quinta-feira, 29 de outubro de 2020

ROGER AND MOLLY / ROGER E MOLLY, de Robert Burns

 



 



Beneath a weeping willow's shade,

Melting with love fair Molly laid,

Her cows were feeding by;

By turns she knit, by turns she sung,

While ever flow'd from Molly's tongue,

“How deep in love am I.’



Young Roger chanc'd to stroll along,

And hearing Molly's amrous song,

And now and then a sigh;

Straight o'er the hedge he made his way,

And join'd with Molly in her lay;

“How deep in love am I.’



The quick surprise made Molly blush,

“How rude,” she cried, “now pray be hush,"

Yet shewed a yielding eye;

“My needle's bent, my worsted's broke,

Roger, I only meant in joke

How deep in love am I.



“You’re rude, - get out, - I wont be kissed,

Pray don’t, - yes, do, - begone, - persist;

Roger, I vow I’ll cry

What are you at, you roguish swain?”

He answered in a dying strain,

“How deep in love am I.”




Tradução de Jorge de Sena:





à sombra do chorão, que se alongava,

Molly, tão bela, de amor suspirava,

Seu gado era em redor,

Ora fazendo meia, ora cantando,

o mesmo pensamento ia soltando:

“Quão fundo é meu amor”.



O jovem Roger que por lá passava

ouviu quanto de amor’s Molly cantava

com que magoado ardor.

Saltando a sebe, aproximou-se dela,

veio estender-se ao pé de Molly bela:

“Quão fundo é meu amor”.



Molly corou de um breve susto inquieto:

“Que graça a tua, agora fica quieto”.

E os olha num langor…

“Quebra-se a agulha, a meia me desfazes…

Cantava, e não pensava nos rapazes,

“Quão fundo é meu amor”.



Bruto! Oh, beijos não… Tira! Sou tua…

Agora, agora… para… continua…

Aí que eu grito de dor!

Que estás tu a fazer, patife imundo?”

E el’ arquejante como um moribundo:

“Quão fundo é meu amor”.


(Ilustração: Konstantin Somov)



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

NUNCA EXISTE UMA CERTEZA DE NÃO SER LOUCO, de Michel Foucault

 


No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho? 

Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos que me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que eles asseguram constantemente serem reis quando na verdade são muito pobres, que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão completamente nus, que imaginam serem bilhas ou ter um corpo de vidro?{1} 

Mas Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como contorna a eventualidade do sonho ou do erro. Por mais enganadores que os sentidos sejam, eles na verdade não podem alterar nada além das "coisas muito pouco sensíveis e muito distantes"; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de verdade, "que estou aqui, perto da lareira, vestido com uma robe de chambre". Quanto ao sonho, tal como a imaginação dos pintores, ele pode representar "sereias ou sátiros através de figuras bizarras e extraordinárias"; mas não pode nem criar nem compor, por si só, essas coisas "mais simples e mais universais" cuja combinação torna possíveis as imagens fantásticas: "A natureza corpórea e sua extensibilidade pertence a esse gênero de coisas." Estas são tão pouco fingidas que asseguram aos sonhos sua verossimilhança — inevitáveis marcas de uma verdade que o sonho não chega a comprometer. Nem o sono povoado de imagens, nem a clara consciência de que os sentidos se iludem não podem levar a dúvida ao ponto extremo de sua universalidade; admitamos que os olhos nos enganam, "suponhamos agora que estejamos adormecidos": a verdade não se infiltrará em nós durante a noite. 

Com a loucura, o caso é outro; se esses perigos não comprometem o desempenho nem o essencial de sua verdade, não é porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco. Quando creio ter um corpo, posso ter a certeza de possuir uma verdade mais sólida do que aquele que supõe ter um corpo de vidro? Sem dúvida, pois "são loucos, e eu não seria menos extravagante se seguisse o exemplo deles". Não é a permanência de uma verdade que garante o pensamento contra a loucura, assim como ela lhe permitiria desligar-se de um erro ou emergir de um sonho; é uma impossibilidade de ser louco, essencial não ao objeto do pensamento mas ao sujeito que pensa. É possível supor que se está sonhando e identificar-se com o sujeito sonhador a fim de encontrar uma "razão qualquer para duvidar": a verdade aparece ainda, como condição de possibilidade do sonho. Em compensação, não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento: "Eu não seria menos extravagante ... "{2} 

Na economia da dúvida, há um desequilíbrio fundamental entre a loucura, de um lado, e o sonho e o erro, de outro. A situação deles é diferente com relação à verdade e àquele que a procura; sonhos ou ilusões são superados na própria estrutura da verdade, mas a loucura é excluída pelo sujeito que duvida. Como logo será excluído o fato de que ele não pensa, que ele não existe. Uma certa decisão foi tomada, a partir dos Essais. Quando Montaigne encontrou-se com Tasso, nada lhe assegurava que todo pensamento não fosse ensombrado pelo desatino. E o povo? O "pobre povo abusado por essas loucuras"? 

O homem de pensamento estará ao abrigo dessas extravagâncias? Ele também deve ser "no mínimo, objeto de lástima". E que razão poderia torná-lo juiz da loucura? 

A razão me mostrou que condenar de modo tão resoluto uma coisa como falsa e impossível é atribuir-se a vantagem de ter na cabeça os limites e os marcos da vontade de Deus e o poder de nossa mãe Natureza, e no entanto não há loucura mais notável no mundo que aquela que consiste em fazer com que se encaixem na medida de nossa capacidade e suficiência{3}. 

Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais frequentados pelo século XVI. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco: 

Não nos lembramos de como sentimos a presença da contradição em nosso próprio juízo?{4} 

Ora, Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se firmemente a ela: a loucura não pode mais dizer-lhe respeito. Seria extravagante acreditar que se é extravagante; como experiência do pensamento, a loucura implica a si própria e, portanto, exclui-se do projeto. Com isso, o perigo da loucura desapareceu no próprio exercício da Razão. Esta se vê entrincheirada na plena posse de si mesma, onde só pode encontrar como armadilhas o erro, e como perigos, as ilusões. A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser. 

A problemática da loucura — a de Montaigne — se vê, com isso, modificada. De um modo quase imperceptível, sem dúvida, mas decisivo. Ei-la agora colocada numa região de exclusão, da qual não se libertará, a não ser parcialmente, na Fenomenologia do Espírito. A Não-Razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada. Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como exercício de soberania de um sujeito que se atribui o dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. Traça-se uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável Desatino. Entre Montaigne e Descartes algo se passou: algo que diz respeito ao advento de uma ratio. Mas é inquietante que a história de uma ratio como a do mundo ocidental se esgote no progresso de um "racionalismo"; ela se constitui em parte equivalente, ainda que mais secreta, desse movimento com o qual o Desatino mergulhou em nosso solo a fim de nele se perder, sem dúvida, mas também de nele lançar raízes. 



Notas 

{1} DESCARTES, Méditations, I, Oeuvres, Pléiade, p. 268. 2 Ibidem. 

{2} DESCARTES, op. cit. 

{3} MONTAIGNE, Essais, Livro I, Cap. XXVI, Garnier, pp. 231232. 

