domingo, 30 de julho de 2023

A FALSIDADE QUE NOS FAZ MURCHAR (DIÁRIO: 26 DE ABRIL), de Alba de Céspedes

 


Esta noite me sinto sob o peso de uma grave humilhação. Talvez por ter feito uma coisa que até agora eu jamais tinha ousado fazer; ou melhor, não havia sequer imaginado poder fazer. Estávamos sentados na sala de jantar e Michele escutava o rádio; uma música que me fazia sentir leve, sonhadora, me comovia. Não sei que coisa me impeliu a falar; encontrava-me sob o influxo de uma força mais poderosa do que eu, à qual não podia, ou talvez não quisesse, resistir. Aproximei-me de Michele e baixei o volume do rádio; o aposento estava na penumbra. Ele abriu os olhos e me fitou como se acordasse. “Michele…”, eu disse, sentando no braço da poltrona: “Por que não somos mais aqueles que éramos quando recém-casados?”. Ele se mostrou surpreendido por essa pergunta, então respondeu que continuamos os mesmos. Segurei sua mão, beijei-a, acariciei-lhe o braço, abracei-o com fervor. “Sabe, Michele”, insisti, me esquivando de seus olhos; depois reuni minhas forças para fitá-lo, séria e afetuosa: “Quero dizer… à noite. Você não me adormece mais em seus braços. Lembra?”, acrescentei, corando, “você me dizia: ‘Venha aqui para descansar’. E me puxava para perto, depois me abraçava, e nós não descansávamos”. Ele começou a rir, fez um gesto evasivo: “Eram coisas de uma outra idade, você fica remoendo! Aos poucos perde-se o hábito de certas coisas e, por fim, não se pensa mais nisso”. “Pois é”, eu insistia, “você acha mesmo que não se pensa mais nisso? Ou, quem sabe, já não ousamos ser sinceros como naquele tempo?” “Quantos anos tínhamos, na época?”, ele disse; “sabia que eu tenho quase cinquenta anos? Já não somos…” “Não é verdade”, interrompi. “Se você quer dizer que já não somos jovens, eu lhe digo que está enganado. Eu sei, somos jovens, e basta não nos compararmos com nossos filhos para constatar que somos muito jovens.” “Mas como podemos não nos comparar com eles?”, Michele insistia, sempre com o mesmo sorriso fugidio; via-se que estava ansioso para pegar o jornal, ou melhor, abandonar aquele assunto. Eu me perdia em minhas próprias frases, gostaria de manter a conversa num tom genérico, não falar de mim, e a vergonha de não conseguir me dava vontade de chorar. Ele repetiu, como para me convencer: “Não se pensa mais nessas coisas, ou, quando se pensa…”. Parou, incerto, e eu queria lhe sugerir: “Você quer dizer que se pensa com uma outra pessoa, não?”. Queria ter a coragem de pronunciar essas palavras, queria tê-la a todo custo; mas algo me impedia, uma prudência natural, extrema. “Leia nos jornais”, sugeri então, “veja as estrelas de cinema, essa gente de quem falam. Não param de casar, e de casar novamente aos quarenta anos, aos cinquenta…” Ele disse que se trata de gente que é obrigada a manter aceso o interesse do público com suas extravagâncias e esquisitices. “Além do mais, casar não importa”, completou, “é sempre questão de idade. Nós dois não somos casados? E no entanto… Casar não significa agir como dois jovenzinhos de vinte anos.” “Não pode estar tudo acabado”, eu insistia, “não é verdade que acabou. Todos dizem que os últimos anos são os mais importantes. Dizem que não se deve perdê-los, jogá-los fora. Que são como uma segunda juventude, nova, maravilhosa… Michele… Depois tudo estará realmente acabado, será tarde… Muita gente se apaixona pela primeira vez aos cinquenta anos, inclusive pessoas que até poderiam estar satisfeitas com a posição que alcançaram. Mas dizem que nem mesmo a posição importa, e tampouco o dinheiro.” Nesse momento, com essas palavras temi haver confessado tudo a meu respeito, e então de repente disse: “Veja Clara”. Ele logo perguntou: “Clara está apaixonada? Ela falou alguma coisa?”. “Sei lá, não agora, ela sempre diz que está apaixonada.” Deslizei sobre os joelhos dele, acariciei-lhe os cabelos, busquei seus olhos, que se escondiam numa mirada evasiva. Então, me inclinando, beijei-o, beijei seus lábios fechados. Então ouvimos um ruído no quarto de Riccardo. Michele pulou, ajeitando os cabelos, passando o dorso da mão pelos lábios: “Os meninos poderiam entrar”, disse baixinho, irritado.

Enquanto isso, olhava a porta, esperando ver alguém; eu também olhava, como se esperasse um castigo, mas ninguém entrou. Talvez Riccardo, no quarto dele, tivesse arrastado uma cadeira. Compreendi o absurdo daquilo que eu havia feito, considerei que de fato um dos meninos poderia nos ter surpreendido, escutado minhas palavras; e, ao imaginar isso, uma profunda humilhação se apoderou de mim. “Desculpe”, murmurei. Michele me acariciou no ombro. “Nada disso, claro que não”, respondeu. “Bem vejo que você anda nervosa faz algum tempo. Você deveria mesmo pedir um mês de licença e ir a Verona: eles a exploram naquele escritório, fazem você mourejar desde a manhã até a noite.” À menção de Verona, comecei a chorar e Michele me enxugava as lágrimas com seu lenço. Depois pegou o jornal e começou a ler; fui para o quarto.

Enquanto me despia, me olhava no espelho; procurava me ver velha, humilhada inclusive quanto ao aspecto exterior, e não conseguia. Pelo contrário, voltei a chorar porque me via jovem: minha pele era bronzeada e lisa sobre o desenho enxuto dos ombros, a cintura fina, o busto cheio. Contive os soluços com dificuldade: Mirella dormia logo do outro lado da parede e eu temia que ela pudesse me ouvir. Talvez seja isso que há muitos anos nos impede de ser como quando éramos ainda recém-casados, ou quando os meninos eram pequenos e não compreendiam nada: é a presença deles do outro lado da parede. É preciso esperar que saiam, é preciso ter certeza de que não seremos surpreendidos; e os filhos estão por toda parte numa casa. À noite é preciso recorrer ao escuro, ao silêncio, conter qualquer palavra, qualquer gemido, e de manhã não lembrar mais o que aconteceu, no temor de que eles possam ler em nossos olhos a recordação daquilo. Com filhos em casa, já aos trinta anos é preciso fingir não mais ser jovem, exceto para brincar, rir com eles; é preciso fingir ser apenas um pai e uma mãe; e à força de fingir, à força de esperar que eles saiam, que não escutem, não imaginem, acaba-se por realmente não mais ser jovem. Quando além da porta se escutam as vozes dos filhos, os abraços entre marido e mulher num quarto fechado à chave, onde afirmaram ter entrado para dormir, soam uma coisa indecorosa, suja, um pecado maior do que o cometido por aqueles que, não casados entre si, ou até mesmo casados com outras pessoas, se encontram clandestinamente em quartos de aluguel, hotéis, apartamentos de solteiros. Se os meninos nos surpreendessem, torceriam a boca numa careta de repulsa; e eu, só de imaginar essa careta, sinto um calafrio. Diante dos próprios filhos, uma mãe deve sempre mostrar não haver jamais conhecido essas coisas, jamais ter desfrutado delas. É essa falsidade que nos faz murchar. São eles os culpados, eles. Quando os filhos estão presentes, o marido, ainda que ache a esposa bonita, não pode olhá-la com desejo; se um gesto dela, uma atitude o atrai, ele não pode abraçá-la, beijá-la; e assim pouco a pouco ele não a vê mais. Nem Michele nem os meninos me consideram jovem; no entanto, noites atrás, Riccardo contava de um amigo que se apaixonou loucamente por uma mulher de quarenta anos, uma mulher lindíssima. “Se desse certo”, dizia, “seria um homem de muita sorte.”

