quarta-feira, 29 de abril de 2020

OS OCIOSOS, de Bustos Domecq (Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares)



A era atômica, a cortina que cai sobre o colonialismo, a luta de interesses encontrados, a postulação comunista, a alta do custo de vida e a retratação dos meios de pagamento, o chamado do papa à concórdia, o progressivo debilitamento do nosso signo monetário, a prática do trabalho sem vontade, a proliferação de supermercados, a extensão de cheques sem fundos, a conquista do espaço, despovoamento do agro e o auge correlativo das favelas compõem todo um panorama inquietante que dá o que pensar. Diagnosticar os males é uma coisa; prescrever sua terapêutica é outra. Sem aspirar ao título de profetas, atrevemo-nos, no entanto, a insinuar que a importação de Ociosos no país, com vistas à sua fabricação, contribuirá não pouco para diminuir, à maneira de sedativo, o nervosismo hoje tão generalizado. O reino da máquina é um fenômeno que já ninguém disputa; o Ocioso comporta um passo a mais de tão inelutável processo.

Qual foi o primeiro telégrafo, qual o primeiro trator, qual a primeira Singer são perguntas que põem o intelectual em apuros; o problema não se coloca com relação aos Ociosos. Não há no orbe um iconoclasta que negue que o primeiro de todos obrou em Mulhouse e que seu incontestável progenitor foi o engenheiro Walter Eisengardt (1914-1941). Duas personalidades lutavam nesse valioso teutão: o incorrigível sonhador que publicou as duas monografias ponderáveis, hoje esquecidas, em torno das figuras de Molinos e do pensador de raça amarela Lao-tsé, e o sólido metódico de realização tenaz e de cérebro prático que, depois de arquitetar uma porção de máquinas claramente industriais, deu à luz, em 3 de junho de 1939, ao primeiro Ocioso de que se tem notícia. Falamos do modelo que se conserva no Museu de Mulhouse: apenas um metro e vinte e cinco de longitude, setenta centímetros de altura e quarenta de largura, mas nele quase todos os detalhes, desde os recipientes de metal até os condutos.

O segundo é de uso em toda localidade fronteiriça, uma das avós maternas do inventor era de cepa gaulesa e o mais notável da vizinhança a conhecia pelo nome de Germaine Baculard. O folheto no qual nos baseamos para este trabalho de fôlego intui que essa elegância, que é a marca da obra de Eisengardt, tem fonte de origem naquela irrigação de sangue cartesiano. Não regateamos nosso aplauso a esta amável hipótese que, além do mais, é adotada por Jean-Christophe Baculard, continuador e divulgador do mestre. Eisengardt faleceu mediante um acidente de automóvel da marca Bugatti; não lhe foi dado ver os Ociosos que hoje triunfam em usinas e escritórios. Prega que os contemple do céu, diminuídos pela distância e, por isso, mais de acordo com o protótipo que ele mesmo rematara!

Aqui vai agora um esboço do Ocioso, para aqueles leitores que ainda não tiveram o escrúpulo de ir examiná-lo em San Justo, na fábrica de Pistões Ubalde. O monumental artefato cobre a largura do terraço que centra o ponto da usina. Assim, a olho, lembra um linotipo desmesurado. É duas vezes mais alto que o capataz; seu peso se computa em várias toneladas de areia; a cor é de ferro pintado de preto; o material, de ferro.

Uma passarela em escadaria permite que o visitante o escrute e toque. Sentirá lá dentro como um leve pulsar e, se aplicar o ouvido, detectará um longínquo sussurro. De fato, há em seu interior um sistema de condutos pelos quais corre água na escuridão e uma que outra pedra. Ninguém pretenderá, no entanto, que são as qualidades físicas do Ocioso as que redundam na massa humana que o rodeia; é a consciência de que em suas entranhas palpita algo silencioso e secreto, algo que brinca e dorme.

A meta perseguida pelas românticas vigílias de Eisengardt foi plenamente alcançada; onde quer que haja um Ocioso, a máquina descansa e o homem, reanimado, trabalha.



(Crônicas de Bustos Domecq Novos Contos de Bustos Domecq; Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro)



(Ilustração: Manabu Mabe - sem título)



domingo, 26 de abril de 2020

TOPO, de Ruy Proença





subo até o ponto

mais alto do vale

onde a grama e o capim

sabem a ouro

porque o sol oblíquo

deita sobre eles

um lençol de luz



como se é grande

quando se sobe ao ponto

mais alto do vale!



as coisas à vista

os maiores problemas

viram miniaturas



tenho por companhia

um cachorro

um caderno

uma caneta tinteiro

uma câmera fotográfica



o cachorro é dócil

e selvagem



escava o chão

com as patas traseiras

come ervas brutas

que depois expele

em sucessivas golfadas



por que sofrer assim?



na metrópole

alguém me ama

pensa em mim

enquanto penso nela

e escrevo

sem parar



ano passado

um incêndio

devastou o verde

dessa paisagem



mas a natureza

que há na terra

é teimosa

sabe se reinventar



nuvens brancas

por trás de árvores secas chamuscadas

navegam

tangidas pelo vento



estou sentado

sobre um resto

de banco de madeira

que a intempérie e o fogo

destruíram



trago a ruína no estômago

como o cachorro e suas ervas



estou sentado

sobre um banco de areia

de quarenta metros de profundidade

outrora praia de mar

que a força tectônica

ergueu comigo

ao ponto mais alto do vale



além de meus pertences

trago um chapéu de palha

sobre a cabeça

um amor no imo

e um silêncio de brisa

que me atravessa

como uma canção



o cachorro descansa em minha sombra



cachorro sombra sol silêncio abelhas

minha alma pastando




(Ilustração: Cândido Portinari - Brodwski 1934)



quinta-feira, 23 de abril de 2020

O SEIO NU, de Italo Calvino








O senhor Palomar caminha ao longo da praia solitária. Encontra raros banhistas. 

Uma jovem está estendida na areia tomando banho de sol com os seios à mostra. Palomar, homem discreto, volve o olhar para o horizonte marinho. Sabe que, em tais circunstâncias, a aproximação de um desconhecido leva não raro as mulheres a se cobrirem depressa, e isso não lhe parece bom: porque é desagradável para a banhista que tomava seu sol tranquila; porque o homem que passa se sente um elemento perturbador; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; e porque as convenções respeitadas pela metade propagam insegurança e incoerência no comportamento em vez de liberdade e franqueza. 

Por isso é que ele, mal vê esboçar-se ao longe o perfil brônzeo rosado de um torso feminino nu, apressa-se em assumir com a cabeça uma postura tal que a trajetória de seu olhar permaneça suspensa no vazio e garanta seu respeito civil pela fronteira invisível que circunda as pessoas. 