{4} Idem, p. 236 



(História da loucura na idade clássica; tradução de José Teixeira Coelho Neto) 



(Ilustração: Hieronymus Bosch - Narrenschiff: a nau dos insensatos)


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

LA COLONNE QUI, LÉCHÉE JUSQU’À CE QUE LA LANGUE SAIGNE, GUÉRIT LA JAUNISSE / A COLUNA QUE, LAMBIDA ATÉ FAZER SANGRAR A LÍNGUA, CURA A ICTERÍCIA, de Raymond Roussel

 





1 Traitement héroïque ! user avec la langue,

2 Sans en rien rengainer qu’elle ne soit exsangue,

3 Après mille autres fous, les flancs de ce pilier !

4 Mais vers quoi ne courir, à quoi ne se plier,

5 Fasciné par l’espoir, palpable ou chimérique

6 (Espoir ! roi des leviers ! tout oncle d’Amérique

7 ((Ce pays jeune encore, inépuisé, béni,

8 — Si tard, de nos atlas, vierge il resta banni, —

9 Où l’on rafle plus d’or, vingt fois, qu’en l’ancien monde,

10 Soit que — l’appétissant a besoin de l’immonde —

11 Par cent mille kilos on fabrique un engrais

12 Pour ces champs infinis, où, gaillards, le nez frais

13 (((Un jour, d’un chien souffrant fait un chien hydrophobe ;

14 S’assurer que toujours ce liquide que gobe [165]

15 Même le mieux appris entre les nouveau-nés

16 Sort de l’ami de l’homme et lui vernit le nez

17 N’est pas, prenons-y garde, acte moins nécessaire

18 Que : — lorsque l’ennemi se fend d’un émissaire,

19 Sur les yeux de l’intrus appliquer un bandeau ;

20 — Quand passe un roi, marquer autour de son landau

21 Chaque point cardinal par un mouchard cycliste ;

22 — Quand, chef de conjurés, des noms on fait la liste,

23 Tout ce qu’on a d’esprit le mettre à la chiffrer ;

24 — Pour que l’oiseau pillard hésite à s’empiffrer,

25 Meubler d’épouvantails les terres où l’on sème ;

26 — Vieux ((((pendant notre hiver notre tignasse essaime,

27 Tels les rayons plantés dans le soleil vernal

28 S’en vont quand il se change en soleil hivernal ;)))),

29 S’imposer de fuir l’air ou de porter calotte ;

30 — Après avoir sombré de culotte en culotte,

31 Mettre en sûr viager l’argent sauvé du club ;

32 — Engager le verrou quand c’est l’heure du tub ;

33 — Avant de travailler sur une corde raide

34 S’armer d’un balancier ;))), cent chiens prêtent leur aide



Tradução de Luiza Neto Jorge:




Desgastar com a língua - heroico tratamento!

Pois só exangue estando a metem para dentro -

Como outros loucos mil, os flancos do pilar!

Mas como não correr, como se não vergar,

Fascinado pela esperança, evidente ou quimérica

('Sperança! alavanca-mor! todo o tio da América

((Esse jovem país, inda úbere e bendito,

- Virgem até tão tarde e dos atlas proscrito -

Onde oiro há aos milhões, mais que no velho mundo,

Quer porque - o apetitoso apela pelo imundo -

Aos cem mil quilos há quem fabrique um adubo

Par'esse campo infindo onde, focinho agudo,

(((Um cão doente fica hidrófobo num dia;

Ver se sempre esse líquido, que até a cria

Mais ensinada engole, sai do animalzinho

Do homem tão amigo, e lhe pule o focinho,

É acto, atentai bem, não menos necessário

Que: - quando o inimigo envia um emissário,

Nos olhos do intruso uma venda aplicar;

- Quando um rei passa, junto ao seu coche postar

Nos pontos cardiais um motociclista;

- Quando, em conspiração, nomes o chefe alista,

Quanto na mente houver, tudo averbar em cifra;

- Para o pássaro que pilha hesite e mais não esmifre,

A sementeira encher de espantalhos se faça;

- Velho ((((no nosso inverno a trunfa humana é escassa,

Tal o que semeado é ao sol estival

Se vai, quando ele no fim passa o sol invernal;)))),

Fugir de usar chapéu ou de se expor ao ar;

- Resguardar os tostões salvos do lupanar,

Ao fim de muito andar de cueca em cueca;

- Ir ao trinco e corrê-lo, à hora da soneca;

- Antes de em corda bamba exercitar-se, à mão

Um pênd'lo sempre ter;))), cem cães ajuda dão





(Novas Impressões de África; introdução e apensos de Manuel João Gomes; 1988)


(Ilustração: Hannah Höch)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

NUM BAR EM AMSTERDAM, de Albert Camus

 


Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser inoportuno? Receio que não se consiga fazer entender pelo amável gorila que preside os destinos deste estabelecimento. Na verdade, ele só fala holandês. A não ser que me autorize a defender sua causa, ele não adivinhará que está pedindo genebra. Olhe, ouso acreditar que me tenha compreendido: este aceno deve significar que ele se rende aos meus argumentos. De fato, lá vai ele, apressa-se com uma sábia lentidão. O senhor está com sorte — ele nem resmungou. Quando se recusa a servir alguém, basta-lhe um grunhido: ninguém insiste. Ser senhor do próprio estado de espírito é privilégio dos grandes animais, Mas eu me retiro, meu caro senhor, feliz por lhe ter prestado um serviço. Sou-lhe muito grato e aceitaria, com todo prazer, se estivesse certo de não bancar o intrometido. É muita bondade sua. Então, vou colocar meu copo junto ao seu. 

Tem toda razão, o mutismo dele é ensurdecedor. É o silêncio das florestas primitivas, tão pesado que sufoca. Às vezes, eu me surpreendo com o obstinado desdém que o nosso taciturno amigo demonstra pelas línguas civilizadas. Seu trabalho é atender a marinheiros de todas as nacionalidades neste bar de Amsterdã, a que deu o nome, ninguém sabe bem o motivo, de Mexico-City. Não acha, meu caro senhor, que esses deveres acabam levando sua ignorância a se tornar incômoda? Imagine o homem de Cro-Magnon hospedado na Torre de Babel! No mínimo, sofreria uma sensação de desterro. Mas não, este não sente o exílio, segue seu caminho, nada o atrapalha. Uma das raras frases que ouvi de sua boca proclamava que era "pegar ou largar". Pegar ou largar o quê? Sem dúvida, ele próprio, nosso amigo. Vou fazer-lhe uma confidência: sinto-me atraído por essas criaturas graníticas. Quando pensamos muito sobre o homem, por trabalho ou vocação, às vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes não tinham segundas intenções. 

Nosso anfitrião, na realidade, tem algumas ideias, embora as alimente de modo obscuro. 

Por não compreender o que se diz em sua presença, assumiu um caráter desconfiado. Daí esse ar de sombria gravidade, como se suspeitasse, no mínimo, que há algo de errado entre os homens. 

Esse estado de espírito torna mais difíceis as discussões que não dizem respeito a seu trabalho. 

Veja, por exemplo, acima de sua cabeça, na parede do fundo, aquele retângulo vazio que marca o lugar de um quadro retirado. Com efeito, lá havia um quadro particularmente interessante, uma verdadeira obra-prima. Pois bem, eu estava presente quando o mestre-de-cerimônias o recebeu e quando ele o cedeu. Nas duas ocasiões, teve a mesma desconfiança, depois de passar algumas semanas refletindo. Quanto a isso, é preciso reconhecer — a sociedade arranhou-lhe um pouco a franca simplicidade de temperamento. 

Note bem que não o estou julgando. Acho que sua desconfiança tem fundamento e dela compartilharia de bom grado se, como o senhor está vendo, meu temperamento comunicativo não o impedisse. É, mas pobre de mim, sou muito loquaz — e me relaciono com facilidade. 

Embora eu saiba manter as distâncias convenientes, todas as ocasiões me são propícias. Quando eu vivia na França, não podia encontrar um homem espirituoso sem que logo fizesse amizade. 

Ah, vejo que implica com esse imperfeito do subjuntivo. Confesso minha fraqueza por esse tempo verbal e pelo belo linguajar em geral. Mas pode acreditar — é uma fraqueza pela qual me recrimino. Bem sei que o gosto por finas roupas brancas não pressupõe obrigatoriamente que se tenham os pés sujos. Ainda assim. O estilo, como a popeline, dissimula muitas vezes o eczema. 

Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal, aqueles que falam de maneira ininteligível também não são puros. Bem, mas voltemos à nossa genebra. 

Vai ficar muito tempo em Amsterdã? Bela cidade, não? Fascinante, concorda? Eis um adjetivo que não ouço há muito tempo. Exatamente desde que saí de Paris, já faz muitos anos. 

