quinta-feira, 28 de novembro de 2013

UN LUPO IN AGGUATO / UM LOBO AO ATAQUE, de Abbas Kiarostami










Traço vermelho sobre o branco da neve,

presa ferida

que coxeia




Um potro branco

nasceu

de uma égua negra

ao alvorecer




O vento levará consigo

flores de cerejeira

até à alvura das nuvens




Por cada onda alta

três ondas baixas,

por cada três ondas baixas

uma onda alta




Acompanhei

a lua

ao coração de uma nuvem escura,

bebi vinho e adormeci




Quando regressei à terra natal

a casa paterna

já não existia nem a voz de minha mãe




O céu

pertence-me,

a terra

pertence-me




como sou rico!




Um mendicante

acordou sobre a margem de um regato

um sedento

acordou sobre um tesouro




 (Un lupo in agguato, um lobo ao ataque - tradução do italiano de Mário Rui de Oliveira;  tradução do persa de Ricardo Zipoli)




(Ilustração: Alfred de Dreux - fidelité)


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CASA DO INCESTO, de Anaïs Nin








Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projetar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projetada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.



(A casa do incesto - tradução de Isabel Hub Faria)




(Ilustração: Heriberto Cogollo)









sexta-feira, 22 de novembro de 2013

MÃE NEGRA, de Aguinaldo Fonseca






A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

— Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade...



(Poetas africanos contemporáneos, org. Fayada Jamis, Virgilio Piñera, Armando Álvarez Bravo, Manuel Cabrera y David Fernándes)



 (Ilustração: Elisha Ongere - my baby)




terça-feira, 19 de novembro de 2013

MÉNAGE À TROIS, de Tristan Bernard






Todo mundo conhece aquela fábula de La Fontaine, em que um ancião em seu leito de morte aconselha aos seus familiares que se mantenham unidos, se quiserem progredir na vida. E a quem melhor poder-se-ia dirigir essa recomendação do que a dois irmãos siameses, os quais, enquanto se acharem unidos, poderiam ganhar até cento e cinquenta francos em um dia, ao passo que, se se separarem, ganhariam apenas três francos diários, subscritando envelopes? 

Eu conheci em Londres dois destes gêmeos ligados, chamados comumente de irmãos siameses e denominados cientificamente de xifópagos. 

EduardoEdmundo possuíam uma fortuna bastante considerável, que os dispensava de exibir-se como fenômenos. Eduardo havia nascido em Manchester, há vinte e cinco anos. Edmundo havia nascido igualmente em Manchester, pela mesma época. Na adolescência se pareciam de uma forma extraordinária. A ponto de várias pessoas, confundindo a sua direita com a sua esquerda, não conseguirem distinguir um do outro. 

No entanto, manifestaram-se neles, com a idade, diferenças morais de grande profundidade. Eduardo tinha gostos serenos e amor aos estudos; Edmundo, instintos plebeus. Esse ultimo só se divertia na companhia dos devassos, dos vadios, dos beberrões. O desventurado Eduardo, com seu livro de estudo na mão, via-se na contingência de seguir Edmundo pelas tabernas e bordéis. E quando voltavam, com o rosto vermelho de vergonha, via-se forçado a ziguezaguear com ele, para não romper a membrana. 

Eduardo chegou a ser um famoso erudito. Mas não pode ser por muito tempo convidado para os banquetes das corporações cientificas, onde o famigerado Edmundo, mal se servia da sopa, começava logo a contar histórias obscenas que as pessoas decentes reservam de ordinário para depois do café. 

O ano passado, Eduardo pediu em casamento a mão de uma bela e rica donzela, sendo a cerimônia celebrada com grande pompa e circunstancia. Não houve alternativa senão convidar Edmundo que, alias, se portou admiravelmente bem durante todo o ato. Parecia-lhe que sua cunhada lhe inspirava certo respeito. No cortejo nupcial, a mulher de Eduardo, este e Edmundo, iam, os três, na frente, em meio à admiração geral. Na noite de núpcias, Edmundo portou-se, ainda, com grande correção. Dormira primeiro e, na manhã seguinte, fingiu acordar-se mais tarde do que os outros. Durante a lua-de-mel do seu irmão, entregou-se menos à bebida, cuidou da sua linguagem e vestiu-se com decência, posto que tivesse de sair com uma senhora. 

A jovem - já disse, por acaso, que ela se chamava Cecília? -, a jovem exercia sobre Edmundo uma grande influência. Ao cabo de algum tempo, aconteceu o que acontece toda vez que um solteiro penetra em um lar. Estabeleceram-se relações entre Cecília e o malvado Edmundo. 

Durante seis meses, Eduardo não desconfiou de dada. Tudo, no entanto, acabou por saber-se. Eduardo encontrou cartas em uma gaveta mal fechada, e apurou de maneira irrespondível que sua mulher e seu irmão traíam-no diariamente. 

