domingo, 28 de junho de 2020

ELE A TOMA COMO TOMARIA A FILHA, de Marguerite Duras






Desde que ele tinha enlouquecido com seu corpo, a menina não sofria mais com o fato de tê-lo, com sua magreza, e estranhamente nem mesmo sua mãe se preocupava tanto quanto antes, como se ela também tivesse descoberto que esse corpo afinal era plausível, aceitável, como qualquer outro. Ele, o amante de Cholen, acha que o crescimento da menina foi afetado pelo excesso de calor. Descobre que compartilha esse parentesco com ela. Diz que todos esses anos passados aqui, nessa latitude insuportável, fizeram que ela ficasse como as moças dessa região da Indochina. Que tem os pulsos finos como elas, os mesmos cabelos bastos que parecem ter absorvido toda a força do corpo, longos como os delas, e principalmente essa pele, essa pele de todo o corpo que vem da água da chuva que as pessoas aqui guardam para o banho das mulheres e das crianças. Ele diz que as mulheres da França, em comparação, têm a pele do corpo grossa, quase áspera. Diz ainda que a alimentação pobre dos trópicos, composta de peixes e frutas, também contribui. E também os algodões e as sedas das roupas, sempre largas essas roupas, que flutuam sobre o corpo, livre, nu. 

O amante de Cholen se entrega à adolescência da menina branca a ponto de se perder. O gozo que tem com ela a cada noite toma conta de seu tempo, de sua vida. Quase nem lhe fala mais. Talvez ache que ela não entenderia mais o que ele lhe diria sobre ela, sobre esse amor que ainda não conhecia e sobre o qual não sabe dizer nada. Talvez tenha descoberto que nunca se falaram, a não ser nos gritos do quarto à noite. Sim, acho que ele não sabia, ele descobre que não sabia. 

Ele a olha. Com os olhos fechados ainda a olha. Respira seu rosto. Respira a criança, com os olhos fechados respira sua respiração, o ar quente que sai dela. Ele percebe cada vez menos claramente os limites desse corpo, que não é como os outros, ele não acaba, no quarto continua a crescer, as formas ainda não se detiveram, a todo momento estão se fazendo, ele não está ali apenas onde se vê, está em outro lugar também, se estende além da vista, para o jogo, para a morte, ele é maleável, parte-se inteiro no gozo como se fosse grande, adulto, sem malícia, com uma inteligência assustadora. 

Eu olhava o que ele fazia comigo, como se servia de mim, e nunca tinha pensado que se podia fazer assim, ele ia além de minha esperança e em consonância com o destino do meu corpo. Assim me tornei sua filha. Ele também tinha se tornado outra coisa para mim. Eu começava a reconhecer a suavidade indizível de sua pele, de seu sexo, para além dele. A sombra de outro homem também devia atravessar o quarto, a de um jovem assassino, mas eu ainda não sabia, nada disso ainda aparecia a meus olhos. A de um jovem caçador também devia atravessar o quarto, mas quanto a esta, sim, eu sabia, às vezes ele estava presente no gozo e eu dizia a ele, ao amante de Cholen, eu lhe falava de seu corpo e de seu sexo também, de sua inefável suavidade, de sua coragem na floresta e nos rios nas embocaduras das panteras negras. Tudo se somava ao seu desejo e o levava a me possuir. Eu tinha me tornado sua filha. Era com a filha que ele fazia amor todas as noites. E às vezes ele fica com medo, de repente se preocupa com a saúde dela como se descobrisse que ela é mortal e lhe ocorresse a ideia de que podia perdê-la. Que ela seja tão franzina, de repente, e às vezes ele também fica com um medo brutal. E essa dor de cabeça também, que tantas vezes lhe traz agonia, lívida, imóvel, uma compressa úmida sobre os olhos. E esse desgosto também que, às vezes, ela sente pela vida, quando a acomete, quando pensa em sua mãe e de repente grita e chora de raiva diante da ideia de não poder mudar as coisas, fazer a mãe feliz antes que morra, matar os que lhe fizeram mal. Com o rosto junto ao dela, ele toma suas lágrimas, esmaga-a contra si, louco de desejo por suas lágrimas, por sua raiva. 

Ele a toma como tomaria a filha. Tomaria a filha da mesma maneira. Ele brinca com o corpo da filha, vira-o, afunda nele o rosto, a boca, os olhos. E ela, ela continua a se abandonar na direção exata que ele tomou quando começou a brincar. E de súbito é ela que suplica, não diz o quê, e ele, ele lhe grita que se cale, ele grita que não a quer mais, não quer mais gozar com ela, e de novo os dois presos, aferrolhados um ao outro no pavor, e então esse pavor se dissolve novamente, eles cedem a ele uma vez mais, nas lágrimas, no desespero, na felicidade. 

Ficam calados durante a noite. No carro preto que a leva de volta ao pensionato, ela apoia a cabeça em seu ombro. Ele a abraça. Diz a ela que é bom que o navio da França venha logo, que a leve embora e que eles se separem. Ficam calados durante o trajeto. Às vezes ele pede que o motorista dê uma volta ao longo do rio. Exausta, ela adormece junto dele. Ele a desperta com beijos. 



(O Amante; tradução de Denise Bottmann)


(Ilustração: John Currin)




quinta-feira, 25 de junho de 2020

DESILUSÃO, Patativa do Assaré

  



Como a folha no vento pelo espaço

Eu sinto o coração aqui no peito,

De ilusão e de sonho já desfeito,

A bater e a pulsar com embaraço.



Se é de dia, vou indo passo a passo

Se é de noite, me estendo sobre o leito, 


Para o mal incurável não há jeito,

É sem cura que eu vejo o meu fracasso.



Do parnaso não vejo o belo monte,

Minha estrela brilhante no horizonte

Me negou o seu raio de esperança,



Tudo triste em meu ser se manifesta,

Nesta vida cansada só me resta

As saudades do tempo de criança.





(Ilustração: José Rosário - voltando da pesca)





segunda-feira, 22 de junho de 2020

CORRESPONDÊNCIA DAS ARTES, de Latuf Isaias Mucci




O sintagma “correspondência das artes” remete ao intertexto que as artes travam entre si, mesmo se cada arte estrutura uma linguagem peculiar, que expressa, no entanto, o mesmo ser humano, que a produz e a recebe. Unidas por um traço comum, enquanto linguagem humana, as artes definem-se, na clave do crítico italiano Luigi Pareyson, por três verbos-chave: “a arte como fazer, como conhecer e como exprimir”. Entendida numa definição abrangedora, a arte torna-se corpus da reflexão estética, mesmo se cada linguagem artística abrange questões específicas. Dessa forma, a teoria da arte, aplicada sobre determinada arte, repercutirá no âmbito de outras artes. A iteratividade entre as artes encontra no poema “Correspondances”, de Baudelaire, o paradigma, de onde derivam, igualmente, o poema sobre as vogais, de Rimbaud, e a descrição do órgão dos licores, efetuada por des Esseintes, protagonista do romance À rebours, do francês decadentista Joris-Karl Huysmans. Remonta à noite dos tempos, a utopia de uma arte total, aquela que englobasse todas as artes-irmãs: o Romantismo de Wagner e o Barroco erigiram a ópera como a arte suprema, eleição confirmada, desde o começo do século XIX, quando a música recebe o cetro de arte-rainha. 