Mas o coração tem memória e eu nada esqueci de nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris é uma verdadeira ilusão de ótica, um magnífico cenário habitado por quatro milhões de silhuetas. 

Ou quase cinco milhões, segundo o último recenseamento? Bem, eles devem ter feito filhos. Não me surpreenderia. Sempre me pareceu que nossos concidadãos tinham duas paixões desenfreadas: as ideias e a fornicação. A torto e a direito, por assim dizer. Aliás, tentemos não condená-los: não são os únicos, isso ocorre em toda a Europa. Às vezes, imagino o que dirão de nós os historiadores do futuro. Duas ideias lhes bastarão para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois dessa forte definição, o assunto ficará, se assim posso me expressar, esgotado. 

Os holandeses — Oh, não, estes são muito menos modernos! Têm todo o tempo — olhe só para eles. Que fazem? Pois bem, esses senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. Aliás, tanto os machos quanto as fêmeas são criaturas extremamente burguesas, que aqui vêm, como de costume, por mitomania ou burrice. Em resumo: por excesso ou falta de imaginação. De vez em quando, estes senhores brincam de faca ou de revólver, mas não acredite que se empenhem muito. O papel o exige — nada mais – e eles morrem de medo ao disparar os últimos cartuchos. 

Dito isto, acho que são mais morais do que os outros, os que matam em família, pelo desgaste. 

Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidação? 

Naturalmente, já deve ter ouvido falar dos minúsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas mordidas rápidas, deixando apenas um esqueleto imaculado. Pois bem, é esta a organização deles. 

"Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo?" É claro que a resposta é sim. Como dizer não? 

"Está bem. Pois vamos limpá-lo. Pegue aí um emprego, uma família, férias organizadas." E os pequenos dentes cravam-se na carne até os ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve dizer que a organização é deles. Ela é nossa. Afinal de contas, é o caso de saber quem vai limpar o outro. 

Finalmente, trazem nossa genebra. À sua prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me chamar de doutor. Nesta terra, todo mundo é doutor ou professor. Gostam de mostrar-se respeitosos, por bondade e por modéstia. Entre eles, pelo menos, a maldade não é uma instituição nacional. Além disso, não sou médico. Se quer mesmo saber, eu era advogado antes de vir para cá. Agora, sou juiz-penitente. 

Mas permita que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. É um prazer conhecê-lo. Sem dúvida, deve ser um homem de negócios, não é? Mais ou menos? Excelente resposta! E também judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas as coisas. Vejamos, deixe-me bancar o detetive. Tem mais ou menos minha idade, o olhar esclarecido dos quarentões que já fizeram de tudo um pouco. Está mais ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas se trajam em nosso país, e tem as mãos finas. Portanto, mais ou menos um burguês! Mas um burguês requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra duplamente sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a seguir, eles o irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte, pressupõe no senhor uma certa abertura de espírito. O senhor é, portanto, mais ou menos... Mas que importa? As profissões me interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faça duas perguntas, e só me responda se não as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? Não. 

É, portanto, o que chamo um saduceu. Se não tem familiaridade com as Escrituras, reconheço que não lhe adiantará muito. Adianta? Então conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me interessa. 

Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo. Pela estatura, pelos ombros e por este rosto que tantas vezes me disseram ser feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de rúgbi que outra coisa, não é? Mas, a julgar pela conversa, é preciso conceder-me um pouco de refinamento. O camelo que forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dúvida, de sarna; em compensação, tenho as unhas tratadas. Eu também sou esclarecido e, no entanto, estou me abrindo com o senhor sem precauções, baseado unicamente em sua aparência. Enfim, apesar de minhas boas maneiras e de meu belo linguajar, sou um frequentador assíduo dos bares de marinheiros do Zeedijk. Mas chega, não procure mais. Meu trabalho é duplo — eis tudo — como a criatura. Já lhe disse, sou juiz-penitente. A única coisa simples no meu caso é que nada tenho. Sim, fui rico; não, nada reparti com os outros. O que prova isso? Que eu também era um saduceu ... Oh! Está ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver neblina sobre o Zuyderzee. 

Já vai embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, não pagará nada. Está em minha casa no Mexico-City e tive imenso prazer em recebê-lo. Amanhã, certamente estarei aqui, como nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu convite. Seu caminho... Bem... Mas, se não vê nenhum inconveniente, seria mais simples acompanhá-lo até o porto. De lá, contornando o bairro judeu, encontrará as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de números tonitruantes. Seu hotel certamente fica em uma dessas avenidas, no Damrak. Tenha a bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim chamado até o momento em que nossos irmãos hitlerianos abriram espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados - é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem caráter, é preciso mesmo valer-se de um método. 

Nesse caso, ele fez milagres, sem dúvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos maiores crimes da história. Talvez seja isso que me ajude a compreender o gorila e sua desconfiança. Desse modo, posso lutar contra essa tendência de temperamento que me inclina de modo irresistível à simpatia. Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme. 

"Devagar. Perigo!" Mesmo quando a simpatia é intensa, tenho cautela. 

Sabe que em minha pequena aldeia, em uma ação de represália, um oficial alemão pediu delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui. E vê-lo partir. Não insistamos nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas são possíveis. Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa: 

"De onde quer que você venha, entre e seja bem-vindo." Quem, segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam. 



(A queda; tradução de Valerie Romjanek) 



(Ilustração: Collin van der Sluijs - Pray For Nothing – 2016)


sábado, 17 de outubro de 2020

FOX FILM / FOX FILM, de Pierre Albert-Birot

 





Il part à cheval des premiers temps du monde et voici qu’il arrive sur nous

Son sourrire tout propre comme un sou neuf est meme arrivé avant luis merci

Avril arrive bien avant Mai or deux sourires qui se regardent font une ogive

Zimm il passe au travers de la vie et des villes comme un coup de Cymbales

Quatre Soleils l’éclarent c’est pourquoi il ne laisse pás d’ombre derrière lui

Tout devient transparent le Diable a le spleen et voudrait se suicider

Toutes les petites idées sont devenues des monuments après il saute par-dessus

Le Monde est gratuit pous les Poetes ces peres du Temps et de l’espace

On laisse tomber sa figure animale cet uniforme à la mode qui nous déguise

Et l’on devient pur comme un O les autres les autres sont au photographe

Au nom du Père laissez-les se marcher sur les pieds ceux qui n’ont qu’un soleil

Hou hou hou hou ne vous mettez pas entre mes vers si vous avez peur du feu

Ils ne sont pas pour ceux qui ont besoin que les jours soient interlignés par les nuits

Les noms qui habillaient les choses sont restes dans le dictionnaire et tout est apparu

Les choses n’étaient donc que des noms c’est inutile d’apprendre la Geographie

Autrefois il y avait des villes qu’on nommait Moscou Melbourne ou Paris





Tradução de Marília Garcia e Ricardo Domeneck:






Ele vem a cavalo dos primórdios do mundo e enfim chega até nós

Seu sorriso brilhante como uma prata nova aparece antes de tudo

Abril antecede maio logo dois sorrisos que se olham formam uma ogiva

Zimmm... ele cruza as cidades atravessa a vida como um golpe de címbalos

Quatro sóis o iluminam por isso não há sombra que o persiga por detrás

Tudo se torna transparente o diabo é triste e gostaria de se matar

Todas as pequenas ideias se tornaram monumentos depois ele as esquece

O Mundo é grátis para os Poetas esses pais do Espaço e do Tempo

A gente deixa pra lá essa figura animal esse uniforme fashion que nos disfarça

E nos tornamos puros como um O os outros os outros estão fazendo fotos

Em nome do Pai eles que se entendam os que não têm nada a perder

Oh oh oh oh oh oh não se meta entre meus versos se você tem medo do fogo

Eles não servem para os que precisam que os dias se interliguem pelas noites

Os nomes que vestem as coisas ficaram no dicionário e tudo surgiu

As coisas então eram apenas nomes é inútil aprender a geografia

Antigamente havia cidades que se chamavam Moscou Melbourne ou Paris



(Ilustração: Raoul Hausmann - Triunfos dadá - 1920)



quarta-feira, 14 de outubro de 2020

HISTÓRIA COMPLETAMENTE ABSURDA, de Giovanni Papini


 

Há quatro dias, estando a escrever com uma ligeira irritação, algumas das páginas mais falsas das minhas memórias, ouvi bater levemente à porta, mas não me levantei nem respondi. As pancadas eram demasiado fracas e não gosto de lidar com tímidos. 

