domingo, 30 de agosto de 2020

À SOMBRA DE EVA, de Darcy França Denófrio

 







Era um tempo de trevas

e de brumas sobre o meu corpo.

Um tempo de pesadas vestes:

uma única janela para o meu rosto.



Um cavalo avassalava

minhas planícies e vales,

me punha bridas e loros,

depois um cinto de castidade.



Eu não falava: minha língua

guardava-se em ostra

e o estro silenciava-se

numa lira que dormia.



Meu amo determinava:

eu só ouvia.

Meu amo vociferava:

eu encolhia.



II



Com a roca e o fuso

e um cesto da mais pura lã,

adestrava meus dedos

para tecer a manhã.



Sozinha no burgo,

(ah! bem longe era o meu Senhor)

embalava no berço

a balada que eu compus.



E meu canto se alçava

e com ele também eu,

enquanto durava a paz

que a guerra me podia dar.



Eu não lia nem soletrava

sobre uma távola redonda;

só adestrava meus dedos

para tecer a manhã.



E num bosque bem fundo,

numa grota dentro de mim,

meu estro se formava

numa lira eólia

que acordava.



E eu enredava no fuso

(horário) outra manhã.



III



Quantos séculos dormiu meu canto?

Quem estrangulou minha garganta

afiada para solar, meu canto?



Era um pássaro mudo

engolindo a cascata

aérea de seu canto.



Um pássaro na gaiola

ferindo as asas —

sonata a debater-se.



Um pássaro preso

a olhar o céu (arquiteto)

e seu aceno de poesia.



(Ínvio Lado)



(Ilustração: Marie Laurencin)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O ANEL, de Anaïs Nin



No Peru os índios têm o costume de trocar anéis quando ficam noivos, anéis esses cuja posse é antiga na família. As vezes muitos deles têm a forma de uma corrente. 

Um índio muito bonito apaixonou-se por uma peruana descendente de espanhóis, mas houve violenta oposição da parte da família da moça. Os índios eram considerados preguiçosos e degenerados e se dizia que geravam crianças fracas e instáveis, particularmente quando desposavam filhos de espanhóis. 

Apesar da oposição, os dois jovens realizaram a cerimônia de noivado entre os amigos. O pai da moça apareceu durante a festa e disse que, se um dia encontrasse o índio usando o anel que a filha já lhe dera, o arrancaria do modo mais brutal possível, cortando-lhe o dedo, se necessário. O incidente estragou a festa. Todos foram para casa, e o jovem casal se separou com promessas de se ver secretamente. 

Encontraram-se uma noite, após muitas dificuldades, e beijaram-se com ardor por longo tempo. A moça ficou excitada com os beijos do noivo. Ela estava pronta para se entregar, pois achava que aquele poderia ser o último instante deles juntos, visto que a cólera de seu pai crescia mais a cada dia. Mas o índio estava determinado a desposá-la, disposto a não possuí-la em segredo. Então ela notou que ele não trazia no dedo o anel que lhe dera. Seus olhos o interrogaram. Ele lhe disse ao ouvido: — Estou usando o anel, mas não onde possa ser visto, em um lugar onde ele me impedirá de possuí-la ou a qualquer outra mulher antes do casamento. 

— Não compreendo — disse a moça. — Onde está o anel? 

Ele pegou sua mão e colocou-a em um certo lugar, entre suas pernas. Primeiro, os dedos dela sentiram seu pênis, mas ele os guiou até que tocassem no anel, que estava enfiado na base do membro. Ao toque da mão da jovem, contudo, o pênis intumesceu e ele gritou em razão da dor terrível provocada pelo anel que entrara em sua carne. 

A moça quase desmaiou, horrorizada. Era como se ele quisesse matar o desejo que sentia. Ao mesmo tempo, a ideia do pênis dele preso pelo seu anel a despertou sexualmente, e seu corpo ficou morno e sensível a toda sorte de fantasias eróticas. 

Continuou a beijá-lo, mas ele suplicou que não o fizesse, porque aquilo lhe trazia uma dor cada vez maior. 

Poucos dias depois, o índio se viu novamente em uma situação desesperadora, mas não conseguiu tirar o anel. Foi preciso chamar o médico, e o anel teve de ser serrado. 

A moça procurou-o e se ofereceu para fugir com ele. Ele concordou com ela. Montaram em dois cavalos e viajaram a noite inteira até uma aldeia próxima. Ele a escondeu em um quarto e saiu para arranjar trabalho em uma hacienda. Ela não saiu do quarto enquanto seu pai não se cansou de procurá-la. O rapaz que trabalhava como vigia noturno da cidadezinha era a única pessoa a ter conhecimento de sua presença. Ele tinha ajudado a escondê-la. De sua janela, a moça podia vê-lo caminhando de um lado para o outro, carregando as chaves das casas e gritando: — A noite está tranquila e tudo está bem na aldeia. 

Quando alguém chegava em casa tarde da noite, batia palmas e chamava o vigia. Então ele abria a porta da casa dessa pessoa. Enquanto o índio estava fora, trabalhando, o vigia e a mulher tagarelavam inocentemente. 

Ele lhe falou sobre o crime que ocorrera recentemente na aldeia: os índios que deixavam a montanha e seu trabalho nas haciendas e desciam para a selva se tornavam selvagens e animalescos. Suas feições nobres adquiriam traços de bestial brutalidade. 

Essa transformação ocorrera havia pouco tempo com um índio que fora o homem mais bonito da aldeia, um rapaz gracioso, quieto, com um humor estranho e reservada sensualidade. Ele descera para a floresta e se dedicara à caça. Depois retornou cheio de saudade, pobre e sem ter onde morar. Ninguém o reconheceu ou se lembrou dele. 

Um dia ele pegou uma menininha na estrada e cortou suas partes íntimas com uma faca comprida usada para retirar a pele de animais. Não a violou, mas pegou a faca e a enfiou em seu sexo. Toda a aldeia ficou tumultuada. Não podiam decidir como puni-lo. Então resolveram reviver um velho costume indígena. Ele seria açoitado até morrer. E colocariam em suas feridas cera misturada com um forte ácido que os índios conheciam, a fim de aumentar a dor. 

Enquanto o vigia contava essa história, o índio voltava do trabalho. De longe, viu a mulher à janela, olhando para o vigia. Ao chegar, obrigou-a a ir correndo para o quarto e apareceu diante dela com os cabelos negros caindo em torno do rosto, os olhos faiscantes de ódio e ciúme. Começou a amaldiçoá-la e a torturá-la com dúvidas e perguntas. 

Desde o acidente com o anel, seu pênis ficara muito sensível. O ato sexual era acompanhado de dor, e por isso ele não podia deliciar-se com a frequência que desejava. Seu pênis inchava e ficava dolorido durante alguns dias. Ele estava sempre com medo de não satisfazer a esposa e de que, por essa razão, ela procurasse outro. Quando viu o vigia conversando com ela, ficou certo de que ambos estavam tendo um caso às escondidas. Teve vontade de machucá-la, de fazê-la sofrer tanto quanto ele tinha sofrido por sua causa. Forçou-a a descer ao porão, onde o vinho era guardado em barris. 

Amarrou uma corda a uma das vigas do teto. A mulher pensou que fosse ser espancada. Não podia entender por que ele estava preparando uma espécie de roldana. Então ele amarrou suas mãos e se pôs a puxá-la pela corda, que havia passado na viga, de modo que seu corpo foi levantado no ar, com todo o peso sustentado pelos pulsos, causando-lhe imensa dor. 

Ela chorou e jurou que lhe tinha sido fiel, mas ele estava como louco. Quando ela desmaiou, enquanto a corda era puxada novamente, ele se deu conta do que estava fazendo. Colocou-a no chão e começou a abraçá-la e a acariciá-la. Ela abriu os olhos e sorriu. 

Ele se sentiu tomado de desejo por ela e atirou-se sobre seu corpo. Pensou que fosse encontrar resistência, que depois de toda aquela dor ela tivesse ficado com raiva. Mas não houve qualquer oposição. Ao contrário, ela continuou a sorrir. E quando ele tocou em seu sexo, descobriu que estava úmido. Ele possuiu-a com fúria e ela correspondeu com a mesma exaltação. Foi a melhor noite que os dois jamais tiveram, deitados ali no chão frio da adega escura. 



(O delta de Vênus; tradutor não identificado)


(Ilustração: Frida Castelli)


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

BLASON DU BEAU TÉTIN / A BELA TETA, de Clément Marot



Tetin refaict, plus blanc qu’un oeuf,

Tetin de satin blanc tout neuf,

Tetin qui fait honte à la rose,

Tetin plus beau que nulle chose ;

Tetin dur, non pas Tetin, voyre,

Mais petite boule d’Ivoire,

Au milieu duquel est assise

Une fraize ou une cerise,

Que nul ne voit, ne touche aussi,

Mais je gaige qu’il est ainsi.

Tetin donc au petit bout rouge

Tetin qui jamais ne se bouge,

Soit pour venir, soit pour aller,

Soit pour courir, soit pour baller.

Tetin gauche, tetin mignon,

Tousjours loing de son compaignon,

Tetin qui porte temoignaige

Du demourant du personnage.

