terça-feira, 31 de outubro de 2017

O FALANSTÉRIO, de Juan Carlos Onetti








Lanza toca os bigodes e levanta outra vez o caneco de cerveja; junto com o disco de cartão pegajoso levanta também o assunto que eu afastei por um momento movendo dois dedos.

- O pior que posso dizer de seus poemas – ele disse – é que são bons. Preferiria vê-los horrorosos, olhá-los como bichos disforme e malnascidos, como animaizinhos a que sobrassem ou faltassem patas, olhos, cornos. Quer dizer...

- Não diga nada, não me interessa. Não me interessam os versinhos que lhe emprestei com vergonha. Não quero arrepender-me. Nasceram e estão mortos. 

- Quer dizer – continua com tristeza e resolução, com uma gravidade desproporcionada – que estão mal por estarem bem. Na sua idade e nesse ano e nessa cidade, eu teria preferido um grito, um gesto incompreensível, alguma forma de loucura.

- Sim. – Sorrio e bebo. – Idade, ano, Santa Maria e, se esqueceu, circunstâncias pessoais.


Fica desarmado e mais triste, procura buscar o moço no meio da mistura de fumaça e palavras, no ar uma noite de sábado no Berna. 


- Não – murmura olhando-me. – Não me esqueci, e você sabe. Deve falar a este pobre velho. Só incomodo no indispensável. Você me entende: porque de tudo o que li, me ficaram só algumas linhas que tocam o que lhe peço, o que você está malditamente condenado a escrever. Desculpe os erros, não se dedique nunca a corrigir provas. Escute o que fizemos:


                 Y yo lo pierdo, doy mi vida


                 a cambio de vejeces y ambiciones ajenas


                 cada dia más sucias, deseosas y frias


                 irme y no lo haré, dejar que no lo crea.

Pedimos mais cerveja, e tomo um tempo grande, esvaziando e carregando o cachimbo, fazendo comentários sobre a gente que entra e sai. A cara de Lanza está bondosa e tranquila, com uma vitória atenuada nos olhos úmidos e vermelhos.


- Sim – digo – me agrada. Mas isso tem pouco que ver, não é o monstro com patas equivocadas que lhe dei para ler. É muito melhor, distante do horror e do grito.

- Não creia – fala por entre os dentes e a espuma, decidido. – Serão falas de memória, trapalhadas de velhos. Mas essas quatro linhas equivocadas... Encontro-lhes, assim, o desconcerto e a verdade que lhe pedi ou desejei. Mas é inútil. Você já disse. Nesta classe de coisas não valem opiniões. Os que as levam a sério estão perdidos. E agora, olhe disfarçadamente para o balcão. Seu parente Marcos invadiu a casa com os parasitas de costume e algumas mulheres. Tudo, ruína melancólica do Falanstério.


Olho e ali estão, bebendo e comprando garrafas. Volto-me para o velho.


- Uma noite me falou no Falanstério. Escutei algum mexerico solto, claro. Mas na verdade, não sei, não entendo.

Lanza se ri fuma devagar.


- Tem tempo? – me pergunta.


- Todo.

- Feliz de você. Acenda e cachimbo e aguente. Outro horror em jogo, na realidade. Lástima, se vai-se jogar. Marcos Bergner não merece a paternidade, nem a culpa do fracasso desse assunto. Que diferença de idade existe entre você e ele?

Fumo, calculando. Não adivinho a intenção do prólogo do velho Lanza. Eu o chamaria de preâmbulo. Em todo o caso, a noite promete ou ameaça ser longa. Conheço os truques dos velhos e dos jovens idiotas para lograr um efeito contando qualquer história trivial. Lembro o enfado de meu pai.


- Uns dez anos, suponho – contesto por fim.


- E desde quando se lembra dele? Peço uma recordação verdadeira. 


- De verdade... Bem; faz dois ou três anos que comecei a vê-lo. Vê-lo desta maneira que você sugere.


Lanza sorri contente e demora acendendo o cigarro. Não importa; me interessa o Falanstério.


- Então – disse com alívio – falamos de pessoas diferentes. Havia, houve outro Marcos. Veja-o bêbedo, gordo, grosseiro, inchado. A grande desgraça, as mudanças me tiraram da Espanha, e aqui estou. Já olhei, tive tempo de sobra, meu problema pessoal de todos os ângulos, a lógica, o sonho, o desespero. Coisas más não faltaram. Finalmente não tive opção. Me empurraram a fundear-me em Santa Maria, junto com o Dr. Diaz Grey, o amigo de Larsen – filatelista de putas pobre – e muitos outros que não vêm ao caso esta noite. Aqui até a morte – me diz ele movendo os ombros, entre os dedos que levantou para cobrir a tosse. – Tristeza, existe; resta a incompreensão. Mas nem drama, nem melodrama. Falanstério. Lhe falava de um Marcos Bergner que você nunca conheceu. Teria, então, os anos que você tem agora. Alguma coisa, muito pouco mais, por acaso. Mas tinha uma coisa que você, me perdoe, não tem. Tinha esta forma de saúde que chamamos sanguínea. Você, escrevendo poemas, pode ou poderá viver as experiências humanas mais importantes. Aquele Marcos as viveu em corpo e alma – se é que tem isso – sem necessidade de escrever uma linha. E estava com a moça de Insurralde, quase compatriota minha. Tenho para mim que o verdadeiro nome deve ser Insaurralde. Mas não importa muito. Toda mudança para Santa Maria murcha e degenera. Não vamos nos preocupar com uma perdida.

- Sim – digo suavemente, para que o velho saiba que estou presente e não o interrompo. – Era noiva de Marcos.


