quinta-feira, 4 de junho de 2020

VADICO, de Edilberto Coutinho




Matou no peito, encheu o pé com vontade e, pimba, gol. 

Sim, diz o moço da televisão, ele foi um craque. Observem esta sequência, senhores telespectadores. Falta perigosa. Vadico toma distância. Uns poucos passos, apenas. Vejam só. Quando corria para a bola, a torcida fazia um coro de ôôôôôô que terminava numa explosão de gol. Este jogo foi em Paris. Cartazes nas ruas anunciavam: 

VÁ AO PARC DES PRINCES VER PELÉ ET COMPAGNIE 

Pelé e Companhia. Os companheiros. Bastavam Pelé e Vadico para pagar o espetáculo. Depois dos aplausos habituais ao rei Pelé, a multidão se divertia com os chutes de Vadico. Os franceses adoraram e consagraram Vadico. Est-ce que cet homme a centpieds? O Cem Pés. Aí nasceu o apelido. O Cem Pés, no filme, após esse jogo na França, exibe as canelas cheias de cicatrizes. Denunciadoras, diz o locutor, da violência característica dos zagueiros que o enfrentavam. 

O Cem Pés, um ídolo. Um gênio do futebol. Vadico, sendo entrevistado, diz que não senhor, não trocaria essa vida com a bola por nenhuma outra. As cicatrizes? Ele as olhava, diz o locutor, como um prêmio amargo pelas tantas vezes em que foi atingido. Não havia de culpar a vida? 

Mas eu nem tenho jeito pra contar uma história de forma organizada. Bola pra frente. Na televisão, aquele moço: 

Onde estão os ídolos do passado? Muitos, esquecidos, sós, abandonados. Como vivem? O que fazem? Fomos encontrar Vadico, o grande artilheiro que brilhou ao lado de Pelé, sentado num banco de parque, triste e só, aparentando pelo menos mais 20 anos além de sua idade real. Enquanto a nova média esfria, estou vendo tudo de novo pelo televisor do bar. Repetem o filme sobre a carreira de Vadico. Sentei aqui e pedi a primeira média com pão e manteiga. Molhei o pão no café com leite e consumi logo tudo. Então, pedi uma segunda xícara. Sorvendo devagarinho. Agora já está meio fria. Mas não importa. Pedi mesmo para ter o direito, sem o portuga do garçom me aporrinhar, de permanecer no balcão mais tempo. Todo o tempo do programa. 

É preto e branco o Fantástico Show da Vida (nome do programa a cores, com a moça lindinha na abertura, levantando o braço e mostrando o sovaquinho raspado). Sou um velho perdido na bosta da vida, com catarata numa das vistas. Parece que o mundo todo virou um quarto escuro. Todas as tardes estou num desses bancos do parque que o filme mostra. A vida de Vadico, bem? Tanta glória e agora essa penúria dele, igualzinho a mim, vivendo feito um molambo. Tem uma estátua, nesse parque, que só consigo enxergar bem na claridade do dia. É o corpo de uma jovem (parece a moça ousada do programa de televisão) e, quando a tardinha vem caindo, o corpo dela vai ficando monstruoso, e vou embora para o meu quarto. Um aposentado me aconselhou a não andar por aí à noite, e estou ainda esperando tratamento do Instituto para o meu olho direito. 

Velho é um peso morto, eu disse para o homem ao meu lado, aquele dia no parque. Observei quando ele se aproximou e sentou junto de mim. A boina escura, a camiseta amarelecida sob a camisa estampada (e rota?), a calça de casimira surrada e a botina de solado de pneu formando a figura dele. Assim fiquei conhecendo Vadico. Ele chegou a me contar algumas daquelas histórias, em que eu nem podia acreditar. Contar histórias é ocupação de velho. Depois vi na televisão que era tudo verdade. Numa tarde chuvosa de São Paulo (é a voz do moço arrumado da televisão), terminou seu futebol. Não era jogador de se poupar. Teve mais de 12 anos de carreira, artilheiro de ataques famosos. Jogou com Garrincha, Pelé, Gérson. Vadico não fugia da luta. Nesta sequência, observem, senhores telespectadores, atenção, viu a bola, vindo pelo alto, pulou antes do zagueiro. Ganhou a bola (o filme mostra), mas caiu sobre o joelho. Vejam, Vadico permanece imóvel, gemendo de dor. 