Quand on te voit il vient à mainctz

Une envie dedans les mains

De te taster, de te tenir ;

Mais il se faut bien contenir

D’en approcher, bon gré ma vie,

Car il viendroit une aultre envie.

O tetin ni grand ni petit,

Tetin meur, tetin d’appetit,

Tetin qui nuict et jour criez

Mariez moy tost, mariez!

Tetin qui t’enfles, et repoulses

Ton gorgerin de deux bons poulses,

A bon droict heureux on dira

Celluy qui de laict t’emplira,

Faisant d’un tetin de pucelle

Tetin de femme entiere et belle.



Tradução de David Mourão-Ferreira:



Teta perfeita, branca como um ovo,

Teta de cetim feita, cetim novo,

Teta da qual a rosa tem vergonha,

Teta melhor que tudo o que se sonha,

Teta dura, nem teta, mas enfim



Comparável a bola de marfim,

E no centro da qual somente esteja

Um rubi de morango ou de cereja

Que ninguém vê nem toca por enquanto,

Mas que aposto ser tal como eu o canto:



Teta de bico pois tão encarnado

Que parece por agora sossegado,

Quer ela vá correndo ou vá andando,

Quer ela vá partindo ou vá saltando:

Teta do lado esquerdo, tão matreira,

Sempre longe da sua companheira,

Teta que és testemunha e viva imagem

De compostura tal da personagem

Que só de ver-te assim como te vejo

Nasce dentro das mãos este desejo

De toda te palpar e possuir:

Mas é preciso eu próprio me impedir

De mais me aproximar, pois não duvido

Depois desse desejo outro surgido…

Ó teta nem modesta nem vistosa,

Teta madura, teta apetitosa,

Teta que noite e dia ouço gritar:

“Depressa me casai, quero casar!”



Com justiça, feliz se vai dizer

Aquele que de leite te há-de encher,

Fazendo de uma teta de donzela

Teta de dona inteiramente bela.



(Ilustração: Pietro di Cosimo - c. 1520: Simonetta Vespucci)


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

SOBRE A GAROTA CEM POR CENTO PERFEITA QUE ENCONTREI EM UMA MANHÃ ENSOLARADA DE ABRIL, de Haruki Murakami

 


Em uma manhã ensolarada de abril, passei pela garota cem por cento perfeita em uma dessas ruas menos conhecidas do bairro de Harajuku. 

Para ser sincero, ela não era tão bonita assim. Nada nela chamava muita atenção. Nem estava tão bem-vestida. O cabelo dela estava bagunçado, com as marcas de quem acabara de acordar e, quanto à idade, também não era jovem. Devia estara casa dos trinta. Ou seja, nem era propriamente uma “garota”. 

No entanto, mesmo separados por cinquenta metros, tive a mais absoluta certeza: ela era a garota cem por cento perfeita para mim. Desde o instante em que a vi, meu coração disparou, agitado feito terremoto, e minha boca ficou seca como o deserto. 

É possível que você tenha seu tipo ideal de garota. De tornozelos finos, ou de olhos grandes, ou de dedos graciosos, ou que, sem nenhum motivo aparente, lhe chame atenção apenas por ela fazer a refeição sem pressa. Também tenho o meu tipo. Às vezes, comendo num restaurante, me pego observando fixamente o formato do nariz da garota sentada na mesa ao lado. 

Mas ninguém é capaz de definir sua garota cem por cento perfeita. Apesar de apreciar um nariz feminino, não consigo descrever o formato do nariz dela. Aliás, não lembro sequer se ela tinha um nariz. A única coisa de que me lembro é que ela não era especialmente bonita. É estranho. 

— Ontem, andando na rua, passei pela garota cem por cento perfeita — comentei com alguém. 

— É mesmo? — a pessoa respondeu. — Bonita? 

— Não exatamente. 

— Mas pelo menos fazia o seu tipo? 

— Aí é que está. Não consigo me lembrar de nada; nem do formato dos olhos, nem se os seios eram grandes ou pequenos. 

— Que estranho! 

— Sem dúvida. 

— E então? — ele indagou, com ar entediado. — O que fez? Falou com ela? Você a seguiu? 

— Nada disso — respondi. — Apenas passei por ela. 

Ela caminhava do sentido leste para o oeste, e eu, do oeste para o leste. Era uma agradável manhã de abril. 

Eu queria muito ter conversado com ela nem que fosse só por meia hora. Saber sobre sua vida, e também lhe contar da minha. Queria, sobretudo, ter esvendado os caprichos do destino que nos levaram a passar um pelo outro em uma rua pouco conhecida de Harajuku naquela manhã ensolarada de abril de 1981. Tudo isso deveria guardar doces segredos, como a máquina de um relógio antigo construído em tempos de paz. 

Depois de conversarmos sobre isso, almoçaríamos em algum lugar e, quem sabe, assistiríamos a um filme do Woody Allen e beberíamos alguns drinques num bar de hotel. E, se tudo desse certo, terminaríamos na cama. 

As possibilidades batiam na porta do meu coração. 

A distância entre nós se reduziu para quinze metros. 

Como deveria abordá-la? 

— Bom dia. Você teria meia hora para conversar comigo? 

Ridículo! Eu ficaria parecendo um vendedor de seguros. 

— Com licença, você conhece alguma lavanderia vinte e quatro horas por aqui? 

Não menos ridículo. Dizer isso sem ter sequer uma muda de roupas na mão? Quem cairia nessa conversinha? 

Talvez fosse o caso de falar a verdade: 

— Bom dia. Você é a garota cem por cento perfeita para mim. 

Não. Também não. Ela não iria acreditar e, mesmo que acreditasse, poderia se recusar a falar comigo. Poderia ter me dito: 

— Mesmo que eu seja cem por cento perfeita para você, você não é perfeito para mim. Sinto muito. 

Era bastante provável. E, se isso acontecesse, eu ficaria arrasado. Talvez nunca me recuperasse do choque. Tenho trinta e dois anos e ser adulto traz esse tipo de coisas. 

Passei por ela em frente à floricultura. Senti na pele o toque de uma brisa quente. O asfalto da calçada estava úmido e o ar cheirava a rosas. Não consegui falar com a garota. Ela usava um suéter claro e carregava um envelope branco ainda sem selo na mão direita. Uma carta para alguém. É possível que tenha ficado a noite toda acordada, escrevendo a carta, e isso explicaria seu olhar sonolento. Todos os seus segredos deviam estar dentro daquele envelope. 

Quando olhei para trás, depois de caminhar alguns passos, ela já havia desaparecido no meio da multidão. 

Claro que hoje sei exatamente o que devia ter dito naquele dia. Ainda assim, teria sido um longo discurso e creio que eu acabaria me enrolando no final. Minhas ideias são sempre desprovidas de senso prático. 

De todo modo, meu discurso teria começado com “Era uma vez” e terminado com “Você não acha essa história triste?”. 

Era uma vez, em algum lugar, num longínquo passado, um rapaz e uma garota. Ele tinha dezoito anos, e ela, dezesseis. O rapaz não era muito bonito, tampouco a garota era uma beldade. Eram comuns, solitários, como muitos jovens que encontramos por aí. Mas acreditavam de verdade que em algum lugar deste mundo existia a pessoa que formaria o par cem por cento perfeito com cada um deles. Acreditavam em milagres. E o milagre tomou forma. 

Certo dia, casualmente, se esbarraram em uma esquina. 

— Que surpresa! Procurei por você durante toda a minha vida. Pode não acreditar, mas você é a garota cem por cento perfeita para mim — ele disse para ela. 

A garota respondeu: 

— Pois saiba que você é o rapaz cem por cento perfeito para mim. Exatamente do jeito que eu sempre imaginei. Devo estar sonhando! 

Sentaram então em um banco no parque, se deram as mãos e a conversa fluiu espontânea, sem indícios de se tornar enfadonha. Não eram mais solitários. Cada qual encontrou o seu parceiro cem por cento ideal. Nada poderia ser tão maravilhoso quanto aquilo. E ainda era um sentimento recíproco. 

Mas uma pequena dúvida invadiu o coração deles: será que era possível um sonho se materializar daquela maneira, com tanta facilidade? 

Em uma breve pausa da conversa, o rapaz propôs: 

— Que tal fazermos um teste? Se formamos de fato um casal cem por cento perfeito, com certeza voltaremos a nos encontrar em algum lugar. Quando isso acontecer e nos certificarmos de ser cem por cento perfeitos um para o outro, então poderemos nos casar. O que acha? 

— Acho que é isso mesmo que devemos fazer — ela respondeu. 

Então, seguiram seus rumos. Ela para o leste, ele para o oeste. 

Mas, para falar a verdade, o teste era totalmente desnecessário. Eles não deviam ter feito isso, porque eram um casal cem por cento perfeito, e o encontro deles já era um milagre. No entanto, os dois eram jovens demais para saber disso. Então, acabaram à mercê das ondas insensíveis e cruéis do destino. 

No inverno de certo ano, ambos foram acometidos por um terrível surto de influenza e, depois de ficarem várias semanas entre a vida e a morte, as lembranças que tinham do passado se apagaram. Quando enfim se recuperaram, estavam com o cérebro tão vazio quanto o cofrinho de D. H. Lawrence. 

