quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

DO OUTRO LADO, de Javier Ortega




  

- Diga-me, mestre, acha que o consegue encontrar?

- Minha senhora; já lhe disse que ele é que me vai encontrar. Mas só falará se assim o quiser. Não tenho qualquer poder sobre ele.

- Mas já aqui estamos há meia hora...

- Diga-me; a sua amiga que me recomendou disse-lhe que isto era automático? Comunicar com o Além demora tempo e requer concentração. Se não mantiver o silêncio, vamos demorar ainda mais umas quantas meias horas.

- Queira desculpar, Mestre, mas compreenda: tenho tantas saudades do meu pai.

- ...

- ...

- Filha, és mesmo tu?

- Papá!?

- Estás com mau aspecto. Estou farto de te dizer que esses cremes só servem para gastar dinheiro. Água e sabão azul... não precisas de mais nada.

- Mas, diga-me: como é que está, como é a vida... como é que são as coisas aí?

- Água e sabão azul. É o que eu sempre disse.

- Sim. Água e sabão azul. Eu lembro-me. Mas temos tantas coisas para falar... eu não o devia ter posto no lar. Mas era tão difícil tomar conta de si, papá!

- Papá?? Deve estar a fazer confusão. Os meus filhos são pequenos. E são todos louros. Vivemos numa casa linda, no meio das montanhas...

- Papá; isso é a Música no Coração. Eu sei que era o seu filme preferido, mas...

- Devias pôr os olhos na tua prima Cristina. Aquilo é que é uma rapariga cuidada. E casou bem, com o tal rapaz dos Correios. Não com um inútil como o teu marido.

- Deixe lá o Carlos. Conte-me antes o que faz, o que vê...

- Água e sabão azul... nunca deixei a tua mãe usar outra coisa e olha se ela não continua uma bonita mulher.

-Viu a mãe?

- Que pergunta. Então não havia de ver a minha mulher? Mas agora não lhe falo. Imagina que me faltou ao respeito! Começou a falar do mal que eu tratava o pai dela, por estar sempre a babar-se e ser surdo que nem uma porta... e depois riu-se! Disse que era bem feito. Que era bem feito eu passar o resto da eternidade assim, completamente senil. Mas o que é que ela queria dizer? E imagina que me veio à ideia que ela já tinha morrido... e há muitos anos! A memória prega-me cada partida!

- Por favor, conte-me como é esse lado!

- Só sei que não gosto nada deste lar. As pessoas não são simpáticas; e está sempre escuro e nunca me deixam ver televisão... e não consigo encontrar os meus óculos. Quero ir para casa. Quando é que me vêm buscar?

- Mas não faz mesmo ideia de onde está??

- ...

- Papá!

- ...

- Papá!!




(Últimas Palavras, tradução de Luís Rainha)




(Ilustração: Adilson Marques, reunião mediúnica)






segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

CANTO-TE, de Ana Hatherly








Canto-te para que tu definitivamente

existas

Canto o teu nome porque só as coisas cantadas

realmente são e só o nome pronunciado inicia

a mágica corrente

Canto o teu nome como o homem fazia eclodir

o fogo do atrito das pedras

Canto o teu nome como o feiticeiro invoca

a magia do remédio

Canto o teu nome como um animal uiva

de

Como os animais pequenos bebem nos regatos depois

das grandes feras

Canto-te

e tu definitivamente existes nos meus olhos

Sempre abertos porque é sempre e os meus olhos

são os olhos da criança que nós somos sempre

diante da imensidão do teu espaço




Canto-te

e os meus olhos sempre abertos são a pergunta

instante pendente de eu te interrogar




e interrogo as coisas em seu ser noctumo

em seu estar sombriamente presentes na tua claridade

obscura

E como é sempre

meus olhos abertos prescrutam-te




símbolo de tudo o que me foge

como apertar o ar dentro das mãos

e querer agarrar-te




oh substância

Canto-te




com a fragilidade de tudo que existe perante

uma eternidade demasiado nocturna para os nossos

olhos infantis perante a tua antiguidade

futura

E a nossa voz é uma pequena onda no dorso

do teu oceano de matéria

Um leve arrepio apenas na espantosa espessura

de teu éter

Ah no ar é que tudo acontece

no ar nocturno das idades esquecidas

que previamente desconheceremos

No espaço é que tudo acontece

e o espaço é uma grande muito quieta

onde os nossos olhos penetram

no não sabermos até onde

ali

além

no além onde tudo acontece

Oh

oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável

e sermos nós a respiração da

teu bafo ritmado

imperceptível distância

Oh augusta majestática dignidade do silêncio

Oh impassibilidade da tua mecânica celeste

Oh organismo primeiro de todos os fins secretos

da compreensão das coisas

Oh inorgânico organismo dos seres

que se devoram

Oh diz

a quem servimos nós de pasto

Canto-te

como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome

Canto-te e grito

para que a poeira que se infiltra em todas as

coisas se erga de ti como um plâncton

Oh Madre

matriz das criaturas inferiores que rastejam

a teus pés cobertas de pó

esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos

Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó

Oh que desintegras tudo e tudo tu constróis

Ah como nós lambemos tuas duras mãos

Oh que fustigas nossos olhos com tua sombra

Enorme

Oh

que deixas tanto espaço para o silêncio

das mil pétalas

dos mil braços esplendorosos em seu abandono

dos murmúrios

dos afagos

sangue derramado sobre o mundo

Oh

Porque és sempre tão premente?

e sempre estás ausentemente

na tua constância em todas as coisas?




Oh sono

Oh morte tão desejada e longa

mágica povoada de átomos

milhões de espíritos enchem o teu sopro

E penetras em nós como uma bala

E tudo morre quando tu chegas

E tudo se dilui e se transforma em ti

alada presciência de tudo acontecer

tão longe de nós e tão antigamente

e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença

ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume

Oh

brilha para dentro de mim

Acende teus luzeiros em meus olhos

Ergue teus braços oh prenhe de tudo

Oh vaso

Oh via láctea de nos amamentares com teu leite

de sombra

Oh úbere e pródiga

Aleita tua ninhada faminta

Grande fera luzidia

Grande mito

Grande deus antigo

Oh urna onde todos dormimos

Oh

Meus olhos choram já de tanto prescrutar-te

E canto-te

Canto-te

Para que tu existas

E eu não veja mais nada além de ti

E nada mais deseje senão que venhas outra vez

levar-me para dentro do teu ventre

de nunca mais haver

E nada mais haver que



Oh tu definitivamente além




(Poemas de Eros Frenético e Contemporâneos)





(Ilustração: João Ruas)











terça-feira, 22 de dezembro de 2015

STILL I RISE / MESMO ASSIM EU ME REERGO / AINDA ASSIM, EU ME LEVANTO, de Maya Angelou






You may write me down in history

With your bitter, twisted lies,

You may trod me in the very dirt

But still, like dust, I’ll rise.



Does my sassiness upset you?

Why are you beset with gloom?

‘Cause I walk like I’ve got oil wells

Pumping in my living room.



Just like moons and like suns,

With the certainty of tides,

Just like hopes springing high,

Still I’ll rise.




Did you want to see me broken?

Bowed head and lowered eyes?

Shoulders falling down like teardrops,

Weakened by my soulful cries?




Does my haughtiness offend you?

Don’t you take it awful hard

‘Cause I laugh like I’ve got gold mines


Diggin’ in my own backyard.




You may shoot me with your words,

Yo may cut me with your eyes,

You may kill me with your hatefulness,

But still, like air, I’ll rise.




Does my sexiness upset you?

Does it come as a surprise

That I dance like I’ve got diamonds

At the meeting of my thighs?




Out of the huts of history’s shame

I rise

Up from a past that’s rooted in pain

I rise

I’m a black ocean, leaping and wide,

Welling and swelling I bear in the tide.




Leaving behind nights of terror and fear

I rise

Into a daybreak that’s wondrously clear

I rise

Bringing the gifts that my ancestors gave,

I am the dream and the hope of the slave.

I rise

I rise

I rise.




Tradução de Brenda Nepomuceno (Mesmo Assim Eu Me Reergo):



Você pode me menosprezar na história,

Com suas mentiras distorcidas e amargas,

Você pode me pisotear nessa lama,

Mas mesmo assim, como poeira, eu me reerguerei.



A minha impertinência lhe incomoda?

Por que você está perturbado em melancolia?

Porque eu ando como se tivesse poços de óleo

Jorrando na minha sala de estar.



Bem como luas e como sóis,

Com a certeza das marés,

Bem como esperanças brotando alto,

Mesmo assim eu me reerguerei.



Você queria me ver quebrada?

Cabeça inclinada e olhos para baixo?

Ombros caindo como lágrimas.

Fraquejando pelos gritos do meu âmago.



A minha arrogância lhe ofende?

