quinta-feira, 28 de setembro de 2017

COISAS DE LUZ ANTIGAS, de Ana Luísa Amaral







Aquele namorado que tinha

um nome bom: há quanto tempo foi?

A vida resvalante como gelo

e aquele namorado de nome bom

e férias, ficou perdido em luz,

mais de vinte anos.



Deu-me uma vez a mão

um beijo resvalante à hora de deitar

e na pensão. Mas tinha um nome bom.

falava de cinema e calçava de azul

e um bigode curtinho,

que escorregou aceso como gelo

no centro da pensão.



Rasguei as cartas dele

há quinze anos, em dia de gavetas

e de luz, e nem fotografia me ficou

de desarrumação. Mas tinha um nome bom,

falava de cinema e calçava de azul

e resvalou-me quente como gelo

à hora de deitar:



um namorado sem falar

de amor



(que a timidez maior

e o quarto dos meus pais

nessa pensão

no mesmo corredor)





(Ilustração: John Bull - Couples argument)




segunda-feira, 25 de setembro de 2017

ELA, A DOR, de Leon Tolstói







Ivan Ilitch via que estava morrendo e desesperava-se.

No fundo do coração sabia que estava indo embora e, longe de acostumar-se com a ideia, simplesmente não conseguia entendê-la.

O exemplo de um silogismo que aprendera na Lógica de Kiezewetter, “Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal”, parecera-lhe a vida toda muito lógico e natural se aplicado a Caio, mas certamente não quando aplicado a ele próprio. Que Caio, ser abstrato, fosse mortal estava absolutamente correto, mas ele não era Caio, nem um ser abstrato. Não: havia sido a vida toda um ser único, especial. Fora o pequeno Vanya, com mamãe e papai e Mita e Volodya, com brinquedos e um tutor e uma babá; e mais tarde com Kátia e todas as alegrias e prazeres da infância, da adolescência e da juventude. O que sabia Caio do cheiro da bola de couro de que Vanya tanto gostava? Por acaso era Caio quem beijava a mão de sua mãe e escutava o suave barulho da seda de suas saias? Foi por acaso Caio quem se envolveu em protestos quando estudante de Direito? Foi Caio quem se apaixonou? Quem presidiu sessões como ele?

E Caio certamente era mortal e era mais do que justo que morresse, mas ele, o pequeno Vanya, Ivan Ilitch, com todos os seus pensamentos e emoções, é completamente diferente. Não pode ser verdade, isto seria terrível demais.

Era assim que se sentia por dentro.

“Se eu tinha que morrer, assim como Caio, deveriam ter-me avisado antes. Uma voz dentro de mim desde o início deveria ter-me dito que seria assim. Mas não havia nada em mim que indicasse isso; eu e todos os meus amigos sabíamos que no nosso caso seria diferente. E eis que agora... Não... não pode ser e no entanto é assim! Como entender isso?”

E não conseguia compreender e tentava desviar seus mórbidos e desesperançados pensamentos e substituí-los por outros mais razoáveis, mais saudáveis, mas a ideia – e não apenas a ideia, mas a realidade tal qual se apresentava – voltava a todo momento para enfrentá-lo.