- Ela e todos os hectares de terra que comprou seu pai. A colônia de suíços começava a organizar-se. Cada seis meses chegavam famílias com baús de folha de lata, vestimentas raras e endurecidas, bíblias e vontades. Entretanto, ainda não havia Colônia. Mais ou menos por aqui apareceu o retrato. Teria sido feito por Orloff, o príncipe, que deve andar por esses bairros desde a revolução russa de 1905, ou desde que Catarina, a Grande, se fartou de Potemkin. Orloff lhe contará qualquer coisa e saberá persuadi-lo, lhe dirá com paixão, sem sofre. Mente melhor que eu. Coincidimos, concordo, em anacronismos, exagerações impossíveis. Mas somos diferentes: ele busca a beleza, a vinheta literária, o que agora chamam escapismo, o invento. É uma posição de artista. Eu sou um pobre velho que busca a verdade. 


Às minhas costas, Marcos grita ameaçante e, de imediato, põe-se a rir. Seus amigos fazem-lhe festa e pedem mais copos.


- Que fazem as mulheres? – pergunta Lanza.


Espio e conto sem entusiasmo.


- Uma – lhe digo – fuma com cara de doente, de vômito. Há outra que cantarola e se pinta, tão tranquila como se cosesse um vestido ou arrumasse a casa, uma peça, que se suponha.


Trazem dois canecos de cerveja, e Lanza toca a espuma com os lábios.


- Bem – aceita. – Agora Orloff e a fotografia. Tenho uma cópia em casa, tenho, há anos, uma pasta com tudo o que me interessou ter. Seria uma surpresa. Algum dia o convidarei para vasculhar essa papelada, para conhecer, por sagrado dever patriótico, a verdadeira história de Santa Maria. No entanto, minha versão da foto. Aí tem você um Marcos fraco, com orelhas de sátiro, as sobrancelhas grandes e inquisidoras, o nariz duro, a boca infantil. Há uma capa negra, ou talvez um ponche sobre os ombros; da capa-ponche saem umas mãos incrivelmente grandes, dedos que nunca tive. Não se como se fez o truque. O corte da jaqueta que usa é antigo, o colete alto, e a gravata fúnebre excessivamente grande. Este Bergner, com um talho na sobrancelha, posa olhando para baixo. Pode ser que por aqueles tempos ele também escrevesse poemas. Descanse e veja-o, imagine. Não é impossível, me ocorre agora, que algum dia você venha a se parecer com este Marcos desta noite. No Arquivo e Museu Lanza encontra-se, miraculosamente, outra fotografia indispensável. É da vaquinha Insurralde, Moncha.


Muito pobre, amarela e desvanecida, apenas um recorte de jornal. Mas se nota ainda o olhar desafiante, a boca sensual e desdenhosa, a força da mandíbula. Não esquecemos que era maior que Marcos e maior de idade. Estudando com paciência a segunda cara chega-se a compreender por que não houve tua tia, porque ele, o velho Insurralde, a mãe não existia mais, não teve mais remédio senão meter a viola no saco e aceitar. Aceitou o Falanstério, o que já é muito, se recordarmos hábitos e situações geográficas.

Eram seis, no princípio, todos ricos e jovens. Dois casados, Marcos e Moncha. No período de grandeza chegara a dez, sem contar as crianças. Não se sabe e não consegui sabe-lo, quem propôs e advogou a ideia. Era simples em aparência; era muito simples se a resumirmos sobre um papel, ou a discutirmos de sobremesa. Aquele remoto Marcos Bergner oferecia parte de seus campos e o fragmento de estância que tocará a você herdar um dia. Assunto de bens lucrativos, propriedade indivisível, qualquer definição igualmente repugnante.


Naquele tempo, naquelas noites, os três pares iniciais se reuniam para comer no Clube do Progresso, ou terminavam convidando-se para suas casas. Também, alguns sábados na casa do vasconço Insurralde. A ideia, repito, era tão simples como infalível: mudar-se de Santa Maria, estabelecer-se na pequena estância, recolher colheitas, alegrar-se com o crescimento e a multiplicação dos animais. Primeira etapa. A segunda incluía a compra de mais terras, a importação de animais de raça, a inexorável acumulação de milhares de pesos. O projeto era bom e bem formulado, volto a dizer, em teoria. Todos os pioneiros contavam com um resguardo econômico para ajudar nos casos não esperados de secas, pestes, golpes de granizo, época de vacas fracas. Havia peões, supostamente, para que os homens pudessem concentrar-se na tarefa intelectual de dirigir e planejar. Campesinas humildes para que os meninos não incomodassem demais e para que, dia a dia, a comidas estivessem prontas na hora e, também, supostamente, se trataria de um labor cooperativo, pelo menos no que se refere à repartição dos lucros. Bem, uma comunidade cristã e primitiva baseada em altruísmo, tolerância, mútuo entendimento.

E se fez, iniciaram. Imagino a pequena vasconça, a única solteira do Falanstério, enfrentando o velho Insurralde que só podia suplicar ou dizer palavrões. Porque a Moncha era maior de idade e porque os dois terços da fortuna dos Insurralde pertenciam a ela. Imagino-a impassível e resoluta, com esta cara de jornal que já tratei de descrever, dando, uma só vez, sua resposta:

- Quero conhecer Marcos de verdade. Necessito saber quem é antes de me casar.


E, naturalmente, foi-se com os demais. Uns meses depois se juntou, como já disse, outro par de casados. Fizeram, é justiça dizê-lo, tudo o que haviam proposto para a primeira etapa. A estância, o Falanstério, andou bem, mas muito bem, durante um ano e dezoito meses. Os historiadores não nos pousemos de acordo com respeito a sua duração exata. Mas quando juntávamos nossas solidões, de origens diversas, para jogar pôquer ou buraco (*), coincidíamos naquilo que a História impõe com datas, o que tem de mais incompreensível, choco e tanto. Coincidimos no objetivismo histórico. No nada, na casa de ovo vazia.


Concordamos que aos seis e vinte e três dias a pequena vasconça Insurralde disparou do Falanstério num cavalo roubado, tocou para Santa Maria para descansar se foi para a Capital buscando um barco que a levasse para a Europa. Alguns meses depois o pai vendeu a bons preços o que tinham, e nunca mais soubemos deles. Mas restava ignorada a verdade, e todos nós tentamos apanhar com honra e decoro a casca vazia. Somente, quem ia dizer-nos a verdade? Porque, pouco a pouco se foi despovoando o Falanstério, interromperam-se projetos, deixaram morrer a semeadura e as colheitas, venderam quase todos os animais.