Não leve isso tão a sério

Porque eu rio como se tivesse minas de ouro

Sendo escavadas no meu quintal.



Você pode atirar em mim com as suas palavras,

Você pode me cortar com os seus olhos,

Você pode me matar com o seu ódio,

Mas mesmo assim, como o ar, eu me reerguerei.



A minha sensualidade lhe ofende?

É realmente uma surpresa

Eu dançar como se tivesse diamantes

Onde minhas coxas se encontram?



Das tocas da vergonha da história

Eu me reergo

Saindo de um passado enraizado na dor

Eu me reergo

Eu sou um oceano negro, borbulhante e vasto,

Vertendo e me expandindo eu aguento a maré.

Deixando para trás noites de terror e medo

Eu me reergo

Rumo a um amanhecer que é surpreendentemente claro

Eu me reergo

Trazendo os presentes que meus ancestrais deram,

Eu sou o sonho e a esperança do escravo.

Eu me reergo

Eu me reergo

Eu me reergo.”




Tradução de Mauro Catopodis (Ainda assim, eu me levanto):



Você pode me riscar da História

Com mentiras lançadas ao ar.

Pode me jogar contra o chão de terra,

Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.




Minha presença o incomoda?

Por que meu brilho o intimida?

Porque eu caminho como quem possui

Riquezas dignas do grego Midas.



Como a lua e como o sol no céu,

Com a certeza da onda no mar,

Como a esperança emergindo na desgraça,

Assim eu vou me levantar.



Você não queria me ver quebrada?

Cabeça curvada e olhos para o chão?

Ombros caídos como as lágrimas,

Minh’alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?

Tenho certeza que sim

Porque eu rio como quem possui

Ouros escondidos em mim.



Pode me atirar palavras afiadas,

Dilacerar-me com seu olhar,


Você pode me matar em nome do ódio,

Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.




Minha sensualidade incomoda?

Será que você se pergunta

Por que eu danço como se tivesse

Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor



Eu me levanto

De um passado enraizado na dor

Eu me levanto

Sou um oceano negro, profundo na fé,

Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade

Eu me levanto

Em direção a um novo dia de intensa claridade

Eu me levanto

Trazendo comigo o dom de meus antepassados,

Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.

E assim, eu me levanto

Eu me levanto

Eu me levanto.




(Ilustração: Larry Poncho Brown - every round goes higher)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

CONTRABANDISTA, de João Simões Lopes Neto

1





— Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí.

Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiunos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...

Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá́ o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.

Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.

Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.

Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.

Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero.

Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...

Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán...

Era um pagodista!

Aqui há poucos anos — coitado! — pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo.

A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha — pro caso, uma moça —, que era o — santo-antoninho-onde-te-porei! — daquela gente toda.

E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.

E noiva, casadeira, já era.

E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.

O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.

O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha.

Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...

Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.

Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.

Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito.

Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea!

Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...

Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!

Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...

Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.

Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...

Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!

Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis...

Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...

E logo com quem!... Com a gauchada!...

Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas cousas.

Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro.

Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.

Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam...

Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.

Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.

A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. 

Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...

Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!...

Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.

Rompeu a guerra do Paraguai.

O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!...

Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!

Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui...

Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...

Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.

O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi.

Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha.

Passou o dia; passou a noite.

No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.

Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.

Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.

A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.

Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.

Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.

Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.

As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.

Entardeceu.

Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela — tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.

A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos...

E rindo e chorando estava, sem saber porquê... sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:

— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...

Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...

Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.

E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.

E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.

Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...

Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...

Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:

— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!

A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o.

Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira...

Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...

Então rompeu o choro na casa toda.


(Contos Gauchescos)



(Ilustração: Alberto Scherer)



quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

VIDA / TEMPO, de Viviane Mosé







Quem tem olhos pra ver o tempo
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos?
O tempo andou riscando meu rosto
Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor.
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença).
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
A vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
A vida anda passando.
Acho que a vida anda.
A vida anda em mim.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando.


(Pensamento do Chão)



(Ilustração: Antonio Sgarbossa - che cosa pensa)



domingo, 13 de dezembro de 2015

DE COMO SE INICIOU A CONFUSÃO DE SENTIMENTOS DO ÁRABE NACIB, de Jorge Amado








Leu umas linhas no jornal, aspirando a fumaça do charuto de São Félix, perfumado. Em geral, nem chegava a fumar todo o charuto, a ler grande coisa nos diários da Bahia.