“Contudo”, pensa, seguindo adiante e, mal o horizonte se desobstrui, readquirindo o livre movimento do bulbo ocular, “eu, assim procedendo, ostento uma recusa em ver, ou seja, também acabo por reforçar a convenção que torna ilícita a vista de um seio, ou melhor, instituo uma espécie de sutiã mental suspenso entre os meus olhos e aquele seio que, do deslumbramento surgido dos confins de meu campo visual, pareceu-me jovem e agradável à vista. Em suma, o meu não olhar pressupõe que eu esteja pensando naquela nudez, que me preocupe com ela, e isto é, no fundo, ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.” 

Voltando de seu passeio, Palomar passa de novo em frente à banhista, e desta vez tem o olhar fixo diante de si, de modo que este aflore com uniformidade equânime a espuma das ondas que se retraem, os cascos dos barcos puxados para o seco, o lençol de espuma estendido sobre a areia, a lua transbordante de pele mais clara com o halo moreno do mamilo e o perfil da costa no embaciamento da distância, acinzentada contra o céu. 

“Muito bem”, reflete, satisfeito consigo mesmo, prosseguindo o caminho, “consegui fazer com que o seio fosse absorvido completamente na paisagem, e também que meu olhar não pesasse mais que o olhar de uma gaivota ou de um peixe.” 

“Mas será realmente justo proceder assim?”, reflete ainda, “ou não passa de um achatamento da pessoa humana ao nível das coisas considerá-la um objeto, e o que é pior, considerar objeto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei talvez perpetuando o velho hábito da supremacia masculina, endurecida com o passar dos anos numa insolência consuetudinária?” 

Volta e torna a voltar sobre seus passos. Ora, ao fazer com que seu olhar deslize sobre a praia com objetividade imparcial, procede de maneira que, mal o seio da moça penetre em seu campo de vista, perceba-se uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até quase aflorar a pele estendida, retrai-se, como que avaliando com um leve estremecimento a consistência diversa da visão e o valor especial que essa adquire, e por um momento permanece a meia altura, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distância, elusivamente mas também protetoramente, para depois retomar seu curso como se nada houvesse acontecido. 

“Creio que assim minha posição se manifestará bem clara”, pensa Palomar, “sem mal-entendidos possíveis. Mas esse sobrevoo do olhar não poderia afinal de contas ser compreendido como uma atitude de superioridade, uma supervalorização daquilo que um seio é e significa, um modo de mantê-lo de certa maneira à parte, à margem ou entre parêntesis? Eis que então volto a relegar o seio à penumbra em que o mantiveram durante séculos a pudicícia sexomaníaca e a concupiscência como pecado...” 

Essa interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar, que embora pertencendo a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino se associava à ideia de uma intimidade amorosa, aceita de maneira favorável essa mudança nos costumes, seja pelo que isso representa como reflexo de uma mentalidade mais aberta na sociedade, seja porque tal vista lhe resulte particularmente agradável. É esse encorajamento desinteressado que gostaria de exprimir em seu olhar. 

Faz meia-volta. Em passos decisivos avança mais uma vez em direção à moça estendida ao sol. Agora o seu olhar, lambendo voluvelmente a paisagem, deter-se-á no seio com especial cuidado, mas apressando-se em envolvê-lo num impulso de benevolência e gratidão por tudo, pelo sol e o céu, pelos pinheiros recurvos e a duna e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmo que gira em torno daquelas cúspides aureoladas. 

Isso deveria bastar para tranquilizar devidamente a banhista solitária e desobstruir o campo das ilações desviadoras. Porém, mal ele volta a aproximar-se, eis que a moça se levanta de um salto, cobre-se, e esbaforida afasta-se com um aborrecido sacudir de ombros como se fugisse das insistências molestas de um sátiro. 

“O peso morto de uma tradição de maus costumes impede-a de apreciar em seu justo mérito as intenções mais esclarecidas”, conclui amargamente Palomar. 



(Palomar; tradução de Ivo Barroso) 



(Ilustração: Javier Arizabalo García) 




segunda-feira, 20 de abril de 2020

UN HOMBRE PASA CON UN PAN AL HOMBRO… / UM HOMEM PASSA COM UM PÃO AO OMBRO, de César Vallejo





Un hombre pasa con un pan al hombro.

¿Voy a escribir, después, sobre mi doble?



Otro se sienta, ráscase, extrae un piojo de su axila, mátalo.

¿Con qué valor hablar del psicoanálisis?



Otro ha entrado en mi pecho con un palo en la mano.

¿Hablar luego de Sócrates al médico?



Un cojo pasa dando el brazo a un niño. ¿

Voy, después, a leer a André Bretón?



Otro tiembla de frío, tose, escupe sangre.

¿Cabrá aludir jamás al Yo profundo?



Otro busca en el fango huesos, cáscaras.

¿Cómo escribir después del infinito?



Un albañil cae de un techo, muere y ya no almuerza.

¿Innovar, luego, el tropo, la metáfora?



Un comerciante roba un gramo en el peso a un cliente.

¿Hablar, después, de cuarta dimensión?



Un banquero falsea su balance.

¿Con qué cara llorar en el teatro?



Un paria duerme con el pie a la espalda.

¿Hablar, después, a nadie de Picasso?



Alguien va en un entierro sollozando.

¿Cómo luego entrar a la Academia?



Alguien limpia un fusil en su cocina.

¿Con qué valor hablar del más allá?



Alguien pasa contando con sus dedos.

¿Cómo hablar del no-yo sin dar un grito?



Tradução de José Bento:


Um homem passa com um pão ao ombro

– Vou escrever, depois, sobre o meu duplo?



Outro senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o

– Com que desplante falar da Psicanálise?



Outro entrou em meu peito com um pau na mão

– Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?



Um coxo passa dando o braço a um menino

– Vou, depois, ler André Breton?



Outro treme de frio, tosse, cospe sangue

– Convirá não aludir jamais ao Eu profundo?



Outro busca no lodo ossos e cascas

– Como escrever, depois, sobre o infinito?



Um pereiro cai de um telhado, morre, já não almoça

– Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?



Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês

– Falar, depois, da quarta dimensão?



Um banqueiro falsifica o seu balanço

– Com que cara chorar no teatro?



Um pária dorme com um pé às costas

– Falar, depois, a ninguém de Picasso?



Alguém vai num enterro a soluçar

– Como em seguida ingressar na Academia?



Alguém limpa uma espingarda na cozinha

– Com que desplante falar do mais além?



Alguém passa a contar pelos dedos

– Como falar do não-eu sem dar um grito?




(Antologia Poética de César Vallejo; seleção, tradução prólogo e notas José Bento; Lisboa; 1992)



(Ilustração: César Yauri Huanay)




sexta-feira, 17 de abril de 2020

TRABALHADORES DO BRASIL, de Wander Piroli






O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades. 

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos. 

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça: 

-- Você, Maria. 

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem. 