Era inútil pretender que algum dos nove falansterianos abordáveis desse alguma explicação sobre o fracasso. Agora, se lembrarmos que um dos quatro casados decidiu separar-se logo da experiência comunitária, cristã e primitivista, o cronista se sente autorizado, frente a sua consciência profissional e frente ao juízo das gerações futuras, a levar em conta as muito coincidentes versões dos esforçados trabalhadores rurais que acompanharam Marcos e companhia ao êxodo e à aventura. Sobretudo, pode-se crer no pouco que contou Barrientos, o homem que era capataz na malograda empresa e que agora, creio, tem um armazém ou coisa parecida lá pros lados de Enduro.


Quanto a Marcos, esteve à altura das dolorosas circunstâncias, soube aceitar o duelo e a adversidade. De volta a Santa Maria, dedicou-se por um tempo a embebedar publicamente sua tristeza. Depois carregou o iate com caixões de bebidas, obteve a presença fraternal de algumas mulheres e amigos e desapareceu rio acima ou abaixo, durante vários meses.


As declarações dos trabalhadores da terra e dos ginetes encarregados dos rebanhos podem ser, claro, filhas da maledicência. Um investigador severo acreditará, por acaso, neles. Mas não deve utilizar a bisbilhotice ressentida, tão própria das classes baixas, para escrever e legar uma “Introdução à Verdadeira História do Primeiro Falanstério Santa-mariense”. Eu a fiz.


Conto ali que, aos seis meses mais ou menos de iniciado o descomunal empenho, começou-se a notar certa confusão. Não era possível, à primeira vista e intenção, determinar com exatidão quem integrava os sagrados núcleos familiares. Devo deixar consignado que, naturalmente, os peões não se aproximavam com frequência da fortaleza falansterial. Mas estavam ali, inevitáveis, dentro do reduto, as meninas encarregadas da cozinha e do cuidado das crianças.


Lentamente, segundo as calúnias divulgadas, o reinado das novas parelhas, nem legalizadas nem benditas, foi substituído pelo critério que rege as mais aperfeiçoadas sociedades industriais de nosso século: evitar toda a perda de material ou tempo. Pela época, o Marcos Bergner da fotografia que lhe descrevi por um momento tinha conseguido numerosos adeptos para seu culto báquico.

Segundo as más e sujas línguas, o novo e solene rito acontecia duas vezes por semana. Empregavam dados ou cartas, inocentes cédulas de São João envoltas nos chapéus. Os falansterianos renunciaram, pois, aos cegos impulsos, às atrações enganosas. Acataram a onisciência dos deuses, o Azar, o Destino, para dispor, duas vezes semanalmente, de suas companhias noturnas. E as cinco mulheres eram jovens e agradáveis; não opino sobre os homens; só posso dizer que também eram jovens.

Falou-se também de que, para variar de oráculo, jogavam às vezes sorteando chaves dos dormitórios. Esta ideia tem o seu encanto, sua fantasia. Mas eu, como historiador integérrimo e de pudor, não pude aceita-la. Porque é muito pouco provável, você deve sabe-lo, que os dormitórios da estância de Marcos tivessem fechadura e chave. Além do mais, não necessitavam delas; salvo, pode-se admitir com reservas, que as usassem como símbolos, como uma variante poética da cerimônia.


A isto, a escória documental que se obstina com frequência em não deixar-se separar do outro refulgente da verdade, pode acrescentar-se, como simples curiosidade, algum grau aumentativo. A poderosa imaginação novelística dos analfabetos acrescenta que os azarentos pares ajudados pelos deuses descobriram, a seu tempo, também eles, que não há solidão mais triste que a solidão de dois em companhia. Ergo, em consequência, optaram pelos encantos das atividades sociais, pelos prazeres das obras coletivas, tão superiores aos que podem oferecer os egoísmos individualistas, pequeno-burgueses.

Agora, em minha persecução à verdade, devo assinalar-lhe dois pontos de minha história que não resultam de todo convincentes. Tendo em conta, como fator decisivo na natureza humana, que todos nós envaidecemo-nos de compreender, nenhuma reflexão conseguiu me esclarecer por que os falansterianos demoraram tanto a iniciar a fatal promiscuidade. Emprego como data a fuga raivosa e espantada da pequena vasconça Insurralde. E tampouco entendo que, uma vez aceita a integridade de uma experiência comunitária, os personagens do drama tenham podido conviver tanto tempo sem terminar a balaços ou patadas. E acrescento que resulta curioso ver e ouvir seu parente Marcos organizando uma Santa Cruzada contra o humilde prostíbulo que dirige na costa o cidadão Larsen, que tem o mau nome de Junta-Cadáveres. Considerado o assunto de um ponto de vista psicológico, pode tratar-se da tão comum rivalidade vocacional que tem caracterizado sempre os artistas. Agora, se aplicamos um critério marxista, pode ser que o ódio tenha como origem o fato de que as três mulheres da casinha azul não trabalham de graça, não são movidas, na cama, pelo nobre amor ao oficio. Tão diferentes das que teve e conheceu Marcos no breve tempo idílico do inolvidável Falanstério.




 (*) Tute o al mus, no original. Tute é uma espécie de bisca e mus é um tipo de jogo de cartas da Espanha. (N. do T.) 




(Junta-Cadáveres; tradução de Flávio Moreira da Costa)




(Ilustração: Hieronymus Bosch; The Garden of Earthly Delights)






sábado, 28 de outubro de 2017

CANTAR D'AMIGO, de Fernando Namora








Estrangeiro!

talharam-nos em redor fossos, limites

e o cerco das fronteiras.

Estrangeiro! Ninguém entendeu, e nem tu, estrangeiro,

que entre nós não existem cordilheiras.



Ficaste de mãos desastradas, indiferentes,

quando a minha vida roçou a tua vida.