Logo adormecia, embalado pela brisa do mar, afrontado pelas iguarias gulosamente devoradas, o inigualável tempero de Gabriela. Ressonava feliz por entre os bigodes frondosos. Aquela meia hora de sono, à sombra das árvores, era uma das delícias de sua vida, sua boa vida tranquila, sem sustos, sem complicações, sem problemas graves. Jamais tinham os negócios marchado tão bem, crescia a frequência do bar, ele acumulava dinheiro no banco, o sonho de um pedaço de terra onde plantar cacau ganhava realidade. Nunca fizera negocio tão vantajoso como ao contratar Gabriela no mercado dos escravos. Quem diria ser ela tão competente cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?...

Naquele dia da chegada do engenheiro, a curiosidade tomando conta do bar, apresentações e cumprimentos, elogios a granel – é um nadador de primeira – quando todos os almoços se atrasaram em Ilhéus, Nacib fizera dia por dia a conta do tempo decorrido desde o anúncio de sua vinda. Gabriela voltava para casa após pedir:

– Deixa eu ir no cinema hoje? Pra acompanhar dona Arminda...

Tirara da caixa uma nota de cinco mil réis, generoso:

– Pague a entrada dela...

Vendo-a partir, esfogueada e risonha (ele não parara de beliscá-la e tocá-la mesmo enquanto comia), contara os dias: três meses e dezoito dias exatamente. De aperreação, cochichos, agitação, dúvida e esperança para Mundinho e seus amigos, para o coronel Ramiro Bastos e seus correligionários. Com descomposturas nos jornais, conversas segredadas, apostas, bate-bocas, surdas ameaças, um clima de tensão em aumento. Havia dias em que o bar parecia uma caldeira prestes a explodir. Quando o Capitão e Tonico mal se falavam, o coronel Amâncio Leal e o coronel Ribeirinho apenas se cumprimentavam.

É para ver-se como são as coisas da vida. Aqueles mesmos dias foram de calma, de perfeita tranquilidade de espírito, de suave alegria para Nacib. Talvez os mais felizes de toda a sua existência.

Jamais dormira tão sereno sua sesta, acordando risonho com a voz de Tonico, infalível após o almoço para um dedo de amargo a ajudar a digestão, um dedo de prosa antes de abrir o cartório. Pouco depois juntava-se a eles João Fulgêncio, passando para a papelaria. Falavam de Ilhéus e do mundo, o livreiro era entendido em assuntos internacionais, Tonico sabia tudo quanto se referia ao mulherio da cidade.

Três meses e dezoito dias tardara o engenheiro a chegar, fazia exatamente o mesmo tempo que contratara Gabriela. Naquele dia o coronel Jesuíno Mendonça matara dona Sinhazinha e o dentista Osmundo. Mas só no outro dia tivera Nacib certeza de que ela sabia cozinhar. Na espreguiçadeira, o jornal abandonado no chão, o charuto a apagar-se, Nacib sorri, recordando... Três meses e dezessete dias a comer comida temperada por ela, não havia em todo Ilhéus cozinheira que se lhe pudesse comparar. Três meses e dezesseis dias dormindo com ela, a partir da segunda noite, quando o luar lambia-lhe a perna e no escuro do quarto saltava um seio da rota combinação...

Nessa tarde, devido talvez ao anormal movimento do bar, à excitação da presença do engenheiro, Nacib não conciliava o sono, tomado por seus pensamentos. A princípio não dera maior importância a nenhuma das duas coisas: nem à qualidade da comida nem ao corpo da retirante nas noites ardentes. Satisfeito com o tempero e a variedade dos pratos, só lhes deu o devido valor quando a freguesia começou a crescer, quando foi preciso aumentar o número de salgados e doces, quando sucederam-se unânimes os elogios e Plínio Araçá, cujos métodos comerciais eram dos mais discutíveis, mandou fazer uma oferta a Gabriela. Quanto ao corpo – aquele fogo de amor a consumi-la no leito, aquela loucura de noites atravessadas insones – prendeu-se a ele, insensivelmente. Nos primeiros tempos, apenas certas noites a procurava, quando, ao chegar em casa, ocupada ou doente Risoleta, não estava cansado e com sono. Então decidia deitar-se com ela, à falta de outra coisa a fazer. Mas durara pouco essa displicência. Logo habituara-se de tal maneira à comida feita por Gabriela que, convidado a jantar com Nhô-Galo no dia de seu aniversário, mal provara os pratos, sentindo diferença na finura do tempero. E fora, sem o sentir, amiudando as idas ao quarto do quintal, esquecendo a sabida Risoleta, passando a não suportar seu carinho representado, suas manhas, seus eternos queixumes, mesmo aquela ciência do amor que ela usava para lhe tirar dinheiro. Terminou por não mais procurá-la, não responder a seus bilhetes, e desde então, há quase dois meses, não tinha outra mulher senão Gabriela. Agora arribava todas as noites em seu quarto, procurando sair do bar o mais cedo possível.

Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa, suculenta; de alma contente, cama de felizardo. No rol das virtudes de Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o amor ao trabalho e o senso de economia. Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa – tão limpa nunca estivera! –, cozinhar os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. Parecia adivinhar os pensamentos de Nacib, adiantava-se às suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas trabalhosas das quais ele gostava – pirão de caranguejo, vatapá́, viúva de carneiro –, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de visitas, troco do dinheiro dado para fazer a feira, essa ideia de vir ajudar no bar.

Antes era Chico Moleza, ao voltar do almoço, quem trazia para Nacib a marmita preparada por Filomena. A barriga a dar horas, o árabe esperava impaciente. Ficava só, com Bico-Fino, a servir os últimos fregueses do aperitivo. Um dia, sem prevenir, Gabriela aparecera com a marmita, vinha lhe pedir licença para ir à sessão espírita, dona Arminda a convidara. Ficou ajudando a servir, passou a vir todos os dias. Naquela noite lhe dissera:

– É melhor eu levar a comida pro moço. Assim come mais cedo, posso ajudar também. Importa não?

Como ia importar se a presença dela era mais uma atração para a freguesia? Nacib logo se deu conta: demoravam-se mais, pedindo outro trago, os ocasionais passavam a permanentes, vindo todos os dias. Para vê-la, dizer-lhe coisas, sorrir-lhe, tocar-lhe a mão. Afinal que lhe importava, era apenas sua cozinheira com quem dormia sem nenhum compromisso. Ela servia-lhe a comida, armava-lhe a cadeira de lona, deixava a rosa com seu perfume. Nacib, satisfeito da vida, acendia o charuto, tomava dos jornais, adormecia na santa paz de Deus, a brisa do mar a acariciar-lhe os bigodões florescentes. Mas nesse começo de tarde não conseguia dormir. Fazia mentalmente o balanço daqueles três meses e dezoito dias, agitados para a cidade, calmos para Nacib. Gostaria, no entanto, de cochilar pelo menos uns dez minutos, em vez de deter-se a relembrar coisas à toa, sem maior importância. De repente, sentiu que algo lhe faltava, talvez por isso não conseguisse dormir. Faltava-lhe a rosa, cada tarde encontrada caída no bojo da espreguiçadeira. Ele vira quando o juiz de direito, sem dar-se o respeito devido ao seu cargo, a furtara da orelha de Gabriela e a pusera em sua botoeira... Um homem idoso, de seus cinquenta anos, aproveitando-se da confusão em torno do engenheiro para roubar a rosa, um juiz... Ficara com medo de um gesto brusco de Gabriela, ela fez como se não tivesse percebido. Esse juiz estava saindo do sério. Antigamente nunca vinha ao bar na hora do aperitivo, aparecendo apenas, de quando em vez, à tardinha, com João Fulgêncio ou com o Dr. Maurício. Agora esquecia todos os preconceitos e, sempre que podia, lá estava no bar, bebendo um vinho do porto, rondando Gabriela.

Rondando Gabriela... Nacib ficou a pensar. Sim, rondando, de súbito dava-se conta. E não era só ele, muitos outros também... Por que se demoravam além da hora do almoço, criando problemas em casa? Senão para vê-la, sorrir para ela, dizer-lhe gracinhas, roçar-lhe a mão, fazer-lhe propostas, quem sabe? De propostas Nacib sabia apenas de uma feita por Plínio Araçá. Mas aquela dirigia-se à cozinheira. Fregueses do Pinga de Ouro haviam-se mudado para o Vesúvio, Plínio mandara oferecer um ordenado maior a Gabriela. Apenas escolhera mal o mediador, confiando a mensagem ao negrinho Tuísca, fiel do Bar Vesúvio, leal a Nacib. Assim, fora o próprio árabe quem dera o recado a Gabriela. Ela sorrira:

– Quero não... Só se seu Nacib me botar pra fora...

Ele a tomara nos braços, era de noite, envolveu-se em seu calor. E aumentou-lhe em dez mil réis o ordenado:

– Tou pedindo não... – disse ela.