-- Aconteceu alguma coisa? 

-- Não – murmurou a mulher. 

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência. 

-- Não houve mesmo nada? – tornou o homem. 

-- Claro que não, Zé. Eu vim à toa. 

-- E os meninos? 

-- Mamãe está com eles. 

-- Como é que você arranjou para chegar até aqui? 

-- Uai, eu vim. 

-- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa. 

-- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui. 

-- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido. 

-- Fez alguma coisa hoje, Zé? 

-- Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada. 

A mulher sentou no tamborete, desajeitada. 

-- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem. 

-- Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos. 

-- Mas ela não estava doente? 

-- Você sabe como mamãe é. 

-- E o Tonhinho? 

-- Está lá. 

-- O carnegão saiu? 

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria. 

-- Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas. 

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura. 

-- Esses pastéis. 

-- Oh, Zé, para que você fez isso? 

-- Vamos, come um. 

-- Você não devia ter comprado. 

-- Vamos. 

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer. 

-- Come o outro, Zé. 

-- Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu. 

-- Então eu vou levar ele pros meninos. 

-- É pior, Maria. 

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se: 

-- Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém. 

-- Não, eu passei a manhã toda assentado. 

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu: 

-- Acho que eu vou andando. 

-- Já vai? 

-- Mamãe não aguenta eles, você sabe. 

-- Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo. 

O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher. 

-- Volta de bonde. 

-- Não, Zé. 

-- É muito longe, criatura. 

-- Não. 

-- Ora, minha nega. 

A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa. 

-- Vou ver se levo. 

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes. 

-- Não chega tarde não, viu, Zé. 

-- Chego não. 

-- Você vai fazer. 

-- Hoje eu sei que vai melhorar. 

-- Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei. 

A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato. 

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias. 




(Ilustração: Getúlio na Fazenda do Itú, em São Borja (RS) - autoria não identificada)





terça-feira, 14 de abril de 2020

PARA SER LIDO EM ALTA VELOCIDADE, de Carla Kinzo




como quem afugenta um mosquito insistente

porque sabe da reação do corpo à picada

como quem se lembra da panela esquecida no fogo

que pode estar consumindo a casa



como quem se dá conta

passou muito tempo e não alguns dias



como quem se assusta

porque viu seu assassino seu amante

ou alguém talvez esquecido



porque se passou muito tempo

como se fossem alguns dias



como quem vê alguém capaz de rebobinar

o tempo



como quem abana insetos mortais

ou feios demais



como quem sopra o que voa na direção dos olhos

ou como quem se estica

pra pegar um pássaro

raro

ou ainda como a criança que se estica

para pegar não um pássaro

raro

mas uma libélula

banal





como um tigre pronto pro salto

como o atleta pronto pro salto

como o suicida pronto



como o bailarino

na ponta de dois únicos dedos



pronto

para

o

salto



como o olhar de quem cai para o espaço

(o último)

como a lágrima presa numa linha do rosto

(a última)

como quem escreve a linha final



como quem se arrisca no asfalto

como quem apanha de um desconhecido

como quem apanha muito de quem se

conhece muito



como quem empurra da vida

quem não quer que entre nela



como quem puxa o ar

como quem se afoga com o ar

porque não há espaço

como quem pula para alcançar o ar preso

no teto



como quem sufoca moveu

bruscamente uma mão

para reter se não a vida

mas o instante ali na beira

da porta de saída



(Cinematógrafo)




(Ilustração: Juarez Machado)

sábado, 11 de abril de 2020

CANTO DE MURO E SEUS MORADORES, de Luís da Câmara Cascudo




Irmãos, volvamos para a Natureza! 

Civilizados, para trás! Voltemos... 

Humberto de Campos 



Trepadeiras listam de verde úmido o velho muro cinzento, abrindo nos pequeninos cachos vermelhos e brancos uma leve alegria visual. Esta trepadeira é chamada Romeu e Julieta porque no mesmo molho estão as flores de duas cores, confusas e juntas. Uma outra, de folhas miúdas, sustenta campânulas minúsculas e rubras que abrem as bocas escarlates para os besouros escuros, redondos e sonoros. 

No canto de muro, tijolos quebrados, cobertos pelos cacos de telha ruiva, aprumam-se numa breve pirâmide de que restos de papel, pano e palha disfarçam as entradas negras da habitação coletiva desde o térreo, domínio dual de Titius, o escorpião, e de Licosa, aranha orgulhosa, até o último andar onde mora um grilo solitário e tenor. 

Perto há, tão curvo quanto o pescoço de um cisne, um cano de onde pende enferrujada torneira. Duas vezes por dia escorre, lento e claro, um fio de água trêmula e cintilante na sua cantiga rápida no tanque raso de bordas a nível do chão. Uma folha sempre verde passeia devagar na face arrepiada, e Dica, a aranha-d’água, corre pela superfície de prata sem molhar as seis patas finíssimas. 

Na margem há duas pedras, dois tijolos sujos debaixo dos quais reside um sapo negro e ouro, orgulhoso, atrevido e covarde na classe musical dos barítonos. Chama-se Fu. 

Água do tanque sobe duas vezes cada dia, vagarosa, sacudida pelos círculos concêntricos que sustentam a existência do reservatório, bebedouro do bem-te-vi, lavadeira de casaca preta, xexéus do bairro residencial próprio e permite o abastecimento regular de aves no tipo das vizinhas toleradas e dos visitantes dispensáveis e teimosos. 

No meio do quintal, a mangueira estende a galharia robusta, derramando sombra e agasalho. É uma árvore bem velha, alta e copada, mas de frutos azedos e reduzidos. Aquela imponência ornamental basta para justificar a presença poderosa. Os frutos carecem de importância para ela. Não deseja reproduzir a dinastia de porte lindo ou demasiado confia na solidariedade famélica dos pássaros e dos morcegos. Bem no centro há um oco, janelão ogival, que é a porta nobre de Sofia, a coruja noturna, misteriosa e venerada. 

Há do lado um sapotizeiro denso e baixo onde ainda resiste ao redor do tronco um círculo carcomido de folha de flandres, posto ali há muitos anos, impedindo as subidas vorazes de Musi, proprietária de uma família de ratos insaciáveis. 

Depois do sapotizeiro, há uma goiabeira esquelética e que teima, como fêmea obstinada na fecundação, em cobrir-se de goiabas amarelas de polpa rubra e doce. 

No fim, hirto, senhorial, importante, o mamoeiro sacode o estirado caule bem alto, com uma coroa de folhas imóveis, guardando o bando de mamões compridos e desejados pela lonjura. 

Mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira estão registrados nos livros graves como Carica papaya, L., mas o fruto lembrando uma grande mama conservou o aumentativo. Achras sapota, L., e Psidium guayava, Raddi, fecham a relação sisuda e definitiva. 