E ele buscava outros pensamentos para pôr no lugar desses, um depois do outro, na esperança de encontrar alento. Tentou voltar a antigos pensamentos que no passado o haviam protegido contra a ideia da morte. Mas, estranhamente, tudo aquilo que antes costumava encobrir, obscurecer e destruir o sentimento de morte já não fazia mais o mesmo efeito. Ivan Ilitch passava agora a maior parte do seu tempo nessas tentativas de reencontrar a antiga proteção mental que mantinha a morte fora de sua vista. Dizia-se a toda hora: “Vou retomar minhas atividades – afinal de contas eu vivia para o meu trabalho!”. E afastando todas as dúvidas, ia para o Tribunal, começava a conversar com seus colegas e sentava em sua cadeira com ar distraído, como era de hábito. Observava as pessoas com olhar pensativo e, descansando suas mãos magras no braço da cadeira, como sempre fazia, inclinava-se para um colega e, puxando os papéis para perto de si, sussurravam trocando impressões e então, subitamente levantando os olhos e endireitando-se na cadeira, pronunciava as tradicionais palavras que davam início à sessão. Mas, abruptamente, no meio disso tudo, a dor no lado, não importando a etapa do trabalho em que se encontrasse, surgia e impunha-se. Ivan Ilitch, assim que tomava consciência dela, tentava desviar o pensamento, mas ela resistia, teimosa. A dor chegava e postava-se frente a ele, olhando-o, afrontando-o, e ele enrijecia de pavor, a visão escurecia e perguntava-se se ela, a dor, existia realmente. E seus colegas e subordinados notavam com surpresa e pesar que ele, o juiz brilhante e arguto, estava se confundindo e cometendo erros. Tentava se recompor e recuperar o controle e conseguia, de alguma forma, encerrar a sessão, e voltava para casa com a triste certeza de que o trabalho já não podia, como antigamente, esconder dele o que queria que ficasse escondido e que suas atividades não podiam, definitivamente, livrá-lo dela! E pior do que tudo, ela chamava constantemente sua atenção, não para fazê-lo tomar alguma providência, mas simplesmente para fazê-lo olhar direto no seu rosto e, sem poder fazer nada, sofrer, sofrer indescritivelmente.

E para tentar salvar-se desse estado de espírito, Ivan Ilitch procurava alívio – novos abrigos – e encontrava proteções que por um momento pareciam salvá-lo, mas em seguida mostravam-se ineficazes, como se ela penetrasse em todos eles e nada pudesse tirá-la dali.

Algumas vezes, já tarde, ele ia até a sala de visitas que ele próprio havia mobiliado e decorado – aquela sala de visitas onde houve a queda por culpa da qual (e como isso lhe parecia irônico) estragara toda sua vida, pois sabia que sua doença se originara daquele machucado.

Entrava na sala e, notando que havia algum arranhão na mesa, procurava logo a causa e via que era a capa de bronze de um álbum fora do lugar. Pegava o valioso álbum que havia arrumado com tanto carinho e irritava-se com sua filha e as amigas por sua falta de cuidado – aqui e ali havia uma página rasgada ou uma fotografia de cabeça para baixo. Colocava tudo em ordem e punha o álbum de volta no lugar.

De repente ocorria-lhe mudar todos os álbuns de lugar e colocá-los no canto da sala onde estavam as plantas. Chamava o empregado, mas quem vinha em seu socorro era sua mulher ou sua filha, que nunca concordavam com ele, contrariavam-no e ele discutia e acabava se irritando. Mas estava tudo bem, desde que ele não pensasse nela. Ela não estava ali.

Mas bastava sua esposa dizer, assim que o via carregar ele mesmo alguma coisa: “Deixe que os empregados fazem isso, você vai se machucar outra vez” e imediatamente ela punha os olhos para dentro do abrigo que o protegia. Ele podia vê-la. Ela só dera uma espiada e ele tinha esperanças de que desaparecesse, involuntariamente. Via-se esperando por ela – e lá estava, a mesma de antes, doendo, doendo o tempo todo e agora já não podia esquecê-la e ela o olha atentamente por detrás das flores. “De que adianta isso tudo?”

“E a verdade é que perdi minha vida aqui, perto daquela cortina, assim como poderia tê-la perdido invadindo um forte. Dá para acreditar? Que coisa terrível! É ridículo! Não pode ser! Não pode ser, mas é!”

Ele então ia para seus aposentos, deitava-se e outra vez ficava a sós com ela. Cara a cara com ela. E não havia nada que ele pudesse fazer com ela, a não ser olhar e estremecer.



(A morte de Ivan Ilitch; tradução de Vera Karam)



(Ilustração: Joseph-Denis Odevaere - Lord Byron on his Death Bed; c. 1826)






sexta-feira, 22 de setembro de 2017

HARMONIA VELHA, de Guilherme de Almeida



    



O teu beijo resume

Todas as sensações dos meus sentidos

A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume

Dos teus lábios acesos e estendidos

Fazem a escala ardente com que acordas o fauno

encantador

Que, na lira sensual de cinco cordas,

Tange a canção do amor!



E o tato mais vibrante,

O sabor mais sutil, a cor mais louca,

O perfume mais doido, o som mais provocante

Moram na flor triunfal da tua boca!

Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira;

Flor de alma, que é também

Um acorde em minha lira,

Que é meu mal e é meu bem...



Se uma emoção estranha

o gosto de uma fruta, a luz de um poente -

chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha



qualquer sentido meu, é a ti somente

que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo...

E acabo de pensar

Que qualquer emoção vem de teu beijo

Que anda disperso no ar...




(Ilustração: Leonid Afremov - Vintage Kiss)



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

ALBERTINE MORRERA, de Marcel Proust








Supressão do sofrimento, não, mas uma dor desconhecida, a de saber que ela não voltaria mais. Não dissera eu a mim mesmo, porém, tantas vezes, que talvez ela não voltasse? De fato, mas agora percebia que nem por um minuto havia acreditado nisso. Como necessitasse de sua presença, de seus beijos, para o suportar o mal que me causavam as suspeitas, eu adquirira, desde Balbec, o hábito de estar sempre a seu lado. Mesmo quando ela saía e eu ficava sozinho, ainda a beijava. E assim continuei quando ela foi para a Touraine. Precisava menos de sua fidelidade que de sua volta. E se minha razão podia duvidar disso impunemente, nem por um instante minha imaginação deixava de figura-lo. Instintivamente, passei a mão pelo pescoço e nos lábios, que se sentiam beijados por ela depois que se fora, e que não o seriam nunca mais; passei a mão por eles, do mesmo modo que mamãe me acariciava quando da morte de minha avó, dizendo-me: “Coitadinho, tua avó que te queria tanto, agora não te beijará mais”. Toda a vida futura estava arrancada de meu coração. Minha vida futura? Não pensara eu, então que lhe consagrara todos os minutos de minha vida, até a morte? Certamente que sim! Esse futuro inseparável dela e que não soubera perceber, agora que acaba de descerrar-se, bem sentia o lugar que ela ocupava em meu coração escancarado.

Françoise, não sabendo ainda de nada, entrou no quarto. Gritei-lhe, furioso:

- Que é que há?

Então (às vezes, certas palavras põem uma realidade diferente no mesmo lugar da que está perto de nós: atordoam-nos como uma vertigem) me disse ela:

- Não precisa ficar com esse ar zangado. Pelo contrário, vai ficar muito satisfeito. São duas cartas da srta. Albertine.

Senti, depois, que devia estar com os olhos de alguém cujo espírito vacilasse. Nem mesmo me senti feliz, nem incrédulo. Estava como uma pessoa que visse o mesmo lugar no quarto, ocupado por um sofá e por uma gruta: nada mais lhe parecendo real, ela desaba no chão.

As duas cartas de Albertine deviam ter sido escritas a poucas horas de distância, talvez na mesma ocasião, pouco antes do passeio em que ela morrera. Dizia a primeira:

“Meu amigo, agradeço-lhe a prova de confiança que me deu, ao me comunicar sua intenção de levar Andrée para sua casa. Sei que ela aceitará com alegria, e será ótimo para ela. Bem-dotada como é, saberá aproveitar a companhia de um homem de sua qualidade e a admirável influência que você sabe exercer sobre as pessoas. Creio que desta sua ideia poderá advir tanto bem para ela quanto para você. Por isso, se ela puser qualquer dificuldade (o que não acredito), mande-me um telegrama, que me encarrego de arranjar as coisas”.

A segunda era datada de um dia mais tarde. Na realidade, deviam ter sido escritas a poucos instantes uma da outra, talvez juntas, e a primeira antedatada. Pois durante doto o tempo eu imaginara absurdamente suas intenções, que não consistiam senão em voltar para junto de mim, e qualquer pessoa desinteressada no assunto, um homem sem imaginação, o negociador de um tratado de paz, o comerciante que examina uma transação, as teria compreendido melhor do que eu. Continha apenas estas palavras:

“Seria muito tarde para eu voltar para sua casa? Se você ainda não escreveu para Andrée, consentiria em me aceitar de novo? Eu me curvarei diante de sua decisão, mas, por favor, não demore a comunica-la; bem avalia com que impaciência a espero. Se for para eu voltar, tomarei o trem imediatamente. Sua, de todo o coração, Albertine”.