Aqui, insere-se, ainda, a questão da hierarquia das artes: qual seria a mais perfeita das artes? Mais uma vez, à música é conferida por Schopenhauer o primado, porque ela “nunca exprime o fenômeno, mas a essência íntima, o interior do fenômeno, a própria vontade”. Também Nietzsche, Wackenroder, E.T.A Hoffmann, Edgar Allan Poe, Walter Horatio Pater, Eugène Delacroix, entre outros, consideram a música como a arte suprema. Norbert Lynton parafraseia o antiquíssimo adágio, cunhado por Horácio – “ut pictura, poesis”- (“como a pintura, assim é a poesia”), quando enuncia: “ut musica, pictura” (“como a música, assim é a pintura”). Já para Théophile Gautier, bem como para Da Vinci, a pintura constitui-se a fonte mais profunda da experiência artística. Segundo Eisenstein, ao cinema cabe o trono na realeza das artes, ao passo que para Johan Joachin Winckelman a escultura resume todo o gênio da humanidade. De acordo com Gotthold Ephraïm Lessing, a literatura ocupa o primeiríssimo lugar na escala dos valores artísticos. 

Além da questão da hierarquia das artes, emerge, de igual modo, o problema da busca da pureza por parte de cada arte, pureza almejada em duas instâncias: de um lado, há o desiderato da pureza com relação às outras manifestações artísticas, e, de outro lado, o afã da pureza a respeito das demais atividades humanas, o que se define como arte pela arte (l’art pour l’art, art for art’s sake, ars gratia artis) ou esteticismo. Por seu turno, a procura da pureza por parte de cada arte, que se quer autônoma, absoluta, autárquica, implica a libertação, ao máximo, da interferência das outras artes; porque não existe, ou não deveria existir, entre as artes, qualquer meio de transição, cada arte revela-se pura por si, mantendo, cada uma, o máximo da sua própria essência, o que impossibilitaria, contrariamente à utopia romântica, a realização da arte total. Tornando-se absoluta, a arquitetura, por exemplo, deixaria de ser elemento de ordenação de outras artes, não concedendo, portanto, e.g., lugar algum nem à escultura nem à pintura. 

Descartada a classificação de artes “menores” e artes “maiores”, considerada ou não a hierarquia entre as artes, que depende, precisamente, do gosto individual e, até certo ponto, da apetência coletiva, toma-se como postulado, no tópico da correspondência das artes, que as linguagens da arte, mesmo possuindo meios próprios de expressão, marcam-se por traços comuns, que articulam a complexa questão da interferência entre as diversas formas artísticas. Tratar, pois, a consanguinidade das artes significa problematizar alguns aspectos estéticos que, se não encontram uma solução definitiva, ilustram, entretanto, o intricado discurso das artes. 

Embora circunscrevendo o campo específico de cada arte, o próprio meio de expressão pode conduzir a correspondência entre as artes, mediante, inclusive, a sinestesia que, operando uma alquimia de percepções, desloca o sentido privilegiado por determinada linguagem artística. Na transação das percepções, as artes absorvem ou assimilam, de certa maneira, elementos da linguagem peculiar de cada uma. Paradigmal, o soneto Voyelles, de Arthur Rimbaud, onde as letras suscitam imagens cromáticas, revela o mito de uma mistura. Onde teria o genial poeta de Les illuminations ido buscar a cor de cada vogal? No livro em que aprendeu a ler, ironizou alguém, que se recusava à iluminação do poema, enamorado do espectro solar e de desvairadas paletas… 

O recurso sinestésico, que pode dar o tom das correspondências entre as artes, há de situar-se, precisamente, na instância metafórica, ao invés de operar uma contaminação entre as diversas linguagens artísticas, que defenderiam, em prol da utópica pureza de cada arte, uma autonomia do meio específico de expressão. Destarte, a sinestesia ultrapassa a retórica da analogia, enriquecendo a experiência estética. Quando, por exemplo, nesta linha de reflexão, Friedrich Smetana denomina “Poema sinfônico” uma de suas belas composições musicais, estará falando metaforicamente, assim como, transferido para a teoria literária, o sintagma leitmotiv, tirado do código musical, configura-se como verdadeiro tropo. No elenco de recursos sinestésicos, ou metafóricos, citem-se, ainda: azul em ré sustenido, afinação entre as artes, concerto das artes, sintonia das artes, ensaio de pinceladas, ensaio fotográfico, arquitetura do texto, quadros rítmicos, leitura do quadro, cenas do cinema… Para o célebre crítico de arte alemão Arnold Hauser, a pintura vitoriana é “pintura ‘literária’ por excelência, uma arte híbrida (…)”. Dialogando com os críticos literários norte-americanos René Wellek e Austin Warren, o crítico de artes italiano Mario Praz tece considerações assaz pertinentes para a correspondência das artes: “(…) Pode-se sustentar que há uma parecença geral entre todas as obras de arte de uma época, que imitações posteriores confirmam denunciando elementos heterogêneos: que há uma unidade latente ou manifesta nas produções do mesmo artista, qualquer que seja o campo onde experimenta a mão; e que as tradições exercem influência diferenciadora não só entre uma e outra arte, mas também dentro da mesma arte, pelo que nada existe na alegação de Wellek e Warren (…) capaz de desencorajar-nos da busca de um vínculo comum entre as diversas artes”. 



{bibliografia} 



Luigi Pareyson, Os problemas da estética, 23, 30 (1984); Charles Baudelaire, Oeuvres complêtes, 8 (1980); Joris-Karl Huysmans, À rebours (1884); Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, 345 (s.d.); Horácio, Arte poética (s.d.); Nikos Stangos, Conceitos da arte moderna, 24 (1991); Latuf Isaias Mucci, A poética do esteticismo (1994); Arthur Rimbaud, Oeuvres poétiques complètes, 50 (1980); Mario Praz, Literatura e artes visuais, 54-55 (1982). 



(Ilustração: escultura de Santos Lopes - olá guardador de rebanhos)



sexta-feira, 19 de junho de 2020

ΘΟΛΟΥΡΑ / NUBLADO / MISTY, de Katerína Gógou




Σηκώθηκε και τους ετοίμασε τέλεια το πρωινό

με μαθηματικές κινήσεις.

Τούς χαιρέτησε: Στο καλό σας αγαπάω μην αργήσετε

απ’ το σοφά γυαλισμένο κεφαλόσκαλο.

Τίναξε το χαλί έπλυνε φλιτζάνια και τασάκια

μιλώντας μόνη της.

Έβαλε το φαί στην κατσαρόλα κι άλλαξε το νερό στα βάζα.

Ένιωσε έξυπνη στο μανάβικο

χαμογέλασε συγκαταβατικά στην κομμώτρια

αλλοτριώθηκε στην αποθήκη καλλυντικών

κι αγόρασε εκδόσεις «ΚΥΤΤΑΡΟ» τη «ΣΥΝΕΙΔΗΣΗ ΤΗΣ

ΓΥΝΑΙΚΑΣ ΣΤΟΝ ΑΝΔΡΙΚΟ ΚΟΣΜΟ».

Έστρωσε το τραπέζι την ώρα

που χτύπαγε το κουδούνι

όμορφη έξυπνη κι ενημερωμένη στα κοινά.

Το παιδί κοιμήθηκε

κι ο άντρας την ακούμπησε από πίσω.

Αυτή χαχάνισε όπως είχε δει σ’ ένα διαφημιστικό

και του ‘πε με χοντρή σεξουαλική φωνή: Έλα

Την πήδηξε τελείωσε και ξεράθηκε.