Pronto, de repente creio ter compreendido aquilo que nos faz temer que os filhos se deem conta de uma vida secreta nossa, aquilo que nos torna tão relutantes em nos entregar a ela: é porque sentimos que marido e mulher, que se unem numa relação encoberta, silenciosa, depois de terem falado o dia inteiro de questões domésticas, de dinheiro, depois de terem fritado ovos, lavado pratos sujos, já não obedecem a um feliz e jubiloso desejo de amor, mas a um instinto primário como sede, fome, um instinto que se satisfaz no escuro, rapidamente, de olhos fechados. Que horror.

Envergonho-me até deste caderno, de mim mesma, não ouso mais escrever, assim como na outra noite não ousava mais me olhar: me aproximei do espelho para me fundir com a casta imagem ali refletida, enquanto murmurava “Guido”.




(Caderno proibido; tradução de Joana Angélica d’Avila Melo)



(Ilustração:  Alfredo Protti, Italian, 1882-1949)

quinta-feira, 27 de julho de 2023

KILLED PIAVE / MORTE EM PIAVE, de Ernest Hemingway

 




Desire and

All the sweet pulsing aches

And gentle hurtings

That were you,

Are gone into the sullen dark.



Now in the night you come unsmiling

To lie with me

A dull, cold, rigid bayonet

On my hot-swollen, throbbing soul.



Tradução de Gustavo Gouveia:



O desejo e

Todas as doces dores latejantes

E suave sofrimento

Que foram você,

Estão em um escuro taciturno.



Agora à noite você vem sem sorriso

Deitar-se comigo

Uma baioneta dura, fria e bruta

No meu espírito entumecido e rijo.



Nota: Battle of the Piave River - A Batalha do Rio Piave, 1918, constituiu o último grande ataque austro-húngaro à frente italiana e praticamente anunciou a desintegração do exército austro-húngaro a caminho do desmantelamento do império.



(Ilustração: Royal Navy official photographer - The Battle of the Piave River, June 1918: Italian Marines landing from barges to take up positions on the Piave Front).

segunda-feira, 24 de julho de 2023

NAÇÃO ATIVA, NAÇÃO PASSIVA, de Milton Santos

 


A globalização atual e as formas brutais que adotou para impor mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as coisas, as ideias e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode facilmente cair no vazio ou na ambiguidade.

É o caso do próprio debate nacional, exigente de novas definições e vocabulário renovado. Como sempre, o país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento, na qual cada elemento está intimamente relacionado com os demais. Agora, porém, no mundo da globalização, o reconhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo modo que a visualização de um projeto nacional pode se tornar obscura. Talvez por isso, os projetos das grandes empresas, impostos pela tirania das finanças e trombeteados pela mídia, acabem, de um jeito ou de outro, guiando a evolução dos países, em acordo ou não com as instâncias públicas, frequentemente dóceis e subservientes, deixando de lado o desenho de uma geopolítica própria a cada nação, que leve em conta suas características e interesses.

Assim, as noções de destino nacional e de projeto nacional cedem frequentemente a frente da cena a preocupações menores, pragmáticas, imediatistas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto. A ideia de história, sentido, destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única preocupação é o conformismo diante das determinações do processo atual de globalização. Daí a produção sem contrapartida de desequilíbrios e distorções estruturais, acarretando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se mostrem os países.

Tomemos o caso do Brasil. É mais que uma simples metáfora pensar que uma das formas de abordagem da questão seria considerar, dentro da nação, a existência, na realidade, de duas nações. Uma nação passiva e uma nação ativa. A grande ironia vem do fato de que as contabilidades nacionais, sendo globalizadas - e globalizantes! -, o que se passa a considerar como nação ativa é aquela que obedece cegamente ao desígnio globalitário, enquanto o resto acaba por constituir, desse ponto de vista, a nação passiva. A fazer valer tais postulados, a nação ativa seria a daqueles que aceitam, pregam e conduzem uma modernização que dá preeminência aos ajustes que interessam ao dinheiro, enquanto a nação passiva seria formada por tudo o mais.

Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou aquilo que, desse modo, se está chamando de nação ativa seria, na realidade, a nação passiva, enquanto a nação chamada passiva seria, de fato, a nação ativa?

A chamada nação ativa, isto é, aquela que comparece eficazmente na contabilidade nacional e na contabilidade internacional, tem o seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas burguesias nacionais associadas. É verdade, também, que o seu discurso globalizado, para ter eficácia local, necessita de um sotaque doméstico e por isso estimula um pensamento nacional associado, produzido por mentes cativas, subvencionadas ou não.

A nação chamada ativa alimenta a sua ação com a prevalência de um sistema ideológico que define as ideias de prosperidade e de riqueza e, paralelamente, a produção da conformidade. A “nação ativa” aparece como fluida, veloz, externamente articulada, internamente desarticuladora, entrópica. Será ela dinâmica? Como essa ideia é muito difundida, cabe lembrar que velocidade não é dinamismo. Esse movimento não é próprio, mas atribuído, tomado emprestado a um motor externo; ele não é genuíno, não tem finalidade, é desprovido de teleologia. Trata-se de uma agitação cega, um projeto equivocado, um dinamismo do diabo.

A nação chamada passiva é constituída pela grossa maior parte da população e da economia, aqueles que apenas participam de modo residual do mercado global ou cujas atividades conseguem sobreviver à sua margem, sem participar cabalmente da contabilidade pública ou das estatísticas oficiais. O pensamento que define e compreende os seus atores é o do intelectual público engajado na defesa dos interesses da maioria.

As atividades dessa nação passiva são frequentemente marcadas pela contradição entre a exigência prática da conformidade, isto é, a necessidade de participar direta ou indiretamente da racionalidade dominante, e a insatisfação e o inconformismo dos atores diante de resultados sempre limitados. Daí o encontro cotidiano de uma situação de inferiorização, tornada permanente, o que reforça em seus participantes a noção de escassez e convoca a uma reinterpretação da própria situação individual diante do lugar, do país e do mundo.

A “nação passiva” é estatisticamente lenta, colada às rugosidades do seu entorno, localmente enraizada e orgânica. É também a nação que mantém relações de simbiose com o entorno imediato, relações cotidianas que criam, espontaneamente e na contracorrente, uma cultura própria, endógena, resistente, que também constitui um alicerce, uma base sólida para a produção de uma política. Essa nação passiva mora ali onde vive e evolui, enquanto a outra apenas circula, utilizando os lugares como mais um recurso a seu serviço, mas sem outro compromisso.

Num primeiro momento, desarticulada pela “nação ativa”, a “nação passiva” não pode alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império dos interesses imediatos que se manifestam no exercício pragmático da vida contribui, sem dúvida, para tal desarticulação.

Mas, num segundo momento, a tomada de consciência trazida pelo seu enraizamento no meio e, sobretudo, pela sua experiência da escassez, torna possível a produção de um projeto, cuja viabilidade provém do fato de que a nação chamada passiva é formada pela maior parte da população, além de ser dotada de um dinamismo próprio, autêntico, fundado em sua própria existência - daí sua veracidade e riqueza.

Podemos desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos da globalização, ainda se chama de nação ativa é, na verdade, a nação passiva, enquanto o que, pelos mesmos parâmetros, é considerado como a nação passiva constitui, já no presente, mas sobretudo na ótica do futuro, a verdadeira nação ativa. Sua emergência será tanto mais viável, rápida e eficaz se se reconhecerem e revelarem a confluência dos modos de existência e de trabalho dos respectivos atores e a profunda unidade do seu destino.

Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito mais do que promover um simples combate às formas de ser da “nação ativa” - tarefa importante, mas insuficiente, nas atuais circunstâncias -, devendo empenhar-se por mostrar, analiticamente, dentro do todo nacional, a vida sistêmica da nação passiva e suas manifestações de resistência a uma conquista indiscriminada e totalitária do espaço social pela chamada nação ativa.

