domingo, 27 de novembro de 2011

STANZA XXXVIII, de Gertrude Stein








Which I wish to say is this
There is no beginning to an end
But there is a beginning and an end
To beginning.
Why yes of course.
Any one can learn that north of course
Is not only north but north as north
Why were they worried.
What I wish to say is this.
Yes of course.



Tradução de Pedro Calouste:



O que desejo dizer é isto
Não há princípio de um fim
Mas há um princípio e um fim
Para um princípio.
Porquê sim claro.
Qualquer um pode aprender esse norte claro
Não é somente norte mas norte como norte
Por que estavam eles preocupados.
O que quero desejo dizer é isto.
Sim claro.



(Ilustração: Juan Miró – the melancholic singer)



quarta-feira, 23 de novembro de 2011

DOZE MIL BIBLIOTECAS QUE MUDAM VIDAS, de Nicholas D. Kristof







Um dos triunfos legendários da filantropia foi a construção por Andrew Carnegie de mais de 2.500 bibliotecas mundo afora. Sua fama em estimular o aprendizado jamais foi igualada, mas, numericamente, seu feito foi ultrapassado várias vezes por um americano de quem provavelmente o leitor jamais ouviu falar.


Vim ao Vietnã para ver John Wood entregar seu décimo milionésimo livro a uma biblioteca que sua equipe fundou nesta aldeia no Delta do Mekong – enquanto centenas de crianças locais aplaudiam e abraçavam os livros que ele trouxera como se fossem os mais raros tesouros. A organização beneficente de Wood, Room to Read, abriu 12 mil dessas bibliotecas por todo o mundo, juntamente com 1.500 escolas.



Sim, o leitor leu corretamente. Ele abriu quase cinco vezes mais bibliotecas que Carnegie, embora as suas sejam, sobretudo, instalações de um cômodo que não se parecem em nada com as bibliotecas grandiosas de Carnegie.



A Room to Read é uma das instituições beneficentes que mais crescem nos Estados Unidos e está abrindo novas bibliotecas a um ritmo alucinante de seis por dia. A título de comparação, a rede McDonald’s inaugura uma nova loja a cada 1,08 dia.



Tudo começou em 1998 quando Wood, então um diretor de marketing da Microsoft, encontrou por acaso uma escola remota no Nepal que atendia 450 crianças. Havia somente um problema: ela não tinha livros.



Wood ofereceu-se jovialmente para ajudar e acabou enviando uma montanha de livros por meio de uma tropa de burros. As crianças locais ficaram delirantemente felizes e Wood disse que sentiu tamanha alegria que deixou a Microsoft, largou a namorada de toda a vida (que achou que ele havia pirado) e fundou a Room to Read em 2000.



Ele teve de enfrentar um desafio após outro, não só de abrir as bibliotecas, mas também de enchê-las de livros que os garotos gostassem de ler.



“Não há livros para crianças em algumas línguas, por isso tivemos de também nos tornar editores”, explica Wood. “Estamos tentando encontrar o Dr. Seuss do Camboja.” A Room to Read possui, até agora, 591 títulos publicados em línguas que incluem o khmer, nepalês, zulu, lao, xhosa, chhattisgarhi, tharu, tsonga, garhwali e bundeli.



Ela também apoia 13.500 meninas pobres que sem isso teriam de largar a escola. Num remoto recanto do Delta do Mekong, só alcançável por barco, conheci uma dessas garotas, uma aluna da 10.ª série chamada Le Thi My Duyen. Sua família, desalojada pelas enchentes, vive num barraco esquálido à margem de um dique.



Quando Duyen estava na 7.ª série, ela largou a escola para ajudar a família. “Eu achava que educação não era tão necessária para meninas”, recordou Duyen.



Os funcionários de contato da Room to Read foram até a casa dela e convenceram a família a enviá-la de volta à escola. Eles pagaram suas taxas, compraram uniformes escolares e ofereceram-se para colocá-la num dormitório para que ela não tivesse de viajar duas horas para ir ou voltar da escola de barco e bicicleta.