No dia seguinte, à mesma hora, ouvi novamente bater; desta vez, as pancadas eram mais fortes e decididas. Mas também não quis abrir, pois não aprecio absolutamente nada os que se corrigem com demasiada pressa. 

No terceiro dia, sempre à mesma hora, as pancadas foram repetidas de forma violenta e antes que pudesse levantar-me vi a porta abrir-se e entrar a medíocre figura de um homem bastante jovem, com o rosto um tanto afogueado e a cabeça coberta por cabelos ruivos e crespos, inclinando-se canhestramente, sem nada dizer. Mal viu uma cadeira, atirou-se-lhe para cima e como eu continuasse de pé indicou-me o cadeirão para que me sentasse. Tendo-lhe obedecido, julguei-me no direito de lhe perguntar quem era, pedindo-lhe num tom nada delicado, que me dissesse o nome e o motivo que o tinha levado a invadir o meu quarto. Mas o homem não se alterou e fez-me imediatamente compreender que, para já, desejava continuar a ser o que até então fora para mim:. um desconhecido. 

– O motivo que me trouxe até ao senhor – continuou, sorrindo – está dentro da minha mala e dar-lho-ei a conhecer imediatamente. 

Com efeito, apercebi-me de que trazia na mão uma pequena mala de couro amarelo-sujo, com guarnições de latão desgastado pelo uso, a qual abriu dela tirando um livro. 

– Este livro – disse pondo-me diante dos olhos um grosso volume forrado a tela com grandes flores de um vermelho ferruginoso – contém uma história imaginária que criei, inventei, redigi e copiei. Em toda a minha vida, apenas escrevi isto e atrevo-me a supor que não lhe desagradará. Até agora apenas o conhecia de nome e só há uns dias uma mulher que o ama me disse que o senhor é um dos poucos homens que não tem medo de si mesmo e o único que teve a coragem de aconselhar a morte a muitos dos seus semelhantes. Por isso, pensei ler-lhe a minha história, que narra a vida de um homem fantástico ao qual acontecem as mais singulares e insólitas aventuras. Depois de a ter ouvido, dir-me-á o que devo fazer. Se a minha história lhe agradar, prometer-me-á tornar-me célebre no prazo de um ano; se não gostar, matar-me-ei dentro de vinte e quatro horas. Diga-me se aceita estas condições e eu começarei. 

Compreendi que nada podia fazer senão manter a atitude passiva que tinha assumido até então e indiquei-lhe, com um gesto que não conseguiu ser amável, que o escutaria e faria tudo o que desejava. 

“- Quem poderá ser – pensava para comigo – a mulher que me ama e que falou de mim a este homem? Nunca tivera conhecimento de que uma mulher me amasse e se assim fosse não o teria tolerado, pois não há situação mais incómoda e ridícula que a dos ídolos de um qualquer animal.” O desconhecido arrancou-me a estes pensamentos com um bater de pés, pouco eloquente, mas claro. O livro estava aberto e a minha atenção era considerada necessária. 

O homem começou a leitura. As primeiras palavras escaparam-se-me; dei mais atenção às seguintes. Depressa apurei o ouvido e senti um leve calafrio nas costas. Dez ou vinte segundos depois o meu rosto ficou vermelho; as pernas moveram-se-me nervosamente; decorridos mais dez segundos, levantei-me. O desconhecido suspendeu a leitura e fitou-me, interrogando-me humildemente com os olhos. Olhei-o do mesmo modo e inclusivamente com ar de súplica, mas estava demasiado aturdido para o mandar embora. Disse-lhe simplesmente, como qualquer idiota sociável: 

– Faça o favor de continuar. 

A extraordinária leitura prosseguiu. Não conseguia estar quieto no cadeirão e os calafrios percorriam-me não só as costas, mas também a cabeça e o corpo inteiro. Se tivesse podido ver o meu rosto no espelho talvez me tivesse rido e tudo tivesse passado, pois provavelmente reflectia um espanto abjecto e um indeciso furor. Tentei, por um momento, não continuar a escutar as palavras do calmo leitor, mas só consegui ficar mais confuso; escutei integralmente, palavra por palavra, pausa após pausa, a história que o homem lia com a sua cabeça ruiva inclinada sobre o bem encadernado volume. O que podia ou devia eu fazer numa circunstância tão especial? Agarrar o maldito leitor, morder-lhe e atirá-lo para fora do quarto como um inoportuno fantasma? 

Porém, por que motivo iria fazer tal coisa? No entanto, aquela leitura produzia-me um inexprimível aborrecimento, uma penosíssima impressão de sonho absurdo e desagradável, sem esperança de poder acordar. Julguei por momentos ir cair num furor convulsivo e vislumbrei na minha imaginação um enfermeiro de uniforme branco que me punha um colete de forças, com infinitas e excessivas precauções. 

Contudo, finalmente acabou a leitura. Não me lembro de quantas horas durou, mas, ainda mergulhado na minha confusão, reparei que o leitor tinha a voz rouca e a testa húmida de suor. Depois de ter fechado o livro e de o ter guardado na sua mala, o desconhecido fitou-me com ansiedade, embora o seu olhar não tivesse já a ansiedade do princípio. O meu cansaço era tão grande que ele próprio o adivinhou e o seu pasmo aumentou vendo que esfregava um olho e não sabia o que lhe responder. Parecia-me naquela altura que nunca mais poderia voltar a falar e até mesmo as coisas mais simples que me rodeavam se apresentavam aos meus olhos tão estranhas e hostis que quase experimentei uma sensação de repugnância. Tudo isto parece demasiado vil e vergonhoso; penso o mesmo e não tenho qualquer espécie de indulgência para a minha perturbação. Porém, o motivo do meu desequilíbrio era de muito peso: a história que aquele homem tinha lido era a narração pormenorizada e completa de toda a minha vida íntima, interior e exterior. Durante aquele tempo, escutara a minuciosa narrativa, fiel, inexorável de tudo o que sentira, sonhara e fizera desde que vim ao mundo. Se um ser divino, leitor de corações e testemunha invisível, tivesse estado a meu lado desde o meu nascimento e tivesse escrito o que observou dos meus pensamentos e acções, teria redigido uma história perfeitamente igual à que o leitor desconhecido declarava ser imaginária e por ele inventada. As coisas mais pequenas e secretas eram recordadas e nem sequer um sonho ou um amor ou uma vileza oculta, um calculismo ignóbil, escaparam ao escritor. O terrível livro continha até factos e pensamentos que esquecera e que apenas recordara ao escutá-lo. 

A minha confusão e receio provinham desta impecável exactidão e deste inquietante escrúpulo. Nunca vira aquele homem; aquele homem afirmava nunca me ter visto. Eu vivia muito solitário a uma cidade a que ninguém vem se a isso não for forçado pelo destino ou pela necessidade. A nenhum amigo, se é que ainda algum me restava, confiara as minhas aventuras de caçador furtivo, as minhas viagens de salteador de almas, as minhas ambições de pesquisador do inverossímil. Nunca escrevera, nem para mim nem para os outros, uma relação completa e sincera da minha vida e precisamente por aqueles dias estava fabricando fingidas memórias para me ocultar dos homens, inclusivamente após a morte. 