Por vezes comprava-lhe um brinco para as orelhas, um broche para o peito, lembranças baratas, algumas nem lhe custavam nada, trazia da loja do tio. Entregava-as à noite, ela enternecia-se, agradecia-lhe humilde, beijando-lhe a palma da mão num gesto quase oriental:

– Moço bom, seu Nacib...Broches de dez tostões, brincos de mil e quinhentos, com isso lhe agradecia as noites de amor, os suspiros, os desmaios, o fogo a crepitar inextinguível. Cortes de fazenda vagabunda duas vezes lhe dera, um par de chinelos, tão pouco para as atenções, as delicadezas de Gabriela: os pratos de seu agrado, os sucos de frutas, as camisas tão alvas e bem passadas, a rosa caída dos cabelos na espreguiçadeira. De cima, superior e distante, ele a tratara como se estivesse a pagar-lhe regiamente o trabalho, a fazer-lhe um favor deitando-se com ela.

Os outros no bar a rondá-la. A rondá-la talvez na ladeira de São Sebastião, a mandar-lhe recados, a fazer-lhe propostas, por que não seria assim ? Nem todos haviam de usar Tuísca de portador, como ele, Nacib, iria saber? Que vinha fazer no bar o juiz de direito senão tentá-la? A rapariga do juiz, uma jovem cabrocha da roça, aparecera alastrada de doenças feias, ele a largara.

Quando Gabriela começara a vir ao bar, ele – idiota! – alegrara-se interessado apenas nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento. Boa cozinheira era coisa rara em Ilhéus, ninguém o sabia melhor do que ele. Muita família rica, donos de bares e de hotéis deviam estar cobiçando sua empregada, dispostos a fazer-lhe escandalosos ordenados. E como iria continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário, sua momentânea presença ao meio dia? E como iria ele viver sem o almoço e o jantar de Gabriela, os pratos perfumados, os molhos escuros de pimenta, o cuscuz pela manhã?

E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe moço bonito, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de pernas, como? E sentiu então a significação de Gabriela. Meu Deus!, que se passava, por que aquele súbito temor de perdê-la, por que a brisa do mar era vento gelado a estremecer-lhe as banhas? Não, nem pensar em perdê-la, como viver sem ela?

Jamais poderia gostar de outra comida, feita por outras mãos, temperada por outros dedos. Jamais, ah!, jamais poderia querer assim tanto desejar, tanto necessitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada. Que significavam esse medo, esse terror de perdê-la, a raiva repentina contra os fregueses a fitá-la, a dizer-lhe coisas, a tocar-lhe a mão, contra o juiz ladrão de flores, sem respeito ao cargo? Nacib perguntava-se ansioso: afinal que sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio? Ou não era tão simples assim? Não se animava a procurar a resposta.

A voz de Tonico Bastos veio – felizmente!, respirou aliviado – arrancá-lo desses pensamentos confusos e assustadores. Mas para outra vez neles mergulhá-lo, neles afundá-lo violentamente.

Pois, apenas haviam-se encostado no balcão, servindo-se Tonico do amargo, e já Nacib, para varrer suas melancolias, lhe foi dizendo:

– Então o homem chegou finalmente... Mundinho lavrou um tento, essa é a verdade. Tonico, sorumbático, botou-lhe uns olhos maus:

– Por que você não cuida de sua vida, seu turco? Quem avisa amigo é. Em vez de ficar falando tolices, por que não toma conta do que é seu?

Queria Tonico apenas evitar o assunto do engenheiro, ou sabia de alguma coisa?

– Que quer você dizer com isso?

– Cuide do seu tesouro. Tem gente querendo roubar.

– Tesouro?

– Gabriela, bestalhão. Até casa querem botar pra ela.

– O juiz?

– Ele também? Ouvi falar de Manuel das Onças.

Não seria intriga de Tonico? O velho coronel estava muito do lado de Mundinho... Mas, também era verdade, agora aparecia em Ilhéus constantemente, não arredava do bar. Nacib estremeceu, viria do mar aquele vento gelado? Apanhou no escondido do balcão uma garrafa de conhaque sem mistura, serviu-se um trago respeitável. Quis puxar mais por Tonico, porém o tabelião arrenegava de Ilhéus:

– Merda de terra atrasada que se alvoroça toda com a presença de um engenheiro. Como se fosse coisa do outro mundo...



(Gabriela Cravo e Canela)



(Ilustração: Di Cavalcanti)