Que fazer numa situação como esta? Bater-se em duelo com Edmundo não seria permitido pelos costumes ingleses. Temia também os comentários irônicos das testemunhas. 

O duelo a pistola, a dez metros de distância, não seria nada fácil, sucedendo o mesmo com o duelo a espada, tendo em vista a habitual proibição do corpo a corpo. 

Além disso, que aconteceria se matasse o seu irmão? Poderia continuar a existência comum com sua mulher? E depois, sempre aquele cadáver entre ambos!... 

Resolveu chamar Cecília e disse a ela: 

- A partir de hoje, não profanarás mais nosso domicilio conjugal. Vai-te embora! 

- Está bem! - concordou ela. 

- Está bem! - secundou Edmundo. - Mas eu a acompanho. 

O marido viu-se obrigado a segui-los. 

Edmundo instalou Cecília em um primeiro andar muito confortável. E como tudo acaba por se regularizar entre xifópagos, viveram lá os três, muito felizes. 



(Ilustração: autor desconhecido - Chang and Eng Bunker - c. 1836)


sábado, 16 de novembro de 2013

HERANÇA DE MORTE, de Amélia Dalomba













Lírios em mãos de carrascos
Pombal à porta de ladrões
Filho de mulher à boca do lixo
Feridas gangrenadas sobre pontes quebradas
Assim construímos África nos cursos de herança e morte
Quando a crosta romper os beiços da terra
O vento ditará a sentença aos deserdados
Um feixe de luz constante na paginação da história
Cada ser um dever e um direito
Na voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança




(Todos os Sonhos - Antologia da Poesia Moderna Angolana. Org. Adriano Botelho de Vasconcelos)




(Ilustração: Ndeveni - Maasai Moran and Cows at Manyatta)






quarta-feira, 13 de novembro de 2013

APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA, de Alcântara Machado










O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro. 

Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam: 

- Vá pisar no inferno! 

Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando. 

O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito. 

Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari. 

Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir. 

Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz: 

- O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial? 

O rapaz respondeu: 

- Não sei: nós estamos no escuro. 

- No escuro? 

- É. 

Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo: 

- Não tem luz? 

Bocejo. 

- Não tem. 

Cuspada. 

Matutou mais um pouco. Perguntou de novo: 

- O vagão está no escuro? 

- Está. 

De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim: 

- Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz! 

E a luz não foi feita. Continuou berrando: 

- Luz! Luz! Luz! 

Só a escuridão respondia. 

Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite: 

- Que é que há? 

Baiano velho trovejou: 

- Não tem luz! 

Vozes concordaram: 

- Pois não tem mesmo. 

Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo. 

Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou: 

- Ele é pobre como a gente. 

Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos. 

- Foguetes também? 

- Foguetes também. 

- Be-le-za! 

Mas João Virgulino observou: 

- Isso custa dinheiro. 

- Que é que se vai fazer então? 

Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse: 

- Dois quilos de lombo! 

Cortou outro e disse: 

- Quilo e meio de toicinho! 

Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas. 

- Quantas reses, Zé Bento? 

- Eu estou na quarta, Zé Bento! 

Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando. 

- Que é isso? Que é isso? É por causa da luz? 

Baiano velho respondeu: 

- É por causa das trevas! 

O chefe do trem suplicava: 

- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas. 

João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos. 

- Aqui ainda tem uns três quilos de coxão mole! 

O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão. 

Tocando a sineta o trem de Maguari fungou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe muito pálido. 

Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os passageiros no trem de Maguari amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares. 

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou: 

- Qual a causa verdadeira do motim? 

O homem respondeu: 

- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões. 

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou: 

- Quem encabeçou o movimento? 

Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou: 

- Quem encabeçou o movimento foi um cego! 

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.




(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau - Homer and his guide)















domingo, 10 de novembro de 2013

A NOITE DE PAVESE, de Amadeu Baptista







Raras vezes me franquearam a porta

e me deixaram entrar. A febre

sitia-me a alma e quem me vê

assusta-se do aspecto do meu rosto,

esta barba por fazer onde um rouxinol

se esconde. E mais ainda assusta

a minha altura, este lugar de vertigem

e palavras poderosas, a presença

de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,

o estremecimento que corre nos meus ombros.

Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.

E quando entro nas casas os meus gestos

afeiçoam-se a alguma coisa enigmática

que contorna o pavor e o entrega

por não se saber que espécie de vida ou de morte

vem comigo. Obviamente, eu abençoo

quem me deixa entrar, dou a entender

que alguma coisa brilha nas minhas mãos

e posso matar a fome com uma ou outra palavra

próxima do amor, um dedo nos cabelos

de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa

em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem

com as inefáveis sombras que vejo nos outros

e tento decifrar para meu contentamento.

Mandaram-me sentar e deram-me de beber.

Esse álcool reconfortou-me a alma.