De olhos parados, indiferentes,

quando passei a teu lado.



Estrangeiro! Ficou-me esse desperdício de um adeus

que as tuas mãos frias não disseram,

nem os teus olhos vidrados,

nem a tua boca selada,

mas que eu pressenti, como alguém à beira de um cais,

ao ver sair barcos com gente que nos é estranha,

agitando lenços estranhos

alguém que sofre por nada.

Iludimos a vida, amigo!

E como para ultrapassar as fronteiras

os fossos,

as ironias

bastaria um só olhar!...

Não, estrangeiro! Vamos misturar o sangue dos rios

o abismo dos mapas

fazer qualquer coisa! misturar, misturar.







(Ilustração: Charles Carson - l'union des peuples)




quarta-feira, 25 de outubro de 2017

EFEITO BORBOLETA: A LÓGICA DA TEORIA DO CAOS, de Marcelo Lopes Vieira


  




"Como se o bater das asas de uma borboleta na Ásia,
provocasse, meses depois, um tornado na América”.

Edward Lorenz, 1961.




A citação de Edward Lorenz, que abre nosso texto, talvez, seja tão conhecida quanto incompreendida. Seu sentido literal soa descabido e sem sentido lógico em vista da miríade de eventos, variáveis e fatores, que estão entre estas duas ocorrências tão inversamente proporcionais.

Todavia, quando Lorenz proferiu esta ideia, seu objetivo era elucidar interpretações técnicas por meio de uma alegoria didática. O mesmo que fizeram Ray Bradbury, em seu conto “O Som do Trovão”, e Stephen King, no livro “Novembro de 63” – neste último caso, embutindo uma série de questões filosóficas e entrelaçando outras teorias científicas, ou inerente a ficções científicas se assim o preferir – no meio literário.

Na história de Bradbury, a empresa Safári do Tempo, S.A. vendia aventuras no passado, onde você podia caçar qualquer tipo de animal, em qualquer era. Claro que alguns cuidados deveriam ser tomados:

  1. os aventureiros só poderiam caminhar numa plataforma suspensa a quinze centímetros do chão; 
  2. não podiam tocar em nada e; 
  3. muito menos, matar um animal sem a permissão do guia. 

Intrigado com as condições, o protagonista questiona o motivo de tais orientações. “Não queremos mudar o futuro” é a resposta que ele obtém.

No desenrolar da trama, nosso protagonista pisa num graveto e o quebra, mudando o resultado de uma eleição para presidente que ele havia ganho em seu tempo presente. Ou seja, um simples graveto fora do lugar, criou uma cadeia de eventos caótica que se tornava, como uma avalanche, cada vez maior, culminando em um evento grandioso com o passar do tempo.

Alegoricamente, a narrativa de Bradbury possui a mesma ideia central da frase de Lorenz, todavia, o matemático norte-americano usou sua concretização didática como forma de explicar a alteração que obteve em suas simulações climáticas.

Talvez, se interpretado cientificamente, a alegoria de Bradbury nos renderia o “efeito Bradbury“, ou o “efeito Safári do Tempo“. Mas concordo, o termo “efeito borboleta” é mais marcante, tanto pela beleza implícita, quanto pela curiosidade que incita, além de casar perfeitamente com a formulação científica.

Os fatos que a história nos apresenta dão conta de um matemático, meteorologista e filósofo, Edward Lorenz, que reprogramou um modelo de simulação de movimentos de ventos e massas de ar, nos primitivos computadores da época.

Naqueles dias, a computação quase rupestre limitava a precisão e as equações precisavam ser simplificadas. Nesta repetição de seu experimento, Lorenz digitou algumas casas decimais a menos, dando uma pequena e, a priori, desimportante perturbação nas condições iniciais do problema.

A crença do pesquisador era de que o resultado se alteraria pouco, mas seu espanto foi total quando se viu completamente contrariado pelo comportamento caótico e imprevisível de seu sistema, mesmo sendo ele simples aos olhos da matemática.

E como alguns grandes nomes da ciência antes de si, proferiu sua frase marcante (que abre o nosso texto) ao tentar exemplificar a condição de sua simulação.

Logo, este fenômeno observado por Lorenz seria gravado no imaginário popular como “efeito borboleta” e abarcaria, para os leigos, todo o conhecimento ainda em desenvolvimento sob o rótulo de Teoria do Caos. Físicos, químicos, astrônomos e matemáticos estão mostrando, nas mais diferentes áreas, a incidência do efeito borboleta nas mais diversas áreas do cotidiano, a saber: bolsa de valores, trânsito, movimento de partículas, história, biologia, crescimento populacional etc.

Ou seja, Bradbury estava certo quando supôs em seu conto que “a modificação de um pequeno acontecimento séculos atrás, poderia levar o mundo a outra situação”, tema mais amplamente explorado na já citada obra de Stephen King, “Novembro de 63″.

Dizer que as asas de uma borboleta provocariam um tornado não se torna tão absurdo do ponto de vista matemático, se pudermos garantir variabilidade adequada de eventos e tempo suficientemente grande para o desenrolar de tais eventos.

Mesmo impossível na prática, pela simples impotência em executar previsões para longos períodos de tempo, esse argumento soa muito plausível, matematicamente falando.

Isaac Newton, um dos pais do Cálculo Diferencial, mudou a ciência no século XVIII ao traduzir fenômenos naturais em linguagem matemática, sendo pioneiro na exploração das possibilidades preditivas destes fenômenos, além de nos mostrar que poderíamos explorar o comportamento de todos os fenômenos se tivéssemos informações suficientes.

Sendo assim, às vezes só ainda não possuímos um arcabouço satisfatório de informações para fugir de nossa impotência frente às previsões para longos períodos de tempo.

A semente da Teoria do Caos fora plantada por Henri Poincaré, um dos maiores matemáticos de todos os tempos, em seus estudos em dinâmica conservativa, principalmente em um artigo de 1889, que estudava o Problema Newtoniano de Três Corpos.