Ao pé do sapotizeiro há um montezinho de pedras e aí instalou seu escritório o cavalo do cão que ainda não tomou conhecimento de pertencer aos Himenópteros pompilídeos, raça guerreira e milenar. 

De três galhos da mangueira, os mais distantes do solo, justamente na extremidade, penduram-se as bolsas cinzento-claras dos ninhos dos xexéus, guardados em posição alcoviteira, constante e tenaz por um regimento de tapiucabas, vassalas espontâneas e dedicadas até o sacrifício individual. 

Nas brechas do muro que as trepadeiras enfeitam e remoçam cada manhã e tarde vivem as lagartixas, chefiadas por Vênia, anciã gorda e vagarosa, de couro áspero, lixento e rugoso. As lagartixas são muito bem educadas e balançam as cabecinhas triangulares concordando com tudo. 

No ramo mais grosso do sapotizeiro há uma casa redonda e chata, defendida pela fama agressiva de seus moradores para as circunjacências habitadas. É o concílio do marimbondo-caboclo, rei dos marimbondos-chapéu, por causa da forma residencial. Invencíveis, são o melhor agrupamento de combate, caça e patrulha das redondezas. 

Junto à pirâmide está uma telha intacta e semienterrada, custodiando a família inteira da rainha Blata com sua corte de baratas avermelhadas e profissionalmente famintas. 

Próximo às árvores ergue-se o que resta da antiga cozinha. Dos portais apodrecidos caiu a porta inferior, coberta de caliça e monturo. Uma ponta em elevação permite torná-la abrigo e aí, vez por outra, veraneia Raca, a jararaca temida, Bothrops jararaca, vinda dos arredores, entrando pela brecha do muro num espreguiçamento indolente, reluzindo suas escamas verde-oliva onde as manchas escuras e triangulares, orladas de amarelo-baço, vestem-na de certo luxo. Permanece alguns dias descansando e vigiando a família de Musi que se aboletou no frio e abandonado fogão de chapa, podendo criar os frutos dos amores sucessivos com relativa segurança e possível fartura. Brinco, o gato, aparece por fruta naquela região. Raca sabe desta simpatia de Musi e procura a cozinha como a um farnel de reserva. Musi naturalmente desenvolve técnicas defensivas para livrar a espécie do paladar de Raca. 

Do teto negro de fuligem, inúteis teias de aranha decoram como festões, penduram-se durante o dia, dormindo, a falange dos morcegos de Quiró, enrolados nas asas membranosas, com a mania do sono de cabeça para baixo, conforme recomendação dos especialistas quirópteros. Tanto Sofia como Raca são apaixonadas apreciadoras da carne tenra dos morcegos que não se resolvem a ser fornecedores passivos e dóceis desta iguaria difícil. 

Esta é a multidão regular e permanente da terra silenciosa que o canto de muro denomina. 

Há, naturalmente, outras multidões flutuantes de adventícios, visitantes, turistas aproveitadores da sazão das frutas, miriápodes, planárias quase imóveis, deixando brilhante rastro de baba viscosa, bando de aves atrevidas, ondas rumorejantes de besouros de todas as cores e feitios. Há fregueses matutinos e vespertinos que visitam as flores pacientes na espera indispensável à propagação. 

Como um clarão policolor, iluminando a penumbra das trepadeiras humildes, o beija-flor paira no ar, asas invisíveis pela miraculosa vibração que o sustém como a um deus mantido pela própria essência propulsora contra a lei da gravidade, vencedor do peso e da velocidade, mergulhando o fino e longo bico nas corolas e desaparecendo como um pequenino fantasma rutilante. 

Também estão presentes as aranhas incontáveis, as formigas negras e as saúvas vitoriosas. Ao escurecer, os vaga-lumes desenham hieróglifos de luz azul e fria. 

O fio de água canta no tanque desencalhando a folha verde que voga em círculos. Dica inspeciona numa viagem impetuosa os limites de sua jurisdição. A nódoa da umidade avança na areia enegrecida e fofa detendo-se, conforme prévio ajuste entre as altas partes contratantes, na orla do pequeno formigueiro das “negras” que não podem aspirar à importância administrativa das saúvas mas têm direito à vida e à perpetuidade. Xexéus, bem-te-vis, lavadeiras vêm molhar o bico. Dão carreiras esportivas com bruscas paradas, experimentando os freios naturais, rodando em voos perigosamente baixos à borda cimentada, pousando numa suprema elegância como se fossem aplaudidos pelas galerias repletas de admiradores. Vez e vez o voo inesperado e ponteiro abate um inseto confiado. Regressam ainda deglutindo. O bem-te-vi demora as abluções e os passeios não têm a alegria muscular das lavadeiras que mantêm o protocolo, vestindo casaca negra sobre o imaculado branco do peito e das perninhas ágeis. 

Numa e noutra ocasião acontece vir beber o canário amarelo, pequeno e vivo como uma bola de ouro, o sabiá-cinzento de bico negro, o concliz esplendoroso, sangue e ébano, como um Grande de Espanha, deslumbrante. 

Os xexéus possuem três ninhos e julgam propriedade quanto seus olhos alcancem mas não dirão o pensamento em canto alto temendo a contrariedade do bem-te-vi, tão bonito quanto arrebatado e brigão. 

As flores das trepadeiras atraem besouros maravilhosos, de bronze dourado, raiados de vermelho, brilhantes de um negro palpitante, róseos, amarelos, com todas as gradações do arco-íris. E vespas fulminantes, zumbindo como se anunciassem a hierarquia que está honrando o canto de muro com sua presença augustal, deixando quase um rastro de cintilações no aéreo caminho percorrido. 

Tardinha, quando os pássaros e as aves bebem ou se invertem ao derredor do tanque, sente-se o respeito interior, inveja e veneração, das outras espécies sem asas e sem cantos, sem aquelas plumagens, sem aqueles élitros vistosos, derramando seduções para os dois olhos de Vênia e os oito das aranhas. 

Junto ao mamoeiro escancara-se a porta de um reino de Ata com saídas de emergência noutros pontos. Possivelmente a sede é no lado do muro e apenas aqui estão as aberturas dos canais de acesso para o domínio subterrâneo. De todas as espécies é a única que não goza das licenças legais e férias remuneradas. Não há leis de trabalho regulando o esforço perpétuo das saúvas, vassalas de Ata. Qualquer hora o sol tem reparado na linha processional e lépida das formigas vermelhas carregando pétalas, folhas verdes, vermes, insetos inteiros ou despedaçados, mortos ou ainda vivos, debatendo-se no alto do grupo que os leva, palpitante, para o fundo da terra, numa inútil e derradeira batalha. 

Mesmo à noite as estrelas deram fé da missão noturna das saúvas. Continuam trabalhando. Dizem que é medo do inverno mas aqui não há inverno justificador de tanta dedicação esfomeada. Têm o instinto da luta vital ou cumprem, como as danaides, penitência sem fim. 