Tal visão renovada da realidade contraditória de cada fração do território deve ser oferecida à reflexão da sociedade em geral, tanto à sociedade organizada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos etc., como também à sociedade desorganizada, que encontrará nessa nova interpretação os elementos necessários para a postulação e o exercício de uma outra política, mais condizente com a busca do interesse social.



(Folha de São Paulo, 21.11.1999)



(Ilustração: Carybé - A Mulata Grande, 1980)

sexta-feira, 21 de julho de 2023

FOTTIAMCI, VITA MIA, FOTTIAMCI PRESTO / FODAMOS, MEU AMOR, FODAMOS PRESTO, de Pietro Aretino

 



Fottiamci, vita mia, fottiamci presto,

Poi che per fotter tutti nati siamo,

E se il cazzo ami tu, la potta io bramo,

Chè il mondo saria nullo senza questo.



Se dopo morte il fotter fosse onesto,

Direi: fottiamci tanto che moriamo,

Chè di là fotteremo Eva e Adamo,

Che trovorno il morir sì disonesto.



Veramente egl’è ver che se i furtanti

Non mangiavan quel pomo traditore,

So ben che si fottvano gli amanti.



Ma lasciamo le ciance e sino AL core

Ficchiamo il cazzo e fa che mi si schianti

L’anima, che nel cazzo or nasce or muore



E se possibil fore

Vorrei por nella potta anche i coglioni

D’ogni piacer fottuti testimoni.



Tradução de João Paulo Paes:



Fodamos, meu amor, fodamos presto,

Pois foi para foder que se nasceu,

E se amas o caralho, a cona amo eu;

Sem isto, fora o mundo bem molesto.



Fosse foder após a morte honesto,

“Morramos de foder!” seria o meu

Lema, e Eva e Adão fodíamos por seu

Invento de morrer tão desonesto.



É bem verdade que se esses tratantes

Não comessem do fruto traidor,

Eu sei que ainda fodiam-se os amantes.



Mas caluda e me enfia sem temor

Esse pau que à minha alma, em seus rompantes,

Faz nascer ou morrer, dela senhor.



E se possível for,

Quisera eu pôr na cona estes colhões

Que tanto prazer são espiões.





(Sonetos luxuriosos)



(Ilustração: Andrea Mantegna - Baccanale col tino -1470 ca.)

terça-feira, 18 de julho de 2023

FELIPE DIAZ E O QUADRO DE COURBET, de Jorge Edwards

 


Tudo começou na segunda ou terça-feira da semana passada, na frente do quadro. Começou como uma ocorrência repentina, como uma pergunta. Não passou de uma brincadeira, mas depois da noite da última segunda-feira, depois que encontraram o cadáver, essa brincadeira, da qual não tinha me esquecido, veio a adquirir matizes mais inquietantes, menos leves. Matizes mais escuros, digamos assim.

− Sabe de uma coisa? – perguntei a Silvia em voz baixa, depois de ter olhado o quadro no salão dos Courbet por alguns minutos.

− O quê?

− Parece muito com você.

− Você está louco! – Silvia exclamou, ruborizada como uma colegial, mais irritada do que eu poderia ter previsto, e olhou para os lados, porque sempre, e sobretudo nessa época do ano, em pleno verão, havia turistas espanhóis.

− Mas é a mesma barriguinha – expliquei, envergonhado, rindo, apesar de tudo, e pensando que os espanhóis não entendiam o chilenismo – e as mesmas coxas grossas, bem torneadas e até os mesmos pelos, a mesma…

− Velho sem-vergonha! – Silvia exclamou, ainda irritada. – Fique quieto! – E empreendeu a retirada pelo centro da sala, rumo à porta de saída, por entre os animais de bronze que tinham povoado as salas de jantar de nossas avós, que durante décadas haviam saído, entre empurrões e sussurros, debaixo do martelo dos leiloeiros: cachorros pensativos, javalis em posição de ataque, leões em estado de sonolência.

− Felipe Díaz – insisti, como se não me restasse outra alternativa senão insistir – tem a mania de fotografar suas amantes nuas e em poses obscenas.

− De onde você tirou isso? – ela perguntou, mais tranquila, pelo menos na expressão dos olhos, mas sem que a exasperação inicial tivesse desaparecido. − O Alfredo me contou, ele é um verdadeiro perito nas histórias do Felipe.

− Sinto falta dele – Silvia murmurou, pensativa. – Há quatro domingos, um mês inteiro, que Felipe não almoça conosco nem dá sinal de vida.

− A gente devia ligar para ele – eu disse.

− Telefonei duas vezes – disse Silvia. – Deixei um recado na secretária eletrônica e ele não se dignou a ligar de volta. Será que aconteceu alguma coisa?

Isso me incomodou, na verdade, embora não houvesse por que me incomodar, só que eu já suspeitava há algum tempo que Silvia podia ter ligado para ele e não ter me dito nada. Me deixou pensativo. Relacionei o assunto, de um jeito difícil de explicar, de explicar inclusive a mim mesmo, com o quadro. Nessa noite, pedi que ela se colocasse na pose da modelo do quadro, a pose exata, quer dizer, que se deitasse de costas, nua, com as pernas roliças separadas, o rosto coberto pelos lençóis. Inclusive tirei uma reprodução do bolso do pijama, porque tinha me dado ao trabalho de colocá-la no pijama, o que, em termos penais, teria revelado deliberação, premeditação, e examinei-a atentamente. A postura tinha de ser o mais fiel possível!

− Não sei que bicho te mordeu – ela exclamou.

− Por que não podemos aproveitar – repliquei –, agora que já estamos velhos, ou que eu estou velho, melhor dizendo… − S’il te plaît! – concordou ela.

− … um bom estímulo erótico? Pensei também que podia tirar uma foto sua. À la Felipe Díaz…

Ela, que tinha coberto o rosto, soltou um grito sufocado entre os lençóis, indecifrável, com um eco adolescente, de pátio de colégio de freiras.

− Ou você preferia que o próprio Felipe Díaz fizesse a foto…?

− Me deixe dormir, por favor – Silvia suplicou. – Estou cansada demais.

No dia seguinte, ou no outro, Felipe Díaz respondeu às mensagens de Silvia às quatro da tarde, hora da nossa sesta, costume sagrado e que ele sabia de cor.

Deixou sua mensagem na secretária eletrônica e quando Silvia ligou de volta, ele havia sumido de novo. Parecia ter resolvido romper o contato conosco, de forma consciente, e confesso que fiquei aborrecido, ofendido. Não falei nada disso a Silvia, para não jogar lenha na fogueira, e porque intuía perfeitamente, fazia muito tempo, sem necessidade do episódio da noite de segunda-feira, que para ela o assunto era mais delicado, mais sensível, mais complexo do que para mim.

Muitíssimo mais delicado e mais complexo!

− Pelo menos está vivo – Silvia suspirou e eu disse a mesma coisa, mas com outra entonação: pelo menos está vivo.

Estava vivo, no entanto eu tinha outra intuição, em cima da primeira, e que me provocava um sentimento de perplexidade, e, além da perplexidade, de angústia profunda, como se destruísse todos os meus esquemas, sem a segurança mais elementar: a de que ele não estaria vivo por muito tempo. Intuição acertada, como se veria poucos dias depois. Felipe tinha passado havia pouco dos cinquenta anos, e deixado para trás, creio que também havia pouco, a metade dos cinquenta. Gente que vive como Felipe se acaba cedo, eu pensava, o que quer dizer que ele já estava vivendo por empréstimo, de llapa (como dizíamos em Iquique). Mas talvez eu pensasse assim, reconheço, por deformação profissional. Nós, os médicos, acreditamos que as regras da medicina servem para alguma coisa e que a transgressão a elas é sempre sancionada por algum deus obscuro. Cada vez que nos encontramos com um ser que parece fugir a essas regras, com alguém rebelde aos nossos vaticínios, uma pessoa que bebe como um cossaco, por exemplo, e tem o fígado em perfeito estado, que come gordura e não engorda, fingimos que nos alegramos por ele, por seu vigor, por sua saúde invejável, mas no fundo ficamos irritados, nos sentimos arbitrária e injustamente desmentidos. Nossos razoáveis conselhos, nossos apelos à prudência, com seu tom agourento, adquirem um ar ridículo. Por que amargurar tanto a vida com um monte de bobagens!