E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo

e nítido, observando a mulher nesse sem fim

das coisas, onde todos os mistérios avançam

para uma explicação que a qualquer momento

pode irromper do espírito como uma explosão.

Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas

que me ofereces, o teu rosto é-me familiar

se recuar à infância e subitamente perceber

que também pertenci ao exercício desta árvore

que nesta sala se levanta. Em frente,

na fotografia que o meu olhar alcança

porque me alcança o olhar que dela se desprende,

inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,

mais que um rumor ou um fio ténue

com o nome de todas as coisas inesperadas

que me aconteceram na vida, sempre

que me franquearam a porta e me deixaram entrar.

Agora, com a memória de ter estado em tua casa

e ter recebido a graça de alguma atenção,

eu, que sou pedinte embora nada peça,

entrego-te este sulco da desordem

sobre a página em branco e agradeço-te

com o conhecimento de um outro mundo

ainda mais inexplicável.

Não tendo havido despedida, sabe que permaneço

e na encruzilhada das dores que me couberam viver

não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido

e mais nenhuma luz houver além daquela

que ilumina o teu rosto na solidão da noite.

Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.

Que me seja a alba a tua tolerância.




(Ilustração: Guy Baron - l'attente)

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

SYLVA SYLVARUM, de August Strindberg







Atingido meio caminho na minha vida, sento-me a descansar e a refletir.

Alcancei tudo o que audaciosamente desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento, pergunto: E depois?


Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os Antigos que o Universo já não possui segredos, encontramos a palavra de todos os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o Sol tem falta de oxigênio, não impedindo que arda tão bem como o antimônio no cloro ou o cobre no enxofre.


Desenhamos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos oceanos polares.


Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer! Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.

Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que diferença, afinal? E que soberba contradição!



O cianogênio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a confessar ignorância perante a natureza deste milagre.


Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se e sinto dores agudas na espinal-medula.


Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber por quê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e saí, umas vezes só, outras acompanhado, para refletir na grande desordem onde acabei por descobrir uma coerência infinita.



Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.


Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:


Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe a liberdade.








(Inferno - tradução de Aníbal Fernandes)



(Ilustração: Hugo Morbelli - ya sin chance)



segunda-feira, 4 de novembro de 2013

PRIMEIRO AMOR, de Adília Lopes









Gostava muito dele

mas nunca lhe disse isso

porque a minha criada tinha-me avisado

se gostar de um rapaz

nunca lhe diga que gosta dele

se diz

ele faz pouco de si para sempre

os rapazes são maus

eu não era bela

nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa

resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas

escrevia o rascunho num caderno pautado

não sei hoje o que escrevia

mas sei que nunca escrevi

gosto muito de ti

e depois pedia a uma rapariga muito bonita

que passasse as cartas a limpo

eu acreditava que quem tinha uns cabelos

assim loiros e a pele assim fina

devia ter uma letra muito melhor do que a minha

agora que conto isto

vejo que deixo muitas coisas de fora

por exemplo que o meu primeiro amor

não foi este mas o Paulo

o irmão da rapariga bonita




(Ilustração: Reuben Negron - the embrace VII)




sexta-feira, 1 de novembro de 2013

DE CIMA PARA BAIXO, de Artur Azevedo










Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete e imediatamente mandou chamar o diretor geral da Secretaria. 

Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão. 

- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador! 

- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos. 

- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado! 

- Que me está dizendo, Excelentíssimo?... 

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: 

- É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi... 

- É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete! 

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu: 

- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade que dei a minha demissão!... 

- Oh!... 

- Sua Majestade não o aceitou... 

- Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem. 

- Não a aceitou porque me considera muito e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado. 

- Peço mil perdões a Vossa Excelência - protestou o diretor- geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. - O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza. 

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: 

- Bom! Mande reformar essa porcaria! 

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção, que o encontrou fulo de cólera. 

- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro! 

- Por minha causa? 

- O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! 

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. 

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: 

- Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!... 

- O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si! 

- Não era caso para tanto. 

- Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta! 

- Eu... Vossa Senhoria... 

- Não o suspendo; limito- me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento. 

- Eu... Vossa Senhoria. 

- Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se e mande reformar essa porcaria! 

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto: 

- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Diretor-geral! 

- Por minha causa? 

- O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado! 

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. 

- Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. Diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração! 

- O expediente foi tanto que não tive tempo de reler o que escrevi... 

- Ainda o confessa! 

- Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos... 

- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!... 

- Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta... 

- Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!... 

O amanuense obedeceu. 

Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo. 

- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! 

- Por minha causa? 

- Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! 

- Foi porque... 

- Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! 

- Mas... 

- Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!... 

O contínuo saiu dali e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria. 

- Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! 

- Por minha causa? 

- Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto? 

- Porque... 

- Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? - Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!... 

O preto não redarguiu. 

O pobre-diabo não tinha ninguém abaixo de si em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão. 

O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boasvindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés. 

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...



(Ilustração: Rowlandson)