Também as borboletas esvoaçam, espalhando a sedução da cor e graça dos gestos delicados. E os gafanhotos escuros ou verdes, a esperança, um locustídeo que tendo a boca esverdeada dá felicidade e a tendo negra é anúncio de azar, surge aos saltos ou voo raseiro. 

Uma visita dispensável é a do põe-mesa, piedoso louva-a-deus, o mais feroz animal da criação, erguendo as patinhas hipócritas para um arremedo de oração sempre interrompida pelo assalto e pela agressão irresistível. Licosa é a única que abandona sua sesta tardia e vem, mansa e sutil, no rastro do louva-a-deus, julgando-o indispensável como aperitivo fórmico para o jantar. O põe-mesa pressente-a e abre as lindas asas, suspendendo-se num arranco ciciante para outra paragem mais tranquila. 

Agora o sol se põe e Vênia recolhe o seu povo às gretas do muro acolhedor. As aves subiram para os ninhos e apenas o bem-te-vi e alguma lavadeira retardatária apressam o regresso aos saltos diagonais. Titius aparece um instante à porta da mansão, com as pinças cruzadas e o anzol da cauda erguido em popa de gôndola, inspecionando o campo da futura expedição. Os xexéus terminam seu canto sincopado, imitando a declinação do qui-quae-quod. As tapiucabas voltavam aos quartéis. Licosa anda, rápida, ao redor do edifício, preparando-se para a caçada perigosa e noturna. Já se ouve o guincho agudo e repetido dos morcegos que despertaram. Na treva hesitante, que a folhagem da mangueira adensa e aveluda, brilham os olhos de esmeralda de Sofia. 

O chiado confuso de Musi anuncia apetite em toda a tribo alertada. As estrelas estão se acendendo na altura do céu escuro. 

A cigarra da mangueira estridulou longamente seu aviso amoroso às fêmeas longínquas no zio-zio-zio excitador. 

Do cimo da pirâmide de tijolos subiu a cantiga alta e viva do grilo tenor, anunciando a presença do seu desejo, canto ansioso de chamamento à noiva, distante e surda. Espalhava o convite insistente e anônimo do amor obscuro, impaciente e fiel. Detinha-se num compasso de espera como aguardando a réplica que tardava. Depois retomava, incansável, a fricção raivosa dos élitros, dando um frêmito angustiado que parecia ressoar nas coisas mudas e tranquilas que o rodeavam. 

Sobem agora rumores imprecisos, cantigas distantes, diluídas e vagas na difusa musicalidade do anoitecer. É o quiriri, a voz esparsa que enche a treva, música sem nome e sem contorno das horas sem sol. 

Do cimo da mangueira um corpo mergulha em queda quase perpendicular. Som forte de asas que se abrem como pano rompido e uma breve sombra passa nodoando a face imóvel do tanque. Sofia saiu para caçar... 

O grilo retomou seu cântico nupcial estridente, desafiante, sacudindo a solidão povoada de notas indecisas e de quietações momentâneas. Parecia sozinho resumir o amor coletivo dos seres que se batiam naquele momento pela conservação da vida e da espécie. 

O esquadrão dos morcegos num voo baixo obliquou pelo sapotizeiro e, guiado pelas ondas sonoras que feriam o radar personalíssimo, desapareceu no escuro. 

O sapo do tanque deixou os tijolos e desenvolveu um bailado de pulos. Parava para coaxar, rouco, rascante, rachado. Uma estrela ficou olhando a lâmina de água quieta. 

O grilo cantou mais alto. 

A noite começava... 



(Canto de muro


Ilustração: Nicoletta Ceccoli)



quarta-feira, 8 de abril de 2020

CAVALEIRO ANDANTE, de Onestaldo de Pennafort




Se vais em busca da Fortuna, para:

nem dês um passo de onde estás... Mais certo

é que ela venha ter ao teu deserto,

que vás achá-la em sua verde seara.



Se em busca mais do Amor, volta e repara

como é enganoso aquele céu aberto:

mais longe está, quando mais parece perto,

e faz a noite da manhã mais clara.



Deixa a Fortuna, que te está distante,

e deixa o Amor, que teu olhar persegue

como perdido pássaro sem ninho.



Mas, ó sombrio cavaleiro andante,

se vais em busca da Tristeza, segue,

que hás de encontrá-la pelo teu caminho!



(Escombros Floridos)



(Ilustração: Adolph von Menzel)




domingo, 5 de abril de 2020

PREPARAÇÃO PARA A PRIMEIRA COMUNHÃO, de Alfredo Bryce Echenique






O Padre Brown lhes falou, metade em inglês, metade em péssimo espanhol, e saiu deixando-os todos como que santificados, sem considerar que o pobre Sánches Concha estava aterrorizado com aquele assunto de inferno porque acabava de roubar um bloco do Del Castilho. Os outros, em compensação, esperavam que Deus lhes aparecesse a qualquer momento, ainda que à noite fosse bem mais provável, enquanto rezavam ajoelhados junto à cama e no escuro. Esperavam-no, e até pensavam que seria muito bacana que aparecesse a mim e não aos Arena, por exemplo. Era a primeira vez que os deixavam um instante sozinhos na sala de aula, e apesar disso não faziam barulho. Permaneceram bem místicos. Por fim apareceu a Madre Cenoura, um pouco surpreendida porque não tinha a quem repreender: estavam todos muito quietinhos e com as mãos juntas sobre a carteira. Assim os deixava, todos os anos, o Padre Brown, quando vinha prepará-los para a primeira comunhão. A Madre Cenoura pôs a sineta sobre a mesa e aproximou-se deles: “Agora precisam estudar muito bem o catecismo; precisam saber de cor tudo o que está dito nele não esquecê-lo nunca mais na vida; aquele que se esquece do catecismo estará sempre em perigo de pecar! Não o esqueçam! Não o esqueçam nunca! Nunca jamais!” Já estava ficando zangada, sozinha, sem que ninguém dissesse nada. “Então vamos ver, quando chegar esse dia, esse grande dia de paz e alegria, se vão se comportar como devem ou errar como os tolos. Para isso vamos praticar diariamente; primeiro aqui, no colégio, e quando se aproxime o dia, iremos à igreja, para que se acostumem e para que cada um saiba qual será o seu lugar. E lá estarão em ordem de tamanho! Não se esqueçam! E não quero ver ninguém mastigando a hóstia! A hóstia não se mastiga! Engole-se suavemente! Com os olhos fechados! Sem olhar a quem está do lado! Ai daquele que eu surpreender olhando para o lado! Entenderam? Entenderam?” Todos lhe disseram que sim, e começaram a morrer de medo pensando que poderiam se engasgar. Praticariam em casa, com uma bolachinha, com qualquer coisa. 