Quem, pois, podia ter dito a este visitante tudo o que narrara sem pudor e sem piedade no seu odioso livro forrado de papel antigo de cor ferruginosa? E afirmava ter inventado aquela história e apresentava-me, a mim, a minha vida inteira como se fosse uma história imaginária! 

Encontrava-me terrivelmente perturbado e emocionado, mas de uma coisa estava certo: este livro não podia ser divulgado entre os homens. Mesmo que para tal aquele infeliz autor e leitor tivesse que morrer, não podia permitir que a minha vida fosse divulgada e conhecida no mundo, entre todos os meus impessoais inimigos. Esta decisão, que senti firme e sólida, no meu foro íntimo, começou a reanimar-me levemente. O homem continuava a fitar-me com um ar consternado, quase suplicante. Tinham decorrido apenas dois minutos desde que terminara a sua leitura e não parecia compreender o motivo da minha perturbação. Finalmente, consegui falar: 

– Desculpe, senhor – perguntei – Assegura que esta história foi verdadeiramente inventada por si? 

– Precisamente – respondeu o enigmático leitor, com ar mais tranquilo – pensei-a e imaginei-a durante muitos anos e fui fazendo retoques e alterações na vida do meu herói. No entanto, tudo é fruto da minha imaginação. 

As suas palavras incomodavam-me cada vez mais, mas consegui ainda fazer outra pergunta: 

– Diga-me, por favor, tem a certeza absoluta de não me ter encontrado antes de hoje? De nunca ter ouvido contar a minha vida a alguém que me conheça? 

O desconhecido não pôde conter um sorriso de espanto ao ouvir as minhas palavras. 

– Já lhe disse – respondeu – que até há pouco tempo apenas o conhecia de nome e que apenas há uns dias soube que costumava aconselhar a morte, mas nada mais sei sobre o senhor. 

A sua condenação estava decidida, sendo necessário que não demorasse a ser executada. 

– Continua disposto – perguntei-lhe com solenidade – a manter as condições por si mesmo estabelecidas antes de começar a leitura? 

– Sem dúvida – respondeu com um leve tremor na voz -, não tenho outras portas a que bater e esta obra é a minha vida. Sinto que não poderia proceder de outro modo. 

– Devo então dizer-lhe – acrescentei com a mesma solenidade, embora temperada por alguma melancolia – que a sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável. O seu herói, como lhe chama, não passa de um enfadonho malandrim que entediará qualquer leitor mais requintado. Não quero ser demasiado cruel acrescentando ainda mais pormenores. 

Comprovei que o homem não esperava estas palavras e apercebi-me de que as suas pálpebras se fecharam instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo reconheci que o seu poder sobre mim era equivalente à sua honestidade. Quase imediatamente reabriu os olhos, fitando-me sem medo e sem ódio. 

– Quer acompanhar-me até lá fora? – perguntou-me com uma voz demasiado doce para ser natural. 

– Com certeza – respondi, e depois de pôr o chapéu saíamos de casa sem falar. 

O desconhecido continuava a levar na mão a sua mala de couro amarelo e segui-o, entorpecido, até à margem do rio que corria caudaloso e ruidosamente entre as negras muralhas de pedra, olhando em redor e certificando-se de que não via ninguém com aspecto de salvador, voltou-se para mim dizendo: 

Desculpe-me se a minha leitura o aborreceu. Julgo que nunca mais incomodarei um ser vivo. Esqueça-se de mim tão depressa quanto possível. 

E estas foram as suas últimas palavras, porque saltando agilmente o parapeito, com um rápido impulso, atirou-se ao rio com a sua mala. Debrucei-me para o ver mais uma vez, mas a água já o tinha recebido e coberto. Uma menina tímida e loura apercebera-se do rápido suicídio, mas não pareceu muito espantada e prosseguiu o seu caminho comendo avelãs. Regressei a casa depois de ter feito algumas tentativas inúteis. Mal entrei no meu quarto, estendi-me sobre a cama e adormeci sem muito esforço, abatido e alquebrado pelo inexplicável acontecimento. 

Esta manhã acordei muito tarde e com uma estranha sensação. Parecia-me estar já morto e esperar apenas que me viessem sepultar. Tomei imediatamente providências para o meu funeral, fui pessoalmente à agência funerária para que nenhum pormenor seja esquecido. Espero que a todo o momento me tragam o caixão. Sinto pertencer já a outro mundo e todas as coisas que me rodeiam têm o indizível ar de coisas passadas, acabadas, sem qualquer interesse para mim. 

Um amigo trouxe-me flores e disse-lhe que podia esperar para as colocar sobre a minha campa. Pareceu-me que sorria, mas os homens sorriem sempre daquilo que não compreendem. 



(Tradução de Carlos Loures de «Storia completamente assurda», de Giovanni Papini, in Riviere Ligure, 1906). 


(Ilustração: Vincent Desiderio)


domingo, 11 de outubro de 2020

VERSOS DE UM CÔNSUL, de Raul Bopp






Coitado do meu filho!



Vai pra escola

Muda de escola



Sucedem-se mudanças para novos postos

Novos carimbos nos papéis de matrícula



No quadro negro

o professor mexe com algarismos:



− Zwei mal zwei?

− Vier

− Zwei mal vier?

Ach…………….



A resposta se engasga. A voz se some

acabrunhado pela matemática



E lá se vai ele por essas manhãs friorentas

com uma mochila de livros às costas

(como quem vai pr’uma guerra)



Terras novas Muito sol Bandeira ao vento

No pátio del Colégio a professora rege o coro:



− …si mañana en tu solo sagrado…



A almazinha do meu filho

vai se compondo e decompondo

com pedaços de pátrias misturadas



De noite

a gente recolhe os pensamentos

com um cansaço internacional



− Pai!

− O que é que tu queres meu filho?



Ele achega-se a mim com um abraço carinhoso:



− Pai!

Conta mais uma vez

como é que era mesmo o Brasil





(Putirum, s/d.)




(Ilustração: Tarsila do Amaral - Estrada de Ferro Central do Brasil)


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

NOTAS SOBRE POESIA E CRÍTICA DE POESIA, de Paulo Franchetti

 



Aparentemente pouca gente lê poesia hoje. Os editores reclamam que o gênero não vende, as livrarias raramente têm um vasto repertório, nos jornais o espaço é cada vez menor, e até em revistas de pendor cultural a presença da poesia muitas vezes se restringe à publicação de um inédito nas páginas finais. 

Na universidade, a julgar pelas que conheço, o lugar da poesia não é tão pequeno, mas tampouco é grande. Quase sempre, é muito inferior ao que ocupa a prosa de ficção. E parece diminuir a cada ano. A poesia termina por ser matéria de uns poucos – ao contrário da prosa, território em que todos parecem sentir-se autorizados e à vontade. 

Mas o que mais causa espécie é que mesmo em boas universidades tenho encontrado cada vez mais colegas que não hesitam em dizer, quando a situação se apresenta, “não entendo de poesia” (embora poucos tenham a coragem de dizer o que se percebe: que não gostam de poesia). O não entendimento ou o desinteresse também pode manifestar-se por meio das glosas usuais e defensivas: “não sou especialista e por isso não posso julgar”, “embora não saiba muito de poesia, gosto de ler isto”. 

A minha reação primeira sempre foi de desconcerto perante tal estado de coisas, porque não são leigos ou estudantes os que dizem isso, mas intelectuais com experiência de estudo e de ensino, doutores em literatura, formados nas melhores universidades, muitos com trânsito e experiência internacional. 

É certo que dificilmente na universidade alguém diz algo como “não entendo de poesia” se o assunto é Os Lusíadas ou a Odisseia. E também diminui o contingente dos constrangidos, se o tema é a poesia modernista, por exemplo. Ou seja, parece que quanto mais historizado o objeto, menor o desconforto. E, consequentemente, maior é esse desconforto à medida que o objeto se avizinha do presente. 