Para que a morte de Albertine pudesse suprimir meus sofrimentos, seria preciso que o choque a tivesse matado não somente na Touraine, mas em mim. Nunca ela aí estivera tão viva. Para penetrar em nós, uma criatura é obrigada a tomar a forma, a submeter-se ao quadro do tempo; só nos aparecendo em minutos sucessivos, nunca pode dar-nos de si senão um aspecto de cada vez, fornecer-nos apenas uma fotografia. Grande fraqueza, sem dúvida, para uma criatura, consistir numa simples coleção de momentos; grande força, também. Depende da memória, e a memória de um momento não está informada sobre tudo o que se passou depois; aquele momento que ela registrou perdura ainda, vive ainda, e, com ele, a criatura que aí se perfilava. E depois, esse esmigalhamento não faz viver simplesmente a morta, multiplica-a. Para me consolar, não era uma, eram inúmeras Albertines que eu deveria esquecer. Quando tinha chegado a suportar a mágoa de perder esta aqui, tinha de recomeçar com relação a outra, a cem outras.

Então minha vida ficou inteiramente mudada. Aquilo que, e não por causa de Albertine, mas paralelamente a ela, quando eu estava só, lhe constituíra a doçura, fora justamente, ao apelo de momentos idênticos, o perpétuo renascimento de momentos antigos. Pelo rumor da chuva me era restituído o cheiro dos lilases de Combray; pela mobilidade do sol no balcão, os pombos dos Campos Elíseos; pelo amortecimento dos ruídos no calor da manhã, a frescura das cerejas; o desejo da Bretanha ou de Veneza, pelo rumor do vento e pela volta da Páscoa. O verão chegava, os dias eram longos, fazia calor. Era o tempo em que, de manhã cedinho, estudantes e professores vão para os jardins públicos preparar debaixo das árvores seus últimos concursos, a fim de recolherem essa gota única de frescura, deixada cair de um céu menos flamejante que sob o ardor do dia, mas já também esterilmente puro.

Do meu quarto escuro, com um poder evocação igual ao de outrora, mas que já não me causava senão sofrimento, eu sentia que lá fora, na densidade do ar, o sol poente punha na verticalidade das casas e das igrejas um tom fulvo de oca. E se, ao voltar, Françoise desarranjava involuntariamente as pregas das grandes cortinas, eu sufocava um grito ante o rasgão que acabava de fazer em mim aquele raio de sol antigo, que me fizera achar linda a fachada nova de Bricqueville l’Orgueilleuse, quando Albertine me disse: “Ela foi restaurada”. Não sabendo como explicar meu suspiro a Françoise, eu lhe dizia: “Ai, que sede! ” Ela saía, voltava, mas eu me virava violentamente, sob a dolorosa descarga de uma entre mil recordações invisíveis que a cada momento explodiam em redor, na sombra: acabara de vê-la trazendo a cidra e as cerejas que um empregado da granja nos levara ao carro, em Balbec, espécies sob as quais eu mais perfeitamente comungaria, outrora, com o arco-íris das salas de jantar escuras, nos dias ardentes. Pensei, então, pela primeira vez, na granja de Escorres, e disse comigo que em certos dias em que me declarara em Balbec não estar livre, pois era obrigada a sair com a tia, Albertine estaria talvez com alguma de suas amigas, numa granja a que ela sabia que eu não costumava ir, e, enquanto eu a esperava ansiosamente em Marie-Antoinette, onde me haviam dito: “Não a vimos hoje”, ela usava com sua amiga as mesmas palavras que comigo, quando saíamos os dois: “Ele não terá ideia de nos procurar aqui, e assim não seremos perturbadas”.

Eu dizia a Françoise que cerrasse as cortinas, para não tornar a ver aquele raio de sol. Mas ele continuava a filtrar-se, igualmente corrosivo, na memória: “Não gosto, foi restaurada. Mas amanhã iremos a Saint-Martin-le-Vêtu, e depois de amanhã a...” Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava mais ali, Albertine morrera.