Mas, por serem jovens inteligentes e perseverantes, com esforço e determinação reaprenderam o necessário e revitalizaram seus sentimentos até conseguirem voltar à vida em sociedade. Com todas as bênçãos, se tornaram cidadãos equilibrados, capazes de fazer as baldeações de metrô e de postar uma carta registrada no correio. Retomaram ainda a capacidade que tinham para amar, na ordem de setenta e cinco por cento, ou, quem sabe, de até oitenta e cinco por cento. 

O tempo passou rápido e, num piscar de olhos, o rapaz completava trinta e dois anos, e a garota, trinta. 

Em uma manhã ensolarada de abril, ele caminhava pelo bairro de Harajuku, do sentido oeste para o leste, procurando um lugar para tomar o primeiro café do dia, enquanto a garota, na mesma rua, vinha na direção oposta, procurando um correio onde pudesse comprar selos. Os dois se encontraram no meio do caminho. Uma tênue faísca iluminou por alguns segundos o coração deles, trazendo de volta as lembranças até então esquecidas. Com um aperto no peito, cada um soube de imediato: 

É a garota cem por cento perfeita para mim. 

É o rapaz cem por cento perfeito para mim. 

Mas a luz das memórias logo começou a ceder e seus pensamentos já não tinham a mesma clareza de catorze anos atrás. Passaram um pelo outro sem trocar palavras e desapareceram na multidão. Para sempre. 

Você não acha esta história triste? 

É, é isso mesmo. Era isso que eu devia ter dito a ela. 



(O elefante desaparece, tradução de Lica Hashimoto) 



(Ilustração: Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres )





terça-feira, 18 de agosto de 2020

POEMAS PARA LER EM VOZ ALTA, de Cláudio Willer

 


1



EROS

viajantes inertes

imersos no silêncio dessas horas

quando o tempo não é mais tempo

porém lassidão

e nossos corpos arquejantes construções

envoltas em nudez

testemunhada apenas pelos objetos da casa, os quadros na parede, os pesados móveis, os livros e suas lombadas, vasos de plantas, espelhos, e mais a negra silhueta dos prédios recortados contra a janela

rosto cego da cidade agora adormecida a observar-nos fixamente

eu bruxo, você sibila

que deuses cultuamos?

parados na pausa entre sobressaltos

que alquimia inventamos?

o peso que nos paralisa e adormece

não é cansaço

porém outra coisa

sensação do profundo

o obscuro sentir

do mundo que respira

pelos poros da escuridão

e nós, manietados pelo prazer, apenas conscientes

da presença dos objetos da casa, móveis, vasos de plantas, livros, almofadões

espalhados pelo chão, nossas roupas jogadas ao acaso, mais o negro recorte dos prédios

por trás da janela,

perfil da paisagem urbana, impassível testemunha

mal sabemos quem somos

lembramo-nos apenas dos nossos nomes

restam-nos o repouso e uma intuição

desperta para o morno mundo de nossos corpos

nunca, nunca havia sentido isso antes assim



2



quando o calor da noite de verão

e a chuva da noite de verão

se encontram

e são a mesma torrente de vida a escorrer por nossas artérias

então

reconhecemo-nos pelas carícias

um arco-íris pode sentar-se à cabeceira da cama

uma nuvem pode servir de cobertor

uma paisagem de sol nascente

em uma praia pontilhada de tendas de campistas

reflete-se no lago luminoso do seu ventre

a montanha e sua encosta recoberta de matagais

onde certa vez nos perdemos entre nascentes de rios

projetam sua sombra em suas coxas

planícies batidas pelo vento alísio

que atravessa o continente, o universo

são nossa imaginação febril



3



a colcha era verde

e a lâmpada azulada

costumavam ouvir músicas lentas e suaves

achavam que a estante repleta de livros tinha um ar solene

e gostavam disso

de qualquer coisa

que sugerisse um ambiente sobrenatural

eram rápidos, muito rápidos em seus jogos intelectuais

serviam-se em taças transbordantes, borbulhantes

e tudo era praticado com uma certa indiferença

com a naturalidade de há tanto tempo

termos nos habituado a estar juntos, a ficar nus, a beijar-nos na boca

deitar-nos sobre a colcha verde do sofá, à luz azul da lâmpada

ao lado da estante de livros compondo um clima de ritual

sugestão de coisa esotérica

decerto olhavam-se

e ficavam de voltar a encontrar-se outro dia

(as noites passavam depressa)



4



nossos hábitos delicados e perversos

nossas diversões meio delinquenciais, meio filosóficas

nossos prazeres íntimos e raros

as conversas irisadas de memória

gestos aos poucos entretecendo-se

na plenitude da nudez familiar

enquanto íamos nos transformando

nos pulsantes personagens crepusculares

de nossas narrativas

rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante

da noite percorrida

para não chegar a lugar algum

durante o dia

éramos simples mortais



5



é hora de dizer claramente como são as coisas:

você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo

você se escancara

eu embarco em você

eu me engajo me prendo me agarro navego em você

plano em um jogo de arriscado equilíbrio

atiro-me em seus abismos

singro suavemente sua brisa

enfrento seus maremotos

viajo por sua velocidade

perco-me no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia,

de água do mar e de água doce

- nós somos o pântano e somos o labirinto

cego-me em sua brancura

alço-me em sua ondulação

você é o planeta onde pouso

a nuvem em que me envolvo

aura estelar, dissipação de caudas de cometas

leva-me e me conduz

nessa dança desarticulada

para mais longe para o alto para o

profundo

me arrasta

amor oxímoro

amor, palavra de paradoxos



6



seus olhos têm muitas cores

que refletem o brilho de cada hora

estranhas palavras

atravessam nossas conversas

É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR

mas não sei

se não recuaremos

confundidos diante da visão da nossa crueldade



7



ah, mas você não viu nada

essa festa para a qual me convida

só pode ser na clareira do matagal em chamas

no subsolo do edifício que desaba em escombros

pois o verdadeiro amor, o amor somado ao prazer, é outra coisa

overdose, êxtase infernal

que fatalmente nos destruirá



(Ilustração: Edvard Munch - le baiser - 1895)


sábado, 15 de agosto de 2020

NOITE DE INSÔNIA EM PIRAÍ, MAIO DE 1874, de Mary del Priore

 


O que perdemos, perdemos. Um amigo repetiu, para mim, uma coisa dita por um grande escritor: “Viva o máximo que puder. É um erro não fazê-lo”. Acho que não vivi, para não revelar muito sobre mim mesmo. E nesse momento, é de mim que tento fugir. De tantas lembranças. Como, mesmo, conheci Nicota? Todos conheciam os netos do barão. Muitas vezes fui levar encomendas de mãe para sinhá Ana Clara, em época de festa. Mãe fazia balas de estalo. O barão as punha no bolso e distribuía, a mancheias, aos convidados. Adoçava os ânimos de qualquer um. Na fazenda, depois de pedir a bênção ao sinhô e à sinhá, eu corria para ajudar os meninos a fazer armadilha para caçar guaiamus na beira do rio. Ou a preparar visgo com leite de gameleira para pegar passarinho. 

Ainda lembro. As canoas silenciosas passando, a pranchada do remo na água. Lustroso, o rio gorgolejava. “Não se bebe água do Paraíba”, mãe dizia… Catávamos pelo chão os araçás roídos pelos bem-te-vis. Aonde a água não chegava, as pedrinhas brilhavam ao sol. E Nicota menina, atrás da gente, suspendia a saia para pular os buracos, cheios de lama. Toda de branco, os cabelos compridos, um pezinho de boneca enfiado nas botinas. “Pega a saracura…”, ela pedia. Eu pegava. “Bicho bonito da perna cor de violeta. Bica?” “Não bica.” Os cabelos de Nicota. O cheiro de menina rica de Nicota. Não catingava a picumã, como tantas outras que eu conhecia. Na volta para a fazenda, eu cuidava: “Menina, olha a cobra”. Ela nem se assustava. 

Depois, um dia, Nicota me honrou. Sorriu só para mim, olhando nos meus olhos. Eu, na multidão. Vergonha: o calção só cobria dos joelhos para cima. Os sapatos apertavam. Mãe de chapéu, vestido preto de gorgorão duro e recendendo a óleo de babosa que passou nos seus e nos meus cabelos. Era dia de procissão, festa de Santa Edwiges. Nicota saiu de anjo com capela de flores na cabeça, asas de organdi e roupa de rendas. Padre Breves ia fazer sermão. Na igreja, tinha briga por lugar. A cidade enchia. O povo vinha da roça e se reunia na porta principal. A orquestra ensaiava: a clarineta, o bombo, os pratos. A volta da praça, as barracas vendiam queijada e suco de cana. O sino repicou anunciando a partida do préstito. As andorinhas fugiram em desordem. As crianças se perfilaram. O hino começou desafinado. Nicota então sorriu para mim, um sorriso de dentes miúdos e brancos. Eu, feioso, mulato e pobre. Os foguetes cruzaram o céu, enquanto os meninos corriam para pegar as flechas. Mas eu fiquei ali… encantado. 

Passaram-se alguns anos e Nicota moça eu encontrei numa festa da Botada na fazenda. Era o fim de um mês de agosto e padre Breves foi benzer o canavial. Sem que essa cerimônia fosse realizada, ninguém, homem livre ou escravo, ia começar sua tarefa. Se algum acidente sobreviesse, seria explicado como justo castigo de céu. Falta de fé, de observância religiosa. Os ombros de Nicota… belíssimos. Branquíssimos e pequeníssimos. O encanto com que os sacudia ao dançar o lundu, ligeiramente febril. 