Η γυναίκα σηκώθηκε με προσοχή για να μην τον ξυπνήσει

έπλυνε τα πιάτα μιλώντας μόνη της

άνοιξε τα παράθυρα να φύγει η τσικνίλα.

Έκανε τσιγάρο άνοιξε το βιβλίο και διάβασε:

«… μόνο όταν οι γυναίκες απαιτήσουν ενεργητικά

θα υπάρξει ελπίδα γι’ αλλαγή»

και πιο κάτω:

ΝΑΙ ΑΛΛΑ ΤΙ ΕΚΑΝΕΣ ΣΗΜΕΡΑ ΧΡΥΣΗ ΜΟΥ

ΤΙ ΕΚΑΝΕΣ ΣΗΜΕΡΑ;

Σηκώθηκε με προσοχή

πήρε το καλώδιο της ψήστρας

το ‘σφιξε καλά στο λαιμό του άντρα της

κι έγραψε κάτω από την ερώτηση

του φεμινιστικού κινήματος: ΕΠΝΙΞΑ ΕΝΑΝ.

Ύστερα πήρε το 100 και μέχρι να ‘ρθουν

κοίταξε το ωροσκόπιό της στη ΓΥΝΑΙΚΑ



Tradução de Wagner Mourão Brasil [*]:


Levantou-se e preparou um café da manhã perfeito

com movimentos matemáticos

despediu-se: Amo vocês não se atrasem

na soleira bem polida da porta.

Sacudiu o tapete lavou copos e cinzeiros

conversando consigo mesma.

Colocou a comida na panela e trocou a água dos vasos.

Sentiu-se inteligente na mercearia

alienada na loja de cosméticos

sorriu condescendente para o cabeleireiro

e comprou “A CONSCIÊNCIA DA MULHER EM UM MUNDO DE HOMENS”, edições Célula.

Estava arrumando a mesa

linda inteligente e bem-informada

quando a campainha da porta soou.

A criança dormia

e o homem apalpou-a por trás.

Ela gargalhou como viu em um comercial

e com voz sensual e áspera lhe disse: vem

Ele a fodeu e depois se secou.

A mulher se levantou com cuidado para não despertá-lo

lavou a louça conversando consigo mesma

abriu a janela para que o cheiro saísse

Acendeu um cigarro abriu o livro e leu,

“... Somente quando as mulheres exigirem energicamente

haverá esperança de mudança”,

e embaixo:

“SIM, MAS O QUE FIZESTE HOJE QUERIDA

O QUE FIZESTE HOJE?”

Levantou-se com cautela

pegou o fio do secador

apertou-o em torno do pescoço do marido

e escreveu sob a pergunta

do movimento feminista: ENFORQUEI UM.

Então discou 197 e até que chegassem

ela leu o horóscopo em “MULHER”.



Translation from Jack Hirschman:


She got up and prepared breakfast perfectly

with movements of mathematical precision

greeted them: I’ll love you, so long, don’t be late

at the wisely polished doorstep.

Shook out rug washed cups and ashtrays

talking only to herself.

Put food in the saucepan and changed the water in the vase.

Felt sage at the grocery

smiled patronizingly at the hairdresser’s

felt alienated at the cosmetic warehouse

and bought “THE CONSCIENCE OF WOMAN IN A MAN’S WORLD” by Cell editions.

Was setting the table

beautiful clever and well-informed

when the doorbell rang.

The kid was asleep

and her husband touched her from the behind.

She giggle like she’d seen in an ad

and in a coarse sexual voice said to him: come

He fucked her came and dried up.

The woman rose careful not to wake him

washed the dishes talking to herself

opened the window to let the smell out

lit a cigarette opened the book and read,

“…Only when women actively demand

will there exist hope for a change”,

and a little further down:

YES BUT WHAT DID YOU DO TODAY DARLING

WHAT DID YOU DO TODAY?

She rose with caution

took the barbecue cord

tied in round her husband’s neck

and wrote under the feminist

movement’s question: I strangled one.

Then she dialed the police and until they arrived

read her horoscope in “WOMAN”.




[*] Para esta tradução fiz uso também do texto em grego, utilizando vários tradutores online. Comparando a versão original com a inglesa, do livro Three Clicks Left, traduzido por Jack Hirschman, dei preferência ao texto original onde me pareceu mais apropriado.


(Ilustração: Valquíria Cavalcante)




terça-feira, 16 de junho de 2020

O LEGADO DE NEGROS MUÇULMANOS QUE SE REBELARAM NA BAHIA ANTES DO FIM DA ESCRAVIDÃO, de André Bernardo





Salvador, 25 de janeiro de 1835. Foi num sobrado de dois andares, na Ladeira da Praça, que teve início o maior e mais importante levante urbano de africanos escravizados já registrado no Brasil. Era por volta de 1h da madrugada quando um grupo de 50 africanos, das mais diferentes etnias, ocupou as ruas da capital baiana. O levante entrou para a história como a Revolta dos Malês. 

É um episódio que evidencia a importância política que os africanos de religião muçulmana tiveram na história do Brasil - com um legado pouco conhecido que perdura até hoje. 

"Na Bahia de 1835, os negros que pertenciam a um dos grupos étnicos mais islamizados da África Ocidental eram conhecidos como malês", explica o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). "O termo malê deriva de imale, que significa muçulmano, na língua iorubá", decifra o autor do livro Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835. 

Do velho sobrado, os rebeldes partiram em várias direções. Um grupo avançou para a Praça do Palácio, onde ficava a cadeia da cidade. Lá, os revoltosos planejavam tomar as armas dos guardas e libertar Pacífico Licutan, o Bilal, líder malê que estava preso para pagar as dívidas de seu senhor. Os demais rebeldes enveredaram por ruas, becos e vielas, batendo nas portas e janelas das casas e convocando pessoas escravizadas e também libertos a se unirem a eles em combate. Cerca de 600 revoltosos, muçulmanos e não muçulmanos, responderam ao chamado e participaram do levante. 

O plano de libertar Pacífico Licutan, porém, fracassou. Munidos de lanças, espadas e porretes, os amotinados se viram obrigados a recuar diante de policiais armados com pistolas e baionetas. Desnorteados, fugiram da cidade e pediram ajuda aos escravos do Recôncavo, o coração do escravismo baiano. 

Não apenas ficaram sem o apoio como foram encurralados em Água de Meninos, local do Quartel da Cavalaria. Foi ali que se deu a batalha final. Antes do nascer do sol, 73 rebeldes já tinham tombado mortos e mais de 500 presos, explica a antropóloga Lídice Meyer Pinto Ribeiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), autora do artigo Negros Islâmicos no Brasil Escravocrata. 

Até os africanos que não participaram do levante de 1835 sofreram perseguição policial. 

Um decreto assinado pelo chefe da Polícia, Gonçalves Martins, autorizava qualquer cidadão a dar voz de prisão a escravos, muçulmanos ou não, que estivessem reunidos em número de quatro ou mais. Reunir gente em casa, por exemplo, passou a ser terminantemente proibido. 

Outra medida obrigava os senhores a "converter" seus escravos ao catolicismo. Se não o fizessem em seis meses, seriam multados. Por medo de retaliações, os muçulmanos passaram a renegar sua religião. Mais do que isso: quando não era praticada às escondidas, a religião sofria aculturação com práticas católicas. Tudo isso explica a ausência de descendentes de escravos seguidores do islã. 