Poincaré foi seguido por Birkhoff, já na primeira metade do século XX, que sedimentou o terreno para a exploração da teoria por nomes como Lorenz, o astrofísico Michel Hénon e grandes matemáticos como Stephen Smale, David Ruelle e tantos outros.

Por definição pouco rigorosa, um sistema caótico seria aquele que sofre alterações drásticas em seu resultado quando são feitas mínimas alterações em suas condições iniciais.

Este comportamento caótico está diretamente ligado ao conceito de entropia, que seria, essencialmente, a taxa de dissipação da informação. Esta taxa, por sua vez, pode ser descrita com precisão de diversas maneiras como, por exemplo, o tempo de duplicação (tempo necessário para uma incerteza se duplicar), sendo a questão cabal neste momento, quantos períodos de duplicação são necessários para que este evento altere o todo?

Essa questão é muito pertinente visto que a presença do caos possui um efeito devastador sobre as previsões advindas de modelos científicos, todavia, algumas vezes, o caos controlado pode até ser útil a algumas áreas.

Grosso modo, a Teoria do Caos estuda o comportamento de sistemas dinâmicos não-lineares (traduzindo: várias equações diferenciais complicadas que devem ser solucionadas simultaneamente) que são altamente sensíveis a perturbações em suas condições iniciais.

A natureza determinística (isto é, um modelo matemático que determina os resultados, exatamente, a partir das condições iniciais) do sistema faz dele pouco previsível, sendo este comportamento conhecido como caos determinístico, ou simplesmente caos.

O alicerce matemático desta teoria está alicerçada sobre terreno complexo que envolve teoria qualitativa robusta de equações diferenciais, imersão no mundo da geometria fractal, bem como uma boa capacidade de abstração.

Claro que todos estes elementos são mais do que interessantes (principalmente a este apaixonado pelas equações diferenciais que vos escreve), mas fogem ao escopo da postagem de apenas introduzir, superficialmente, belos conceitos da ciência.

Todavia, saiba que tudo no universo está sob o domínio do Caos, ou é produto do Caos, sendo que James Marti, em 1991, especulou que “o Caos poderia muito bem ser a nova ordem mundial”. Pode não ser bem assim, mas claramente temos uma nova forma de observar e interpretar dados.



(Ilustração: Lisa Stanley - vintage fractal)



domingo, 22 de outubro de 2017

PENHOR, de Walmir Ayala









Quanto pode valer um pássaro

de canto puro e goela solta

que gosta de carícia e se espreguiça

como qualquer amado amante?



O dono levou-o à penhora

por trinta e oito mil

cruzeiros. Diz

que vale o dobro.



Avaliado, não dá mais do que mil e quinhentos

diz o causídico do banco, e chama de brincadeira

esta causa de tão pessoal alcance.



Falando por seu advogado

o dono do pássaro diz

que o assunto é muito sério

e pede mesmo que o pássaro

seja tratado com carinho

pois cantando e recebendo amor

é que se prova valioso.



Neste poema, atentem, a palavra é tão banal,

mas o miolo é pura

poesia.

Difícil é contar como canta o pássaro.

Aí é que seríamos sublimes.





(Ilustração: René Magritte - a bird from an egg)




quinta-feira, 19 de outubro de 2017

CAFÉ QUENTE, NO TREM, de Clarice Lispector







Levantou-se, caminhou com o barulho das rodas, os movimentos inclinados contra a direção do trem; de algum modo achava divertido o esforço que fazia e talvez por isso sorriu como se completasse algum desígnio; penetrou no carro restaurante, pediu café ajeitando o chapéu empoeirado, assumindo vagamente uma atitude de pessoa alta, grande e bem disposta. Sentia uma clara paz aberta como um campo ignorado e tranquilo; aos poucos esqueceu-se de si própria e passou a observar com dócil interesse as coisas do trem, uma mulher mastigando. Raras fagulhas atravessavam com rápida violência as janelas, aquele já-já-já das rodas que pareciam um rumor interno. Entardecia, o trem corria pelos campos já sem cor. O restaurante estava quase vazio, sobre as toalhas manchadas as moscas pousavam, tudo era áspero e seco de poeira. Foi com um sobressalto que notou o próprio abandono. Perscrutou-se com ligeira ansiedade. Alguma coisa imperceptível já se transformara no entanto. Com alguma inquietação ela se escutava, o ser acordado, profundamente intranquilo. Atentava de leve; desvanecera-se a naturalidade das coisas ao seu redor, como o último laivo de morno prazer sonolento ao lavar o rosto, agora a própria existência era sacudida, dura e várias vezes quebrada. Ela mesma sentia-se intimamente sem conforto, as entranhas despertas como se tivesse os sapatos molhados ou a roupa suada presa às costas — num desgosto desassossegado afastou-se do encosto do banco. Compreendia numa decepção sem força e estupefata, já um começo de profundo cansaço fulgurando nos olhos, compreendia que não chegara a nenhuma posse, que a partida para a cidade não era simbólica. E a sensação que experimentara há poucos minutos? buscava ela esperançosa. Mas não, não — e ela não estava à altura de compreender seus pensamentos — na verdade o que havia de intocado, desperto e confuso nela mesma ainda tinha forças para fazer nascer um tempo de espera mais longo que o da infância até os seus dias, de tal modo ela não chegara a nenhum ponto, dissolvida vivendo — isso assustava-a cansada e desesperada do próprio fluir instável e isso era algo horrivelmente inegável, e isso no entanto a aliviava de um modo estranho, como a sensação a cada manhã de não ter morrido à noite. Com um despercebido movimento de desânimo perguntava-se confusamente se esqueceria para sempre o que sentira afinal de tão firme e sereno e cuja espécie já agora ela não podia precisar com nitidez, num começo de esquecimento. Não, não esqueceria, agarrava-se ela a si mesma sem saber, apenas como usá-lo? como viver disso? jamais poderia gastá-lo e isso era também algo inegável, o trem carregava-a para a frente como perdendo-a de si própria, as rodas resfolegavam, o rapaz do restaurante inclinava o corpo segundo o movimento do vagão, equilibrando-se, desequilibrando-se, o café, era quente, sim, certamente a primeira vez no mundo que num vagão restaurante alguém conseguia tomar café quente, o que era uma coisa de se sacudir a cabeça de leve, surpresa, como ela fazia agora agitando a fita vermelha do chapéu marrom.