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis, as senzalas foram caiadas e limpas. A escravatura recebeu timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano. Quinze dias antes da moagem, cortaram-se as canas que chegavam em carros de bois e ficavam sob alpendres ou em depósitos especiais. De véspera, enfeitaram a casa da fazenda e mais construções. No terreiro, as bandeiras flutuavam nas extremidades de bambus verdes. Matou-se um boi para o banquete dos senhores, e carneiros e galinhas para a refeição dos escravos. Os compadres e amigos, que tinham vindo de longe com suas famílias, chegaram um dia antes. Foreiros ajudavam escravos nos preparativos da música e dos fogos. 

Nicota reconheceu meu rosto. Percebendo minha perplexidade, correu para desfazê-la por meio de uma delicadeza toda sua. Dirigiu-me cumprimentos. A tarefa de entretê-la com alguma conversa, porém, me intimidou. Eu dizia-lhe o nome com ar sério… Eu, em geral tão corajoso com as meninas morenas e de condição humilde de Piraí. Tentava esconder que ela possuía um “admirador”. Virei e revirei palavras buscando fazer um verso, uma quadra. Nada. 

No dia da Botada, visitantes acorriam sobre carros de bois, amontoados sob toldos de esteiras ou de chitão lavrado. Muitos vinham a pé, descalços, trazendo os sapatos ao ombro. Fui um deles. Ouvia-se o engenho moendo com prazer. Nesse dia, com exceção da gente envolvida com a festa, ninguém mais trabalhava. Teve ceia. Os escravos batucaram depois do jantar. Os foreiros cantaram e dançaram. As músicas faziam referência ao corte da cana, à moagem e ao preparo do açúcar. O barão e os outros fazendeiros da região presentearam as crioulas e mulatas de estimação com cortes de chita ou de cassa, fios de corais e brincos de ouro. 

Padre Breves veio e disse a missa. Depois, a família, os convidados e os escravos foram para o engenho. O feitor e muitos homens livres e negros estavam ao pé da máquina… Duas velas acesas foram colocadas perto dos cilindros sobre a plataforma que sustenta as canas, e foi disposta entre elas uma imagem de Nosso Senhor na cruz. O padre tomou seu breviário e leu várias orações e, em certos momentos, com um ramo de arbusto, preparado para esse gesto e mergulhado na água benta, aspergiu o engenho e os presentes. Sinhá Ana Clara, com Nicota e suas irmãs, além das mucamas enfeitadas, trouxeram os primeiros feixes de cana, envoltos em fitas coloridas, para serem bentos e passados na moenda. Nicota ria muito, fazendo caretas para tia Maria Gata. 

Correu bebida. Dormi no paiol. Acordei no meio da noite. O céu, um tapete de estrelas. A lua ia alta. Dos arbustos vinham estalidos de grilos. Na mata, tudo parecia repousar. Sem fazer barulho, caminhei de manso até o laranjal. Que vi? Nicota, a mais bela da noite, branca, esguia, cor de açúcar. A camisa levantada cobria-lhe a cabeça. Que vi? Nicota, de cócoras, estrumava o terreno. Corri para longe para não ver mais. Nunca esqueci. Parecia que a lua tinha caído ali. 



(Beije-me onde o sol não alcança



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas - lundu, 1835) 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

WINTER: MY SECRET / INVERNO: MEU SEGREDO, de Christina Rossetti

 



I tell my secret? No indeed, not I;

Perhaps some day, who knows?

But not today; it froze, and blows and snows,

And you’re too curious: fie!

You want to hear it? well:

Only, my secret’s mine, and I won’t tell.



Or, after all, perhaps there’s none:

Suppose there is no secret after all,

But only just my fun.

Today’s a nipping day, a biting day;

In which one wants a shawl,

A veil, a cloak, and other wraps:

I cannot ope to everyone who taps,

And let the draughts come whistling thro’ my hall;

Come bounding and surrounding me,

Come buffeting, astounding me,

Nipping and clipping thro’ my wraps and all.

I wear my mask for warmth: who ever shows

His nose to Russian snows

To be pecked at by every wind that blows?

You would not peck? I thank you for good will,

Believe, but leave the truth untested still.



Spring’s an expansive time: yet I don’t trust

March with its peck of dust,

Nor April with its rainbow-crowned brief showers,

Nor even May, whose flowers

One frost may wither thro’ the sunless hours.



Perhaps some languid summer day,

When drowsy birds sing less and less,

And golden fruit is ripening to excess,

If there’s not too much sun nor too much cloud,

And the warm wind is neither still nor loud,

Perhaps my secret I may say,

Or you may guess.



Tradução de Lucas Grosso:



Devo contar meu segredo? Não, de fato;

Um dia, talvez, quem o saberá?

Hoje não: ele congela, assopra, e neva,

És tu, tão curioso: calado!

Queres ouvi-lo? Bem:

Mas é meu segredo, não conto a ninguém.



Ou talvez, enfim, não há nenhum:

Suponha não ter nenhum, entretanto,

Só minha diversão.

Hoje, dia frisante, dia cortante;

Um em que se quer um manto;

Um véu, agasalho ou capa:

Não posso abrir a todo que bata,

E deixar os debuxos soarem em meu recanto;

Vinde a confinar e cercar-me

Vinde assombrar e surrar-me

A beliscar e tosar todos os meus mantos.

Mascaro-me p’ra aquecer: há quem revele seu

nariz nas russas neves

Para ser bicado por toda a brisa que corres?

Não irias tu bicar? Agradeço-te pela boa vontade

Credes, mas deves deixar improvada a verdade.



A primavera é expansiva: ainda duvido

Março a poeira se faz montículo

Nem abril e os arco-íris de suas rápidas chuvas,

Nem mesmo maio, cujas floradas

Podem murchar-se, no escuro das geadas.



Talvez em algum dia de verão indolente,

Quando aves apáticas bem menos cantam

E as frutas douradas sazonam tanto

Sem tanto de nuvens ou de céu luminoso

E o vento não estiver nem calmo ou ruidoso,

Meu segredo, talvez, eu comente,

Ou faze adivinhação.




(Ilustração: Dante Gabriel Rossetti - Christina Rossetti)

domingo, 9 de agosto de 2020

A EDUCAÇÃO NO BRASIL NO INÍCIO DOS ANOS 50, de Richard Feynman


Em relação à educação no Brasil, tive uma experiência muito interessante. Eu estava dando aulas a um grupo de estudantes para se tornarem professores, uma vez que naquela época não havia muitas oportunidades no Brasil para pessoal qualificado em ciências. Esses estudantes já tinham feito muitos cursos, e esse deveria ser o mais avançado em eletricidade e magnetismo, equações de Maxwell, e assim por diante. 

A universidade ocupava diversos prédios na cidade, e o curso que eu ministrava era dado em um prédio com vista para o mar. 

Descobri um fenômeno muito estranho: eu podia fazer uma pergunta e os alunos respondiam imediatamente. Mas se fizesse a pergunta de novo - o mesmo assunto e a mesma pergunta, pelo que eu sei -, eles simplesmente não conseguiam responder! Por exemplo, uma vez eu estava falando sobre luz polarizada e dei a eles alguns filmes polaroides. O polaroide só deixa passar a luz cujo vetor de campo elétrico esteja em uma determinada direção; então expliquei como se pode dizer em qual direção a luz está polarizada, observando se o polaroide está escuro ou claro. 

Primeiro pegamos duas tiras de polaroide e as giramos até que elas deixassem passar a maior parte da luz. Podíamos, então, dizer que as duas fitas estavam deixando passar a luz polarizada na mesma direção - o que passou por uma tira de polaroide também poderia passar pela outra. Mas, então, perguntei como se poderia dizer a direção absoluta da polarização a partir de um único polaroide. 

Eles não faziam a menor ideia. 

Eu sabia que isto exigia um pouco de engenhosidade; então dei uma pista: 

"Olhe a luz refletida da baía lá fora." Ninguém respondeu nada. 

Então eu prossegui: "Vocês já ouviram falar no ângulo de Brewster?" 

- Sim, senhor! O ângulo de Brewster é o ângulo para o qual a luz refletida por um meio que tem um índice de refração é completamente polarizada. 

- E em que direção a luz fica polarizada quando é refletida? 

-A luz fica polarizada perpendicularmente ao plano de reflexão, senhor. - Mesmo hoje em dia, tenho de pensar; eles sabiam responder na hora! Eles sabiam até que a tangente do ângulo era igual ao índice de refração! 

Eu disse "Bem?" 

Nada ainda. Eles simplesmente haviam me dito que a luz refletida por um meio com um índice de refração, tal como a baía lá fora, era polarizada: eles haviam me dito até em qual direção ela estava polarizada. 

Eu disse: "Olhem a baía lá fora, pelo polaroide. Agora girem o polaroide." 

- Ah! Está polarizada! - eles disseram. 

Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes tinham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer. Quando ouviram "luz que é refletida por um meio com um índice de refração", não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que "a direção da luz" é a direção na qual você vê alguma coisa quando está olhando, e assim por diante. Tudo estava totalmente decorado, mas nada havia sido traduzido em palavras que fizessem sentido. Assim, se eu perguntasse o que é o ângulo de Brewster, eu estava entrando no computador com a senha correta. Mas se digo "Observe a água", nada acontece - eles não têm nada que responda ao comando "observe a água". 

Depois participei de uma aula na faculdade de engenharia. A aula foi assim: "Dois corpos ... são considerados equivalentes... se torques iguais... produzirem ... acelerações iguais. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem acelerações iguais." Os estudantes estavam todos sentados lá fazendo anotações e, quando o professor repetia a frase, checavam para ter certeza de que haviam anotado certo. Então eles anotavam a próxima frase, e a outra, e a outra. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre objetos com o mesmo momento de inércia, e era difícil descobrir isso. 

Eu não conseguia entender como eles aprenderiam qualquer coisa daquela maneira. Falava-se sobre momentos de inércia, mas não se discutia quão difícil é empurrar uma porta e abri-la quando se coloca muito peso longe do eixo, em comparação quando você coloca perto da dobradiça - nada! 

Depois da aula, falei com um estudante: "Vocês fizeram uma porção de anotações - o que vão fazer com elas?" 

- Ah, nós as estudamos - ele diz. - Nós teremos uma prova. 

- E como será a prova? 

- Muito fácil. Eu posso dizer agora uma das questões. - Ele olha em seu caderno e diz - "Quando dois corpos são equivalentes?" E a resposta é: "Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem acelerações iguais." - Então, você vê, eles podiam passar nas provas, "aprender" essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado. 

Assim fui a um exame de admissão para a faculdade de engenharia. Era uma prova oral e tive permissão para presenciá-la. Um dos estudantes foi absolutamente fantástico: respondeu tudo certinho! Os examinadores perguntaram a ele o que era diamagnetismo e ele respondeu perfeitamente. Depois perguntaram: "Quando a luz chega formando um ângulo com a vertical e atravessa uma lâmina de material de uma determinada espessura, e com um certo índice de refração N, o que acontece com a luz?" 

- Ela aparece paralela a si própria, senhor - e deslocada. 

- E em quanto ela é deslocada? 

- Não sei, senhor, mas posso calcular. -Então ele calculou. Ele era muito bom. Mas, nessa época, eu tinha minhas suspeitas. 

Depois da prova, fui até esse brilhante jovem e expliquei que eu era dos Estados Unidos e que queria fazer algumas perguntas a ele que não afetariam, de forma alguma, os resultados da prova. A primeira pergunta que fiz foi: 

"Você pode me dar algum exemplo de uma substância diamagnética?" 

- Não. 

Aí perguntei: "Se esse livro fosse feito de vidro e eu estivesse olhando através dele alguma coisa sobre a mesa, o que aconteceria com a imagem se eu o inclinasse?" 

- Ela seria defletida, senhor, em duas vezes o ângulo que o senhor tivesse girado o livro. 

Perguntei: "Você não fez confusão com um espelho, fez?" 

- Não senhor! 

Ele havia acabado de afirmar na prova que a luz ficaria deslocada, paralela a si própria, e, portanto, a imagem se moveria para o lado, mas não ficaria alterada de ângulo algum. Havia até mesmo calculado em quanto ela ficaria deslocada, mas não percebeu que um pedaço de vidro é um material com um índice de refração e que o cálculo dele se aplicava à minha pergunta. 

Ministrei um curso na faculdade de engenharia sobre métodos matemáticos na física, no qual tentei demonstrar como resolver os problemas por tentativa e erro. É algo que as pessoas geralmente não aprendem; então comecei com alguns exemplos simples para ilustrar o método. Fiquei surpreso porque apenas cerca de um entre cada dez alunos fez a tarefa. Então, preparei uma grande aula sobre como eles realmente deveriam tentar fazer as coisas e não só ficar sentados observando-me fazê-las. 

Depois da aula, alguns estudantes formaram uma pequena delegação e vieram até mim, dizendo que eu não havia entendido os antecedentes deles, que podiam estudar sem resolver os problemas, que já haviam aprendido aritmética e que essa coisa toda estava abaixo do nível deles. 

Então prossegui com as aulas e, independentemente de quão complexo ou obviamente avançado o trabalho estivesse se tornando, eles nunca punham a mão na massa. É claro que eu já havia notado o que estava acontecendo: eles não conseguiam fazer a tarefa! 

Uma outra coisa que nunca consegui com que eles fizessem foi perguntas. Por fim, um estudante explicou-me: "Se eu fizer uma pergunta para o senhor durante a palestra, depois todo mundo vai ficar me dizendo: 'Por que você está fazendo a gente perder tempo na aula? Nós estamos tentando aprender alguma coisa, e você fica interrompendo, fazendo perguntas.'" 

Era como se fosse um processo de tirar vantagem de alguém, no qual ninguém sabe o que está acontecendo e humilham outros como se eles realmente soubessem. Todos fingem que sabem, e se um estudante faz uma pergunta, admitindo por um momento que as coisas estão confusas, os outros adotam uma atitude de superioridade, agindo como se nada fosse confuso, dizendo àquele estudante que ele está desperdiçando o tempo dos outros. 

Expliquei a importância de se trabalhar em grupo, para discutir as dúvidas, analisá-las, mas também não o faziam porque achavam que se exporiam se tivessem de perguntar alguma coisa a outra pessoa. Era uma pena! Eles, pessoas inteligentes, faziam todo o trabalho, mas adotaram essa estranha forma de pensar, essa forma esquisita de auto propagar a "educação", que é inútil, definitivamente inútil! 

Ao final do ano acadêmico, os estudantes pediram-me para dar um seminário sobre minhas experiências com o ensino no Brasil. No seminário, haveria não só estudantes, mas também professores e funcionários do governo. Assim, prometi que diria o que quisesse. Eles disseram: "É claro. Este é um país livre." 

Aí entrei, levando os livros de física elementar que eles usaram no primeiro ano de faculdade. Eles achavam esses livros bastante bons porque tinham diferentes tipos de letra - negrito para as coisas mais importantes para se decorar, letras normais para as coisas menos importantes, e assim por diante. 

Imediatamente, alguém disse: "Você não vai falar sobre o livro, vai? O homem que o escreveu está aqui, e todo mundo acha que esse é um bom livro." - Você me prometeu que eu poderia dizer o que quisesse. 

O auditório estava repleto. Comecei definindo ciência como um entendimento do comportamento da natureza. Então, perguntei: "Qual será um bom motivo para ensinar ciência? É claro que país algum pode considerar-se civilizado a menos que ... blá, blá, blá." Eles estavam todos concordando comigo, porque sei que é assim que eles pensam. 

Então eu disse: "Isso, é claro, é um absurdo. Por que motivo temos de nos sentir em pé de igualdade com outro país? Temos de fazer as coisas por um bom motivo, por uma razão sensata; não apenas porque os outros países o fazem." Depois, falei sobre a utilidade da ciência e sua contribuição para a melhoria da condição humana, e toda essa coisa - eu realmente os provoquei um pouco. 

Daí disse: "O principal propósito da minha apresentação é provar aos senhores que não se está ensinando ciência alguma no Brasil!" 

Eu os vejo tremer, pensando: "O quê? Nenhuma ciência? Isso é loucura! Nós temos todas essas aulas." 

Então digo que uma das primeiras coisas que me deixaram chocados quando cheguei ao Brasil foi ver garotos da escola elementar em livrarias, comprando livros de física. Havia tantas crianças aprendendo física no Brasil, começando muito mais cedo do que as crianças nos Estados Unidos, que era estranho que não houvesse muitos físicos no Brasil - por que isso acontece? Há tantas crianças dando duro e não há resultados. 

Então fiz uma analogia com um erudito grego que ama a língua grega, que sabe que em seu país não há muitas crianças estudando grego. Mas ele vai a outro país, onde fica feliz em ver todo mundo estudando grego - mesmo as crianças pequenas das escolas elementares. Ele vai ao exame de um estudante que está se formando em grego e pergunta-lhe: "Quais eram as idéias de Sócrates sobre a relação entre a Verdade e a Beleza?" - e o estudante não consegue responder. Então ele pergunta ao estudante: "O que Sócrates disse a Platão no Terceiro Simpósio?" O estudante fica feliz e prossegue: "Disse isso, aquilo, aquilo outro" -ele repete tudo o que Sócrates disse, palavra por palavra, em um grego muito bom. 

Mas, no Terceiro Simpósio, Sócrates estava falando exatamente sobre a relação entre a Verdade e a Beleza! 

O que esse erudito grego descobre é que os estudantes do outro país aprendem grego aprendendo primeiro a pronunciar as letras, depois as palavras e então as sentenças e os parágrafos. Eles podem recitar, palavra por palavra, o que Sócrates disse, sem perceber que aquelas palavras em grego realmente significam algo. Para o estudante, elas não passam de sons artificiais. Ninguém jamais as traduziu em palavras que os estudantes possam entender. 

Eu disse: "É essa a impressão que tenho quando vejo os senhores ensinarem 'ciência' para as crianças aqui no Brasil." (Um soco forte, certo?) 