"A vitória vem de Alá!", dizia o fragmento em árabe encontrado dentro de um amuleto malê confiscado pela polícia. No entanto, a tão esperada vitória não chegou. Os corpos dos 73 rebeldes mortos foram jogados em valas comuns de um cemitério local. Os mais de 500 presos foram interrogados, julgados e punidos. 

As penas variavam de açoites para os escravos a deportação para os libertos. Quatro deles receberam a pena máxima: enforcamento. As autoridades mandaram construir forcas novas no Campo da Pólvora, em Salvador. Mas se esqueceram de contratar um carrasco para fazer o serviço. Na falta de um, os condenados foram mesmo fuzilados, em praça pública, por um pelotão improvisado. 

Ao longo da primeira metade do século 19, muitos dos africanos muçulmanos traficados para a Bahia - em sua maioria haussás, etnia que prevalece na região hoje equivalente ao norte da Nigéria - eram soldados capturados durante uma jihad, ou "guerra santa" em árabe. 

"Eles se diferenciavam dos demais por serem alfabetizados em árabe e por terem conhecimentos de matemática", explica Ribeiro. 

Na África Ocidental, diversos reinos viviam em guerra no Califado de Sokoto, um Estado muçulmano fundado em 1809 pelo califa Usman dan Fodio e que ocupou um vasto território no norte da atual Nigéria. Inimigos em sua terra natal, os "prisioneiros de guerra" viraram aliados em solo baiano. 

"Como eles pertenciam a diferentes etnias, o islã proporcionou a esses muçulmanos um sentimento de fraternidade. Tornou-se, portanto, um elemento civilizatório que transformou heterogeneidade étnica em homogeneidade religiosa", explica o antropólogo Juarez Caesar Malta Sobreira, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). 

A religião islâmica foi determinante até na escolha do dia 25 de janeiro para o início do levante. Para os católicos, a data é dedicada a Nossa Senhora da Guia e faz parte da festa do Senhor do Bonfim, uma das mais tradicionais da Bahia. Mas, para os muçulmanos, naquele ano, era dia de comemorar o Laylat al-Qadr, uma das festas islâmicas que precedem o fim do Ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos. 

Para se proteger do inimigo, os guerreiros islâmicos confeccionaram amuletos com trechos do Corão escritos em árabe, como "Ajude-nos contra aqueles que rejeitam a fé!" e "Resgatai-nos desta cidade cujo povo é opressor!", em pedacinhos de papel guardados em bolsas de couro costuradas à mão. Cada talismã, acreditavam, "protegia" de uma arma: os laya contra flechas e os maganin karfe contra facas. 

Na Salvador de 1835, a Revolta dos Malês foi protagonizada por pessoas escravizadas que viviam em áreas urbanas, que não cortavam cana em engenhos, nem passavam a noite em senzalas. Muito pelo contrário. Desfrutavam de relativa liberdade, podiam até trabalhar fora e recebiam uma pequena quantia pelos seus serviços. Os "negros de ganho", como eram conhecidos, exerciam os mais variados ofícios: de barbeiro a artesão, de alfaiate a vendedor. 

Com o que ganhavam, pagavam uma "cota" diária ao senhor. Com o que sobrava, arcavam com as despesas de comida, moradia e vestuário. "Alguns economizavam para comprar sua carta de alforria. Outros, depois de libertos, chegaram a acumular patrimônio maior que certos brancos", explica Ribeiro. 

Para manter viva a crença no profeta Maomé, os malês se reuniam em lugares afastados e a portas fechadas para fazer orações, ler passagens do Corão e celebrar festas do calendário muçulmano. "Assim como o candomblé, o islã não era totalmente livre para ser praticado. Senhores de escravos e chefes de polícia tanto toleravam quanto reprimiam", observa Reis. 

O artigo 276 do Código Penal de 1830, aliás, proibia "o culto de outra religião que não seja a do Estado". Mesmo assim, os alufás, nome dado aos dirigentes religiosos e que, em iorubá, significa sacerdote de Ifá, transmitiam seu conhecimento aos mais jovens. "Os adeptos do islã dedicavam as sextas-feiras, dia sagrado para os muçulmanos, à prece e à meditação. Nesse dia, usavam roupas brancas, costume islâmico que se generalizou na Bahia", observa Sobreira. 

No dia do levante de 1835, os malês saíram às ruas vestidos de abadá, espécie de camisolão folgado na cor branca. Nos autos de devassa, as autoridades policiais se referiam à bata islâmica como "vestimenta de guerra". Mas a indumentária malê não estaria completa sem o filá, espécie de gorro que teria dado origem ao turbante branco usado no candomblé e na umbanda. 

A influência do povo malê na cultura popular brasileira, porém, vai além do turbante e do abadá. Segundo Reis, traços do islã podem ser notados na cultura, no vocabulário e até na culinária. Difundida no interior de Sergipe e Alagoas, a dança do parafuso ou "dança da assombração", por exemplo, seria de origem malê. Segundo a tradição, na calada da noite, os africanos se disfarçavam de fantasmas e faziam a dança para espantar os capitães do mato. 

No vocabulário, o historiador cita o exemplo de "mandinga": "Dicionarizado como feitiço, o termo vem da bolsa de mandinga, amuleto muçulmano que os africanos introduziram no Brasil". Na culinária baiana, outra tradição islâmica também cruzou o Atlântico: o arroz de haussá. 

Prato favorito do escritor Jorge Amado, é feito sem sal, óleo ou tempero e cozido com bastante água. Na hora das refeições, os adeptos do islã só consumiam alimentos preparados por mãos muçulmanas, não ingeriam carne de porco e praticavam jejum no Ramadã. 

No aspecto religioso, o parentesco entre muçulmanos e candomblecistas também se faz presente. Na mitologia iorubá, Obatalá é o nome dado ao deus supremo, "aquele que fecunda", abaixo apenas de Olorum, o criador do universo. No sincretismo brasileiro, ganhou o nome de Oxalá ou Orixalá, orixá associado à figura de Jesus Cristo. 

O historiador José Antônio Teófilo Cairus, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), aponta outra hipótese para a origem etimológica do nome Oxalá: a expressão árabe Insha'Allah, que significa "se Deus quiser". 

A antropóloga Lídice Ribeiro dá outras pistas da associação entre as duas religiões: o símbolo da meia-lua atrelado aos orixás, a substituição do colorido das vestes africanas pelo branco das roupas islâmicas e até a prática ritual de tirar os sapatos antes das reuniões. "Apesar das perseguições, o islã negro continuou presente no Brasil até os dias de hoje", diz. 



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas - castigo público)



sábado, 13 de junho de 2020

COMO LLENARTE, SOLEDAD / COMO PREENCHER-TE, SOLIDÃO, de Luis Cernuda







Cómo llenarte, soledad,

sino contigo misma...



De niño, entre las pobres guaridas de la tierra,

quieto en ángulo oscuro,

buscaba en ti, encendida guirnalda,

mis auroras futuras y furtivos nocturnos,

y en ti los vislumbraba,

naturales y exactos, también libres y fieles,

a semejanza mía,

a semejanza tuya, eterna soledad.



Me perdí luego por la tierra injusta

como quien busca amigos o ignorados amantes;

diverso con el mundo,

fui luz serena y anhelo desbocado,

y en la lluvia sombría o en el sol evidente

quería una verdad que a ti te traicionase,

olvidando en mi afán

cómo las alas fugitivas su propia nube crean.