O Padre Brown vinha três vezes por semana para prepara-los; vinha de tarde e ficava uma hora ou mais, se fosse necessário, falando-lhes de profunda transformação que ocorreria em suas vidas. Tranquilizou-os um pouco quando disse que Deus perdoava sempre, bastava ter o firme propósito de se emendar, a firme intenção de não voltar a pecar. Em primeiro lugar, deviam evitar os maus pensamentos e amar a Deus sobre todas as coisas, mas também a todo o mundo porque todos eram irmãos, os pobres também, as crianças das missões na selva do Peru e do Brasil e na África e na Ásia: todos eram irmãos e Deus os amava a todos da mesma maneira. Aprenderam os dez mandamentos, sem entender muito bem alguns que o padre preferia não explicar por enquanto; primeiro, aprendê-los bem de cor, depois se veria, a vida iria ensinando quem é a mulher do próximo e aquele negócio de fornicar, que mantinha vários deles bem preocupados. Não que fosse uma preocupação precoce, talvez não era senão semântica, mas em todo caso de los Heros, olhou para Lastres bastante espantado. Algumas semanas mais tarde, começaram a leva-los ao maior salão do colégio. Tinham colocado aí um banco e eles se aproximavam, um por um, ajoelhavam-se e o Padre Brown dava neles uma palmadinha e fazia um sinal para que se fossem e viesse o próximo. Logo voltavam e o padre tocava em suas bocas, assim seria quando lhes desse a hóstia. Mas de um modo mais sério, mais grave, porque nesse dia receberiam a Deus na hóstia consagrada. Várias vezes praticaram, satisfeitos porque perdiam as aulas com a Madre Cenoura. Ademais, terminado o dia escolar, siando ao pátio, brincavam de batismo e crisma e se davam grandes murros. E por essas andavam, uma tarde, quando de repente apareceu a Madre Cenoura e descobriu o que eles faziam (todos os anos descobria o que faziam). Ficou como louca, não parava de gritar com eles, ameaçou-os de pegá-los a bofetadas se continuavam pecando dessa maneira. 

Afinal um dia os confessaram. Morriam de medo, tremiam quando chegava sua vez. Traziam a lista de pecados bem aprendidos e não faltou quem os havia numerado, temendo esquecer-se de algum e depois, como é que fazia? Assumiram propósitos de emenda decididos, definitivos; ninguém voltaria a chamar de caboclo burro o mordomo de sua casa; ninguém nunca mais voltaria a bater na irmã o a afanar uma lapiseira; ninguém voltaria a desejar que o San Martín, o cê-dê-efe da turma, adoecesse ou errasse em alguma lição; ninguém voltaria a desejar que a Madre Cenoura regressasse aos Estados Unidos ou escorregasse nas escadas e eles pudessem ver seus calções; ninguém deixaria comida no prato porque na serra há criancinhas morrendo de fome e frio. O Padre Brown dava-lhes a absolvição, um por um, e eles se retiravam espantados, evitando ao máximo os maus pensamentos e caminhando como mulherzinhas. 

Nunca estiveram tão obedientes, tão estudiosos, não faltavam senão quatro dias para o grande dia. Levaram-nos duas vezes à igreja do Parque Central de Miraflores, e ali fizessem as práticas definitivas. Até a Madre Cenoura se transformara. Parecia que ela também ia fazer a primeira comunhão, porque os tratava muito bem e não se zangava nem nada. Quase nem lhes mandava fazer deveres. A única coisa ruim era que os do segundo e do terceiro já tinha feito a primeira comunhão e a todo momento aproximavam-se deles para chateá-los. Riam-se deles e às vezes estavam a ponto de fazê-los cair em maus pensamentos, em tentação ou até de enraivecê-los. Mas eles não se irritavam nunca, nunca respondiam, continuavam bem firmes em seu propósito de emenda. Chegariam como anjos, como os anjos que não se rebelaram, e fariam sua primeira comunhão e depois ficariam beatíssimos e comungariam em todas as primeiras sextas-feiras do mês, nos domingos também, por que não? Cada um evitava o pecado como podia, nem sempre era fácil, precisava ser muito esperto para consegui-lo. Susan riu muito quando Julius lhe contou o que tinha acontecido uma tarde, três dias antes do dia solene. Subiu para lhe dar bom dia, como sempre, e pedir uma vez mais que Juan Lucas assistisse à cerimônia; ele, de sua parte, já tinha aceitado que Juan Lastarria fosse o seu padrinho de crisma (dizer o que pensava dos Lastarria teria sido pecado). Susan achou-o muito consternado e lhe pediu que contasse o que estava acontecendo. Julius, primeiro, reagiu um pouco, mas depois não aguentou e contou tudo. Acontece que o Aliaga, um grandão do segundo ano, lhe fizera uma falta, empurrara-o no exato momento em que ele ia meter um gol à frente de Morales; e ainda mais, depois o chamou de mariquinhas. Ele chorou lágrimas de raiva, mas o que podia fazer, se batia nele era pecado. “Pobre Julius, interveio Susan, improvisando um tom de voz muito preocupado; e que foi que você fez?” – “Nada; eu disse que não podia bater nele porque vou fazer a primeira comunhão, então chamei o Bosco, que é meu amigo e está no terceiro, e ele lhe deu uma sova.” 



(Um mundo para Julius; tradução de Remy Gorga, filho) 



(Ilustração: Stu Mead - kommunion) 






quinta-feira, 2 de abril de 2020

LLUVIA / CHUVA, de Juan Gelman



hoy llueve mucho, mucho,

y pareciera que están lavando el mundo

mi vecino de al lado mira la lluvia

y piensa escribir una carta de amor/

una carta a la mujer que vive con él

y le cocina y le lava la ropa y hace el amor con él

y se parece a su sombra/

mi vecino nunca le dice palabras de amor a la mujer/

entra a la casa por la ventana y no por la puerta/

por una puerta se entra a muchos sitios/

al trabajo, al cuartel, a la cárcel,

a todos los edificios del mundo/ pero no al mundo/

ni a una mujer/ni al alma/

es decir/a ese cajón o nave o lluvia que llamamos así/

como hoy/que llueve mucho/

y me cuesta escribir la palabra amor/

porque el amor es una cosa y la palabra amor es otra cosa/

y sólo el alma sabe dónde las dos se encuentran/

y cuándo/y cómo/

pero el alma qué puede explicar/

por eso mi vecino tiene tormentas en la boca/

palabras que naufragan/

palabras que no saben que hay sol porque nacen y

mueren la misma noche en que amó/

y dejan cartas en el pensamiento que él nunca escribirá/

como el silencio que hay entre dos rosas/

o como yo/que escribo palabras para volver

a mi vecino que mira la lluvia/

a la lluvia/

a mi corazón desterrado/



Tradução de Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves:


hoje chove muito, muito,

e parece que estão lavando o mundo.

