sexta-feira, 1 de novembro de 2013

DE CIMA PARA BAIXO, de Artur Azevedo










Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete e imediatamente mandou chamar o diretor geral da Secretaria. 

Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão. 

- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador! 

- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos. 

- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado! 

- Que me está dizendo, Excelentíssimo?... 

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: 

- É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi... 

- É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete! 

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu: 

- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade que dei a minha demissão!... 

- Oh!... 

- Sua Majestade não o aceitou... 

- Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem. 

- Não a aceitou porque me considera muito e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado. 

- Peço mil perdões a Vossa Excelência - protestou o diretor- geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. - O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza. 

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: 

- Bom! Mande reformar essa porcaria! 

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção, que o encontrou fulo de cólera. 

- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro! 

- Por minha causa? 

- O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! 

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. 

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: 

- Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!... 

- O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si! 

- Não era caso para tanto. 

- Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta! 

- Eu... Vossa Senhoria... 

- Não o suspendo; limito- me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento. 

- Eu... Vossa Senhoria. 

- Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se e mande reformar essa porcaria! 

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto: 

- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Diretor-geral! 

- Por minha causa? 

- O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado! 

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. 

- Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. Diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração! 

- O expediente foi tanto que não tive tempo de reler o que escrevi... 

- Ainda o confessa! 

- Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos... 

- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!... 

- Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta... 

- Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!... 

O amanuense obedeceu. 

Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo. 

- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! 

- Por minha causa? 

- Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! 

- Foi porque... 

- Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! 

- Mas... 

- Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!... 

O contínuo saiu dali e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria. 

- Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! 

- Por minha causa? 

- Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto? 

- Porque... 

- Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? - Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!... 

O preto não redarguiu. 

O pobre-diabo não tinha ninguém abaixo de si em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão. 

O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boasvindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés. 

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...



(Ilustração: Rowlandson)


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