Estava, portanto, influenciado por uma deformação profissional e, talvez, também por uma deformação ideológica. Porque durante toda a minha vida, minha vida madura e útil, pelo menos, eu tinha sido escravo de uma configuração extrema de racionalidade, de um sistema global, total e totalizador, de pensamento e de conduta. Achava que tinha me libertado na velhice, mas o monstro dogmático, no momento menos esperado, se manifestava, dava rabanadas dentro da minha pobre cabeça. Pois bem, Felipe reapareceu de repente, emergiu lá do fundo de seu caos pessoal, de seu delírio aparentemente tranquilo, só aparentemente!, e compreendi, nos primeiros segundos, que já era outro. Nos dias em que não tínhamos nos visto, ele havia chegado ao abismo, ao inferno, e estava com um pé do outro lado.

O encontro com Felipe se deu na manhã da sexta-feira passada, semana cheia de sinais, de anúncios da culminação do verão, e da culminação, ainda insuspeitada, de muitas outras coisas, e que havia começado com nossa expedição, à primeira vista inocente, para conhecer o quadro de Gustave Courbet, batizado de um jeito entre pomposo e brincalhão, não sei se pelo próprio artista, de A origem do mundo, e que acabava de entrar em exposição, depois de mais de um século de clandestinidade. Isso ocorreu em frente ao Dôme, no vértice do ângulo formado pela Rue Delambre e o Boulevard du Montparnasse, vértice que pertence, como todos sabem, a muitas mitologias, à mitologia sul-americana, sem dúvida, e a uma ou outra metafísica.

− Como tem passado, Felipe? – perguntei, e pensei de imediato que minha pergunta havia sido indiscreta, brusca demais, porque sua cor, suas olheiras, o gesto quase evasivo, muito pouco seu, contrário a seu caráter, além do evidente tremor das mãos, dos lábios, indicava que ele não estava bem, que dessa vez estava acontecendo alguma coisa séria, talvez muito séria. Até essa manhã, apesar de seus frequentes excessos, Felipe tinha sido o eterno vencedor, o homem que nunca se queixava neste mundo de queixumes, o sujeito mais alheio à depressão que eu tinha conhecido na minha vida, na profissional e na outra, e vê-lo de repente pálido, cabisbaixo, trêmulo, com o olhar fugidio, e isso em plena luz do dia, em todo o resplendor dos primeiros dias de agosto, me pôs em guarda. Posso ter começado a perder a memória, o pulso e até a visão e a audição, para não falar das pernas, que um dia foram famosas nos campos de futebol de Iquique e de Santiago de Nueva Extremadura, mas, nos meus setenta e tantos anos, o que ainda não se perdeu é o meu diagnóstico, o meu não menos famoso diagnóstico.

Ele disse que estava bem, como sempre se responde nesses casos, e depois, com uma mudança de tom inesperada, como se entendesse que não podia me enganar (ou podia me enganar?, pergunta póstuma, e tinha me enganado durante longos anos, tinham me enganado?), pegou no meu braço e acrescentou uma coisa. Acrescentou o seguinte.

− O que acontece, Patito (diminutivo muito chileno de Patricio, meu nome), é que chegou a hora de eu encerrar a partida, e estou lendo Sêneca para me consolar, mas a verdade é que não me resigno inteiramente, para que te dizer o contrário?, e não durmo…

− E a dose diária de uísque – perguntei – como vai?

− Um tanto alta – admitiu, com a expressão de uma pessoa que admite ou que constata, com certa tristeza, e que censura a si própria sem muito esforço.

− Um tanto alta!

O gesto dos meus ombros, dos meus braços, indicou que os comentários eram supérfluos. Você sabe tão bem como eu! – meu gesto queria dizer –, e não vou repetir!

Felipe disse, então, com sua voz rouca, aguardentosa, ou uiscosa, para ser mais exato, que pela primeira vez em sua vida tinha se visto em uma situação que definiu − com uma pitada de ironia, e até com humor, mas admitamos que sem alegria, sem a menor complacência − como dramática.

− Uma cagada dramática! – exclamou da maneira mais chilena deste mundo miserável. – Tive de escolher entre uma mulher e a garrafa, e se quer que eu diga a verdade, a pura verdade, desconfio que fiquei com a garrafa.

− Vai mal! – exclamei.

− E o diagnóstico vai pior, imagino – acrescentou com cara de preocupação.

− Péssimo diagnóstico!

Qualquer que fosse o diagnóstico, nos sentamos no terraço do Dôme e ele tomou seu primeiro Ballantine’s desde o meio-dia, com os dois cubos de gelo indispensáveis e com o toque simbólico de água Perrier (nos lembramos de Acario Cotapos, Cotapós para os franceses, que pedia uma “Panimavide”. “Une Panimavide, s’il vous plaît!”) e eu uma limonada, ou melhor dizendo, um citron pressé clássico. Um dos meus segredos, segredo não muito bem guardado, visto que o divulgo em voz alta, como um missionário, mas raramente compartilhado, é, foi, era?, a ausência de álcool, a água mineral e a limonada. Era, insisto, depois dos acontecimentos dos últimos dias e das últimas horas, e me pergunto se haverá volta àquilo, à limonada com todas as suas circunstâncias, ao que era e deixou de ser.

Acho que conversamos sobre a Bósnia Herzegovina, sobre as imagens brutais que tínhamos de engolir com nossos cafés da manhã, a barbárie, o racismo, que depois de tantas guerras, tantas campanhas contra, tantos discursos e tantas boas intenções encontravam-se em pleno auge, e sobre a incapacidade vergonhosa das Nações Unidas, dos governos europeus, da Casa Branca, de todos eles.

− De todos nós – definiu Felipe, que nessa manhã não estava para concessões, que falava com nervos triturados, com o fígado dolorido e eu, com minha antiga cara de militante, de beato condoído com os males deste mundo, concordei. Ele pediu seu segundo Ballantine’s e quando o serviram com uma dose mais generosa que a primeira, dada a sua qualidade de velho cliente assíduo daquele terraço, cliente, por assim dizer, histórico, que conhecia aquele lugar desde os tempos anteriores à restauração, tempos de Giacometti, de Alejo Carpentier e de Negro Ulloa, retomou o assunto.

− O que mais me deixa fodido – disse – é que a minha decadência coincide com a decadência de tudo, das cidades que amamos, das culturas que admiramos. Quando derrubaram o Muro de Berlim, há tão poucos anos, eu pulava numa perna só, rindo dos fanáticos, dos policiais, dos hipócritas e sem vergonhas de todo tipo que tinham tornado a nossa vida impossível, e agora, ao contrário, depois daquela euforia momentânea, me sinto derrotado, deprimido.

Fodido!

Eu já tinha lhe falado, e mais de uma vez, sobre os efeitos depressivos do álcool. Não ganhava nada sendo teimoso. Mas, pelo visto, sou. Um médico talvez seja teimoso por profissão e até por natureza. Está envolvido, ao fim e ao cabo, em uma luta teimosa: contra o quê? Contra o tempo? Contra a morte? Preferi não dizer nada a ele, para não deprimi-lo mais. Mas quem estava lendo Sêneca era ele, afinal!