Se este testemunho for ratificado por alguns dos aqui presentes – como julgo que será – já temos um problema interessante para discutir: em que medida, já que um professor de literatura é um especialista, a poesia contemporânea vem sendo vista como domínio de hiperespecialistas? Ou ainda, em decorrência da primeira formulação: que tipo de hiperespecialidade se espera do leitor de poesia, que muitos professores universitários de literatura julgam não possuir? 

Uma resposta conciliadora, que daria talvez conta parcial do problema, é dizer que a poesia exige mais domínio da tradição própria do gênero do que a prosa de ficção, no qual a tradição, além de possuir menor arco temporal, nunca teve a mesma importância como forma de produção de sentido. Quero dizer: a parte técnica da poesia poderia exigir uma especialização que a prosa não exige. Isso poderia explicar parcialmente a recusa à poesia como matéria de aula por alguns, que se julgam não especialistas. Mas é evidente que tal resposta não satisfaz, pois é justamente aquele tipo de poesia em que a tradição é dominante, em que o verso e as formas poéticas são codificadas, que menos constrange o leitor e o professor de literatura. E, complementarmente, é justo quando as formas fixas e o verso perdem a centralidade que a insegurança se instala. 

Então, qual a dificuldade de compreender, de falar de poesia? Em que consiste a especialização necessária, cuja falta tão repetidamente é tematizada? 

Seria apenas porque a prosa de ficção usualmente conta uma história e a poesia a maior parte das vezes não conta? Isso explicaria que as pessoas que se sentem impotentes perante a poesia lírica não se sintam tanto em relação à poesia épica. E explicaria principalmente a ideia de que a prosa requer menos especialização que a poesia, pois todos nos sentimos aptos a comentar histórias, bem como a discutir os aspectos técnicos mais simples de um texto em prosa: narrador, personagens, enredo, peripécia. E também o romance traz usualmente ganchos para fora: chamadas ao contexto, tematização de eventos históricos, submissão dos fatos à checagem do verossímil etc. Assim, parece possível começar a falar da prosa de ficção a partir “de fora”, isto é, abordá-la a partir de uma questão que ela apresenta ou que ela evita. Já com a poesia – especialmente a moderna e contemporânea – é menos fácil: formular uma interpretação de um poema a partir de uma postulação contextual ou por meio da paráfrase é condenável, segundo os moldes críticos atuais. 

A diferença parece residir, portanto, no substrato mimético. Toda a nossa tradição, desde Aristóteles, é fundada no drama. A ideia de imitação de ações é central. Por isso mesmo, à lírica sempre se reservou um lugar lateral na poética de base aristotélica. Ao tratarmos da prosa, o mundo (para dizer com as palavras comuns da tradição) é um ponto de vista externo, um suporte que faz girar a alavanca. Não é por outro motivo que a narrativa é o conceito que une, sob a denominação de épico, o romance e a epopeia. E é pelo mesmo motivo (a postulação mimética) que, embora o drama não tenha a mesma forma de apresentação da épica, são comuns os conceitos operacionais empregados na descrição e no comentário dos dois. Refiro-me a termos como ficção, verossimilhança, originalidade, enredo, personagem, tempo, espaço, caráter e – claro – representação. 

É certo que há outro ponto de vista externo, outra história que preside à compreensão do romance ou da épica: a história do gênero, a evolução da forma, a remissão de uma obra da série a outras que a precederam. Aquilo que denominamos, por exemplo, “história do romance”. Mas mesmo essa história da forma é constantemente colocada em função do objetivo mimético: seja por meio da narrativa de uma progressão, como é o caso de Mimesis, de Auerbach (que traça uma história da unificação do discurso, contra a separação dos registros na representação do baixo e do alto), seja por meio de uma narrativa catastrófica, na qual a prosa se volta contra a mimese, para melhor ainda mimetizar o contexto social em que ocorre. 

Já no caso da lírica, especialmente da lírica moderna para os leitores modernos, a história do gênero é quase tudo. É certo que há recorrentes postulações e avaliações miméticas também com respeito à lírica. E não só nos poemas “participantes” – isto é, programaticamente voltados para a discussão do social –, mas em textos que podem ser vistos como pequenos sketches narrativos, de potencial alegorizante – como é o caso da poesia que mais atrai a atenção de críticos de orientação marxista. 

Mas, a não ser em casos muito especiais, a demanda mimética em relação à poesia produz uma zona de sombra em que se recolhe a maior parte da produção moderna. É nessa zona de sombra que se colocam, por exemplo, os poemas que são, em algum grau, pelos partidários da prosa e da mimese, acusados de solipsistas, formalistas, confessionais ou intimistas. Os poemas mais propriamente líricos, no sentido de não possuírem uma narrativa como espinha dorsal. 

A tonalidade afetivo-expressional não combina com a luz crua da demanda mimética. 

Esse é, provavelmente, um dos motivos de a poesia parecer sempre trabalho para hiperespecialistas: na dificuldade de estabelecer as mediações miméticas, o conhecimento da tradição literária seria o arrimo necessário. Isto é, como o contexto social apenas fornece parâmetros amplos e pouco convincentes, o discurso histórico sobre o gênero passa a ser o mais relevante, como forma de entendimento, explicação e valoração. 

“Não entendo de poesia” significaria, então, nesse quadro, “não conheço (ou não me interessa muito) a história do gênero”. Mas como a história do gênero épico (compreendendo aí a epopeia e o romance), embora não tão essencial para a leitura de romances, nunca deixa de ser chamada ao palco para explicar alterações da linguagem ou da organização geral do texto, talvez o melhor seja mesmo radicar uma parte do desconforto causado pela poesia moderna na dificuldade de lidar com uma obra de arte não mimética, ou não predominantemente mimética. 

Talvez possamos avançar um pouco nessa especulação se considerarmos outro fator de hiperespecialização, que ganhou força a partir do começo do século XX: a análise formal. De fato, desde a estilística até o triunfo do estruturalismo, na universidade comentar um poema passou a ser basicamente comentar a forma linguística do texto, suas recorrências sintáticas, sonoridades, jogos imagéticos, figuras de linguagem. O modelo extremado desse tipo de análise é a leitura que Jakobson faz de um poema do livro Mensagem, de Pessoa – justamente uma das suas obras poéticas de escopo mimético mais evidente –, extraindo-o do contexto do livro e tratando-o quase como uma série de variações sobre uma fórmula algébrica. 

Já se acreditou, talvez justamente pelo caráter não mimético da lírica, que seria possível fazer a crítica das obras sem nomear os autores, nem situá-las e a eles no tempo. Como também se julgou possível descobrir um vetor de evolução das formas, que permitisse elaborar uma antologia de obras sem identificação de autor e sem levar em conta o tema. Isso, porém, logo se revelou impossível, pois linhas de continuidade e ruptura se desenham umas sobre as outras e para torná-las minimamente operacionais a crítica necessita interpretar cada poema como um gesto contra um pano de fundo (a tradição e suas atualizações particulares) que lhe dará sentido amplo. Ou seja, desse ponto de vista, a lírica moderna teria um caráter algo performático. Além disso, porém, desde que a poesia começou a ser apresentada junto com textos programáticos, é preciso levar em conta um elemento básico de articulação não só dos discursos dos manifestos, mas também da estruturação dos textos: a reivindicação de modernidade, de atualidade – que frequentemente vem associada à negação da mesma reivindicação feita por concorrentes. 

O valor, assim, passa a ter mediação histórica forte e explícita. A modernidade deixa de ser um dado a posteriori, algo que se constata em um texto como atualização particular de uma fatalidade, e passa a ser um objetivo, uma meta. Dizendo de outra forma, é como se a modernidade não fosse condição, mas o resultado de um projeto consequente. 

É certo que isso traz para primeiro plano a angústia típica da poesia moderna e contemporânea: o risco de ser apenas uma imagem do passado, um resquício, uma prática consuetudinária. Boa parte da poesia moderna e contemporânea, no Brasil ao menos, está sempre às voltas com a questão da sobrevivência do gênero. No limite, a discussão gira não apenas em torno da função moderna da poesia, mas da necessidade ou pertinência da prática poética no mundo dominado pela indústria cultural e pelos meios de comunicação de massa. 