Agora Duyen está de volta, uma estrela em sua turma – e sonhando alto. “Gostaria de ir para a universidade”, ela confessou, timidamente.



O custo por garota desse programa é US$ 250 anuais. Para efeito de comparação, dizem que o casamento de Kim Kardashian custou US$ 10 milhões. Essa soma poderia ter apoiado outras 40 mil garotas na Room to Read.



Muitos esforços americanos para influenciar países estrangeiros não tiveram êxito – sobretudo aqui, no Vietnã, uma geração atrás. Nós lançamos mísseis, enviamos tropas, contratamos fantoches estrangeiros e gastamos bilhões sem realizar muito. Ao contrário, escolarizar é barato e revolucionário. Quando mais dinheiro gastamos hoje em escolas, menos teremos de gastar em mísseis amanhã.



Wood, de 47 anos, é incansável, entusiasmado e emotivo: um orador motivacional sem botão de desligar. Ele se desmanchou todo enquanto as garotas descreviam como a Room to Read transformara suas vidas.



“Se você pode mudar a vida de uma garota para sempre, e o custo é tão baixo, por que há tantas garotas fora da escola?” ele refletiu.



O mundo das organizações humanitárias é em geral terrível para passar sua mensagem, e o sucesso do Room to Read resulta, em parte, do passado profissional em marketing de Wood.



Ele escreveu um livro fabuloso, Leaving Microsoft to Change the World (“Larguei a Microsoft para mudar o mundo”, em tradução livre) para espalhar a palavra, e a Room to Read agora possui divisões para arrecadação de fundos em 53 cidades por todo o mundo.



Ele também dirige a Room to Read com uma eficiência empresarial agressiva que aprendeu na Microsoft, atacando o analfabetismo como se fosse o Netscape.



Ele diz a apoiadores que eles não estão doando para caridade, mas fazendo um investimento: onde se poderia obter mais retorno de um investimento do que iniciando uma biblioteca por US$ 5 mil?



“Fico frustrado por haver 793 milhões de pessoas analfabetas, quando a solução é tão barata”, disse-me Wood do lado de fora de uma de suas bibliotecas no Mekong. “Oferecermos isso não é garantia de que toda criança aproveitará. Mas se não oferecermos, é praticamente garantido que perpetuaremos a pobreza.” “Em 20 anos, gostaria de ter 100 mil bibliotecas, atingindo 50 milhões de garotos”, disse-me Wood.



“Nossa meta para 50 anos é inverter a noção de que se possa dizer a uma criança ‘você nasceu no lugar errado no tempo errado e por isso não será educado’. Essa ideia pertence ao lixo da história humana.”




(The New York Times/OESP, 9.11.2011; tradução de Celso Paciornik)



(Ilustração:Riccardo Mantovani –studio break)



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

SUR LE TASSE EN PRISON D'EUGÈNE DELACROIX / SOBRE O TASSO NA PRISÃO DE EUGÈNE DELACROIX, de Charles Baudelaire







Le poète au cachot, débraillé, maladif,


Roulant un manuscrit sous son pied convulsif,

Mesure d'un regard que la terreur enflamme

L'escalier de vertige où s'abîme son âme.



Les rires enivrants dont s'emplit la prison

Vers l'étrange et l'absurde invitent sa raison;

Le Doute l'environne, et la Peur ridicule,

Hideuse et multiforme, autour de lui circule.



Ce génie enfermé dans un taudis malsain,

Ces grimaces, ces cris, ces spectres dont l'essaim

Tourbillonne, ameuté derrière son oreille,



Ce rêveur que l'horreur de son logis réveille,

Voilà bien ton emblème, åme aux songes obscurs,

Que le Réel étouffe entre ses quatre murs!





Tradução de Ivan Junqueira e Jamil Haddad:



O poeta na masmorra, em desalinho, aflito,

Calcando sob o pé convulso um manuscrito,

Com olhar de terror mede a extensão da escada

Cuja vertigem lhe atordoa a alma abismada.