− Que idade você tem Felipillo? – perguntei depois de um tempo. – Já fez sessenta?

− Falta pouco – respondeu, olhando por cima dos óculos abaixados, que tinha posto para contemplar o fundo do copo, como se as formações de gelo derretido entre os restos desbotados de uísque servissem para adivinhar o futuro. O futuro se apresentava negro e ele acrescentou que faltava, na verdade, para os fatais sessenta anos, quase nada.

− Questão de minutos! – acrescentou, rindo, tapando a boca com a mão direita, com o pulso agora firme.

− Você ainda é jovem, um moço!, mas já faz tempo, se quer que eu diga, que deixou de ser menino e talvez fosse conveniente começar a tomar consciência do assunto.

− Acho que já comecei – respondeu, com a cara pesada, entrelaçando em cima da mesa as mãos nervosas, nodosas, delicadas, apesar das veias avermelhadas, e olhando de soslaio para mim: − Faz um bom tempo!

− Pois então – adverti em tom de sermão inevitável e ainda por cima atuando como se eu fosse um padre de colégio – isso quer dizer que você não pode continuar vivendo sem rumo. Está na hora de assumir uma posição, rapaz, uma conduta de vida!

− Foi o que me disse uma adivinha nas agitações de maio de 1968, há mais de um quarto de século!

− Você tem de perder peso, oito a dez quilos, pelo menos, eliminar essa barriga vergonhosa, fazer exercício todo dia…

− O que me ensinaram foi que exercício era para bois – disse Felipe, batendo na barriga.

− … e controlar o colesterol, o açúcar, a ureia e o estado geral do fígado, que provavelmente está precário, e fazer um exame de próstata. Quando foi a última vez que você examinou a próstata, se é que alguma vez já fez esse exame? E seguir uma dieta, mas não durante duas ou três semanas, isso não adianta; durante o resto da vida! Só um cálice de vinho no almoço, um no jantar, e acabaram-se para sempre a gordura, os doces, os pataches…

− Que horror! – uivou Felipe Díaz, o eterno Felipe Díaz, com voz rouca, teatral, arrancando os cabelos, e chamou o garçom com um gesto espalhafatoso.

O garçom era um francês alto, ossudo e magro, mais para jovem.

− Desta vez, mon cher, como é sexta-feira, vou passar para o terceiro…

− Tout de suite, monsieur – respondeu o garçom e nos transmitiu, inclinando-se e fazendo cara de gozador, uma cabala secreta ou um fragmento de filosofia de bar. Os aperitivos, em sua bem consolidada opinião, e sobretudo se eram bebidas fortes, uísques on the rocks, por exemplo, ou martínis muito secos, tinham de ser bebidos em números ímpares: um, três, cinco, sete… Os senhores entendem?

Compreendi que eram elucubrações de bêbados, de bebuns e, nesse caso preciso, de um explorador de extraviados alcoólicos, e me perguntei se não estava perdendo miseravelmente o meu tempo. E mais, cheguei a me perguntar se minha profissão de médico clínico geral e psicólogo não teria sido sempre, em última instância, uma completa perda de tempo, uma vez que os seres humanos eram sombrios, alienados, inajudáveis e irredutíveis. A imagem da mulher nua do quadro, como se fosse mais real, mais vigente que todo o resto, voltou a dançar na minha cabeça e imaginei Felipe, o imaginei então, antes de ter observado as reações descontroladas de Silvia diante de seu cadáver, e imagino-o com mais razão agora, depois daquele episódio, abrindo as pernas dela, colocando-as na mesma posição. Que disparate! Mas ele, sorrindo, parecido com o Felipe Díaz inconsciente e sublime de toda a vida, não o que eu havia encontrado meia hora antes na esquina mitológica, achou que o garçom tinha toda razão, como se fosse, mais que um atendente de bar, um iluminado, um guru. Não tive alternativa senão dar de ombros: dar de ombros irritado, embora ainda sem saber o que me esperava, e olhar os turistas das mesas ao lado.



(A origem do mundo; tradução de José Rubens Siqueira)



(Ilustração: Gustave Courbet - a origem do mundo)

sábado, 15 de julho de 2023

SOY / SOU, de Gloria Young

 



Soy recinto

de todas las palabras colgadas en el viento

de la luz que atraviesa mi curva cordillera

de la canción del sueño

del mar con sus espumas

del alma desbocada al filo de una estrella

soy

voz que no se esconde

que explora sus tejidos

que aúlla en el misterio de todos sus silencios

que murmura a la vida

que acecha en la vigília

que da vuelo a la risa venciendo la nostalgia.



Soy agua

de Ia lluvia

del mar

de la tormenta

y busco los tesoros

y lavo

Ias memorias



soy mujer

de este siglo

escalando esperanzas

cabalgando corceles

de amor y de ternura

abriéndome los poros

al olor de las frutas

soltándome el cabello

surcando la dulzura

aquí

en la penumbra

de la

puesta del sol.





Tradução de Antonio Miranda:



Sou o recinto

de todas as palavras penduradas no vento

da luz que atravessa minha curva cordilheira

da canção do sonho

do mar com suas espumas

da alma escancarada no fio de uma estrela



Sou

voz que não se esconde

que explora seus tecidos

que ulula no mistério de todos os silêncios

que murmura à vida

que espreita na vigília

que dá vez ao sorriso vencendo a saudade.



Sou água

de chuva

do mar

da tormenta

e busco os tesouros

lavo

as memórias



sou mulher

deste século

escalando esperanças

cavalgando corcéis

de amor e de ternura

abrindo os poros

ao perfume das frutas

soltando os cabelos

sulcando a doçura

aqui

na penumbra

deste

pôr-do-sol.



(Mujer, Prensa y Poesia, 1993)



(Ilustração:Frida Kahlo - Self Portrait with Bonito)

quarta-feira, 12 de julho de 2023

DO RECENTE MILAGRE DOS PÁSSAROS ACONTECIDO EM TERRAS DE ALAGOAS, NAS RIBANCEIRAS DO RIO SÃO FRANCISCO, de Jorge Amado





O milagre aconteceu na cidade de Piranhas, às margens do rio São Francisco, em dia de feira e animação. Comprovado por centenas e centenas de viventes, de condição social diversa, desde o rico coronel Jarde Ramalho, o que lutou contra Lampião, até pobres lavradores vindos do interior para vender sua farinha de mandioca e o milho das roças. Assistido por uma visita ilustre, recebida com festas na cidade, dona Heloisa Ramos, viúva do mestre romancista. Não sendo ela, como é público e notório, dada a mentiras, seu testemunho por si só assegura a veracidade do caso.

Heróis do acontecido foram Ubaldo Capadócio, de profissão literato de cordel, trovador popular e amante, nos três ofícios de reconhecida competência e vasta aceitação, e o capitão Lindolfo Ezequiel, cuja reputação de valentia e crueldade corria mundo naquele território de colhudos que é o chão das Alagoas. Capitão de que arma não se tirou a limpo até hoje mas as dragonas ele as conquistou mandando gente para o cemitério, pois as ocupações em que se fez famoso eram a de pistoleiro (com a qual ganhava dinheiro e consideração) e a de esposo de Sabô, sendo que essa última profissão exigia dele capacidade, vigor e ameaças violentas à população masculina pois Sabô - diga-se a verdade - não tinha respeito pela patente do marido, nem pela cara feia, nem pela arma mortal, e vivia de dentes arreganhados. Com Sabô sonhavam os homens todos das ribanceiras do São Francisco, solteiros, casados, noivos, amigados, incluindo menores de catorze anos. Mas coragem de enfrentar a macheza do marido, a morte no bocal do fuzil, somente ela demonstrava; os suspirantes trancavam o peito e o rabo, desviando os olhos da oferecida. Ubaldo Capadócio enfrentou. Não por ser de coragem desmedida, impávido. Por ignorância dos fatos e das condições locais, forasteiro de passagem em cata de leitores, de feira animada para nela vender os folhetos de cordel—o último deles, O caso da grã-fina que se amigou com o lobisomem, vinha obtendo sucesso e merecido —, de festa na qual tocar harmônica e improvisar versos, de cama acolhedora, seio de morena onde descansar das lides. Fosse por que motivo fosse enfrentou o pistoleiro e o fez vestido de camisola de mulher, das bem curtinhas, para ser exato a peça superior do baby-doll cor-de-rosa de Sabô.