(Em busca do tempo perdido: A fugitiva; tradução de Carlos Drummond de Andrade)





(Ilustração: Jacques Falce;  Proust - Le narrateur et Albertine sur la digue Marcel Proust)



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

L’APPEL AMER D’UN SANGLOT / O APELO AMARGO DE UM SOLUÇO, de Joyce Mansour








Venez femmes aux seins fébriles

Ecouter en silence le cri de la vipère

Et sonder avec moi le bas brouillard roux

Qui enfle soudain la voix de l'ami

La rivière est fraîche atltour de son corps

Sa chemise flotte blanche comme la fin d'un discours

Dans l'air substantiel avare de coquillages

Inclinez-vous filles intempestives

Abandonnez vos pensées à capuchon

Vos sottes mouillures vos bottines rapides

Un remous s'est produit dans la végétation

Et l'homme s'est noyé dans la liqueur



Tradução de Éclair Antonio Almeida Filho:


Venham mulheres de seios febris

Escutar em silêncio o grito da víbora

E sondar comigo o baixo nevoeiro ruivo

Que infla de súbito a voz do amigo

O rio é fresco em torno do corpo dele

Sua camisa flutua branca como o fim de um discurso

No ar substancial avaro de conchas

Inclinem-se moças intempestivas

Abandonem seus pensamentos de chapeuzinho

Suas imbecis molhadelas suas botas rápidas

Um redemoinho se produziu na vegetação

E o homem se afogou no licor



(Carrè Blanc, 1965)





(Ilustração: Viktor Olivia; Le buveur d'absinthe)





terça-feira, 12 de setembro de 2017

DUAS VULVAS CHEIAS, de Cristina Judar








desalojavam-se continuamente, suas vulvas em estado crescente, duas luas. permitiam-se pernas, ventriloquismos diversos e endoidecimentos, sob a pena de não darem conta de toda a noite. os desejos, secos, queimavam os ventres livres das senhoras estandartes. navegavam em solo profundo para depois ressurgirem soberanas em mantos de fúcsia e líquen. roucas. em uma rua qualquer da bela vista. que era madame, e também era Satã.

o bar improvisado em uma garagem de frente tocava em looping um CD mequetrefe com a miscelânia: pet shop boys e bauhaus, the cure, cindy lauper e “radio gaga”, do queen, como se tudo isso fosse a mesma coisa. o dono do lugar sempre diz: “é tudo a mesma coisa”. ele ama o tecno brega soante enquanto come o churrasquinho da calçada, ao lado da loja da moça de roupas de renda que tem como freguesas as crentes de bíblias quentes.

mas, voltando ao quarto, revolvendo os tecidos, tudo vazava em encanto, expurgo e esconjuração. uma delas sorvia o próprio batom, o sabor ácido & pastoso, ele, passado nos lábios para que a aparência garantisse o embelezamento aliado ao devido ultrapassar de fronteiras, em instantes ela iria subir por um elevador transparente que trafegava rumo ao alto, tão rápido a ponto de dar vertigem, com luzes roxas e douradas exibidas do lado de fora da caixa acrílica. um top of the rock imaginário, mas, mesmo assim, top of the rock.

esse era o cenário da orgia literária de bocas que dizem mais do que mil livros. quando emudecidas nos instantes preliminares de fortes contrações físicas e comportamentais. tensão e expansão do mundo entre lençóis. arquitetas do universo, ditavam sinfonias astrais como quem não está nem aí.





(Ilustração: Pablo Picasso; mulheres de Argel)



domingo, 10 de setembro de 2017

ANTINOUS / ANTÍNOO, de Fernando Pessoa








It rained outside right into Hadrian's soul.



The boy lay dead

On the low couch, on whose denuded whole,

To Hadrian's eyes, that at their seeing bled,

The shadowy light of Death's eclipse was shed.



The boy lay dead and the day seemed a night

Outside. The rain fell like a sick affright

Of Nature at her work in killing him.

Through the mind's galleries of their past delight

The very light of memory was dim.



O hands that clasped erewhile Hadrian's warm hands,

That now found them but cold!

O hair bound erstwhile with the pressing bands!

O eyes too diffidently bold!

O bare female male-body like

A god that dawns into humanity!

O lips whose opening redness erst could strike

Lust's seats with a soiled art's variety!

O fingers skilled in things not to be named!

O tongue which, counter-tongued, the throbbed brows flamed!

O glory of a wrong lust pillowed on

Raged conciousness's spilled suspension!