meu vizinho do lado contempla a chuva

e pensa em escrever uma carta de amor/

uma carta à mulher que vive com ele

e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele

e parece sua sombra/

meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/

entra em casa pela janela e não pela porta/

por uma porta se entra em muitos lugares/

no trabalho, no quartel, no cárcere,

em todos os edifícios do mundo/

mas não no mundo/

nem numa mulher/nem na alma/

quer dizer/nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim/

como hoje/que chove muito/

e me custa escrever a palavra amor/

porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/

e somente a alma sabe onde os dois se encontram/

e quando/e como/

mas o que pode a alma explicar?/

por isso meu vizinho tem tormentas na boca/

palavras que naufragam/

palavras que não sabem que há sol porque nascem

e morrem na mesma noite em que amou/

e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/

como o silêncio que há entre duas rosas/

ou como eu/que escrevo palavras para voltar

ao meu vizinho que contempla a chuva/

à chuva/

ao meu coração desterrado/



(Isso; Paris, 1983-84)



(Ilustração: Sharon York - man in the rain)





quarta-feira, 1 de abril de 2020

AS RAZÕES DE WERTHER OU, O PAPEL DA SENSIBILIDADE NA FORMAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE, de Magali Moura



                       



"Mau seria se cada um não tivesse em sua vida 

uma época em que Werther lhe parecesse 

como escrito especialmente para si." 

Goethe
                           

Primavera de 1772. Goethe, advogado recém-formado, chega a Wetzlar para estagiar e conhece em um baile Charlotte (Lotte) Buff, noiva de Christian Kestner. Apaixona-se pela moça e se torna amigo do casal, chegando a lhes comprar o anel de noivado. Suas inclinações não são correspondidas e retorna abruptamente para Frankfurt. Setembro: em sua viagem de volta, hospeda-se na casa de uma amiga de sua mãe, Sophie de la Roche que escrevera, em 1771, um romance epistolar A senhorita de Sternheim e lá conhece sua filha Maximiliane. Outubro: troca intensa de correspondência com Lotte e Kestner que o informa do suicídio de seu colega desde os tempos de estudante em Leipzig, Carl Wilhelm Jerusalém. O também jovem jurista, sensível e dotado de talento artístico, sentia-se infeliz por não ser reconhecido profissionalmente e também por estar perdidamente apaixonado por uma mulher casada. Após tomar emprestado um par de pistolas de Kestner, põe fim à vida. Janeiro de 1774: Maximiliane, agora casada com um comerciante bem mais velho e infeliz, muda-se para Frankfurt e passa a frequentar a casa de Goethe que se apaixona pela jovem sem esperanças. Fevereiro de 1774: aos 24 anos de idade, depois de saber do suicídio de Jerusalém e após passar pela sua segunda grande decepção amorosa em um curto intervalo de tempo, Goethe encerra-se em seu quarto em "uma solidão completa" e escreve em menos de quatro semanas, "de modo bastante inconsciente e como um sonâmbulo", seu maior sucesso de público: Os sofrimentos do jovem Werther. Escreve de um só fôlego, "sem haver antes lançado sobre o papel nenhum plano de conjunto, nem tratado qualquer de suas partes". Poucos meses depois de terminado, o romance é impresso sem alterações e lançado na Feira do Livro de Leipzig, sendo logo em seguida proibido em várias regiões por "ameaça à moral". 

A gênese da obra pode ser acompanhada através do relato detalhado que Goethe faz em sua obra autobiográfica, Poesia e verdade, na qual informa sobre a estreita relação com o narrado em Werther e os fatos de sua própria vida, além de fornecer dados sobre a repercussão "prodigiosa" no público e catártica em si mesmo: "Como depois de uma confissão geral, eu me sentia de novo na posse de minha liberdade e minha alegria, e com o direito de começar uma nova vida". Werther é simultaneamente a expressão de seu tempo e a indicação do fim de um ciclo. Em novembro do ano seguinte, Goethe parte para Weimar encerrando uma fase tormentosa: "Estou tão cansado de andar para diante e pra trás! / Para que tanta dor, tanto prazer desfeito? / Doce paz, / Entra, ai! Entra no meu peito!". Nessa cidade se tornaria a figura central da literatura alemã e nela viria a falecer em 1832, aos 82 anos de idade. Mas a sombra de Werther sempre o acompanhara e volta à cena cinquenta anos depois de vir a público. Por ocasião da edição comemorativa do jubileu de sua obra, como que num ato de resgate da força viril de juventude, Goethe apaixona-se pela jovem adolescente de 16 anos Ulrike von Levetzow e tem seu pedido de casamento recusado. Ao escrever a poesia A Werther, novamente tem a oportunidade de transformar a dor da paixão em uma obra literária: "o que não vivi e o que não me atormentou e comoveu, isto também não poetizei, nem pronunciei". O senhor septuagenário dialoga com o jovem e eterno apaixonado Werther: "Mais uma vez ousas, sombra tão pranteada / Surgir à luz do dia". 

A publicação de Werther teve uma repercussão inédita. De um só golpe, a Alemanha alcançava um lugar de destaque no âmbito das discussões estético-literárias na Europa. Era a saída do ensimesmamento a que fora relegada pela Reforma luterana que interrompeu seu diálogo mais estreito com as nações mediterrâneas e consequentemente com os frutos do Renascimento. Com um verdadeiro furor as pessoas liam, sozinhas ou em grupos, decoravam trechos e os declamavam, dezenas de críticas surgiam em revistas e jornais, além de ter sido modelo para outros livros e rapidamente traduzido em várias línguas. Mas sua aceitação não era unanimidade, era também motivo de troça pelo seu tom de exaltação apaixonada, do que é exemplo a versão parodística de Friedrich Nicolai: As alegrias do jovem Werther. Apesar dos clamores da Igreja, a "obrinha" de Goethe havia se transformado em moda e culto não só em termos de vestimenta com os rapazes trajando-se à la Werther de calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul, como também se faziam peregrinações ao túmulo de Jerusalem. Uma verdadeira febre de Werther (Wertherfieber) alastrou-se pela Europa com vários casos de suicídio inspirados pela obra: a presença sombria de Werther era notada nas pessoas encontradas mortas abraçadas com um exemplar do livro. A arte influenciava diretamente a vida das pessoas. Invertendo-se a mão, passava-se a imitar a arte. O homem criava afinal um mundo só seu - a literatura não representa o mundo, é algo em si mesma. 