O trovador Ubaldo Capadócio tinha estampa, arrebatava corações. Caboclo alto e garboso, um galalau, cabeleira esgrouvinhada, riso fácil, conversa de salão salpicada de ditos engraçados e palavras de dicionário, mal chegava, logo a roda de prosa se estabelecia. Na vastidão dos sertões da Bahia e de Sergipe onde habitualmente exercia deveres, cuidados e alegrias, era figura popular e requisitada. Vinham buscá-lo de longe para animar batizados, casamentos, velórios: não havia igual num brinde aos noivos, melhor contador de casos numa vigília, capaz de fazer o pr6prio defunto rir e chorar. Não se trata de força de expressão pois o fato aconteceu e há testemunhas vivas, capazes de dar depoimento. Citarei apenas dois nomes, entre vários: o de mestre Calasans Neto e do trovador grapiúna Florisvaldo Matos. Ambos viram quando o finado Aristóbulo Negritude abriu na gargalhada, ali mesmo deitado no caixão, mortinho da silva, ao ouvir Ubaldo Capadócio contar a história da baleia que apareceu em Maragogipe. Não cito o pintor Carybé por ser mentiroso inveterado. Segundo ele, Negritude não somente riu, como acrescentou detalhe (sujo) à narrativa. Na opinião dos entendidos, o detalhe porco é invenção do próprio Carybé, cidadão de moral duvidosa, já que Aristóbulo se bem que pernóstico não era homem de pregar remendo em relato alheio, defunto delicadíssimo.

Num forrobodó, nem se fala: Ubaldo Capadócio demonstrava seu inteiro valor. A harmônica de encontro ao peito, a voz rouquenha lavada no gole de cachaça, langoroso olhar de súplica, a dedilhar amor. Arrancando suspiros, recolhendo promessas de solteiras e casadas, de amigadas e escoteiras de inconsoláveis viúvas— consolar viúvas fazia parte de sua generosa natureza. Fundos suspiros, ardentes promessas, mas recolhia igualmente ameaças e juras de vingança. Não sendo medroso, ia em frente.

De natural andejo, viu-se de casa montada, lar estabelecido—casas e lares— tanto na Bahia como em Sergipe. Estampa e fama, já pensaram? Tantas mulheres, a todas permanecia fiel, constante coração. Com nenhuma rompeu (à exceção de Bráulia, mas Bráulia, meu Deus . . .), a nenhuma despediu, mandou embora. Elas, sim, se mandavam, safadas da vida, proclamando-se vítimas de abuso e traição, quando comprovavam a existência de outras, de várias outras—como se um bardo errante, afastado do lar durante semanas, quinzenas, meses, pudesse guardar castidade. Esses bruscos rompimentos jamais aconteciam por iniciativa de Capadócio, e o deixavam inconsolável; ao perder uma delas sua reação era a de quem estava perdendo a única mulher de sua vida. Sendo muitas, todas eram a única, quem não entende a adivinha nada sabe dos mistérios do amor. Qual o motivo das repetidas ingratidões, por que esse absurdo egoísmo exclusivista se a ele, Ubaldo Capadócio, não Ihe faltava força de arrimo e decisão para a todas satisfazer com plenitude na cama e no sentimento, sobrando-lhe para tanto competência e fantasia?

Algumas não partiam, conformavam-se e assim, aos trinta e dois anos, quando sucedeu o milagre de Piranhas, Ubaldo Capadócio sustentava três famílias com proventos dos folhetos de cordel, da harmônica e da viola, com a voz rouquenha e as rimas da poesia — rimas ricas ou pobres, não importa, poesia era e lhe dava o de comer para as três esposas, todas ilegítimas, e os nove filhos, três dos quais de criação. Duas famílias plenamente constituídas, com mulher e filhos cada uma; a terceira, ainda sem rebentos. Rosecler, recente, apenas saída da lua-de-mel, não tivera tempo de gravidez e parto, sendo no entanto a mais cara das três, gastadeira, doida por enfeites, anéis, pulseiras, correntes. Em troca, aquele mimo, mistura de mel e de pimenta.

Prolífero, abundante de trovas e filhos, dos nove, como já foi dito, apenas seis nasceram de seu sangue, três com Romilda, três com Valdelice. Dos três de criação o mais velho viera com Romilda quando a mulata decidiu abandonar o marido no balcão do mercado em Aracaju, e seguir os acordes da viola mágica do solitário e triste trovador. Solitário e triste porque se o vivente está apaixonado por uma determinada fulana, o pensamento nela, enrabichado, mesmo tendo outras com quem vadiar dia e noite, mesmo assim permanece sozinho - apenas a excomungada é capaz de romper tristeza e solidão, servir de companhia e desenfado. Ao vê-lo derrotado, Romilda amoleceu, arrumou a trouxa mas antes explicou: largo o marido mas levo o filho, não me separo dele. Será meu filho, rugiu Capadócio, dramático, a mão sobre o peito. Fossem três ou quatro e ainda assim ele aceitaria a transação, doido para ver Romilda na cama, tocar-lhe os peitos, alisar-lhe as coxas. Traga filho e traga sobrinho, traga a família toda se quiser!

O segundo, de nome Dante em honra do poeta, fora adotado por Capad6cio e Valdelice quando a mãe morrera, deixando-o com seis meses e uma disenteria feroz. Confiá-lo ao pai: repentista e cachaceiro competente, Bernardo Sabença não levava jeito para criar filho, ademais com aquela soltura e fedentina.

Quanto ao terceiro, Preá de apelido devido à voracidade do apetite, dele nada sabiam - parentesco, idade, nome - simplesmente o recolheram nos caminhos do sertão, comendo barro - não fortalece mas não é ruim de gosto. Examinando traços e tendências de Preá, o cabelo loiro, os olhos azuis, as mãos hábeis, rápidas no furtar tudo quanto lhe fica ao alcance dos dedos, Valdelice, psicóloga amadora, atribui-lhe pai fazendeiro ou doutor, um lorde, restando por conta da mãe a pele escura.

Para satisfazer algum curioso de detalhes precisos, acrescente-se que o lar de Ubaldo com a bela Romilda encontra-se na cidade de Lagarto, no Estado de Sergipe, enquanto a residência do casal Valdelice-Capadócio fica no beco das Baraúnas, em Amargosa, na Bahia. Também no Estado da Bahia geme saudades a jovem Rosecler, num subúrbio de Jequié, cidade grande. Ubaldo Capadócio disse adeus às três, até breve, porque quem dá adeus para sempre é defunto na hora do funeral. Lá se foi conhecer e faturar o celebrado Estado de Alagoas onde a vida vale pouco mas a poesia é muito prestigiada, um bom trovador encontra aceitação, ganha dinheiro e, tendo coragem, esquenta o leito de formosas morenas.