Risos frenéticos que ecoam na prisão

Ao estranho e ao absurdo arrastam-lhe a razão;

A Dúvida que o cerca e o ridículo Medo

O envolvem num horrendo e multiforme enredo.



Esse gênio encerrado em calabouço infame,

Os esgares, os ais e os duendes cujo enxame

Turbilhona por trás de seu alerta,



Esse que do êxtase o terror ora desperta,

Eis teu emblema, alma de frêmitos obscuros,

Que a Realidade abafa entre os quatro muros!





(Ilustração: Eugene Delacroix – Tasso in the mad house)




sábado, 19 de novembro de 2011

CABEÇA DE FÓSFORO, de Regina M. A. Machado






E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos. Cerimonial um tanto enevoado na memória da vila, por demais carregada de naufrágios, emigrações e loucos sem abrigo.


Hélia Correia, Montedemo.


Para minhas amigas gêmeas. 



Fui comentar com a Laurinha que o melhor, quando a gente faz um pum, é acender um fósforo, e ela ficou toda animada. Agora estou preocupada; se ela acende um fósforo, é capaz de pôr fogo na casa. Ainda bem que do jeito que ela é cabeça tonta, daqui a cinco minutos, já esqueceu. Espero. Isso me lembrou quando eu trabalhava numa construtora e fazia traduções, um dia entraram na minha sala duas colegas, e uma delas, a portuguesinha, notou na hora: 

- Hum, cheira bem, parece fogo de agulhas de pinho. 

Achei tão engraçado que contei a história do fósforo e elas não quiseram acreditar. Essa portuguesa morava num daqueles três ou quatro prédios de Botafogo, muito altos e iguais, quase encostados no morro, e ela disse que às vezes ficava tão deprimida com o vento que soprava lá em cima, que se deitava no chão enrolada num cobertor, esperando passar a tristeza. Isso em pleno verão, mas parece que as janelas do prédio não abriam nunca e o ar condicionado ficava ligado e gelado o tempo todo. Com certeza para evitar suicídios. 

Uma vez ela contou que, durante a revolução dos cravos, a família dela, conservadora e medrosa, mudou-se de um velho bairro de Lisboa para uma aldeia e lá ficaram por algum tempo, depois ela se casou e veio com o marido para o Brasil. Da vida dela só fiquei sabendo desse verão na aldeia, que parecia ser a lembrança mais alegre que ela tinha trazido. Contou da matança dos porcos, da partilha entre os vizinhos, das casinhas, do sol na palha dourada e nas montanhas azuis. Minha lembrança dessas histórias que ela contava ficou entre o Sítio do Pica-pau amarelo e A cidade e as serras, mas ainda hoje é uma coisa luminosa e simples, cheia de saudade, como deve ser uma história portuguesa.  

Mas junto com essas, vieram outras lembranças. Essa construtora onde a gente trabalhava fez um projeto para um outro país “do terceiro mundo”, como se dizia, então, e acho que não se diz mais; eu fui para lá durante seis meses, atraída por um bom contrato e para curar uma dor de cotovelo aguda. Uma maluquice total esse projeto de estrada de ferro, calcado num outro feito para a Serra do Mar, cheio de túneis, que os engenheiros locais nunca entenderam para que iam servir em pleno deserto. Também não sei se pagaram o projeto. Eu sei que conheci o deserto e dele me ficou uma lembrança enorme, de silêncio, de noites faiscantes como no tempo em que os homens inventaram constelações olhando os desenhos que as estrelas faziam no céu. De dia fazia calor, mas à noite caía um frio de cristal, seco, luminoso, quase sonoro. 

Talvez por isso tenha ficado tão impressionada com um programa de tv em que o Nicolas Hulot encontra uma tribo nômade e o chefe da tribo explica que nunca poderia morar numa construção dura e fixa, pois, dizia ele, “casa é túmulo para os vivos”. Isso faz anos e eu ainda guardo o impacto dessa frase dita por aquele homem que todas as manhãs punha nas costas dos camelos uma casa leve, feita de bons tecidos de lã que ele montava e desmontava para seguir o rebanho de um oásis para outro, deixando poucas marcas de sua passagem, restos de fogueira, cinzas que o vento leva, pedras que a areia cobre. Meus antepassados nômades acordaram assanhados, me aspirando da minha casa de cimento, apartamento debaixo de apartamento debaixo de apartamento... só de pensar me dá falta de ar. 