Não é por outra razão que a história da poesia moderna no Brasil tem sido escrita sob a ótica de um contínuo esforço de atualização do repertório ou dos recursos formais. E a dificuldade de afirmar o valor moderno aparece em toda parte, especialmente na heroicização dos movimentos de suposta atualização ou antecipação do futuro: Modernismo da fase chamada heroica, Concretismo da fase denominada ortodoxa. 

A narrativa posterior, por sua vez, a história, busca as linhas de avanço, os esforços de atualização e indefectivelmente – por força da determinação do discurso narrativo – termina por ser simultaneamente o elogio da adequação e o ataque extemporâneo aos adversários eleitos no calor da hora. David Perkins já chamou a atenção para esse procedimento, que não deixa de causar espanto ainda hoje, quando lemos, por exemplo, tantos historiadores e críticos (normalmente muito afáveis na sua relação com os contemporâneos) maltratarem, com os mesmos termos utilizados pelos vencedores modernistas ou concretistas, os parnasianos e a Geração de 45. Ter os derrotados como sparrings é uma estratégia de afirmar o valor da atualização, de revestir de necessidade histórica um conjunto de procedimentos, temas ou atitudes. 

O leitor crítico previsto não só pelos praticantes da arte, mas também pelos que traçam a sua história nos manuais ou no interior da universidade é, portanto, um leitor capaz de, conhecendo a história do gênero, identificar o cerne da modernidade com a tradição da ruptura, entendida, conforme já disse acima, como um esforço de adequação, de atualização do presente, quando não de antecipação do futuro. O conhecedor de poesia é, desse ponto de vista, também um leitor empenhado na afirmação de que a poesia tem lugar necessário ou ao menos justificável na modernidade e que esse lugar não pertence naturalmente a todo texto que se denomina poesia. 

Mas a verdade é que não há uma única história, no sentido de um único vetor de evolução. Há várias: os vários veios em que se dividiu a poesia depois da falência do sistema clássico, a partir do Romantismo, desenvolveram-se em paralelo e em disputa constante. E é a demanda de justificação da poesia na modernidade que parece exigir a operação crítica mais usual, que é a de propor qual seja a tradição viva, entre as tantas heranças de que o presente se constitui. 

Basta considerar aqui, para compreender o procedimento, um livro muito influente, que tentou dar uma direção única à poesia que de fato contaria para a modernidade do Ocidente: o de Hugo Friedrich. De meu ponto de vista, seu sucesso se deve à sua forma simplificada, à operação radical que realiza, pois graças a ela esse livro constitui uma espécie de tábua de salvação no mar da multiplicidade, operando a exclusão de enormes contingentes da lírica que se produziu na modernidade, de obras plenamente legitimáveis de outro ponto de vista ou do ponto de vista dos leitores menos empenhados no estudo da tradição em busca de um veio redentor. 

Hoje não é difícil ver os limites dessa obra empenhada na promoção de uma vertente, pela subsunção da modernidade num determinado conjunto de autores e obras que se podem arrumar numa narrativa de vetor evolutivo. Isto é, pelo apagamento da modernidade de linhas concorrentes de desenvolvimento pós-romântico da lírica. Mas ainda hoje esse livro é, no Brasil, uma espécie de breviário acadêmico de largo emprego. Produz-se assim um aparente apaziguamento ao preço da simplificação. E do desinteresse, pois se a linha da modernidade, se a estrutura da lírica moderna se reduz à linha equilibrada na figura de Mallarmé, então de fato o enorme contingente de textos de poesia publicados desde o final do XIX e que não cabem nesse traçado é apenas um atestado do perigo que esse livro quer conjurar: o de a poesia lírica na modernidade ser apenas uma sobrevivência, um resquício sem maior relevância de um momento encerrado. 

Mas basta afastar um passo e olhar por sobre a linha demarcatória traçada por um tal discurso para ver o preço que Friedrich teve de pagar para afirmar a evolução e a convergência. Preço que nos revelam, por exemplo, Michael Hamburger e Alfonso Berardinelli. 

Dado o caráter algo monolítico do entendimento da poesia no Brasil, isto é, dado o fato de que, por fatores vários, reinou hegemônica a tradição formalista, orientada pelo elogio da ruptura e pelo vetor evolutivo em direção ao presente e ao futuro , pela postulação da necessidade de atualização como forma de evitar o anacronismo e a morte do interesse pela poesia –, o “não entendo de poesia” pode, entre nós, ter dois sentidos, duas direções. 

Por um lado, poderia ser uma forma de submissão ao que se ensina majoritariamente na universidade – isto é, basicamente, a lição de Friedrich (que não leva em conta ou não dá conta, por exemplo, da poesia de Auden ou da do último Eliot). Nesse caso, entender de poesia significaria saber situá-la nesse preciso quadro de leitura e valorá-la pela sua posição nele – o que não interessa a quem diz não entender de poesia. Por outro lado, dizer isso também poderia significar que a essa pessoa não interessa a poesia moderna e contemporânea subsumida nessa vertente, não interessa essa forma de vê-la e valorá-la – que, entretanto, lhe aparece como legítima ou difícil de contestar. Caso contrário, em vez de dizer que não entende de poesia, tal hipotética pessoa poderia dizer algo como: a poesia moderna que me interessa é a aquela da qual entendo. 

Esta última formulação hipotética do que poderia dizer um leitor culto diante da tradição de leitura universitária permite especular sobre um ponto frequentemente obscurecido nos debates sobre poesia: o direito ao gosto educado. Ou seja, a valorização do lugar do leitor, do espectador – aliás, o grande vazio na poética da mimese definida por Aristóteles e vigente até o Romantismo. 

Aqui, a comparação com o que sucede com o romance ou o conto (as formas de origem romântica por excelência) é interessante. Um romance de sucesso de público e de crítica não é um contrassenso, nem é difícil de encontrar. Um livro de poemas sucesso de crítica e público é mais raro. Ou porque o público seja escasso, ou porque a eleição pelo público não especializado lance desde logo um traço de suspeita sobre o valor real. Tudo se passa, de fato, como se o julgamento sobre a poesia estivesse sempre fora do alcance do leitor, ainda quando este seja um leitor culto ou mesmo especializado em literatura. Em muitos círculos influentes (e também na vulgata acadêmica e para-acadêmica) à poesia se reserva atualmente, como um mantra, a ideia de que deve ser contra. Não somente “finalidade sem fim”, como na formulação clássica, nem apenas inútil, como na formulação decadentista, mas ativamente contrária ao leitor não especializado. Uma poesia que, na verdade, precisa da recusa do leitor vangloria-se de ser capaz de absorver os seus movimentos de rejeição num quadro teórico refinado, em que o fantasma do anacronismo involuntário campeia ao lado da desconfiança de qualquer adesão. Nos idos do século XX, esse movimento se justificava como antecipação do futuro e confiança no papel das elites (e da docilidade ou despreparo das massas): “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”, dizia Oswald de Andrade. Mas agora, quando não só o futuro da poesia, mas inclusive o seu presente aparecem frequentemente sob ameaça, como escapar da negação como forma meramente reativa, além de solipsista? 

O afastamento do público e da crítica, por outro lado, se compensa pelo público hiperespecializado, e por isso mesmo restrito. O público eleito pelo poeta, situado ou na sua entourage imediata ou ainda por nascer. E o argumento que se ergue é o da substituição da quantidade pela qualidade. Como se o movimento circular pudesse bastar-se como defesa contra o desinteresse externo, do qual precisa, porém, como adversário e justificativa. Sem o desinteresse do público – ou sem o interesse do público por outro discurso, que será acusado, por isso mesmo, de anacrônico, populista ou facilitador – não há como afirmar a singularidade, a atualidade e, palavra mágica dos tempos, o rigor. 