Nesse sentido pode-se entender Werther como um metatexto, no qual um livro se constrói em diálogo com outros. Werther é um jovem que forma sua individualidade através da leitura: Homero, Ossian (James Macpherson), Klopstock e Lessing não são mencionados por acaso. Através deles, constrói-se o diálogo intertextual que forma uma nova maneira de ver o mundo: pelos olhos em brasa do coração. A própria origem obscura do nome do personagem que intitula o romance de Goethe permite que se faça uma associação livre com o significado da palavra que está na raiz do nome. "Wert" em alemão significa valor ou valoroso e a terminação "-er" indica o grau comparativo, o que leva ao entendimento do nome "Werther" como "aquele que é mais valoroso do que". Essa acepção pode resumir o próprio enredo da obra que vai muito além de uma mera expressão das dores de amor de um apaixonado infeliz: a discussão sobre valores. A procura de um novo fazer literário, mais verdadeiro e expressivo era o lema daqueles jovens que se reuniam para discutir e fazer a nova literatura, que se configurará no movimento denominado de "Tempestade e Ímpeto" ( Sturm und Drang), mesmo título da peça de 1776 de um dos integrantes do grupo em torno do jovem Goethe, Maximilian Klinger. A questão central gira em torno dos novos valores que esta geração tenta estabelecer a partir de suas produções literárias, nas quais conceitos como gênio, fantasia, sentimento, amizade, liberdade e natureza ocupam o lugar central. Em termos de história das idéias, nessa época a Alemanha estava em plena tentativa de inserir-se no contexto da discussão intelectual européia centrada no delineamento do ideário do Iluminismo. 

Enquanto Gottsched procurava na imitação dos clássicos franceses a solução para a modernização do teatro alemão, Lessing procurava na fusão de ideias dos antigos gregos com os modernos ingleses a criação do teatro burguês alemão. Esses jovens literatos, seguindo o modelo da Empfindsamkeit (Sentimentalismo), no qual cultuava-se a amizade e o sentimento de união íntima e pessoal com Deus, viam como contraposição ao artificialismo barroco e cortesão o ir além do uso exclusivo da razão e propunham uma valorização da expressão dos desejos individuais como forma de se instituir um modo mais natural de se viver. Muito embora a proposta de Lessing de instituição de uma literatura burguesa fosse uma atitude revolucionária, faltava para eles ainda a liberdade de não se submeter ao mundo do trabalho. Diz Werther: "E és tu o único culpado disso, tu quem me introduziste nestas funções e que me pregaste a atividade. Atividade!" (carta de 24 dez.). Se a instituição do novo paradigma reside na substituição da estrutura de valor pela função que se exerce na sociedade, faltava ainda aquilo que tornaria o sujeito racional um indivíduo: a realização livre de seus desejos e inclinações. Este era o dilema de Werther: um ser "deslocado" que enfatizava a potência do sentir e se via completamente perdido, caso não conseguisse viver de modo absoluto sua paixão, esta era a única possibilidade de não se colocar limites à imaginação criadora. 

O título da obra, Os sofrimentos do jovem Werther e a introdução que antecede a série de cartas resumem sinteticamente o tema: a exposição franca e direta do estado de paixão e seus reflexos, efeito alcançado pela sua forma epistolar. A intimidade com a qual o leitor acompanha o nascimento e a incrementação do estado de paixão difere de qualquer outro romance anterior, no qual se tenha usado o recurso de exposição de cartas. Este gênero de romance estava em voga e já havia sido usado com sucesso na Inglaterra por Richardson (Pamela, 1740; Clarissa, 1748) e na França por Rousseau (A nova Heloísa, 1761), mas são, segundo Paul Kluchkohn, pálidas expressões da força do amor, se comparadas à pujança do texto de Goethe. A coletânea de cartas a seu amigo Wilhelm não oferece ao leitor a contraparte, mergulhando-se única e exclusivamente no mundo de um só Eu, o de Werther. Tudo o que se vê e se percebe é unicamente filtrado pelo íntimo do personagem, o que acentua o perfil psicológico da narrativa. Gostando ou não do modo como se apresentam e se interpretam as situações, essa é a única possibilidade que é dada ao leitor, com o qual se forma uma forte aliança, deixando-o em sintonia com os embates travados no íntimo do personagem. É uma afirmação contínua do primado da subjetividade em relação ao mundo exterior tanto em termos de conteúdo como na forma. Desse modo, pode ser revelada a verdadeira natureza interior de forma imediata. 

A própria natureza exterior é também um tema caro a esses jovens, sobretudo para Goethe, pois representa a própria fonte de criação. As forças orgânicas em estado de permanente transformação e movimento geram o novo, o que supera a morte como finitude e a transforma em parte de um processo ininterrupto. 

Essa ideia se opõe à explicação da natureza de modo mecanicista, "hábito detestável das fórmulas científicas e dos termos consagrados" (Carta de 11 jun.). Sob essa perspectiva era analisada de forma rígida e de acordo com regras exatas da matemática, como se fora um relógio, sendo Deus o relojoeiro. Werther, assim como a natureza, pode ser interpretado sob a ótica de um jogo de forças contrárias que constituem os movimentos distintos das duas partes do livro. A primeira força que o impulsiona num movimento ascendente é percebida através da leitura positiva do mundo. Ao chegar à cidade, Werther encontra em seus arredores um "santuário", a natureza em primavera, que nele desperta um sentimento de culto ao divino: "tudo o que me cerca parece um paraíso", representando uma volta à idade do ouro, anterior ao pecado original. Encontra também os homens do povo, os homens "naturais", "a gente humilde do lugar", com seus "costumes patriarcais": são os exemplos de uma humanidade ancestral, original e mais verdadeira. Algumas cartas adiante, desperta sua paixão por Lotte como um amor sem barreiras convencionais, por isso "natural". Na figura de Alberto tem-se seu antagonista, o representante do mundo do encaixe às normas burguesas de funcionalidade. 

Já no segundo livro a força tem movimento ascendente, narrando como se sente deslocado em meio à nobreza repleta de "gente estúpida" com suas "odiosas distinções sociais". Cansado do artificialismo, ressurge a vontade de voltar a estar ao lado de Lotte, mas em seu regresso encontra uma natureza outonal, com folhas a cair revelando uma paisagem nua, e que nas tempestades demonstrava sua capacidade destruidora. Assim também iam pouco a pouco morrendo as esperanças de Werther e despertando em seu íntimo a convicção pelo ato suicida. Werther é então um forte ou um fraco? É um libelo ao Iluminismo ou um herói anti-iluminista? Conforme as distintas interpretações feitas ao longo do século 20, seu suicídio pode ser visto como o ato de um ser desequilibrado e doente que padece de depressão maníaco-depressiva, assim como um gesto corajoso e revolucionário, de um ser incorruptível, expressão afirmativa da liberdade absoluta em contraposição às limitações impostas pela cultura burguesa. De qualquer forma, em conformidade com o próprio desejo do personagem: "Quero fruir o presente e considerar o passado como passado", o que permanece até os dias de hoje é a expressão de um eterno estado de paixão. 





(Ilustração: Wilhelm Amberg - Vorlesung aus Goethes Werther - leitura de Werhter de Goethe – 1870)