Meu deserto aventuroso é um pouco como a aldeia da tradutora portuguesa, um traço luminoso que só ficou como lembrança, rastro de cometa, noite empalidecendo. 

Na estante, minha garrafinha de areia, comprada numa praia da Bahia, com as figuras formadas por areias de cores diferentes, não devia ter sido bem fechada e a areia se mexeu lá dentro, baralhou as figuras, que ficaram difusas e vagas. A paisagem baiana virou uma fluida aquarela de Turner, coqueiros e jegues perderam-se nas brumas geladas da Bretanha, a grande. 

A chama do fósforo tenta lembrar a fogueira na noite gelada, mas só faz bruxulear, desencadeando uma longa caravana – de que? - de lembranças que não chegam a tomar corpo, nem cheiro nem arrepios na pele? Ou de viagens imaginárias, de saudade do que nunca chegou a ser? O cheiro de pinho não basta para reerguer a floresta nem o fósforo alumiar a noite no deserto. 




(Ilustração: Turner - moolight) 
















quinta-feira, 17 de novembro de 2011

CONVERSA ÀS 3H30 DA MADRUGADA, de Charles Bukowski






às 3h30 da madrugada
uma porta se abre
e há passos na entrada
movendo um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e responde.

com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?

e ela entra
com rolos no cabelo
e num robe de seda
estampado de coelhos e passarinhos

e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.

você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e de canções românticas,
e depois de alguns copos
ela não se preocupa em cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.

não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolos,

e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.

e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.




(Tradução de Roberto Schmitt-Prym)



(Ilustração:Jack Vetriano – a strange and tender magic)

domingo, 13 de novembro de 2011

O PRIMEIRO BEIJO, de Clarice Lispector









Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.


- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:



- Sim, já beijei antes uma mulher.



- Quem era ela? perguntou com dor.



Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.



O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.



E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.



E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.



A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.



E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes, mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.



Não sabia como e por que, mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.



O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede, mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.



De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.



Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.



E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.



Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.



Ele a havia beijado.



Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.



Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.



Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...



Ele se tornara homem.




(Felicidade Clandestina)


(Ilustração: Luxembourg Garden's Medici Fountain - face sculpture by Lotta Hannerz)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ORAÇÃO PARA MARILYN MONROE, de Ernesto Cardenal






Senhor

recebe esta moça conhecida em toda a terra pelo nome de Marilyn Monroe
ainda que este não seja o seu nome verdadeiro
(mas Tu conheces o seu nome verdadeiro, o da pequena orfã).
violentada aos 9 anos,
a empregadinha de loja que quis se matar aos 16
e agora se apresenta diante de Ti sem nenhuma maquilagem
Sem seu Agente de Imprensa
Sem fotógrafos e sem assinar autógrafos
sozinha como um astronauta diante da noite espacial.
Ela sonhou quando menina que estava nua em uma igreja
(de acordo com a Time)
diante de uma multidão prostrada, com as cabeças no chão
e tinha que caminhar na ponta dos pés para não pisar nas cabeças.
Tu conheces nossos sonhos melhor que os psiquiatras.
Igreja, casa, cova, são a segurança do seio materno
mas também é mais que isso.

As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão debaixo de um jorro de luz).
Porém o templo não são os estúdios da 20th Century Fox
que fizeram de Tua casa de oração um covil de ladrões.

Senhor
neste mundo contaminado de pecados e radioatividade
Tu não culparás apenas uma empregadinha de loja.
Que como toda empregadinha de loja sonhou ser estrela de cinema.
E o sonho foi realidade (mas como a realidade do technicolor).
Ela apenas representou de acordo com o script que lhe demos
--O de nossas próprias vidas-- E era um script absurdo.
Perdoa-lhe Senhor e nos perdoa
por nossa 20th Century
por esta Colossal Super Produção em que todos trabalhamos
Ela tinha fome de amor e oferecemos tranqüilizantes.
Pela tristeza de não sermos santos
recomendamos a Psicanálise.

