segunda-feira, 17 de março de 2014

EUCARISTIA, de Andréa del Fuego





                     


Bárbara ama seu esposo. Mas deseja muito mais.

Nem ela sabe o que sente. Filhos e esposo não desconfiam da languidez dos pensamentos. O companheiro não usa como ela os porões da alma. Seu fascínio é arranhado pelas forças externas e por ela mesma, que não se desvenda. 

Bárbara aclama São Jorge. Não há manifestação em que acredite mais, em que confie tanta profundeza e pele. As vizinhas foram se aproximando pelas respostas que nutriam alguma coisa, elas não sabiam o quê. Bárbara nunca soube de sua importância e assim foi melhor.

Acordou cedo, as pálpebras se abriram para o branco do teto, nem eram seis da manhã. Os ombros ajeitaram a cabeça dando a visão das samambaias que choravam do vaso ao chão. Levantou. Banhou o corpo com água quente. Passou um café forte acordando pelo cheiro a família. O chefe da casa saiu para o trabalho vestindo duas tonalidades de azul, cores que a empresa exigia de seus motoristas. Com cinco salários não era possível saciar os desejos de uma mulher e dois filhos. Por isso, Bárbara vende bijuteria e lingerie para as vaidades. Rendas beges, correntes e pingentes de bonequinhos representando a prole. 

Sabia-se o sexo da ninhada pelo colar folheado a ouro. Bastava uma delas usar algo diferente para que desencadeasse uma uniformização no bairro. Unidas as mulheres. Quarentonas, dissolviam as tensões na calçada mesmo, debaixo do sol quente, conversando sobre violência, orixás e homens. 

Desde a infância, Bárbara segue procissão pelo Santo Guerreiro. Caminha surda para os batimentos cardíacos do mundo. Caminha como sangue nas veias daquele que entrega a própria espada. 

A chapa delgada e fria estanca a fome dos demônios.

O Guerreiro recebe glórias numa mesinha, baseada no corredor entre quarto e banheiro, é iluminada por grossas e brilhantes colunas de cera. Bárbara bate os joelhos em frente ao altar todos os dias, o cavaleiro de gesso repousa num tecido urdido por suas mãos.

A fé é seu pilar central.

Não teme a morte do corpo, mas as necessárias para se encaixar na órbita dos elétrons, no eterno. 

O filho mais velho sugeriu ao pai que levasse a mãe ao médico, assustado que estava com o olhar longo e fixo que Bárbara dirigia durante horas para o altar.

Não havia nada de estranho na família, aliás, uma família exemplar com as conveniências sociais. Nenhuma doença que entregasse alguém para a morte, nenhum acidente, nenhuma ruptura. Nada que justificasse tal isolamento intenso e estranho.

Algo faz retorcer seu corpo nas oito horas em que dorme, assim igual só o parto. Quando não se lembra dos sonhos, amanhece preenchida de amor. 

Quando se recorda, fica desperta, assombrada. Com medo do esposo, sente que o traiu deitada ao seu lado durante aquelas oito horas. Padece com a distância entre o sonho e o marido. Olha para o companheiro e vê em si a mãe virgem e idolatrada, a culpa seca seus fluidos corporais. Mas só quando olha para ele.

Por onde andará sua alma nas oito horas em que dorme o corpo? 

Plena ou assombrada isola-se naquele corredor estreito para orar sem se importar com a passagem de quem quer que seja.

Na noite deste dia em que o filho se preocupava com a mãe, Bárbara sonhou mais uma vez, passou seu corpo de sonho por entre as grades do inconsciente. Lá, nas temidas delícias, Bárbara vestiu um longo azul. O cabelo era de negro mistério e macio de veludo toque. Sentou-se na perfeita arquitetura, no banco de uma capela.

Sua respiração se ordenou em palavras cantadas. Pontos cantados. Orava hipnótica melodia. As mãos espelhavam um lago, podia fertilizar com a pupila, irradiava. A capela a guardava da maldade não natural das coisas, daqueles que queriam entrar nem que fosse à machadada em seu paraíso.

Deslizando, saiu do templo para fazer as curvas do jardim. Mas um estrondo a interrompeu, na linha que destoa céu e terra, o dragão. A cauda réptil podia cortar até o nunca mais, sem chance de coagulação, de uma conciliação entre glóbulos brancos e vermelhos.

Aproximou-se de Bárbara.

E então, homem e cavalo cruzaram o caminho do irascível.

Vestindo metal, São Jorge dava a sua misericórdia. A lança afiada perfurou as asas do dragão, sem o domínio dos ares, o diabo desistiu de beber no cálice de Bárbara.

São Jorge seguia a brisa vinda dos cabelos dela, perfume. Estava embriagado pelo fermento das uvas de Salomão.

Abraçada pela emanação, ela sabia que era seguida. Não fazia ideia de que aquele homem romperia o resto dos seus himens, membranas que a botavam em cápsula. O leste soprou as mechas negras da devota, São Jorge contemplava vestido e cabelos ondulando como o mar.

Entraram e fecharam as portas da capela.

Abrigaram-se no santo ninho e materializaram a completa união. Quando se tocaram os corpos, nada foi capaz de estagnar as forças. Acenderam a fornalha para a mistura das divinas substâncias.



(Minto enquanto posso)



(Ilustração: Anthony Christian - Lucinda)







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