Y al velarse a mis ojos

con nubes sobre nubes de otoño desbordado

la luz de aquellos días en ti misma entrevistos,

te negué por bien poco;

por menudos amores ni ciertos ni fingidos,

por quietas amistades de sillón y de gesto,

por un nombre de reducida cola en un mundo fantasma,

por los viejos placeres prohibidos

como los permitidos nauseabundos,

útiles solamente para el elegante salón susurrado,

en bocas de mentira y palabras de hielo.



Por ti me encuentro ahora el eco de la antigua persona

que yo fui,

que yo mismo manché con aquellas juveniles traiciones;

por ti me encuentro ahora, constelados hallazgos,

limpios de otro deseo,

el sol, mi dios, la noche rumorosa,

la lluvia, intimidad de siempre,

el bosque y su alentar pagano,

el mar, el mar como su nombre hermoso;

y sobre todo ellos,

cuerpo oscuro y esbelto,

te encuentro a ti, tú, soledad tan mía,

y tú me das fuerza y debilidad

como el ave cansada los brazos de la piedra.



Acodado al balcón miro insaciable el oleaje,

oigo sus oscuras imprecaciones,

contemplo sus blancas caricias;

y erguido desde cuna vigilante

soy en la noche un diamante que gira advirtiendo a los hombres,

por quienes vivo, aún cuando no los vea;

y así, lejos de ellos,

ya olvidados sus nombres, los amo en muchedumbres,

roncas y violentas como el mar, mi morada,

puras ante la espera de una revolución ardiente

o rendidas y dóciles, como el mar sabe serlo

cuando toca la hora de reposo que su fuerza conquista.



Tú, verdad solitaria,

transparente pasión, mi soledad de siempre,

eres inmenso abrazo;

el sol, el mar,

la oscuridad, la estepa,

el hombre y su deseo,

la airada muchedumbre,

¿qué son sino tú misma?



Por ti, mi soledad, los busqué un día;

en ti, mi soledad, los amo ahora.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:


Como preencher-te, solidão,

senão contigo mesma...



Desde criança, entre os pobres abrigos da terra,

quieto num canto escuro,

buscava por ti, flamejante grinalda,

minhas auroras futuras e furtivos noturnos,

e em ti os vislumbrava,

naturais e precisos, também livres e fiéis,

à minha semelhança,

à tua semelhança, eterna solidão.



Perdi-me logo pela terra injusta

como quem busca amigos ou ignorados amantes;

dessemelhante no mundo,

fui luz serena e anelo desenfreado,

e na chuva sombria ou no sol luminoso

queria uma verdade que a ti atraiçoasse,

esquecendo em meu afã

que as asas fugitivas sua própria nuvem criam.



E ao velarem-se meus olhos

com nuvens sobre nuvens de outono extravasado

a luz daqueles dias em ti mesma entrevistos,

neguei-te por bem pouco;

por pequenos amores nem certos nem fingidos,

por quietas amizades de poltrona e gesto,

por um nome de reduzida calda num mundo fantasma,

pelos velhos prazeres proibidos

como pelos permitidos e nauseantes,

úteis apenas para o elegante salão discreto,

em bocas de mentira e palavras de gelo.



Por ti encontro agora o eco da antiga pessoa

que fui,

que eu mesmo manchei com aquelas traições juvenis;

por ti me encontro agora, constelados achados,

limpos de outro desejo,

o sol, meu deus, a noite rumorosa,

a chuva, intimidade de sempre,

o bosque e sua exalação pagã,

o mar, o mar como seu nome formoso;

e sobre todos eles,

corpo escuro e esbelto,

encontro a ti, tu, solidão tão minha,

e tu me dás forças e debilidade

como à ave cansada os braços da pedra.



Debruçado ao balcão fito insaciável o fluxo das ondas,

ouço suas escuras imprecações,

contemplo suas brancas carícias;

e suspenso em berço vigilante

sou na noite um diamante que gira advertindo os homens,

pelos quais vivo, ainda quando não os vejo;

e assim, deles distante,

já esquecidos seus nomes, amo-os em grande quantidade,

roucos e violentos como o mar sabe sê-lo

quando chegada a hora do repouso que sua força conquista.



Tu, verdade solitária,

transparente paixão, minha solidão de sempre,

és um imenso abraço;

o sol, o mar

a escuridão, a estepe,

o homem e seu desejo,

a irada multidão,

que são eles, senão tu mesma?



Por ti, minha solidão, busquei-os um dia;

em ti, minha solidão, amo-os agora.





(Ilustração: Gerardo Sacristán Torralba - dibujo de desnudo masculino en escorzo)





quarta-feira, 10 de junho de 2020

O AVIADOR, de Florbela Espanca






No veludo glauco do rio lateja fremente a carícia ardente do Sol; as suas mãos doiradas, como afiadas garras de oiro, amarfanham as ondas pequeninas, estorcendo-as voluptuosamente, fá-las arfar, suspirar, gemer como um infinito seio nu. Ao alto, os lenços claros, desdobrados, das gaivotas, dizendo adeus aos que andam perdidos sobre as águas do mar... Algumas velas no rio, manchazinhas de frescura no crepitar da fornalha. Mais nada. 

Um óleo pintado a chamas por um pintor de génio. As tintas flamejam ainda húmidas: são borrões vermelhos as colinas em volta; doirado, o indistinto turbilhão da casaria ao longe. 

A vida estremece apenas, pairando quase imóvel, numa agitação toda interior, condensada em si própria, extática e profunda. A vida, parada e recolhida, cria heróis nos imponderáveis fluidos da tarde. 

Os homens, saindo de si, borboletas como salamandras que a chama não queimara, abrem os braços como asas... e pairam! Acima do óleo pintado a chamas por um pintor de génio ascende... o quê? Outra gaivota?... Outra vela?... O Sol debruça-se lá do alto e fica como uma criança que se esquecesse de brincar no trágico assombro do nunca visto! Outra gaivota?... Outra vela?... 

Tudo em volta flameja. O pincel de génio dá os últimos retoques ao cenário de epopeia. As tintas têm brilhos de esmaltes. São mais vermelhas as colinas agora, mais doirada a cidade distante. 

Os filhos dos homens, cá em baixo, deixam cair nos campos a enxada que faz nascer o pão e florir as rosas; os pescadores largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios, e os filhos dos homens mais duramente castigados, os que habitam o formigueiro das cidades, param nas suas insensatas correrias de formigas, e todos voltam a face para o céu. 

O que anda sobre o rio? Outra gaivota?... Outra vela?... 

Lá em cima, a formidável apoteose desdobra-se no meio do pasmo das coisas. É um homem que tem asas! E as asas pairam, descem, redopiam, ascendem de novo, giram, latejam, batem ao sol, mais ágeis e mais robustas, mais leves e mais possantes que as das águias. É um homem! A face enérgica, vincada a cinzel, emerge, extraordinária de vida intensa, na indecisão dos contornos que lhe fazem, vagos e pálidos, um vago pano de fundo; a face e as mãos. É um Rembrandt pintado por um titã. 

Os músculos da face adivinham-se na força brutal das maxilas cerradas. Nos olhos leva visões que os filhos dos homens não conhecem. Os olhos dele não se veem; olham para dentro e para fora; são de pedra como os das estátuas e veem mais e mais para além do que as míseras pupilas humanas. São astros. 