Lembra-Te Senhor do seu crescente pavor da câmara
E seu ódio à maquilagem – insistindo em maquilar-se a cada cena –
e como se foi fazendo maior o horror
e maior a impontualidade nos estúdios.

Como toda empregadinha de loja
sonhou ser estrela de cinema.
E sua vida foi irreal quanto um sonho que um psiquiatra interpreta e arquiva.

Seus romances foram um beijo com os olhos fechados
que quando se abrem os olhos
descobrem-se embaixo de refletores
e os refletores se apagam.

E as duas paredes do quarto se desmontam (eram um set de cinema)
enquanto o Diretor se afasta com suas anotações
porque a cena já foi rodada.
Ou como uma viagem de iate, um beijo em Singapura, um baile no Rio
a recepção na mansão do Duque e da Duquesa de Windsor
vistas da sala do apartamento miserável.
O filme acabou sem o beijo final.
Acharam-na morta em sua cama com a mão ao telefone
E os detetives não souberam a quem ia chamar.
Foi
como alguém que discou o número da única voz amiga
e ouve apenas a voz de uma gravação dizendo: WRONG NUMBER
Ou como alguém que ferido pelos gangsters
estende a mão para um telefone desligado.

Senhor
quem quer que tenha sido a quem ela chamava
e não chamou (talvez ninguém
ou era Alguém cujo número não se encontra na Lista de Los Angeles)
atende Tu ao telefone.



(Tradução de Roberto Schmitt-Prym)


(Ilustração: Andy Warhol)