Então ergui o livro de física elementar que eles estavam usando. "Não são mencionados resultados experimentais em lugar algum neste livro, exceto em um lugar onde há uma bola, descendo um plano inclinado, onde ele diz a distância que a bola percorreu em um segundo, dois segundos, três segundos, e assim por diante. Os números têm erros - ou seja, se você olhar, você pensa que está vendo resultados experimentais, porque os números estão um pouco acima ou um pouco abaixo dos valores teóricos. O livro fala até sobre ter de corrigir os erros experimentais - muito bem. No entanto, uma bola descendo em um plano inclinado, se realmente for feito isso, tem uma inércia para entrar em rotação e, se você fizer a experiência, produzirá cinco sétimos da resposta correta, por causa da energia extra necessária para a rotação da bola. Dessa forma, o único exemplo de 'resultados' experimentais é obtido de uma experiência falsa. Ninguém fez rolar tal bola, ou jamais teriam obtido tais resultados!" 

"Descobri mais uma coisa", continuei. "Ao folhear o livro aleatoriamente e ler uma sentença de uma página, posso mostrar qual é o problema, isto é, que não há ciência, mas sim memorização, em todos os casos. Portanto, tenho coragem o bastante para folhear as páginas agora na frente deste público, colocar meu dedo em uma página, ler e provar para os senhores." 

Fiz isso. Brrrrrrrup - coloquei meu dedo em uma página e comecei a ler: 

"Triboluminescência. Triboluminescência é a luz emitida quando os cristais são friccionados ..." 

Digo: "E aí, você fez ciência? Não! Apenas foi dito o que uma palavra significa em termos de outras palavras. Não foi dito nada sobre a natureza, quais os cristais que produzem luz quando você os fricciona, por que eles produzem luz. Alguém viu algum estudante ir para casa e verificar isto experimentalmente? Ele não pode." 

"Mas, se em vez disso, estivesse escrito: 'Quando você pega um torrão de açúcar e o pressiona com um alicate no escuro, pode-se ver um clarão azulado. Alguns outros cristais também fazem isso. Ninguém sabe o motivo. O fenômeno é chamado triboluminescência.' Aí alguém vai para casa e tenta. Nesse caso, há uma experiência científica." Usei aquele exemplo para chamar a atenção deles, mas não faria qualquer diferença em que página eu pusesse meu dedo; o livro era desse jeito em quase todas as páginas. 

Por fim, disse que não conseguia entender como alguém podia ser educado neste sistema autopropagante, no qual as pessoas passam nas provas e ensinam os outros a passar nas provas, mas ninguém sabe nada. "No entanto", eu disse, "devo estar errado. Há dois estudantes na minha sala que se saíram muito bem, ademais, um dos físicos que conheço foi inteiramente educado no Brasil. Assim, deve ser possível para algumas pessoas encontrar seu caminho neste sistema, ruim como ele é." 

Bem, depois de apresentar meu seminário, o chefe do Departamento de Educação em Ciências levantou-se e disse: "O Sr. Feynman nos falou algumas coisas que são difíceis de ouvir, mas parece que ele realmente ama a ciência e foi sincero em suas críticas. Assim sendo, acho que devemos prestar-lhe atenção. Vim aqui sabendo que temos algumas fraquezas em nosso sistema de educação; o que aprendi é que temos um câncer!" - e sentou-se. 

Isso deu liberdade a outras pessoas para falar, e houve uma grande agitação. Todo mundo estava se levantando e fazendo sugestões. Os estudantes reuniram um comitê para mimeografar as palestras, antecipadamente, e organizaram outros comitês para fazer isso e aquilo. 

Então aconteceu algo que eu não esperava de forma alguma. Um dos estudantes se levantou e disse: "Eu sou um dos dois estudantes aos quais o Sr. Feynman se referiu ao fim de seu discurso. Não estudei no Brasil; estudei na Alemanha e acabo de chegar ao Brasil." 

O outro estudante que havia se saído bem em sala de aula tinha algo semelhante a dizer. O professor que eu havia mencionado se levantou e disse: "Estudei aqui no Brasil durante a guerra quando, felizmente, todos os professores haviam abandonado a universidade: então aprendi tudo lendo sozinho. Dessa forma, na verdade, não estudei no sistema brasileiro." 

Eu não esperava aquilo. Sabia que o sistema era ruim, mas 100% ruim era terrível! 

Uma vez que eu havia ido ao Brasil através de um programa patrocinado pelo governo dos Estados Unidos, o Departamento de Estado pediu-me para escrever um relatório sobre as minhas experiências no Brasil, e escrevi os principais pontos do discurso que havia acabado de fazer. Mais tarde, descobri, por vias secretas, que a reação de alguém no Departamento de Estado foi: "Isso prova como é perigoso mandar alguém tão ingênuo para o Brasil. Pobre rapaz; ele só pode causar problemas. Ele não entendeu os problemas." Bem pelo contrário! Acho que essa pessoa no Departamento de Estado era ingênua em pensar que, porque viu uma universidade com uma lista de cursos e suas descrições, as coisas funcionavam. * 



(O senhor está brincando, sr. Feynman!, tradução de Cláudia Bentes David) 



*Nota da Tradutora: Desde a famosa visita de Richard Feynman ao Brasil até os dias de hoje, muita coisa mudou no ensino das ciências no Brasil. Em particular, o ensino de física nas universidades brasileiras, que realizam pesquisas em física teórica e experimental, quase todas elas universidades federais ou estaduais, equipara-se aos bons centros de ensino do mundo ocidental. Hoje em dia, nossos melhores alunos podem realizar seus trabalhos de mestrado e doutorado aqui mesmo. Muitos pesquisadores brasileiros são internacionalmente reconhecidos e receberam prêmios por suas pesquisas. A física brasileira moderna, não obstante as dificuldades que um país como o nosso apresenta, é de nível internacional. Em outras áreas, como por exemplo na pesquisa agropecuária ou alguns ramos da genética, os pesquisadores brasileiros estão na vanguarda. Embora tenhamos ainda um caminho longo a ser percorrido, a atmosfera encontrada por Feynman em sua visita ao Brasil, felizmente, já não existe mais. 


(Ilustração: Raphael - The School of Athens – detail)

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

INTIMIDADE, de Alexei Bueno




Caros mortos do Rio de Janeiro,

Quando eu ando nas ruas em que andastes

Não são meus olhos tão somente engastes

Dos vossos, vendo o que vistes primeiro?



Estar vivo, este fato, não é um só

E mesmo, se se exclui cenário e nome?

Não é a mesma uma boca quando come

E dois pés na calçada erguendo o pó?



Não será isso enfim a vida eterna,

Livrar-se da memória e andar nas ruas?

Ser só olhos com pés, as íris nuas

De tudo o que das horas nos governa?



Não morremos? Talvez nunca tenhamos

Deixado o mesmo ponto intacto e alheio.

O que é o agora? O que é? Como está cheio

Este jardim deserto onde uivam ramos.



(Os resistentes) 


(Ilustração: Salvador Dalí) 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

OS AMANTES APROVADOS, de Agustina Bessa-Luís


u   É uma história simples. No ano de mil novecentos e trinta e tal, vivia na vilazinha de ..., no litoral, uma viúva respeitável, gorda, de olhar brando e bandós a picarem de cinzento. Tinha tido onze filhos, dos quais nove sobreviviam, e toda a aventura da sua vida fora a de, como mulher dum magistrado pobre, ter percorrido o país no decurso duma carreira anónima e sem fé. Triste, talvez não. O marido fora um tipo folgazão, sociável em extremo e que fizera grandes amigos, dos quais muitos também sobreviviam. A sua morte, acontecida em pleno vigor físico e quando esperava a promoção a juiz de segunda classe, provocara uma crispação de pânico nos nervos dos colegas e de toda uma pandilha fervorosa dos vícios de província, que são a má-língua, a política e o interesse - essas fístulas crónicas dos homens de quarenta. Os órfãos, de princípio socorridos com uma generosidade exaltada demais para permanecer fiel, foram aos poucos deixados sob a mão de Deus Padre, para que se criassem. Sabia-se que a mãe era senhora séria e de bons princípios, e isto sossegava - vamos saber porquê! - as consciências. Tinha ela na terra uma casa, pouco mais que um sobrado de pescadores, e para lá se arrumou com as crianças. Duas, protegidas por padrinhos, teriam estudos pagos e donativos de vestuário; os outros cresceram um pouco à sorte, no hábito dessa tragédia ensossa, pasmada, fria, da burguesia pelintra. Podia-se dizer que existiram entre a escola e o emprego na burocracia, sem conhecerem a cor do dinheiro. Entalados numa engrenagem de dívidas, promessas, esmolas, de caridade sopesada até à última gota na balança dos que em cada dádiva ou tutela parecem endossar a batata podre dum conceito inútil, da moralidade mais rapada e sem brilho, adquiriram todos uma sobreposição de personalidade que os fazia muito idênticos. Assim, todos sabiam dissimular e nunca manifestavam a tempo qualquer sentimento; reagiam por aprendizagem, não por instinto, e na sua alma tudo estava pregado e postiço como a lua no teatro do próprio Shakespeare. 