(O Lustre)




(Ilustração: Daniel Dumetz - La femme au chapeau brun)







segunda-feira, 16 de outubro de 2017

RECOMEÇO, de Moacy Cirne







Sei do sonho:

procuro tua sombra na

penumbra

da memória líquida



e nada encontro.

A lua não é vermelha

não é violeta



não é verdecoisa

mas

os loucos da madrugada



anunciam as primeiras águas da manhã.

Sei do sonho?

Tua sombra pagã

é um corpo que me foge



das mãos cansadas de espantos

e abismos.

A árvore sonolenta

anoitece os meus delírios.



Não te vejo na claridade

do silêncio.



O sol é um pássaro ferido



na solidão



de meus gestos de meus gritos



e a hora cruviana



é uma graviola

grávida



de aromas e carnes



pronta para ser saboreada.

Sei.

Não foi um sonho.



Como encontrar,

então,

na



arquitetura fluvial

de meus quereres,

as linhas



e curvas



de teu corpo barrento-canela?

Ah, não! Ah, sim!

Existe



um



grande sertão



nas veredas da minha paixão.

E eu sei do sonho.

Procuro tua sombra líquida

e nada encontro.

A lua não é verdeluã

mas



tua sombra pagã



anoitece os meus delírios.

Como encontrar,



sol e solidão,



a arquitetura colonial



de teu corpo fluvial?

Como encontrar,



no silêncio de meus gritos,



tua sombra teus aromas tuas carnes?

Sim,

não.



Tua memória vermelha



é uma sombra grávida



de morenezas e reentrâncias



azuis.

Docemente azuis.

Barrentas e azuis.



(Qualquer tudo; 1993)



(Ilustração: foto de Elias Moraes)

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A MORTE DE BERGOTTE, de Marcel Proust








Fiquei sabendo que naquele dia ocorrera uma morte que me causou bastante pesar, a de Bergotte. Sabia-se que a sua doença vinha de muito tempo. Não evidentemente aquela que tivera primeiro e era natural. A natureza parece quase incapaz de provocar doenças que não sejam bem curtas. Mas a medicina se atribuiu a arte de prolongá-las. Os remédios, a remissão que proporcionam, o mal-estar que a sua interrupção faz renascer compõem um simulacro de doença que o hábito do paciente acaba por estabilizar, por estilizar, assim como as crianças têm acessos de tosse regulares muito tempo depois de serem curadas da coqueluche. Depois os remédios fazem menos efeito, sua dose é aumentada, não fazem mais nenhum bem, mas começaram a fazer mal graças a essa indisposição constante. A natureza não lhes teria oferecido uma duração tão longa. É uma grande maravilha que a medicina quase iguale a natureza e possa forçar a ficar de cama, a continuar a tomar um medicamento mesmo sob o risco de morte. Desde então a doença artificialmente implantada fincou raiz, tornou-se uma doença secundária mas verdadeira, com a única diferença que as doenças naturais se curam, mas jamais as criadas pela medicina, pois ela ignora o segredo da cura.

Fazia anos que Bergotte não saía mais de casa. Aliás, jamais gostara da sociedade, ou gostara apenas um dia, para desprezá-la como tudo o mais e da maneira que era a sua, a saber: não desprezar porque não se pode obter, mas logo depois de haver obtido. Vivia com tal simplicidade que não se suspeitava a que ponto era rico, e caso isso fosse sabido se cometeria outro engano ao acreditar que era avaro, pois nunca ninguém foi tão generoso. Ele o era sobretudo com mulheres, com mocinhas, melhor dizendo, que ficavam envergonhadas de receber tanto por tão pouco. Ele se desculpava a seus próprios olhos porque sabia que nunca poderia produzir tão bem quanto na atmosfera de se sentir enamorado. O amor – não, é exagero – o prazer um pouco entranhado na carne ajuda o trabalho literário porque aniquila os outros prazeres, por exemplo os prazeres da sociedade, que são os mesmos para todo mundo. E mesmo se esse amor traz desilusões, ao menos assim ele agita a superfície da alma, que sem isso correria o risco de estagnar. O desejo então não é inútil ao escritor, para primeiro se afastar dos outros homens e se conformar a eles, e em seguida para devolver algum movimento a uma máquina espiritual que, passada certa idade, tende a se imobilizar. Não se chega a ser feliz, mas se percebe as razões que o impedem de ser e que nos continuariam invisíveis sem essas aberturas bruscas das brechas da decepção. E é claro que os sonhos não são realizáveis, bem sabemos; não os teríamos talvez sem o desejo, e é útil tê-los para vê-los fracassar e para que o seu fracasso nos seja instrutivo. Bergotte também se dizia: “Gasto mais que multimilionários com mocinhas, mas os prazeres ou as decepções que elas me dão me fazem escrever um livro que me rende dinheiro.” Em termos econômicos esse raciocínio era absurdo, mas sem dúvida ele encontrava algum contentamento em transmutar assim ouro em carícias e carícias em ouro. E depois, vimos no momento da morte da minha avó, sua velhice fatigada amava o repouso. Ora, na sociedade não há nada exceto conversas. Elas ali são estúpidas, mas têm o poder de suprimir as mulheres, que não são mais que perguntas e respostas. Fora da sociedade, as mulheres voltam a ser o que é tão repousante para o velho fatigado, um objeto de contemplação.