É um homem! Deixou lá em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregaram ao nascer; deixou lá em baixo todas as algemas, todos os férreos grilhões que o prendiam, toda a suprema maldição de ter nascido homem; deixou lá em baixo a sua sacola de pedinte, o seu bordão de Judeu Errante, e, livre, indómito, sereno, na sua mísera couraça de pano azul, estendeu em cruz os braços que transformou em asas! 

Não há uma sombra de nervosismo, uma crispação, naquele perfil de medalha florentina, naquela face moldada em bronze, um bronze pálido que lateja e vibra; não há uma ruga naquele olímpico modelo de estatuária antiga, recortado no oiro em fusão da tarde incendiada. O seu coração, ao alto, é mais uma onda do rio, embaladora, rítmica, na sensualidade da tarde; é uma voz que sussurra, que ele sente sussurrar em uníssono com outra voz que sussurra mais áspera, mais rude —, a voz do coração de aço que, sob o esforço das suas mãos, palpita e responde. 

O Sol ascende mais ao alto, vai mais para além, tem agora um fulgor maior, e, sobre o bronze vibrante das mãos - triunfantes, vai pôr a mordedura da sua boca vermelha. São brutais aquelas mãos, formidáveis de esforço, assombrosas de vontade! Esqueceram as carícias e os beijos, o frémito dos contactos inconfessáveis, o trémulo tatear das carnes moças e cobiçadas; deixaram lá em baixo os gestos de doçura e piedade, o aroma das cabeleiras desatadas, a forma dos rostos desejados moldados nas suas palmas nervosas, todas as posses onde se crisparam e os desejos para que se estenderam; perderam as curvas harmoniosas, a tepidez dolente e macia de preciosos instrumentos de amor! Contraíram-se em garras e, no alto, crispadas sobre a presa, são elas que algemam, são elas que escravizam, que subjugam as asas cativas! 

E, lá no alto, o homem está contente. Como quem atira ao vento, num gesto de desdém, um punhado de pétalas, atira cá para baixo uns miseráveis restos de oiro que levou; do seu oiro de lembranças de que se tinha esquecido. O homem está contente. 

E a apoteose continua. O pintor de génio endoideceu; atira sem cambiantes, sem sombras, sem esbatidos, traços como setas que se cravam; arroja brutalmente todos os vermelhos e os oiros da sua paleta, e pinta como quem esmaga em gestos tumultuosos de demente. Donde vem tanto oiro? Prodígio! Miragem! Deslumbramento! Até as velas sangram e as asas, peneiradas de cinza, das gaivotas se encastoam de rutilantes pedrarias raras. É irisado agora o veludo glauco do rio; o sol atira-lhe a rir, como um menino, pródigo e inconsciente, as suas últimas gemas. As colinas, em volta, são mãos abertas de assassino, e o casario, chapeado de luz, é um manto de púrpura rasgado, cujos farrapos vão prender-se ainda nas labaredas do horizonte a arder. O homem está contente. Atira as asas mais ao alto, escalando os cimos infinitos, já fora do mundo, na sensação maravilhosa e embriagadora de um ser que se ultrapassa! Sente-se um deus! As mãos desenclavinham-se, desprendem-se-lhe da terra onde as tem presas um derradeiro fio de oiro... e cai na eternidade. 

Tanto azul!... As filhas dos deuses, ondinas, sereias, nereidas, princesas encantadas, acodem todas pressurosas. Há um remoinho de cabeleiras de oiro; os braços são remos de marfim abrindo as águas; trazem nos seios nus a curva doce das ondas, no riso os misteriosos corais das profundidades; arrastam mantos verdes tecidos de algas, como rendas, onde se prendem estrelas; todo o luar prateado que à noite faz fulgir o rio, trazem-no em diadema nos cabelos. 

Falam todas a um tempo: Que foi?... Que aconteceu?... e a fala é um arrepio de ondas... 

Em volta das asas mortas, são como flores desfolhadas em redor de um esquife negro. E olham... 

— É mais um filho dos homens? — pergunta uma, estendendo o braço como uma grinalda de açucenas. 

Mas a de cabeleira mais fulva, onde o oiro foi mais pródigo e se aninhou mais vezes, responde num sussurro: 

— Não. Não vês que tem asas? 

— É então um filho dos deuses? — pergunta outra. 

— Não. Não vês que sorri? 

E cercam-no, contemplam-no, vão mais perto, quase lhe tocam... 

Há um remoinho mais febril nas cabeleiras de oiro; gemem mais fundo, mais melodiosas, as vozes miudinhas, e os mantos, como serpentes, em curvas donairosas, enlaçam-se uns nos outros. 

— Tem os cabelos negros como aquele que tombou no mar do Norte... 

A de cabeleira mais fulva, onde o oiro foi mais pródigo e se aninhou mais vezes, acerca-se ainda mais... estende o braço a medo... ousa tocar-lhe num gesto mais leve, mais brando que um suspiro... abre-lhe as pálpebras descidas, no ar recolhido de quem abre duas violetas... 

Em volta fremem mais fundo as ondas dos seios; as mãos abrem os dedos como faúlhas de estrelas; uma lânguida sereia, divinamente branca, eleva o veludo branco dos braços como duas ânforas cheias. 

— Que tem dentro? — pergunta Melusina. 

— Estrelas? — diz uma filha de rei. 

— Não; duas gotas de água verdes, límpidas, translúcidas, serenas. Venham ver... 

Num turbilhão, entrelaçando as rendas subtis dos mantos roçagantes, confundindo os raios de sol nascente das cabeleiras fulvas, debruçam-se todas, e, no fundo, no seio translúcido das duas gotas de água, veem redopiar as palhetas de oiro das cabeleiras de oiro, veem fulgir os raios luarentos dos diademas, e todas as gotas de água dos seus olhos vogam no fundo, como estrelinhas, tão límpidas, claras, serenas elas são. 

Olham-se extáticas todas as deusas das águas; faz-se mais brando o ciciar das vozes; os gestos são finos como hálitos; os mantos verdes empalidecem, são cor das pupilas agora. 

Uma segreda: 

— Vamos deitá-lo lá no fundo, naquele leito de opalas irisadas que o mar do Oriente nos mandou... 

Diz outra: 

— Vamos pô-lo naquela urna de cristal que é como um túmulo aberto donde se avista o céu,.. 

— Vamos envolvê-lo na mortalha daquele farrapo de luar de Agosto que as ondas nos trouxeram da planície... — murmura outra. 

E há vozes, escorrendo como um óleo divino, que ciciam: 

— Vamos espalhar sobre ele, como pétalas de oiro, os nossos cabelos loiros... 

—Vamos selar-lhe a boca com o coral cor-de-rosa das nossas bocas em flor... 

— Dêmos-lhe, para ele descansar a cabeça, as brandas vagas dos nossos seios nus... 

— Para o deitar, eu sei de um sítio onde desabrocham, entre espumas de neve, rosas mais pálidas que as que eu tinha no meu palácio distante — diz uma filha de rei. 

— Eu sei de um túmulo de areia onde a areia é de prata... 

— Eu descobri a gruta toda em pérolas cor-de-rosa, onde fica a madrugada... As ondas ali não cantam, poderá dormir descansado... 

— Levemo-lo para aquele berço em forma de caravela que destas praias partiu e se perdeu no mar das Tormentas... 