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

PAISAGEM SEM HISTÓRIA, de Luiz Ruffato








Uma morna aragem visita o fim de tarde do quarto escancarado, despenteando levemente a solidão de uma frágil teia. Assustada, a minúscula aranha expele um invisível fio, por onde escorrem abdome e pernas, exilando-se por detrás do forro úmido-esverdeado de um guarda-roupa coxo, preto verniz deitado em angico, por cujas portas esbandeiradas entrevê-se aquilo que um dia foram fotografias caprichosamente recortadas de revistas, Amiga, Contigo, Grande Hotel, coladas nas folhas de madeira, e arrancadas à força por alheias mãos descontroladas. De quem aquele sorriso melancólico? E aquela testa? O olho que nos mira romanticamente: Roberto Carlos? Quem, o casal do qual apenas restaram braços entrelaçados? E a moça sentada no capô de um Gordini vermelho? Manchas de papel perfazendo inúteis desenhos incompreensíveis. Lantejoulas enfeitiçam noturnos vestidos ornamentais, encarcerados no silêncio. Sapatos, saltos alto e baixo, mergulhados na confusão do móvel, jacaroam entre camisolas e anáguas e roupas de-sair e de-ver-deus, trabesseiros e lençóis e cobertas. Uma caixinha de papelão – abrigo de um chapéu-de-feltro masculino, um dia – asila, promíscua, pratinhas, escovas, pentes, espelho-de-mão com escudo do Flamengo, uma certidão de nascimento cuidadosamente dobrada e redobrada e ainda mais uma vez dobrada. E vidros de perfume com borrifadores, estojos de rímel, sombra e blush, unhas postiças, misses, envelopes de Melhoral, Coristina, Sonrisal, Conmel, AAS, potes de bicarbonato de sódio e sal de fruta. E quatro retratos: bastante desfocados, ao longe, cinco crianças, em escadinha, pés e olhos no chão, roupas miseráveis, posam sob uma árvore (uma mangueira?), provavelmente irmãos: uma menina, blusinha clara, sainha escura (uniforme escolar?), fitas domando o cabelo-ruim, sorri, desajeitada; amassado, uma moça – a anterior, algumas desilusões após, mira desafiadora o fotógrafo, frente a um armazém (traja minissaia e sandália franciscana) ao lado de meio gato; bem enquadradas, duas mulheres a uma mesa de metal, espojada na calçada (dentro do botequim, um totó), brindam a alguém atrás do retratista. A menina depois moça agora jovem mulher tem os cabelos espichados a henê, esgar debochado de quem acostumou, lanterna na mão, a revolver, paciente, ruga por ruga, as horas intermináveis da Ilha. O vermelhão encerou-o o menino filho da lavadeira, a dona Zulmira, em troca de uns caraminguás que abrem as pesadas cortinas do Cine Edgard para a matinê do domingo, calça curta, joelhos esfolados, mãozinhas lambuzadas, fedendo a gasolina. No Natal é papai-noel para a molecada remelenta do Beco do Zé Pinto, bolas de futebol de plástico, soldadinhos, bonecas, carrinhos, biloscas, jogos-de-botão, panelinhas, essas bobiças que toda criança apreceia e que, ela mesma, bem, ela mesma nunca teve...oportunidade...O menino, Lucimar? Luzimar? Luiz mar?, com quantas punhetas não deve tê-la homenageado?, só por adivinhar um começo de coxa, uma vaga mancha escura que poderia ser um bico de peito, a pele macia roçando o avesso daquelas roupas que a mãe lavava, passava...Poderia, quem sabe?, promover aquela caridade, guiar as mãos por outras galáxias, mas, o que haverá de pensar a dona Zulmira?, tão boa, tão...tão prestativa...Entretanto, certa vez, de pena, a porta entreaberta, ouvia-o vizinho, ofegante, esfregando todo seriozinho o escovão, fingiu ressonar na manhã felina, até que, passando em frente, a mínima camisola semitransparente escoiceou o menino, a lata de cera Cristal quase escapuliu, vista infiel, coração desesperado, um troço na boca-do-estômago, Viu?, na meia-volta, sobrepasso, o rabo-de-olho buscou o oásis, pulmão oprimido, revirou-se, Viu?, e o carvão dos cabelos mais uma vez cresceu na miragem, cabeça baixa procurando uma perda no meio das pedras afloradas do terreiro, e ela, madalena, girou as pernas, Viu!, e, trêmulo, o menino prosseguiu, para o resto dos tempos inquieto.

Escrito nas telhas, amparadas pelos caibros, “Cerâmica Santa Teresinha, Bandeira Nova, Estado de Minas”, decorou, cabeça afogada no capim do colchão da cama-de-casal, sempre alguém bufando no seu pescoço, ai-meu-bem, soletradamente, “Ce-râ-mi...”, mulher-dama, olor de dama-da-noite, na alameda areenta, vêm a pé, de bicicleta, de vespa, até de automóvel vêm, cruzam, altaneiros, a pequena ponte-de-madeira esticada sobre o braço-morto do Rio Pomba, carregando no bolso escondidas notas e gonorréia. Soubessem...”Cidinha”, às vezes murmura, para se lembrar, debruçada no parapeito da janela, o dia desmoronando por detrás dos morros, embalado pela música líquida dos redemunhos que transbordam das locas. “ Vou parar de beber”, ouve o Zunga, “Vou virar crente...”, quantas vezes a mesma história!, embuçado nas sombras fugidias do salão, lâmpadas Osram em saias rodadas de papel-celofane vermelho, plástico ordinário vestindo as mesas-de-metal, a vitrola encardida uivando madrugada adentro. O Murrudo, peito-de-vela-ao-vento, pano-de-prato ensebado aconchegado no ombro, uma Nossa Senhora Aparecida, devoção da dona Janice, brilha azul no nicho, atrás do caixa. Ê, minha nega!, é isso, a vida? 