Em todo caso, agora não se tratava de mais nada disso. Disse que Bergotte não saía mais de casa, e quando se levantava uma hora no seu quarto era todo enrolado em xales, mantas, tudo aquilo que se usa para se cobrir no momento de se expor a um frio intenso e pegar um trem. Ele se desculpava com os raros amigos que deixava entrar e, mostrando seus tartans, suas cobertas, dizia alegremente: “O que você quer, meu caro, Anaxágoras já disse, a vida é uma viagem.”[1] Ele ia assim se esfriando progressivamente, pequeno planeta que oferecia uma imagem antecipada dos últimos dias do grande quando, pouco a pouco, o calor se retirará da Terra, e depois a vida. A ressurreição terá chegado então ao fim, pois por mais que brilhem as obras dos homens nas gerações futuras, será preciso que ainda haja homens. Se certas espécies animais resistem por mais tempo ao frio invasor, quando não houver mais homens, e supondo que a glória de Bergotte tenha durado até lá, bruscamente ela se apagará para todo o sempre. Não serão os últimos animais que o lerão, pois é pouco provável que, como os apóstolos em Pentecostes, eles possam compreender a linguagem dos diversos povos humanos sem a ter aprendido.

Nos meses que precederam sua morte, Bergotte sofria de insônias, e o que é pior, logo ao adormecer de pesadelos que, se acordava, faziam com que evitasse dormir de novo. Por um longo tempo gostou de sonhos, mesmo de sonhos ruins, porque graças a eles, graças à contradição com a realidade que se tem no estado de vigília, eles nos dão, o mais tardar assim que se acorda, a sensação profunda de que dormimos. Mas os pesadelos de Bergotte não eram assim. Quando antes falava de pesadelos, referia-se a coisas desagradáveis que se passavam no seu cérebro. Agora, é como vindos de fora que percebia uma mão munida de um esfregão molhado que, passada no seu rosto por uma mulher má, se esforçava em acordá-lo, cócegas insuportáveis nas ancas, a fúria – pois Bergotte havia murmurado dormindo que ele conduzia mal – de um cocheiro louco de raiva que se jogava sobre o escritor e lhe mordia os dedos, os serrava. Enfim, assim que no seu sono a obscuridade era suficiente, a natureza fazia uma espécie de ensaio sem figurinos do ataque de apoplexia que o levaria: Bergotte entrava de viatura sob o pórtico do novo palacete dos Swann, queria descer. Uma vertigem fulminante o pregava a seu banco, o porteiro tentava ajudá-lo a descer, ele permanecia sentado sem poder se levantar, firmar as pernas. Tentava se agarrar ao pilar de pedra que estava à sua frente, mas não achava nele apoio suficiente para se pôr de pé. Consultou médicos que, lisonjeados por serem chamados por ele, viram nas suas virtudes de grande trabalhador (há vinte anos já não fazia nada), no seu cansaço excessivo, a causa de seu mal-estar. Eles o aconselharam a não ler contos aterrorizantes (ele não lia nada), a aproveitar mais o sol “indispensável à vida” (ele devia alguns anos de melhora relativa tão somente a seu enclausuramento em casa), a se alimentar mais (o que o fez emagrecer e alimentou sobretudo seus pesadelos).Um dos seus médicos, tendo o dom da contradição e da implicância, quando Bergotte o via na ausência dos outros, e para não constrangê-lo lhe submetia como ideias próprias as que os outros lhe haviam aconselhado, o médico do contra, achando que Bergotte tentava que receitasse algo que lhe agradasse, o proibia de imediato, e frequentemente com razões fabricadas com tal rapidez para as necessidades da causa que, diante das objeções materiais que lhe fazia Bergotte, o doutor do contra era obrigado a se contradizer na mesma frase, mas com razões novas reforçava a mesma proibição. Bergotte voltava a um dos primeiros médicos, homem metido a espirituoso, sobretudo diante de um dos mestres da pena, e se Bergotte insinuava “Parece-me, no entanto, que o doutor X me disse – noutro tempo, bem entendido – que isso poderia me congestionar o rim e o cérebro…”, sorria maliciosamente, levantava o dedo e proferia: “Eu disse usar, e não abusar. Todo remédio, é claro, se exageramos, torna-se uma arma de dois gumes.” Há no nosso corpo certo instinto daquilo que nos é salutar, como no nosso coração daquilo que é um dever moral, e que nenhuma autorização de um doutor em medicina ou teologia pode substituir. Sabemos que os banhos frios nos fazem mal, gostamos deles, sempre encontraremos um médico para aconselhá-los, e não para impedir que nos façam mal. De cada um dos seus médicos Bergotte obteve o que, por discernimento, ele se proibira durante anos. Ao fim de algumas semanas os acidentes de outrora haviam reaparecido, e os recentes tinham se agravado. Atormentado por um sofrimento de todos os minutos, ao qual se somava a insônia entrecortada por breves pesadelos, Bergotte não fez mais vir nenhum médico e tentou com sucesso, mas com excesso, diferentes narcóticos, lendo com confiança a bula que acompanha cada um deles, bula que proclamava a necessidade do sono mas insinuava que todos os produtos que o provocam (salvo o contido no frasco que ela envolvia, o qual nunca causava intoxicação) eram tóxicos, e por isso tornavam o remédio pior que o mal. Bergotte tentou todos. Alguns são de uma família diferente daqueles aos quais estamos habituados, derivados por exemplo da amila e do etilo. Não se absorve o produto novo, de composição totalmente distinta, senão com a deliciosa expectativa do desconhecido. O coração bate como num primeiro encontro. A que gêneros ignorados de sono, de sonhos, o recém-chegado vai nos conduzir? Ele está agora dentro de nós, tem a direção do nosso pensamento. De que maneira nos fará adormecer? E o tendo feito, por quais caminhos estranhos, sobre quais picos, a quais precipícios inexplorados o mestre todo-poderoso nos conduzirá? Que novo agrupamento de sensações conheceremos nessa viagem? Vai nos levar ao mal-estar? À beatitude? À morte? A de Bergotte sobreveio na véspera daquele dia, quando se entregara em confiança a um desses amigos (amigo, inimigo?) poderoso demais.