Com o tempo e a colocação do mais velho como prefeito dum colégio, mudaram-se para uma sobreloja, deixando o bairro excêntrico em cujas valetas os detritos de peixe atraíam grandes moscas verdes. Viviam pior que nunca, mas tinham conseguido o que se chama "ganhar pé". Possuíam um relativo crédito e, comprovada a sua penúria, os seus antecedentes duma honesta monotonia e o facto abonatório de que tinham vivido bem, a sociedade apaziguara-se um tanto e concedera-lhes certos direitos. Por exemplo, as raparigas traziam golas de velha pele sarnenta, sem que o mundo se risse, porque, nelas, os atributos da classe, o luxo, eram por assim dizer uma aquisição histórica. Admitiam-nas na intimidade superficial das pessoas finas, homenageando-as com a confiança de lhes pedirem favores como os de passarem bilhetes de rifa ou recortarem florinhas de papel para o Dia do Capacete. Enfim, podia-se afirmar que tudo corria bem, se algo de muito estranho e de imprevisto não abalasse a comovida paz dos benfeitores que são a multidão em geral quando se sente despreocupada. Constou que a viúva tinha um amante. Tínhamos dito que era ela mulher gorda, grisalha, de olhar brando, mas não seria bem assim. Era de facto um tanto pesada, com um andar cambaleante de quem sempre calçou chinelos de pasta ou de corda ou de seleiro; não vestia mais do que batas de algodão preto e parecia bastante mal, mesmo aos domingos, sobretudo aos domingos, quando, na missa das nove, se ajoelhava na sua almofadinha de setineta vermelha, ao lado do "altar das Dores". Tinha um rosto inexpressivo do muito que a fadiga se sobrepusera às emoções, e não parecia gostar de rir nem de chorar, nem sequer de observar os outros nessas ocupações. De resto, possuía ainda belos olhos, e a sua frieza de maneiras dava-lhe uma graça um tanto hostil que infundia ternura, depois de ter provocado receio. Era frequente vê-la atravessar a ruazinha de velho macadame, para vir arrastar pelo braço um ou outro filho que se filiava na trupe de garotio para, no átrio do cinema, esmolarem a quantia bastante à entrada. Fugiam-lhe para, no poleiro da geral que era como uma assembleia de jurados apinhados em degraus rente às coxias, uivairem ameaças contra "o cínico" daqueles filmes do Tim Mac Coy de belos dentes que se rolava num fosso da pradaria em chamas. Ai a linguagem desses ladrões de gado, desses sheriffs, dessas "cavadoras de oiro" que sugeriam fome e água de lavar pratos! "Labora num grande erro" - diziam, explicando a intriga e a traição, enquanto, com um rumor de vento infiltrado por fendas de pedreiras, ardia um rastilho de dinamite. Os rapazes precipitavam-se, no intervalo, até à rua, engalfinhavam-se possessos de coragem, imitando tiros; e iam, na lojeca próxima, comprar um pão encortiçado, de domingo, com talhadas de marmelada, ou cartuchos de paciências ou pastilhas Naval que chupavam laboriosamente, mostrando-as na língua uns aos outros, para suscitar invejas. 

- Raça! - exclamava a proprietária, que vinha, por condescendência, ajudar na loja, porque a frequência era aos magotes, e ondas de garotos embatiam contra os mostradores onde melavam os "caramilos" junto das onças de tabaco. Era uma mulher oxigenada, vistosa, cheia de ambições mal encabadas no seu ofício de mestra de meninos. Detestava as crianças, as suas roupetas com cheiro de peixe e de surro, as suas chancas tachadas, as suas sacolas de serrapilheira com flores pintadas e que a chuva esborratava; aplicava nelas o ódio pelo mundo de chateza e de frio que conhecera desde a infância, quando, deportada do seu nabal onde o pai sorvia cotos de cigarro sentado nos montículos de pilado, se fizera letrada. Casara ali na vila com um tipo mesquinho que usava manguitos de cotim e pesava quilos de arroz com a proficiência dum Shylock. A filha, bonita como ela, criara-a para outra classe, outro meio, outra vida. Quantas lágrimas raivosas, esses vestidos de folhos, essas sombrinhas japonesas! Quantos favores equívocos, nauseados, em que acumulava tédio e impotência, para que ambas, na Assembleia, sorrissem um pouco duramente, como quem pressente ter-se enganado na porta e no lugar, e espera a todo o momento uma advertência, uma rectificação! 

- Raça! - dizia, quando estendia sobre o balcão, procurando não tocar as mãozinhas onde o ranho seco escamava, os confeitos ou os pães varridos de farinha, muito lambidos, cor de cinza. E, em particular, a sua aversão atingia os filhos da viúva. Desprezava-os porque os achava pobres, raquíticos, enfadonhos, sérios; porque tinham hábitos finos, viviam disciplinados como formigas, usavam com naturalidade os seus trapos polidos com benzina, e porque as crianças abastadas os tratavam com deferência. Alguma vez a sua Loló, magra e frenética criatura de olhos verdes, brincara nos jardins dos palacetes, usara as trotinetes dos pequenos burgueses, fora conduzida a casa pelos seus criados? Loló percorria as ruas perseguida por uma turba de catraios de fralda ao vento que se dispersavam quando ela parava para os reconhecer - o que não acontecia nunca. Mesmo assim, denunciava-os a eito, a mãe se incumbia de distribuir reguadas nos nós dos dedos, ferindo, esfolando, com um olhar mau, nublado, e que fazia gritar os menos estóicos antes que se aproximasse deles. Ah, aquela viúva fora por muito tempo um espinho enterrado no centro do peito, fora um pouco como uma sombra projectada sobre um écran onde a paisagem corre! Admirava-lhe as belas maneiras, o ar sóbrio, sem sorrisos, porém sem amargura; invejava-lhe a tranquilidade com que parecia existir entre os filhos, que cresciam feiotes e pelados como ratos dos bueiros. De súbito, apareciam todos grandes, as raparigas com a sua beauté du diable, os seus vestidos inesperadamente à moda, tentando destinos, vivendo; os rapazes tinham agora boas relações, faziam carreira, modestamente, sem importunar, seguros. Também a sua Loló, delgada e cheia de it, dançava um pouco o charleston e namorava um miliciano. Mas as outras crianças, sempre as mesmas, com o seu cheiro de marisco na pele, com os seus narizes lacrados de monco amarelo, com os seus gritos à Tarzan, a sua bola de trapo, essas não cresciam. Continuava a sacudir-lhes as orelhas com varadas, enquanto lhes encaixava as medidas de peso ou de lenha. E um sol tão branco arredondando-se sobre o mar! E o trepidar dos carros no Largo de S. Tiago, na Avenida, na Praça! Meu Deus, meu Deus! Havia uma lampadazinha sobre a mesa onde corrigia exercícios, à noite, e a luz amarela escorria nimbando a sua cabeça oxigenada. Os frequentadores do cinema viam-na, e, na impressão imediata dos cartazes onde se contorciam mulheres como chamas, comentavam: "Parece uma vamp... a Brigitte Helm... a Marlène..." E ela sentia na pele, à flor da sua pele branca, empoada e levemente flácida, que falavam dela, e como. 

Foi ela a primeira a compreender e a revelar que a viúva tinha um amante. Era um rapaz de vinte anos, muito estranho, magrinho, e que leccionava num colégio; chamava-se David, tinha vindo das Ilhas, sem recursos, para estudar. Era interno, portanto, e passara a pagar com explicações aos primeiros ciclos as suas propinas. A viúva conhecia-o como colega dos filhos mais velhos, há bastante tempo, vira-os nas mesmas manhãs de Verão saírem juntos para o banho, com a toalha enrolada presa pelo cinto do maillot. Nos dias de aniversário, David sempre mandava um postal ilustrado às meninas - sempre garotas ricas entre flores, em áleas de jardins, e cores muito brilhantes. Ele era tristonho, quase bronco quando desconfiava de alguém ou simplesmente não conseguia adaptar-se; mas, familiarizando-se, rasgada a sua casca de timidez feroz, de orgulho mais feroz ainda, era maravilhoso. Havia nele uma coragem de sinceridade que nem era maculada pela consciência de virtude que a razão nisso podia surpreender. Na sua aceitação de tudo o que acontece, de tudo o que triunfa, de tudo o que perde, de tudo quanto é inútil ou sem estética, de tudo quanto é belo para vexame da nossa própria alma, havia paz. Às vezes sorria, quando todos se agrupavam fazendo traduções do latim, repuxando uma beiça sinistra sobre o queixo. Sorria, com o livro aberto diante dele, como se seguisse uma imagem deveras cheia de interesse e de humor. 

- Em que pensa? - perguntava-lhe a viúva. Ela sorria também. 

- É tão tolo viver exactamente assim - dizia David. - Dividimos o tempo e emparedamo-nos dentro dele. Mas não há tempo, o tempo não existe, o tempo é apenas memória. Olhe as violetas nessa jarra... murcharam, mas não têm a recordação da sua frescura, portanto existem num tempo único - compreende? 