Para todo o sempre permaneceria ali, sob a cama, estirada na frescura do cimento, fugitiva do abafor, “Essa mania...Você acaba pegando um troço...uma tuberculose...uma pneumonia...” (quem fala? Dona Janice, inda há pouco? Valdira? Baianinha? A mãe, na infância?), não a atormentasse o batuque no telhado, propagandeando a chuva tardã. Desentocou-se, cerrou as folhas da janela, escancarou o guarda-roupa, catou uma coberta, enrolou-se, esparramando-se sobre o colchão-de-capim, trabesseiro abraçado às orelhas, olhos arregalados, braços enrodilhando as pernas fletidas, o corpo tremeluzindo suores, trovões espatifando pelos lados da rua, e os relâmpagos, meu deus!, coriscando no céu (o caixão doado pela prefeitura desce raspando as paredes do buraco estreito, a mãe dentro, o negro banguela limpa a testa suada na manga da camisa esgarçada, assiste-a de baixo para cima, simpático, os parcos acompanhantes já se aproximam do portão, e ela, Cidinha – não, não era Cidinha ainda, como se chamava, então?, como? – hipnotizada, a poeira sufoca a tarde, gritos bêbados, Vambora, sua cadela!, um tapa, Quê que isso, seu?, o negro banguela assustado, Vamos, desgraçada!, o pai novamente, zonza, o corpo magroveloz ziguezagueia entre túmulos, tropeça nas indigentes cruzes brancas fincadas no chão amarelo, esquiva-se de vasinhos de flores murchas e das velas acesas, arranha-se nas unhas-de-gato e marias-sem-vergonha que empesteiam o cemitério, Só desgosto, ainda ouviu, Só desgosto, essa...) Há uma goteira no meio do cômodo. Tivesse ânimo, deslocaria o penico até lá, evitando a molhação (depois, sabia, caberia a ela mesma, rodo, saco-de-estopa, enxugar tudo), mas a tribuzana...Há tatus que comem defuntos...E pelos buracos que esculpem sob as lápides escorrem a água da chuva, as formigas, as jararacuçus. Dorme, desgraçada, por que essa filha-da-mãe não dorme? Ela, que ainda não era Cidinha, deixava, de raiva, o vento brincando com o amarrado de sapé que cobria o casebre cai-não-cai, O que acontece quando a gente morre?, A gente vai para onde?, Nunca mais vou ver minha mãe?, Nunca mais? E o pai, pressentindo-a revirar no colchão esburacado estendido no chão alisado com bosta-de-vaca, Vê se dorme, desgraçada!, Vê se dorme, senão...E os dias espreguiçavam, piava a invisível juriti, o sol carreava o nascente para o poente, as noites se recolhiam, recatadas, e a mãe, essa nunca que voltava, Mãe?, sabão-de-abacate no tacho-de-cobre, porco berrando no terreiro, toicinho, um rosto?, nada, Mãe?, Mãe?




(Além, sobre, sob: o dilúvio)







(La Gioconda)



(Ilustração: Andrea Kemp – fast sleep)


sábado, 5 de novembro de 2011

I CARRY YOUR HEART WITH ME / EU LEVO O SEU CORAÇÃO COMIGO, de e. e. cummings





i carry your heart with me(i carry it in

my heart) i am never without it (anywhere

i go you go,my dear;and whatever is done

by only me is your doing,my darling)

i fear

no fate (for you are my fate,my sweet)i want

no world(for beautiful you are my world,my true)

and it’s you are whatever a moon has always meant

and whatever a sun will always sing is you



here is the deepest secret nobody knows

(here is the root of the root and the bud of the bud

and the sky of the sky of a tree called life;which grows

higher than soul can hope or mind can hide)

and this is the wonder that's keeping the stars apart



i carry your heart (i carry it in my heart)

Tradução de Regina Werneck:




eu levo o seu coração comigo (eu o levo no

meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar

que eu vá, meu bem, e o que quer que seja feito

por mim somente é o que você faria, minha querida)

tenho medo

que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero

nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)

e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique

e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar


aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe

(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão

e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce

mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)

e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes


eu levo o seu coração (eu o levo no meu coração)





(95 poems)



(Ilustração: Klimt - girfrends)




quinta-feira, 3 de novembro de 2011

VISTA CANSADA, de Otto Lara Resende






Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.


Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.



Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.



Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.



Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.



(FSP, 23 de fevereiro de 1992)


(Ilustração: Riccardo Mantovani)



terça-feira, 1 de novembro de 2011

SENTIMENTO SÚBITO, de Lucila Nogueira







Porque você nada sabe da insônia
não venha assim desavisado com esse universo de frases protocolares
e toda uma higiene pasteurizada de ternura
cuidado e não se aproxime demais
existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito

a água que lavou as letras da biblioteca
é um sinal de que o amor e a palavra exigem renovação
que tanto estudo não resolve o desamparo
e que continua desabitada a casa que sou

finjo-me autobiográfica e renasço como personagem
espasmo de eletrochoque eu sirvo o meu senhor
ducha de eletricidade eu sirvo o meu senhor
e basta o seu tom de voz ser um pouco menos terno
que eu já sinto dor

como quem escolhe uma salada de rúcula
em um cardápio de veludo escuro
você está sentado numa poltrona de aço
que já começa a ser engolida
pelo mar vulcânico da minha loucura

não sei porque tudo vinha tão vagarosamente de modo calmo
e de repente foi aquele estalo aquele sobressalto
e você não entendeu nos intervalos de linguagem
o meu jeito pelo avesso de cantar um blue

você não entendeu nada
você não percebeu que eu sou um fósforo apagado
esquecido na fuligem com memória do passado
que a vida cai pesadamente em meu cabelo azulado
e para a tela grande perder o colorido basta uma pilha se gastar

por isso eu chego a ti numa bolha de sabão gigante
soprada no canudo de mamoeiro do quintal da infância
onde aprendi a noite o sol os cristais coloridos e as músicas ciganas
daí que basta você me tocar e eu retorno à vida
quebra-se o encanto e o feitiço
e saio para a realidade carne que se desprende das páginas do livro

escrevo sobre a vida como um exorcismo
não tenho remorso do que vivo
o meu poema é o sinônimo da minha pele exposta
na implosão do muro de Berlim dos sentimentos físicos

sinal vermelho
rostos vazios
caminhei coberta de sargaços na avenida
como um insignificante alfinete atraído por um imã
e perdi o sono perambulando nos telhados
à procura das palavras mais precisas
quando finalmente descobri que o que importa mesmo sempre está implícito

e agora
eu só quero que você ouça minha voz subterrânea
ecoando muito além de toda superfície
mesmo que em mim nada esteja a salvo
quero que observe com perplexidade como eu tenho estilo
e a melancolia dos meus olhos claros
atravessa nervosamente o cosmos como um neutrino
argila submarina de abalos sísmicos na manhã de uma rua vazia de domingo

hoje falta-me companhia para sair e beber um vinho
nada acontece e eu não sei como faço para manter-me viva
nada acontece e eu fico inerte sem regresso nem partida
devo mudar uma vida que já não me serve
mas ando muito cansada de ser sempre eu a tomar todas as iniciativas

você não entendeu nada
e eu estava dizendo apenas na verdade
que subitamente eu fui ficando perturbada
você me lê somente para encontrar suas palavras
mas eu venho de uma raça de saltimbancos e acrobatas
e brilham relâmpagos da tempestade nos meus gestos delicados

o meu corpo flutua como sílabas de imagens congeladas
e nessa opressão desarticulada decido desesperadamente ficar calada
mas não esqueço o convite para ver as estrelas num deserto do Marrocos
nem a minha estranha fuga automática daquele mundo cor-de-rosa entre penhascos
para voltar aqui e ficar sempre à espera do destino e do acaso
sentinela do nada

e a vida passa como as nuvens na janela
da próxima vez eu vou ter mais cuidado
porque das outras sei que estraguei tudo
só por ter medo de encarar a realidade

eu vou telefonar
depois a gente se fala
agora eu não posso acordar
entenda que eu carrego a saudade das aves migratórias
que sobrevoam os alpinistas do círculo polar

porque você nada sabe da insônia
e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar e em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito.



(Ilustração: Liu Yuanshou)