A excursão pelo valoroso sertão alagoano ia de vento em popa. Festas, feiras, batizados, até uma Santa Missa em Arapiraca; Ubaldo Capadócio, sua harmônica, sua viola, a maleta com os folhetos de cordel, arrecadando uns trocados, derrubando corações. Por fim atingiu o rio São Francisco e veio vindo pelas margens chegando assim a Piranhas, cidade célebre pela beleza da paisagem e do casario e por ter resistido ao grupo de Lampião em tempos idos, fato cantado em cordéis da época. Pode-se somar a essas razões de orgulho o fato da cidade abrigar dentro da muralha intransponível formada pelas pedras o já citado capitão Lindolfo Ezequiel e a sua legítima esposa Sabô, também citada antes mas sem dúvida merecedora de referência maior pela graça do corpo, o andar de dança, a bunda em despropósito, um abismo, as covas das faces, os lábios que a dita cuja mordia para fazê-los mais vermelhos e também para dizer que sim, que ela estava querendo, que se pudesse, ai!, e mais outros quês e porquês. Sabô não era gente, era a tentação do demônio solta em Piranhas. Mas quem se atrevia? Terra de machos, de topetudos, de valentia comprovada, Lampião que o diga; mas Lindolfo Ezequiel despachara boa quantidade de bravos, a mando e pagamento de ricaços, para ganhar o sustento dele e da mulher cheia de dengues, e alguns outros por conta própria, gratuitamente, apenas por suspeitar de intenções malévolas dos finados em relação à casta Sabô. Na sua opinião de marido, ciumento porém justo, Sabô era inocente pomba sem fel.

Por mais de uma vez o trovador Ubaldo Capadócio vira-se metido em embrulhadas por causa de mulher. Pulou janela, pulou cerca, pulou muro, varou mato cerrado, invadiu casa alheia clamando socorro, mergulhou nas águas do rio Paraguassu, uma vez foi alvejado a queima-roupa, mas Xangô, seu pai, o protegeu e, ademais, sendo o vingador militar e campeão de tiro ao alvo, o perigo de acertar não era grande.

Em Piranhas, apenas chegado, ele foi parar na cama de Sabô, cama que, por casamento de papel passado no padre e no juiz, era também a de Lindolfo Ezequiel, naqueles dias em viagem, para cumprir uma empreitada. Encomenda feita por um deputado levara Lindolfo com sua artilharia a município distante onde o condenado residia. Campo livre, dissera Sabô, apressada, coitadinha. Ainda assim houve quem avisasse o trovador do perigo de morte - o dono da pensão onde se hospedara, também ele dado à poesia de cordel: o melhor é cair fora, meu camarada, Lindolfo Ezequiel tem para mais de trinta mortes sem falar nas primeiras quando ainda não era famoso pistoleiro. Ubaldo não acreditou: esses alagoanos são por demais patriotas e afinal mulher vale a pena, mesmo se correndo grande risco.

Atravessou a porta da casa de Sabô de noitinha, tendo sido visto. Manhã alta ainda lá estava pois a moça andava carente, pedia mais e mais e quanto ao nosso trovador, encontrando parceira de arrelia gostava de demonstrar sua competência - não apenas a força e o fogo, também os requintes pois ele não era nenhum ignorante na matéria, frequentara rameiras qualificadas - inclusive uma francesa - aprendera o bom e o melhor, amante fino estava ali.

Nunca se soube por que Lindolfo Ezequiel arrepiou caminho e desembocou em Piranhas na hora da maior animação na feira semanal, exatamente quando Ubaldo e Sabô se encontravam dando a da despedida, aquela do apuro, da quinta essência, demorada pelo cansaço, e terna pela saudade.

Vinha o pistoleiro de bacamarte em punho, bufando e anunciando morte precedida de castração em praça pública. O povaréu foi se juntando atrás dele, animadíssimo com a proclamação; parecia acompanhamento de procissão de Senhor Morto. Lindolfo meteu o pé na porta, Sabô reconheceu os modos: É meu marido, disse, e riu de manso.

Rápido, com o treino de outras vezes, Ubaldo buscou com que tapar a nudez pois não era exibido, em público sempre andava decentemente trajado. Na pressa só encontrou a peça superior do baby-doll cor-de-rosa de Sabô, enfiou pelo pescoço. Sendo um galalau, não chegava ao umbigo a linda veste. Mas nu, como inventaram, não estava. Saltou a janela quando o corno de revólver em punho invadia o quarto: Sabô, vítima inocente, casta esposa, acusava o trovador de tentativa de sedução e estupro. Quanto a ela, resistira, heroica, e exigia vingança. Vou arrancar os ovos do canalha e depois dou um tiro na cabeça dele, fique descansada, minha filha, lavo sua honra em sangue.

Atravessaram assim a feira de Piranhas. Na frente, o trovador Ubaldo Capadócio revestido de curta camisola feminina, o saco à mostra, os bagos balançando, condenados. Um pouco atrás, armado até os dentes, o pistoleiro—na mão a faca de capar porcos, afiadíssima. A seguir, o povo, querendo ver. Cansado da noite de festa e da manhã de despedida, Ubaldo Capadócio perdia terreno, cada vez mais próximos o matador e a faca. Um frio nos bagos, ai !

No meio do caminho, a feira dos pássaros, quantidade de gaiolas umas sobre as outras, fechava a passagem. Na velocidade e no medo, não pôde Ubaldo desviar-se, bateu-se contra o muro de gaiolas e viram-se os pássaros, dezenas e dezenas, libertados, em revoada. Juntaram-se todos, incontáveis, das pombas-rolas aos sabiás, dos sofrês aos cardeais, dos canários às cuiubas, e pela leve camisola suspenderam no ar Ubaldo Capadócio, levando-o pelos céus. À frente do bando iam doze araras abrindo caminho através das nuvens, conduzindo o trovador, leve como a poesia.

Lindolfo Ezequiel ficou ali plantado em meio à feira, onde se encontra até hoje, convertido em magnífico pé de chifres, chifriseiro mais frondoso do Nordeste. Fornece aos artesões matéria-prima para pentes, anéis, objetos variados, copos de chifres para cachaça. Assim, o antigo pistoleiro transformou-se em objeto de real utilidade pública. Quanto a Sabô passou a pertencer à comunidade, sob a imediata proteção do coronel Jarde Ramalho, que acompanhara atentamente perseguição e milagre.

Os pássaros voaram sobre as Alagoas levando Ubaldo Capadócio, os bagos salvos, ao vento. Quando cruzaram a fronteira de Sergipe depositaram-no num convento de freiras que o acolheram com cortesia e não lhe fizeram perguntas.



(Ilustração: Carybé - O ovo da Ema, 1976)

domingo, 9 de julho de 2023

DEDICATION FOR A PLOT OF GROUND / CONSAGRAÇÃO DE UM PEDAÇO DE TERRA, de William Carlos Williams

 




This plot of ground

facing the waters of this inlet

is dedicated to the living presence of

Emily Dickinson Wellcome

who was born in England, married,

lost her husband and with

her five year old son

sailed f or New York in a two-master,

was driven to the Azores;

ran adrift on Fire Island shoal,

met her second husband

in a Brooklyn boarding house,

went with him to Puerto Rico

bore three more children lost

her second husband, lived hard

f or eight years in St. Thomas,

Puerto Rico, San Domingo, followed

the oldest son to New York,

lost her daughter, lost her "baby",

seized the two boys of

the oldest son by the second marriage

mothered them — they being

motherless — fought for them

against the other grandmother

and the aunts, brought them here

summer after summer, defended

herself here against thieves,

storms, sun, fire,

against flies, against girls

that came smelling about, against

drought, against weeds, storm-tides,

neighbors, weasels that stole her chickens,

against the weakness of her own hands,

against the growing strength of

the boys, against wind, against

the stones, against trespassers,

against rents, against her own mind.

She grubbed this earth with her own hands,

domineered over this grass plot,

blackguarded her oldest son

into buying it, lived here fifteen years,

attained a final loneliness and —

If you can bring nothing to this place

but your carcass, keep out.