- Compreendo. - E ela já não sorriu. O rosto cansado estremeceu, crispou-se, e voltou a adquirir a sua fria brandura habitual. Sim, tinha compreendido. Durante muitos dias esgotou-se em imobilizar-se dentro dela própria, em rastejar em torno da sua alma, para que ela não pressentisse quanto a vigiava, vendo se dormia ou velava; durante muitos meses viveu metodicamente entre a sua pequena gente escura, questionadora, mesquinhamente ansiosa e que se atraiçoava de quarto para quarto, de prato para prato. Julgava-se sossegada e igual a outrora, surpreendia-se a rir jovialmente, porque tal libertação a exaltava e lhe dava uma espécie de febril felicidade. Depois, recaía de súbito; David obcecava-a até ao ódio, queria que ele partisse, inventava planos para o afastar, para deixar de o receber, para não o ver mais; achava-o sem importância, voltava a rir-se da sua cegueira, a acusar-se de insensatez, de malignidade, de vileza. Rezava muito, mas, na sua prece, no mais ardente voto, brotava-lhe do coração o nome dele, mergulhava numa prostração terna, exasperada e submissa por fim. Adoecia e renascia da doença como a serpente que se desprende da própria pele e se esgueira vigorosamente para fora do ninho bolorento. Assaltavam-na escrúpulos que se traduziam em manifestações de sacrifício; o seu amor pelos filhos parecia recrudescer, escravizava-se a eles, contente se dominava a própria impaciência e o juízo desfavorável que o carácter deles, as suas pegas, a sua nulidade, o seu egoísmo desamparado e impotente lhe provocavam. Matava-se lidando inútilmente, infeliz quando percorria a casa e via que todas as coisas estavam correctas nos seus lugares, que a poeira vogava no ar sem poisar; tudo era tranquilo e mesmo, sob a mesa da sala, os gatos dormiam indiferentes a travessuras no velho tapete inglês muito rapado nas bordas como um caminho trilhado de roda dum capinzal. Sentava-se um momento, com as mãos no regaço, como alguém que espera num banco de estação; a imobilidade doía-lhe, agitava-a uma saudade de lágrimas que não podia chorar, e tudo o que até ali vivera lhe parecia importuno na sua memória. Punha-se a pensar então em David, o sangue pulsava- -lhe devagarinho nas têmporas, ela sorria como uma rapariga. Pensava nele, encontrando sofrimento e alívio porque ele lhe aparecia de repente tão distante como alguém já morto, como alguém a quem, à força de dedicar sentimentos e projectos, nos aproximou da indiferença e da erosão da alma. A vida como que estancava, ficava-se distraída a olhar pela janela o céu frio de Primavera que tão bem lhe sugeria toda a vila desenhada numa luz apática, com sombras que cresciam rapidamente pelos muros, com campos e noras, flores miniaturais balançando-se imperceptìvelmente como cabecinhas senis; e os areais onde se compunham redes, escurecidos aqui e além pelos detritos do mar, com recortes de babugem que, devagar, se evaporava. O céu frio de Primavera sobre a vila! Sobre as gavinhas tenras cheias ainda de penugem cinzenta; sobre os talos novos de roseira que, partidos, vertiam seiva doce; sobre os campos, sobre os campos... Frios, dum verde inacabado, com terra fria, fechada, hostil ainda, por debaixo. Esse arrepio agudíssimo do fim de tarde de Primavera comunicava-se-lhe. E, trémula, retomando a custo o movimento, a vontade, voltava a apropriar-se de si mesma. 

Quando falaram as vozes, dizendo que David e ela eram amantes, isso apenas se explicaria pelo pressentimento de catástrofe a que são sensíveis as colectividades. Viam-se pouco, nunca se tocavam; mas havia decerto neles uma exaltação de paixão que o próprio silêncio, a própria ausência e aparência de serem estranhos, confidenciava. Os filhos passaram a abandonar mais a casa, a tratá-la com uma cerimónia constrangida. Alguns choravam um pouco pela nostalgia da simbólica mãe; de resto, fora sempre o símbolo de mãe que eles tinham amado, e não a ela. Não a ela. Outros faziam-se mais viris com essa realidade que no fundo da alma os vexava; e torturavam-na. 

- É verdade? É verdade? - diziam. - Sempre fomos bons filhos, a pobreza não nos fez corar nunca, bruníamos as nossas roupas ao serão para te poupar canseira, desprezámos as raparigas para não te abandonarmos. Destruíste tudo isso. Já não podemos ter confiança, porque tu nos cuspiste na cara. 

- Mãe, mãe! - diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente, destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice!... 

E o próprio David, que sentenciava com uma voz em que se entrevia mais o prazer da audácia que a intenção de a poupar a ela: 

- Não há acções canalhas, mas almas canalhas. A mesma acção vivida por almas diferentes não é a mesma acção. 

Ela suspirava, levava a mão ao rosto como se fosse defender uma pancada. Não compreendia; não compreendiam. E, quando David encostava a cabeça nos seus joelhos, o silêncio denso os envolvia, o silêncio amassado com todo o vociferar da rua onde brincavam crianças e se descompunham peixeiras, com todos os soluços de agonia dos que morriam na solidão terrível daqueles a quem o próprio pecado abandonou, ela encontrava felicidade. Um dia, constou que se tinham matado. Ela aparecera com duas balas no peito, no soalho do seu pequeno quarto onde se respirava essa miséria estéril dos que apenas duram, apenas dormem, apenas sonham, apenas mentem. Castiçais de vidro, sobre a cómoda, diante de imagens baratas de arraial de peregrinação, tinham velhos pingos de estearina cobertos de pó. David respirava ainda. 

O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede sempre a redenção. Tudo passou depressa; portanto, poucos anos depois, a vizinhança só banalmente se referia à viúva, aos filhos que tinham partido ou porque casavam, ou porque os vitimara uma febre, um desastre, ou porque a província os devorara como pequenos burocratas. Só quem fielmente se lembrava de tudo era a loira mestra de meninos, que continuava a corrigir problemas na sua mesa iluminada pelo candeeirinho que o tempo entortara e cujo abat-jour ficara sujo e pingão como um saiote de bailarina de guignol. A luz amarela fazia resplandecer os seus cabelos, e ainda os frequentadores do cinema olhavam, com um interesse logo extinto, o recorte da sua cabeça na vidraça. Mas já não faziam comentários. 

- Raça! - murmurava a mulher, riscando ferozmente de vermelho os cadernos cheios de borrões cor de violeta e onde a tripa da tinta se desenhava. Loló engordara e já não tinha olhos verdes, já não usava sombrinhas japonesas; já não tinha pretendentes vestidos de flanela branca como Conrad Nagel, como o Barrymore; casara com não sei quem, desia aos tropeções a sua escada estreitinha, agarrando-se de lado ao corrimão, com uns velhos sapatos debruados de pelúcia e que ganhavam pulgas - oh, esses sapatos de lã que criavam pulgas alimentavam a comunicabilidade calaceira, morosa, feliz, com mais do que uma vizinha! -, ia escolher papos-secos na padaria, fazendo-lhes estalar a crosta entre os dedos, espremendo razões de protesto em todas as coisas que aconteciam. 

- Raça! - dizia ela também. A mãe, ainda oxigenada, corajosa ainda porque se pintava sobre as rugas, sobre as feições desfeitas, desprendera-se muito dela. Às vezes pensava na viúva, em David, no seu amor que sentia vivo, penetrado no próprio céu frio de Primavera, fluindo de todas as coisas, mesmo as mais ingratas e inexpressivas coisas do mundo. Tinham-se amado - eles. Naquela casa de sobreloja onde habitara a viúva, não podia ver ninguém correr um estore, abrir uma janela, atirar fora os restos dum cinzento, sem que julgasse que tudo estava a acontecer ainda. Que, no quarto, que recebia luz duma clarabóia do corredor, dois seres tão verdadeiros como só podem ser os que compreendem que a morte participa da vida e a completa, agonizavam, sem tragédia, sem veemência, porque a tragédia, a veemência, não é dos que cumprem, mas dos que apenas os imitam. Os cartazes expostos no passeio do cinema, as mulheres serpentinas de olhar vidrado ou fulgurante, as paixões estereotipadas dum mundo senil, esgotado, impaciente! E aquela criatura, sem juventude, que vestia batas de chita, que era talvez um tanto estúpida e sem importância, mas cuja fealdade, limitação, pobreza, mereciam uma aprovação através do amor! Assim sentia a mestra de meninos que continuava a distribuir aos domingos pacotinhos de pastilhas Naval, reclamando o dinheiro certo na palma da mão para a dispensarem dos trocos. Os garotos apinhavam-se, repeliam-se, esmagavam-se contra o balcão, ela dizia "raça!", entediada e, apesar de tudo, lírica, porque não abdicava dos seus cabelos loiros, da sua solenidade, e porque, enfim, em cada esteta falhado há um lírico que se procura. 

Esta é a história simples dos que chamamos os amantes aprovados. Esquecíamo-nos de dizer que David sobreviveu. Que lhe aconteceu depois, não sabemos. Ou antes, na última vez que fomos à cidade, encontrámos na rua um homem que se lhe assemelhava muito; os cabelos eram mais raros e usava óculos. De resto, caminhava muito depressa e não o pudemos observar muito. Parecia um desses eruditos pobres que vivem num saguão, dormem sobre uma arca e eles próprios cozinham um arroz esturrado numa máquina de petróleo. Era bem ele, com o seu olhar retraído, fino, persistente, mas não podemos jurar. O mundo está cheio de pessoas que se parecem e todas se continuam, sim, todas se continuam. De qualquer modo, o David que nós conhecemos há muito... Mas nada temos já a acrescentar a esta história. 





(Ilustração: Fernando Botero)