de flores, uma cidade cor de rosa encostada a navios grandes que à noite iluminavam o mar a toda a volta. Mas nem estas coisas simples Dinamene chegava a nomear. Quando se aproximava das palavras o seu corpo transfigurava-se e era como se a vida recomeçasse de um princípio que ela já conhecia mas nunca chegava a aprender. De qualquer maneira as pessoas ficavam a contemplá-la. Diziam: "Coitadinha! Tão bonita!" e ela sentia um fio de água (ou de seiva, ou lama, ou ouro, dependendo do dia) descer-lhe pelo rosto. Sonhava que era uma rapariga como as outras, com uma só pele para envelhecer devagarinho e colecionar fotografias e remorsos. Havia no sonho uma voz fatalista: "Serás sempre uma árvore apaixonada pelos barcos, é essa a tua maldição", e quando ela queria perguntar porquê o sonho acabava e o espelho mostrava-a outra, cada vez mas condenada à eternidade, que é o sítio de onde todas as recordações desapareceram. Olhava para as barrigas redondas das mulheres cheias, efémeras, íntimas e distantes como brinquedos, olhava-as com tal ausência que as comovia. As mulheres pegavam na cabeça loura e negra de Dinamene e encostavam-na à pele estoirada dos seus ventres. O som monótono da mortalidade deixava-a com saudades de ser feliz.

Dinamene nascera um dia, experimentara o terrível prazer da precariedade. Às vezes, os olhos dos homens traziam-lhe um violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela se lhe mudara em granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe então na cabeça que a ilha havia de ter um buraco, um lugar por onde a queda pudesse ser definitiva. Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de poços, grutas e covas porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela não tinha qualquer ideia do que fosse uma escola. Correu a ilha toda muitas e muitas vezes, e quanto mais corria mais o seu corpo se afastava da terra. Pisava orquídeas e elas voltavam-se para o sol, como se em vez de pisadas tivessem sido acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos e congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha pôs-se a baloiçar como uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma fortaleza de pedra roubada ao tempo dos piratas. A primeira sala parecia uma caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um labirinto de andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de desenhar cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por reparar que sempre que suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho na mesa do fundo, que podia ser de frades ou arquitectos ou poetas. Queria tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas mãos dela. E o giz marcou o caminho da segunda sala, que era depois de uma ponte estreita, e quando ela entrou na segunda sala começou a nevar lá fora. Dinamene olhou para as mãos porque de repente o seu corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a pele desatou a encarquilhar-se muito depressa, até ficar cor de pergaminho, como os velhos ou os recém-nascidos. Não havia ali espelho que confirmasse a situação de Dinamene. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a água lhe reflectia os contornos, em dias de controlada luz. Deitou-se no chão, ao lado de uma espiral de flores que ali havia, e deixou-se cobrir pelas pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o sabor metálico do sangue.

E então Dinamene lembrou-se. As imagens acudiam-lhe em tropel, recortadas em riso, assimétricas, numas cores ferozes de vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e as suas mãos pequenas, pacientes, construíam uma cidade de fósforos. Crescera em volta daquela cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade estava rodeada por uma verdadeira muralha de papel. Pegou na primeira folha e leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha Dinamene, eternamente. Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e reduziu a cinzas a sua infância inteira. Dinamene decidiu esquecer. Coleccionou fotografias até inventar uma família que lhe ficasse bem. Às vezes deixava-se arruinar, às vezes bordava panos para os barcos que partiam. Quando se cansou de imaginar começou a copiar gestos e sentimentos dos romances. Não corria o perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeça. Nada era para sempre, nada merecia o empenhamento de uma existência, tudo fogo que arde. Era a única mulher que gostava de envelhecer. Entediava-a a ideia de acordar todos os dias da vida com a mesma pele lisa dos objectos sem passado. Amava as imperceptíveis corrosões do tempo, talvez por isso parecia cada dia mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, tão determinada se apresentava sempre a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a persistência que as pessoas punham nos actos, para o bem como para o mal. Por isso mesmo, desencadeava paixões furiosas. Troçava da persistência das guerras e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indiferença material. Nunca saíra da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos os sentidos pousados nas substâncias passageiras. Divertia-a o jogo das intensidades, donde começou a murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do desengano coincidiram com os limites físicos da ilha, e a colecção de apaixonados transbordou numa multidão de revoltados.

Dinamene foi convidada para uma festa no alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro. Quando ela entrou, com um vestido da cor do Tempo, todos – homens e mulheres – suspiraram de desejo e pavor. Avançaram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado e pediram-lhe que bebesse aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida continha a fórmula da felicidade eterna. De certa forma, era verdade. Naquele jarro estavam as lágrimas de todas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de Dinamene desatou a escurecer. Como se o corpo tivesse decidido preencher-lhe todos os espaços em branco da vida.

Foi assim que Dinamene passou da vida à arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe de estruturas precárias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumulações de cor. Até ao instante em que, deitada sob pétalas, Dinamene se lembrou de tudo e depois esqueceu-se e nasceu a chorar.


(Ilustração: Auguste Leroux - nu)





sábado, 1 de março de 2014

UMA TARDE, de Helga Holtz









Banho os pés em águas derramadas 


na tarde em que você chorou em mim. 

De todos os seus líquidos diários 

só me faltava sentir suas lágrimas... 

Sobrevivo agora de vento e escuro, 

de muros, sonos, torpores, das tinas 

com seu choro, suor, tanto esporro. 

Largo as estrelas, recordo resoluta 

os vapores sentimentais liberados 

naquele exato momento do adultério:

você partindo, o Morrer chegando...



(Ilustração: Damian Klaczkiewicz)