Tradução de José Paulo Paes:



Este pedaço de terra

defronte às águas do estreito

é consagrado à presença viva de

Emily Dickinson Wellcome

que nasceu na Inglaterra, se casou,

perdeu o marido e com

seu filho de cinco anos

veio para Nova York num navio de dois mastros,

foi bater nos Açores;

vogou a esmo até o baixio de Fire Island,

encontrou o segundo marido

numa pensão do Brooklyn,

foi com ele para Porto Rico

deu à luz mais três filhos, perdeu

seu segundo marido, teve oito anos

de vida dura em St. Thomas,

Porto Rico, São Domingos, acompanhou

o filho mais velho a Nova York,

perdeu sua filha, o seu "bebê",

pegou os dois meninos do

segundo casamento do filho mais velho

serviu-lhes de mãe — deles que eram

órfãos de mãe — lutou por eles

contra a outra avó

e as tias, trouxe-os para cá

verão após verão se defendeu

aqui contra ladrões,

tempestades, sol, incêndio,

contra moscas, moças

que vinham farejar à volta, contra

seca, ervas daninhas, marés de borrasca,

vizinhos, doninhas que lhe roubavam o galinheiro,

contra a fraqueza de suas próprias mãos,

contra a força crescente

dos meninos, contra ventos, contra

pedras, contra os invasores,

contra impostos, contra o seu próprio entendimento.

Cavoucou esta terra com suas próprias mãos,

reinou sobre esta leira de relva,

imprecou o filho mais velho

até que ele a comprasse, viveu aqui quinze anos,

alcançou a solidão definitiva e —

Se não puderes trazer a este lugar

mais do que a tua carcaça, fica longe dele.



(Ilustração: Andrea Kowch, 1986) 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

MAIS ABEIRA O BRANCO, de Valter Hugo Mãe

 



Boa de Espanto sentou e pediu que Altura Verde escutasse:

lembro quase nada. Eu deveria estar em tarefas, certamente fui ao longe para recados. Não sei. Não sei onde estaria. Sei que voltei como se caminhasse demasiado porque sentia muita dor e talvez qualquer percurso me fosse já distante por tanto penar. Atormentou meu espírito aquela brancura, eu não podia ver bem seu rosto, mas a pressa de seu corpo sobre o meu era feita da pele luminosa como se eu agarrasse um pouco de sol e ele não queimasse mas ferisse minha carne toda. Cortava. Não consigo lembrar se o avistei e tentei fugir. Se me colheu de traição. Eu lembro de estar sobre as folhas e havia talvez uma pedra com a qual me bateu. Julguei que tomasse meus ossos. Nem era para usar meu corpo por folia e ferir um filho em mim, eu julguei que ele estivesse cortando para tomar meus ossos.

Altura Verde respondeu:

o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento.

Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.

E a feminina entoou:

tinha sede ou acabara de beber. Havia água, talvez estivesse perto do igarapé, mas não escutava nada porque eu só escutava como algo quebrava sob mim e temia que fosse eu própria. Eu entendi que o animal entrava no meu corpo. Entendi. Mas havia sangue, eu devo ter adormecido na dor porque creio que o sangue me surpreendeu ou assustou. Ele era calado. Coberto de seu entrançado fino. O branco é uma fera que sabe ser silente. E meu berro passava sem eco por seu vazio. Eu sinto que berrei. Porque depois eu quis calar também. Morrer forte. E era sempre tudo muito claro. Eu continuo a ver apenas um corpo de luz pesando sobre mim e essa impressão de algo quebrar. Podia ser osso, mas eu não quebrei osso, sagrado Altura Verde, tu sabes. Eu voltei de esqueleto inteiro. Estou inteira de cada pedaço. Talvez quebrasse algum galho no chão. Deve ter enchido minha boca de folhas ou de terra porque eu sinto sempre nojo. Eu sinto haver comido porcaria e talvez por isso tenha calado também. Eu não sei. E sinto que morri. Sagrado Altura Verde, eu inteira morri. Não devo ter levantado. Fui levantada. Algum espírito me obrigou a caminhar de volta e eu não sei que espírito foi. Altura Verde respondeu:

o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento.

Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.

E a feminina entoou:

alguma coisa estava molhada. Talvez eu levasse água, talvez estivesse de mão mergulhada no igarapé. Quando despertei com o inimigo sobre meu corpo, eu pensei em água ou na vontade de beber. E agora acredito que tivesse tentado nadar, dissolver no curso, descendo. Ele agarrou minhas mãos, porque ainda me sabem suas presas aqui, comprimindo de encontro ao chão, afundando quase como se plantasse meus pulsos. Ele bateu muito, mas eu julgo que foi depois de amainar. Teve sua folia, amainou e bateu. Deve ter usado um galho que quebrou de algum tronco caído porque eu lembro de quebrar alguma coisa. Estava sempre quebrando alguma coisa. O ruído era o da mata morrendo junto.

Altura Verde perguntou:

e como era o inimigo, sagrada Boa de Espanto. Como era.

A feminina respondeu:

branco. Eu vi bem que era branco. Tinha dentes. Muitos dentes. Talvez estivesse sorrindo enquanto se apressava. Talvez mordesse. Ou talvez beijasse. Sujava minha boca com a sua boca. Ia devorar meu interior. Por isso, calei. Certamente foi assim. Eu vi menos seu rosto porque eu virei a cabeça para o chão de jeito a que não entrasse sua língua na minha. O animal mordia. E eu queria água para lavar seu gosto, o cheiro fétido. Fedia. Era uma luz que fedia. E olhava para o chão e alguns galhos ficavam ali e minha mão feria porque era esmagada contra os galhos. Eu cortei muito. Ainda antes que ele amainasse e batesse, eu já cortava. A pele abria e sentia que a carne deitava cada osso ao chão. Ou era meu medo. Devia ser meu medo, porque voltei cortada mas inteira. Doía muito, ainda sinto que dói. Eu queria soltar minha mão. Não sei se soltei. Perdi a força. Era forte para calar, não era forte para mais nada. E o peito dele começou a cobrir meu rosto. Era outras vezes o meu tamanho. Mas eu vi bem que era branco. O inimigo branco.

Altura Verde perguntou:

conta como viste.

A feminina respondeu

era nos meus olhos. Tão claro que parecia imenso por ser indistinto da luz vinda do céu. Ou seriam seus olhos grandes metidos nos meus em pânico. Os olhos podem ser claros, sagrado Altura Verde. Tu crês que eles podem ser apenas um verde tímido num vazio. Eu julgo que era o tamanho dele, vazio. A amplitude de tudo quanto não há. Talvez por isso não possa lembrar do seu rosto. Jamais o poderei lembrar. O tamanho do inimigo branco era vazio. Como se fosse tão covarde que nem ali estivesse enquanto me atacava.

Altura Verde respondeu:

o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento.



(As doenças do Brasil)



(Ilustração: Blakely McDade - self portrait after rape)

segunda-feira, 3 de julho de 2023

LA NOCHE / A NOITE, de Lilian Serpas

 




Criatura entre otros 'egos' desligada,

la noche, en concreción de lo inconcreto

– al no ser la materia resignada –

cuelga de un mundo en su dolor concreto...



Desnace tras la luz, finge el secreto

de verse en el vacío, cuando nada

– si no la levedad del esqueleto –

la equilibra dejándola creada...



Lo infinitesimal que la descifra,

centra – con voz armonica la cifra,

que a su esférica forma la resuelva...



Y en lo posible, o imposible, vaga

– con sus ojos sin luz – yendo a la zaga

de la inviolable lumbre que: ¡la envuelve...!



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Criatura entre outros ‘egos’ desligada,

a noite, em concreção do não concreto

– ao não ser a matéria resignada –

pende de um mundo em seu sofrer concreto...



Desnace atrás da luz, finge o secreto

de ver-se no vazio, quando nada

– a não ser a leveza do esqueleto –

equilibra-a deixando-a inventada...



O brevíssimo evento que a decifra,

concentra – com voz harmônica a cifra,

que em sua esférica forma a resolve...



E no possível, o impossível, erra

– com seus olhos sem luz – indo à procura

da inviolável fulgência que: a envolve...!




(Ilustração: Artemisia Gentileschi - Sleeping Venus)