Morreu nas seguintes circunstâncias: uma crise leve de uremia foi motivo para que lhe prescrevessem repouso. Mas, tendo um crítico escrito que na Vista de Delft, de Ver Meer (emprestado pelo Museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer bastante bem, um pequeno pedaço de parede amarela (do qual não se lembrava) era tão bem pintado que, visto sozinho, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastava em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir foi tomado por tonturas. Passou diante de vários quadros e teve a impressão de secura e inutilidade de uma arte tão artificial, e que não valia as correntes de ar e o sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Ver Meer que ele recordava mais intenso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez os pequenos personagens de azul, que a areia era rosa, e por fim a preciosa matéria do pequenino pedaço de parede amarela. Suas tonturas aumentaram; fixou o olhar, como uma criança na borboleta amarela que quer pegar, no precioso pedaço de parede. “É assim que eu deveria ter escrito, dizia ele. Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse pequeno pedaço de parede amarela.” Enquanto isso a gravidade das suas tonturas não lhe escapava. Numa balança celeste lhe aparecia, pesando num dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha o pequeno pedaço de parede tão bem pintado de amarelo. Sentia que imprudentemente havia dado a primeira pelo segundo. “Mas eu não gostaria, disse a si mesmo, de ser para os jornais vespertinos a nota pitoresca dessa exposição.” Ele se repetia: “Pequeno pedaço de parede amarela com um alpendre, pequeno pedaço de parede amarela.” Nisso deixou-se cair sobre um canapé circular; também bruscamente parou de pensar que a sua vida estava em jogo e, voltando ao otimismo, se disse: “É uma simples indigestão que me deram umas batatas malcozidas, não é nada.” Um novo golpe o abateu, ele rolou do canapé para o chão, aonde acorreram todos os visitantes e vigias. Estava morto. Morto para sempre? Quem o pode dizer? Claro que as experiências espíritas não fornecem mais provas do que os dogmas religiosos de que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida sobre esta terra para que nos acreditemos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser polidos, nem para que o artista ateu se acredite obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho cuja admiração que suscitará importará pouco a seu corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarela que pintou com tanta ciência e refinamento um artista para sempre desconhecido, mal e mal identificado pelo nome de Ver Meer. Todas essas obrigações que não têm a sua confirmação na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, um mundo inteiramente diferente desse aqui, e do qual saímos para nascer nessa terra, antes talvez de a ele retornar e reviver sob o império dessas leis desconhecidas, às quais obedecemos porque portamos o ensinamento delas em nós, sem saber quem aí as traçou, essas leis das quais todo trabalho profundo da inteligência nos aproxima e que são invisíveis somente – e se tanto! – aos tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava morto para sempre não é inverossímil.

Enterraram-no, mas no velório todo, nas estantes iluminadas, os seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos com as asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo da sua ressurreição.



(Em busca do tempo perdido: A prisioneira; tradução de Mario Sergio Conti)



[1]A edição Pléiade diz que a formulação não é de Anaxágoras, filósofo grego do século V a.C., e sim de Sêneca, pensador romano do tempo de Cristo.




(Ilustração:  Vermeer - view of Delft)



terça-feira, 10 de outubro de 2017

METADE PÁSSARO, de Murilo Mendes






A mulher do fim do mundo

Dá de comer às roseiras,

Dá de beber às estátuas,

Dá de sonhar aos poetas.



A mulher do fim do mundo

Chama a luz com um assobio,

Faz a virgem virar pedra,

Cura a tempestade,

Desvia o curso dos sonhos,

Escreve cartas ao rio,

Me puxa do sono eterno

Para os seus braços que cantam.





(Antologia Poética)




(Ilustração: Georgy Kurasov ; everything with a twist)





sábado, 7 de outubro de 2017

ENSINAR EXIGE ALEGRIA E ESPERANÇA, de Paulo Freire






O meu envolvimento com a prática educativa, sabidamente política, moral, gnosiológica, jamais deixou de ser feito com alegria, o que não significa dizer que tenha invariavelmente podido criá-la nos educandos. Mas, preocupado com ela, enquanto clima ou atmosfera do espaço pedagógico, nunca deixei de estar.

Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, a esperança não é algo que a ela se justaponha.

A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A desesperança é negação da esperança.

A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, a desesperança é o aborto deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História.

É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por “n” razões, se tornou desesperançado. Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza.

Por tudo isso me parece uma enorme contradição que uma pessoa progressista, que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja criticamente esperançosa.

A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista e portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim “a priori” conhecido prescinde da esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza humana social e historicamente constituindo-se.

Tive, recentemente em Olinda, numa manhã como só os trópicos conhecem, entre chuvosa e ensolarada, uma conversa, que diria exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra, a cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular. Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou negação –, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda ou do Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada.

Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um sem-número de problemas. Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Como fazer o que fazer? Que precisamos nós, os chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros encontros com mulheres, homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja existência vem sendo esmagada?

Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro popular. Olhávamos de cima um braço de rio poluído, sem vida, cuja lama e não cuja água empapa os mocambos nela quase mergulhados. “Mais além dos mocambos”, me disse Danilson, “há algo pior: um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público.

Os moradores de toda esta redondeza ‘pesquisam’ no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha vivos”. Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato que citei horrorizado e pleno de justa raiva no meu último livro À sombra desta mangueira.

É possível que a notícia tenha provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista em favor sempre dos poderosos. “É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta.” A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos os progressistas de lutar.

Eu me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e indestrutíveis razões me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética. “Que fazer? A realidade é assim mesmo”, seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a própria existência humana. Numa história assim determinada as posições rebeldes não têm como tornar-se revolucionárias.

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo “pré-dado”, mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos.

Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e “morno”, que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir.

A adaptação a situações negadoras da humanização só pode ser aceita como consequência da experiência dominadora, ou como exercício de resistência, como tática na luta política. Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo. Esta questão, a da legitimidade da raiva contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes, foi um tema que esteve implícito em toda a nossa conversa naquela manhã.




(Ilustração: Frederic Watts  - Hope - L'Espoir, 1886)