Num rápido exame, o médico do clube garantiu que aquilo não era coisa grave. O craque precisava apenas de alguns dias de recuperação. Mas esses dias se transformaram nos piores de sua vida. Um mês depois, estava decidida a operação. O tratamento à base de infiltrações e exercícios havia fracassado. 

Um moleque parou na porta do bar, me olhou e berrou que velho tem cheiro de égua. Levantei o braço, num gesto ameaçador, mas muito fraco e lento, o diabinho ainda repetiu de égua, de égua, e saiu correndo. O portuga sorriu, me parece que sorriu, o puto, mas que importa esse safado? Forço bem a vista para ver o que aconteceu a Vadico. Mas agora, na televisão, passam uma propaganda. Ao Sucesso, com Hollywood. E chegou para perto essa mulherzinha morena, animada, as pestanas muito lambuzadas de uma tintura azul — acendo o meu Continental, Preferência Nacional — mas sem nenhuma outra pintura no rosto tenso. O que a menina vai querer?, pergunta o portuga. 

Esse homem era o máximo, ela diz, olhando para o televisor. Pede um conhaque Dreher. 

Dois meses depois da operação, continua o narrador do filme, pouca coisa havia mudado. O joelho do craque continuava dolorido e a perna sem movimentos, apesar dos exercícios todos. O tempo passava para ele, que tinha a sua única alegria na lembrança dos tempos gloriosos. Aí aparece Vadico, este de agora que conheci, um velhinho desprezado como eu (embora tenha muito menos idade): 

— Eu vivia fazendo gols. Eram tantos que perdi a conta. Sei apenas que foram muitos. Pena que acabaram. 

Em seguida não se vê mais a figura de Vadico, mas se ouve a sua voz, enquanto mostram ele em ação: chutando, driblando, fazendo embaixadas. Depois, uma série de gols. Verdadeira pintura, coisa linda de se ver. Um quadro. Às vezes, diz o locutor, a valentia lhe custava meses de atividade. A torcida quer uma presença constante. 

Ficaram me dando esperanças, diz Vadico, até que um dia veio o médico e, finalmente, revelou: Você não pode mais jogar. Para o seu próprio bem, o médico me disse, é melhor encerrar a carreira. Sim, o médico confirmou, a contusão pode se agravar a ponto de aleijar o seu joelho. Aí eu já estava mesmo com o joelho mutilado por todas aquelas injeções e as operações. Doía quando andava, a qualquer flexão da perna. Compreendi que era impossível resistir. Tinha que parar. Tenho que ter coragem, pensei. Outro conhaque, a mulherzinha pediu, com a voz tremida, e vi que devia ter chorado, o rosto dela num estado deplorável. 

Era mesmo uma coragem enorme, diz o narrador da vida de Vadico, que lhe permitia entrar na área sob os pontapés dos zagueiros. Depois — com a mutilação — a coragem, ainda, de abandonar tudo aquilo que foi sua vida, e que lhe deu muitas glórias, até deixá-lo inutilizado, com a perna sem mexer. Primeiro, foi o pontapé violento por trás, na panturrilha. Aquele beque era um cara muito parrudo (é a voz de Vadico, no filme), um cavalo forte. Um grosso com a bola, é claro. Vi que era fácil passar por ele, e não pude resistir aos dribles. O público aplaudiu, gritou meu nome. Cheguei a fazer aquelas embaixadas — o filme mostra ele controlando a bola, sem deixar cair, várias vezes seguidas, com o peito do pé esquerdo, uma série brilhante de embaixadas — e a galera vibrou. Gritaram mais alto meu nome. O filme mostra, o Maracanã inteiro uma só voz: va-di-co, va-di-cooo. Faltou humildade naquele cara, Vadico prosseguiu. Eu sei, todo jogador tem mesmo horror de ser feito de bobo. Porque, além dos dribles, das embaixadas, vai receber também o riso de gozação dos colegas, do público. 