O frémito das vozes fazia-se maré alta... as pálpebras violetas palpitavam... 

Foi então que uma delas, que tinha no olhar um pouco da nostálgica tristeza humana, que mostrava ainda sinais de algemas nos pulsos de seda branca, que trazia nos cabelos uma vaga cinza de crepúsculo, murmurou, enquanto num gesto, onde havia ainda esfumadas reminiscências de gestos maternais, lhe aconchegava ao peito a mísera couraça de pano azul: 

— Deixem-no... Talvez lhe doam as asas quebradas... 

Silêncio... 

E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na eternidade como se fora um filho dos deuses. 



(Máscaras do destino) 


(Ilustração: Vitório Pereira Resende (in memoriam) - foto de autor não identificado) 



domingo, 7 de junho de 2020

A DESCOBERTA, de Oswald de Andrade




Seguimos nosso caminho por este mar de longo

Até a oitava da Páscoa

Topamos aves

E houvemos vista de terra

os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha

Quase haviam medo dela

E não queriam por a mão

E depois a tomaram como espantados

primeiro chá

Depois de dançarem

Diogo Dias

Fez o salto real

as meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduas

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmos

Não tínhamos nenhuma vergonha.





(Poesias Reunidas. 1971)



(Ilustração: Oscar Pereira da Silva (1865-1959) - Desembarque de Cabral – 1922)



quinta-feira, 4 de junho de 2020

VADICO, de Edilberto Coutinho




Matou no peito, encheu o pé com vontade e, pimba, gol. 

Sim, diz o moço da televisão, ele foi um craque. Observem esta sequência, senhores telespectadores. Falta perigosa. Vadico toma distância. Uns poucos passos, apenas. Vejam só. Quando corria para a bola, a torcida fazia um coro de ôôôôôô que terminava numa explosão de gol. Este jogo foi em Paris. Cartazes nas ruas anunciavam: 

VÁ AO PARC DES PRINCES VER PELÉ ET COMPAGNIE 

Pelé e Companhia. Os companheiros. Bastavam Pelé e Vadico para pagar o espetáculo. Depois dos aplausos habituais ao rei Pelé, a multidão se divertia com os chutes de Vadico. Os franceses adoraram e consagraram Vadico. Est-ce que cet homme a centpieds? O Cem Pés. Aí nasceu o apelido. O Cem Pés, no filme, após esse jogo na França, exibe as canelas cheias de cicatrizes. Denunciadoras, diz o locutor, da violência característica dos zagueiros que o enfrentavam. 

O Cem Pés, um ídolo. Um gênio do futebol. Vadico, sendo entrevistado, diz que não senhor, não trocaria essa vida com a bola por nenhuma outra. As cicatrizes? Ele as olhava, diz o locutor, como um prêmio amargo pelas tantas vezes em que foi atingido. Não havia de culpar a vida? 

Mas eu nem tenho jeito pra contar uma história de forma organizada. Bola pra frente. Na televisão, aquele moço: 

Onde estão os ídolos do passado? Muitos, esquecidos, sós, abandonados. Como vivem? O que fazem? Fomos encontrar Vadico, o grande artilheiro que brilhou ao lado de Pelé, sentado num banco de parque, triste e só, aparentando pelo menos mais 20 anos além de sua idade real. Enquanto a nova média esfria, estou vendo tudo de novo pelo televisor do bar. Repetem o filme sobre a carreira de Vadico. Sentei aqui e pedi a primeira média com pão e manteiga. Molhei o pão no café com leite e consumi logo tudo. Então, pedi uma segunda xícara. Sorvendo devagarinho. Agora já está meio fria. Mas não importa. Pedi mesmo para ter o direito, sem o portuga do garçom me aporrinhar, de permanecer no balcão mais tempo. Todo o tempo do programa. 

É preto e branco o Fantástico Show da Vida (nome do programa a cores, com a moça lindinha na abertura, levantando o braço e mostrando o sovaquinho raspado). Sou um velho perdido na bosta da vida, com catarata numa das vistas. Parece que o mundo todo virou um quarto escuro. Todas as tardes estou num desses bancos do parque que o filme mostra. A vida de Vadico, bem? Tanta glória e agora essa penúria dele, igualzinho a mim, vivendo feito um molambo. Tem uma estátua, nesse parque, que só consigo enxergar bem na claridade do dia. É o corpo de uma jovem (parece a moça ousada do programa de televisão) e, quando a tardinha vem caindo, o corpo dela vai ficando monstruoso, e vou embora para o meu quarto. Um aposentado me aconselhou a não andar por aí à noite, e estou ainda esperando tratamento do Instituto para o meu olho direito. 

Velho é um peso morto, eu disse para o homem ao meu lado, aquele dia no parque. Observei quando ele se aproximou e sentou junto de mim. A boina escura, a camiseta amarelecida sob a camisa estampada (e rota?), a calça de casimira surrada e a botina de solado de pneu formando a figura dele. Assim fiquei conhecendo Vadico. Ele chegou a me contar algumas daquelas histórias, em que eu nem podia acreditar. Contar histórias é ocupação de velho. Depois vi na televisão que era tudo verdade. Numa tarde chuvosa de São Paulo (é a voz do moço arrumado da televisão), terminou seu futebol. Não era jogador de se poupar. Teve mais de 12 anos de carreira, artilheiro de ataques famosos. Jogou com Garrincha, Pelé, Gérson. Vadico não fugia da luta. Nesta sequência, observem, senhores telespectadores, atenção, viu a bola, vindo pelo alto, pulou antes do zagueiro. Ganhou a bola (o filme mostra), mas caiu sobre o joelho. Vejam, Vadico permanece imóvel, gemendo de dor. 

Num rápido exame, o médico do clube garantiu que aquilo não era coisa grave. O craque precisava apenas de alguns dias de recuperação. Mas esses dias se transformaram nos piores de sua vida. Um mês depois, estava decidida a operação. O tratamento à base de infiltrações e exercícios havia fracassado. 

Um moleque parou na porta do bar, me olhou e berrou que velho tem cheiro de égua. Levantei o braço, num gesto ameaçador, mas muito fraco e lento, o diabinho ainda repetiu de égua, de égua, e saiu correndo. O portuga sorriu, me parece que sorriu, o puto, mas que importa esse safado? Forço bem a vista para ver o que aconteceu a Vadico. Mas agora, na televisão, passam uma propaganda. Ao Sucesso, com Hollywood. E chegou para perto essa mulherzinha morena, animada, as pestanas muito lambuzadas de uma tintura azul — acendo o meu Continental, Preferência Nacional — mas sem nenhuma outra pintura no rosto tenso. O que a menina vai querer?, pergunta o portuga. 

Esse homem era o máximo, ela diz, olhando para o televisor. Pede um conhaque Dreher. 

Dois meses depois da operação, continua o narrador do filme, pouca coisa havia mudado. O joelho do craque continuava dolorido e a perna sem movimentos, apesar dos exercícios todos. O tempo passava para ele, que tinha a sua única alegria na lembrança dos tempos gloriosos. Aí aparece Vadico, este de agora que conheci, um velhinho desprezado como eu (embora tenha muito menos idade): 

— Eu vivia fazendo gols. Eram tantos que perdi a conta. Sei apenas que foram muitos. Pena que acabaram. 