Vem daí talvez a postulação mais curiosa e radical destes tempos de anomia crítica: a de que os únicos autorizados a falar de poesia sejam os poetas, isto é, os que estão envolvidos não só com a prática da poesia, mas nos combates que lhe dão vida ou sobrevida nos círculos restritos aos especialistas. E aqui não posso deixar de referir o caso de um poeta português que tentou invalidar a minha edição da Clepsidra, de Camilo Pessanha, com o argumento de que só um poeta (no caso, ele e outros como ele) poderia compreender e editar outro poeta. E eu, que ele julgava um deserdado do verso e da metáfora, simples professor universitário, nada teria a dizer ou a fazer com a poesia. O caso vem à baila porque, pelo aspecto caricato, revela a extensão improvável do preconceito: atribui-se apenas aos poetas o direito de falar da poesia de qualquer época, e não apenas da poesia contemporânea. 

Mas, ao mesmo tempo, os poetas não são os leitores mais compreensivos uns dos outros. Michael Hamburger declara em 1982, no pós-escrito ao seu livro, que deixou de fazer crítica de literatura contemporânea “de modo a permanecer à margem da guerra de gangues que passa por crítica das novas obras nos jornais”. Hoje, os jornais já não dão espaço às gangues, mas elas migraram para editoras, blogs, revistas virtuais ou em papel, facebook e outras formas contemporâneas da vida literária. O espaço da crítica de poesia terminou por praticamente se restringir aos próprios poetas e a guerra de gangues domina o parnaso contemporâneo. 

O que apenas torna mais evidente a disputa pelo contemporâneo, que se manifesta num procedimento tão curioso quanto comum: a negação do título de poeta ao adversário da vez. Assim, ao primeiro sinal de divergência, surge a acusação: Fulano não é poeta, ou Fulano foi poeta e não é mais, ou ainda Fulano (apesar de uma dúzia de livros publicados) nunca foi poeta. A acusação absurda, pois até segunda ordem é poeta quem escreve poemas, surge brandida por escritores notáveis, o que faz imaginar que ao dizer “Fulano não é poeta” o que esteja em causa seja, mais do que uma certeza sobre o que seja um poeta, uma acusação de falta de modernidade, de inadequação ao tempo ou de não pertencimento a uma tradição. Isto é, “Fulano não é poeta” significa que ele não participa do verdadeiro. Portanto, em decorrência, fica excluído (com os demais não poetas) do público hiperespecializado capaz de avaliar a poesia. Os anátemas recíprocos, exatamente por isso, mesmo quando provêm de uma certeza íntima de quem fala, apenas agudizam a dúvida sobre a necessidade da poesia e sobre os limites do que pode ser considerado contemporâneo, isto é, vivo – num raciocínio segundo o qual o que não é contemporâneo é apenas resquício, coisa sem vida ou sem função. 

Que a crítica aceite o anátema é outro problema. Mas que aceita, em graus variáveis, é fácil de perceber. Sejam testemunhos o “não entendo de poesia”, com que se defendem mesmo leitores cultivados, e a pequena produção crítica de não poetas sobre poesia contemporânea que não se restringe a mapeamento “neutro” ou simples promoção e marketing indireto. 

E, no entanto, a poesia continua na ordem do dia, entre nós, de duas formas. 

A primeira é, digamos, quantitativa. Trata-se da produção generalizada. Nesse particular, minha impressão é que nunca tanta gente veio a público com versos ou não versos ou antiversos ou poemas sem verso. A tecnologia responde pelo boom. Além da simplificação e do barateamento da produção do livro em papel, o custo mínimo ou nulo da difusão eletrônica estimula a multiplicação dos blogs, das revistas literárias eletrônicas, das páginas pessoais, dos grupos de discussão, das listas moderadas ou não moderadas. Mas também a anomia e a falta de crítica e de educação literária têm grande peso nesse crescimento da massa dos poetas. Porque é fácil constatar que muitos “poetas” têm dificuldades básicas com a língua literária. Essa talvez seja uma explicação pessimista para a persistência e a ampliação da prática da poesia: o domínio da língua, a perícia necessária para produzir um conto ou um romance, é a barreira que confina uma parte dos aspirantes a escritores (e mesmo parte dos veteranos) ao domínio da poesia, ou, se não tanto, ao domínio da não prosa. Já neste, por conta da anarquia conceitual e da recusa do julgamento, as deficiências podem passar por estilo, a fatalidade por escolha, o jeito canhestro por inovação, o curto alcance cultural por opção política ou literária. 

Ao mesmo tempo, no seu registro alto, a poesia continua a ser o ponto mais sensível da vida literária. Tanto no que diz respeito à demanda de recepção hiperespecializada, quanto no que diz respeito à energização do campo, com os combates múltiplos e variados, com ou sem nível intelectual, mas sempre animados por uma paixão que a propalada gratuidade ou inutilidade da poesia, bem como o reduzido interesse econômico em jogo não fariam suspeitar. Aqui, contrariamente ao domínio da prosa, onde a mediação de um mercado ativo e crescente parece favorecer a formação de guildas de produtores pouco interessados na crítica dos concorrentes, com base no “há espaço para todos” – aqui, a guerra é sem quartel. Talvez isso se deva à própria ambiguidade do campo poético como espaço onde cabem tanto o anseio de produzir objetos capazes de inovar num mundo dominado pela cultura de massa, quanto o projeto de manter a memória do artesanato de alto nível. De qualquer forma, se por não ter mercado a poesia pode projetar para si uma recepção mais restrita e qualificada, é também verdade que seu movimento último é, como já disse, de não abrir espaço ao gosto cultivado como critério de julgamento. 

Sem crítica (confinada a sua forma legítima ao domínio dos hiperespecialistas ou dos próprios poetas) e sem apreço pela resposta do leitor (quantas vezes vemos glosada, cada vez em registro mais baixo, a vontade de agredir supostos vezos românticos ou parnasianos ou qualquer outra coisa do ausente leitor, que só é presente para ser agredido e reduzido ao ridículo?), a poesia contemporânea, no Brasil, é um shadow boxing, isto é, um exercício de luta contra a própria sombra. 

Já a crítica, na medida em que aceita a expulsão decretada pelos poetas e seus celebrantes preferenciais, é, no melhor dos casos, um espectador do exercício autotélico ou, no pior, um cúmplice involuntário, pela omissão, da exclusão do leitor – de que ela, no final das contas, deveria ser a voz. 

Entretanto, vejo agora, também eu sou em parte vítima do que tento denunciar. Pois não é verdade que, apesar desse aparato conceitual e de toda a forma de funcionamento do campo, não é verdade que há poetas que conseguem estabelecer o diálogo com o público e oferecer uma voz pessoal, no meio da gritaria programática geral? E sem concessões ao reality show para o qual também na literatura hoje se apela como forma de adulação e conquista do público despreparado? Não foi esse o caso de Paulo Leminski? E de Roberto Piva? E não é ainda esse o caso de tantos outros, que ficaram à margem das prescrições e dos manifestos, ou buscaram fugir às imposições programáticas do tempo, como Hilda Hilst? E não seria a ausência de programa e de movimento exclusivo o que irrita ainda hoje tantos contra Carlos Drummond de Andrade? 

De modo que, ao traçar este panorama, terminei por reduzir a minha análise justamente àquilo que, do meu ponto de vista, seria preciso combater, pelos motivos que expus. O que é uma prova simultânea da força persuasiva e entranhada historicamente do adversário e da necessidade de levar adiante o combate. 



*Texto lido no XI Seminário de Estudos Literários, promovido pela FCL/UNESP/Assis, em 24 de outubro de 2012. Ensaio de Paulo Franchetti, professor titular de Teoria da Literatura na Unicamp. Autor do excelente livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007). Extraído do Portal Cronópios. 



(Ilustração: Pieter Janssens Elinsa: 1623-1682)