Era um boa-pinta, hein?, diz a mulher tomando um longo gole do seu conhaque, tremendo boa-pinta, um macho muito do bem-apanhado. É claro, continua Vadico, que o jogador que parte para o bloqueio direto a um adversário — seja atacante, homem de meio-campo ou zagueiro-de-área — corre sempre o risco de ser driblado, e até de ser humilhado, feito de bobo. Mas é um risco que significa uma prova de dedicação ao time e não humilhação pessoal. Mas foi humilhação pessoal o que sentiu aquele zagueiro. Adiei, o nome dele. Desapareceu. Não sei por onde andará, hoje um velho igual a mim, outro que deve estar perdido por aí (a voz vai se tornando muito baixa, quase que não se ouve ele falar), mais um expulso da vida. Mas é isso (ouve-se melhor agora): na manobra do bloqueio, o primeiro jogador tem que se expor no drible. Se ele conseguir tomar a bola, tudo bem. Se for driblado, pode se irritar e até perder a cabeça. Como aquele becão, o tal Adiei. Foi aí que veio a bola dividida, e minha perna ficou. A mulherzinha deposita com ruído o copo no balcão: Merda de vida. 

Há três dias encontrei Vadico pela última vez. Vi você na televisão, eu disse, alegremente, quando ele se aproximou de mim no banco do parque. Estava tomando café e vi tudo pelo televisor do bar. Muita gente viu. Contar histórias é ocupação de velho, Vadico disse. 

Eu não sei contar direito, mas é isto que conto: estão repetindo agora o filme e estou tomando café de novo e assistindo de novo, e tem essa mulher que já mandou uns quatro conhaques, está de porre e não para de chorar. E repetem o filme por causa do que Vadico fez ontem. (Se essa puta porrista parasse com o faniquito dela, eu ia me sentir melhor, mas ela tem razão: merda de vida.) 

O único patrimônio que ele guarda com carinho, diz o mocinho bonito da televisão (esse aí, é claro, não cheira a égua velha), é esta bola (a bola enche toda a tela do televisor), e Vadico, entrevistado no seu quartinho pequenino e limpo, diz, foi um chute, que dei nela, que deu o tricampeonato ao nosso time. Me lembro muito bem. Mal o juiz apitou o final da partida, me abracei a essa boneca aí e disse, é minha, e está comigo até hoje. 

Acordo todos os dias muito cedo. Vadico diz logo depois, e saio pra rua, que está sempre meio deserta, tem só uns poucos trastes, que vão madrugar no trabalho, ou essa gente que vem da noite. Não há muito o que fazer, moço, a mesma coisa todos os dias, a mesma coisa sempre. A gente procura nas pessoas que passam ou nas notícias dos jornais assunto para conversa durante o dia no parque (aí o filme mostra ele sentado no banco do parque; Vadico sozinho visto ao longe, e umas crianças que passam e olham com desagrado para a figura dele, meio recostado no banco). Mulher, moço? Quando acabou o futebol, elas acabaram também. Sim, houve algumas delas, mas parece que eu não levava muito jeito com elas não (um riso meio forçado, que vira uma careta), é, pois é, com as zinhas deu zebra. E a mulher do bar, quase aos gritos: Mais um, porra. O portuga veio com a garrafa e ela: Manda. O garçom entortou a garrafa, o líquido escorrendo em conta-gotas, e a puta, impaciente: Capricha. Pode caprichar. Pegou na mão do homem, entortando mais: Assim. Aí tá bom. E emborcou a nova dose até a metade. 

Hoje Vadico é notícia em todos os jornais e tem essa bruaca que não para de beber e de chorar. Tinha que dar zebra, né, Vadico?, com umas tipas como essa aí ao lado, o que você queria, meu amigo? E agora é o final do filme, que repetiram inteirinho porque ontem, como está dizendo agora esse moço aí na televisão, o famoso Cem Pés se libertou com as próprias mãos. E foi a primeira coisa que vi, hoje, nas manchetes dos jornais espetados nas bancas: a notícia de que Vadico, o famoso ídolo do passado, o célebre Cem Pés — um Deus dos estádios — tinha se matado, cortado o pescoço com uma navalha. 

Assim que o filme terminou, eu paguei e me levantei para sair. Foi aí que a mulher arriou a cabeça sobre o balcão do bar, empurrando num gesto involuntário o copo de conhaque, ao mesmo tempo em que, abrindo a mão, libertou um frasco pequenino, sem tampa, de onde rolou uma pilulazinha verde. Só uma. As outras, o diabo da criatura tinha engolido com o conhaque. 



(Os cem melhores contos brasileiros



(Ilustração: Margarita Farré - Decisão por Penalty)




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