Em seguida não se vê mais a figura de Vadico, mas se ouve a sua voz, enquanto mostram ele em ação: chutando, driblando, fazendo embaixadas. Depois, uma série de gols. Verdadeira pintura, coisa linda de se ver. Um quadro. Às vezes, diz o locutor, a valentia lhe custava meses de atividade. A torcida quer uma presença constante. 

Ficaram me dando esperanças, diz Vadico, até que um dia veio o médico e, finalmente, revelou: Você não pode mais jogar. Para o seu próprio bem, o médico me disse, é melhor encerrar a carreira. Sim, o médico confirmou, a contusão pode se agravar a ponto de aleijar o seu joelho. Aí eu já estava mesmo com o joelho mutilado por todas aquelas injeções e as operações. Doía quando andava, a qualquer flexão da perna. Compreendi que era impossível resistir. Tinha que parar. Tenho que ter coragem, pensei. Outro conhaque, a mulherzinha pediu, com a voz tremida, e vi que devia ter chorado, o rosto dela num estado deplorável. 

Era mesmo uma coragem enorme, diz o narrador da vida de Vadico, que lhe permitia entrar na área sob os pontapés dos zagueiros. Depois — com a mutilação — a coragem, ainda, de abandonar tudo aquilo que foi sua vida, e que lhe deu muitas glórias, até deixá-lo inutilizado, com a perna sem mexer. Primeiro, foi o pontapé violento por trás, na panturrilha. Aquele beque era um cara muito parrudo (é a voz de Vadico, no filme), um cavalo forte. Um grosso com a bola, é claro. Vi que era fácil passar por ele, e não pude resistir aos dribles. O público aplaudiu, gritou meu nome. Cheguei a fazer aquelas embaixadas — o filme mostra ele controlando a bola, sem deixar cair, várias vezes seguidas, com o peito do pé esquerdo, uma série brilhante de embaixadas — e a galera vibrou. Gritaram mais alto meu nome. O filme mostra, o Maracanã inteiro uma só voz: va-di-co, va-di-cooo. Faltou humildade naquele cara, Vadico prosseguiu. Eu sei, todo jogador tem mesmo horror de ser feito de bobo. Porque, além dos dribles, das embaixadas, vai receber também o riso de gozação dos colegas, do público. 

Era um boa-pinta, hein?, diz a mulher tomando um longo gole do seu conhaque, tremendo boa-pinta, um macho muito do bem-apanhado. É claro, continua Vadico, que o jogador que parte para o bloqueio direto a um adversário — seja atacante, homem de meio-campo ou zagueiro-de-área — corre sempre o risco de ser driblado, e até de ser humilhado, feito de bobo. Mas é um risco que significa uma prova de dedicação ao time e não humilhação pessoal. Mas foi humilhação pessoal o que sentiu aquele zagueiro. Adiei, o nome dele. Desapareceu. Não sei por onde andará, hoje um velho igual a mim, outro que deve estar perdido por aí (a voz vai se tornando muito baixa, quase que não se ouve ele falar), mais um expulso da vida. Mas é isso (ouve-se melhor agora): na manobra do bloqueio, o primeiro jogador tem que se expor no drible. Se ele conseguir tomar a bola, tudo bem. Se for driblado, pode se irritar e até perder a cabeça. Como aquele becão, o tal Adiei. Foi aí que veio a bola dividida, e minha perna ficou. A mulherzinha deposita com ruído o copo no balcão: Merda de vida. 

Há três dias encontrei Vadico pela última vez. Vi você na televisão, eu disse, alegremente, quando ele se aproximou de mim no banco do parque. Estava tomando café e vi tudo pelo televisor do bar. Muita gente viu. Contar histórias é ocupação de velho, Vadico disse. 

Eu não sei contar direito, mas é isto que conto: estão repetindo agora o filme e estou tomando café de novo e assistindo de novo, e tem essa mulher que já mandou uns quatro conhaques, está de porre e não para de chorar. E repetem o filme por causa do que Vadico fez ontem. (Se essa puta porrista parasse com o faniquito dela, eu ia me sentir melhor, mas ela tem razão: merda de vida.) 

O único patrimônio que ele guarda com carinho, diz o mocinho bonito da televisão (esse aí, é claro, não cheira a égua velha), é esta bola (a bola enche toda a tela do televisor), e Vadico, entrevistado no seu quartinho pequenino e limpo, diz, foi um chute, que dei nela, que deu o tricampeonato ao nosso time. Me lembro muito bem. Mal o juiz apitou o final da partida, me abracei a essa boneca aí e disse, é minha, e está comigo até hoje. 

Acordo todos os dias muito cedo. Vadico diz logo depois, e saio pra rua, que está sempre meio deserta, tem só uns poucos trastes, que vão madrugar no trabalho, ou essa gente que vem da noite. Não há muito o que fazer, moço, a mesma coisa todos os dias, a mesma coisa sempre. A gente procura nas pessoas que passam ou nas notícias dos jornais assunto para conversa durante o dia no parque (aí o filme mostra ele sentado no banco do parque; Vadico sozinho visto ao longe, e umas crianças que passam e olham com desagrado para a figura dele, meio recostado no banco). Mulher, moço? Quando acabou o futebol, elas acabaram também. Sim, houve algumas delas, mas parece que eu não levava muito jeito com elas não (um riso meio forçado, que vira uma careta), é, pois é, com as zinhas deu zebra. E a mulher do bar, quase aos gritos: Mais um, porra. O portuga veio com a garrafa e ela: Manda. O garçom entortou a garrafa, o líquido escorrendo em conta-gotas, e a puta, impaciente: Capricha. Pode caprichar. Pegou na mão do homem, entortando mais: Assim. Aí tá bom. E emborcou a nova dose até a metade. 

Hoje Vadico é notícia em todos os jornais e tem essa bruaca que não para de beber e de chorar. Tinha que dar zebra, né, Vadico?, com umas tipas como essa aí ao lado, o que você queria, meu amigo? E agora é o final do filme, que repetiram inteirinho porque ontem, como está dizendo agora esse moço aí na televisão, o famoso Cem Pés se libertou com as próprias mãos. E foi a primeira coisa que vi, hoje, nas manchetes dos jornais espetados nas bancas: a notícia de que Vadico, o famoso ídolo do passado, o célebre Cem Pés — um Deus dos estádios — tinha se matado, cortado o pescoço com uma navalha. 

Assim que o filme terminou, eu paguei e me levantei para sair. Foi aí que a mulher arriou a cabeça sobre o balcão do bar, empurrando num gesto involuntário o copo de conhaque, ao mesmo tempo em que, abrindo a mão, libertou um frasco pequenino, sem tampa, de onde rolou uma pilulazinha verde. Só uma. As outras, o diabo da criatura tinha engolido com o conhaque. 



(Os cem melhores contos brasileiros



(Ilustração: Margarita Farré - Decisão por Penalty)




segunda-feira, 1 de junho de 2020

GAROA DO MEU SÃO PAULO, de Mário de Andrade





Garoa do meu São Paulo,

- Timbre triste de martírios -

Um negro vem vindo, é branco!

Só bem perto fica negro,

Passa e torna a ficar branco.



Meu São Paulo da garoa,

- Londres das neblinas finas -

Um pobre vem vindo, é rico!

Só bem perto fica pobre,

Passa e torna a ficar rico.



Garoa do meu São Paulo,

- Costureira de malditos -

Vem um rico, vem um branco,

São sempre brancos e ricos...



Garoa, sai dos meus olhos.


(Ilustração: São Paulo - revista Life)