These things are things that now must be no more.

The rain is silent, and the Emperor

Sinks by the couch. His grief is like a rage,

For the gods take away the life they give

And spoil the beauty they made live.

He weeps and knows that every future age

Is staring at him out of the to-be.

His love is on a universal stage.

A thousand unborn eyes weep with his misery.



Antinous is dead, is dead forever,

Is dead forever and the loves lament.

Venus herself, that was Adonis' lover,

Seeing him again, having lived, dead again,

Lends her great skyey grief now to be blent

With Hadrian's pain.



Now is Apollo sad because the stealer

Of his white body is forever cold.

In vain shall kisses on that nippled point

Covering his heart-beats' silent place implore

His life again to ope his eyes and feel her

Presence along his veins this fortress hold

Of love. Now no caressing hands anoint

With growing joy that body's lusting lore.



The rain falls, and he lies like one who hath

Forgotten all the gestures of his love

And lies awake waiting their hot return.

But all his vices' art is now with Death:

He lies with her, whose sex cannot him move,

Whose hand, were't not cold, still ne'er his could burn.

Lilies were on his cheeks and roses too.

His eyes were sad in joy sometimes. He said

Oft in his close abandonments, that woo

Love to be more love than love can be, «Kiss

My eyelids till my closed eyes seem to guess

The kiss they feel laid in my heart's breast-bed.»



O Hadrian, what shall now thy cold life be?

What boots it to be emperor over all?

His absence o'er thy visible empery

Throws a dim pall.

Now are thy nights widowed of love and kisses,

Now are thy days robbed of the night's awaiting,

Now are thy lips purposeless and thy blisses

No longer of the size of thy life, mating

Thy empire with thy love's bold tendernesses.



Now are thy doors closed upon beauty and joy.

Throw ashes on thy head!

Lo, lift thine eyes and see the lovely boy!

Naked he lies upon that memoried bed;

By thine own hand he lies uncovered.

There was he wont thy dangling sense to cloy,

And uncloy with more cloying, and annoy

With newer uncloying till thy senses bled.



His hand and mouth knew gamuts musical

Of vices thy worn spine was hurt to follow.

Sometimes it seemed to thee that all was hollow

In sense in each new straining of sucked lust.

Then still new crimes of fancy would he call

To thy shaken flesh, and thou wouldst tremble and fall

Back on thy cushions with thy mind's sense hushed.



«Beautiful was my love, yet melancholy.

He had that art, of love's arts most unholy,

Of being lithely sad among lust's rages.

Now the Nile gave him up, the eternal Nile.

Under his wet locks Death's blue paleness wages

Now war upon our pity with sad smile».



Even as he thinks, the lust that is no more

Than a memory of lust revives and takes

His senses by the hand, and his flesh quakes

Till all becomes again what 'twas before.

The dead body on the bed gets up and lives

Along his every nerve ripped up and twanged,

And a love-o'er-wise and invisible hand

At every body-entrance to his lust

Utters caresses which flit off, yet just

Remain enough to bleed his last nerve's strand,

O sweet and cruel Parthian fugitives!



He rises, mad, and looks upon his lover,

That now can love nothing but what none know.

Then his cold lips run all the body over--

His lips that scarce remember their warmth, now

So blent with feeling the death they behold;

And so ice-senseless are his lips that, lo!,

He scarce tastes death from the dead body's cold,

But it seems both are dead or living both

And love is still the Presence and the Mover.

Then his lips cease on the other lips' cold sloth.



But there the wanting breath reminds his lips

That between him and his boy-love the mist

That comes out of the gods has crept. The tips

Of his fingers, still idly tickling, list

To some flesh-response to their purple mood.

But their love-orison is not understood.

The god is dead whose cult was to be kissed!



He lifts his hand up to where heaven should be

And cries on the mute gods to know his pain.

Lo, list!, o divine watchers of our glee

And sorrow!, list!, he will yield up his reign.

He will live in the deserts and be parched

On the hot sands, he will be beggar and slave;

But give again the boy to be arm-reached!

Forego that space ye meant to be his grave!



Take all the female beauties of the earth!

Take all afar and rend them if ye will!

But, by sweet Ganymede, that Jove found worth

And above Hebe did elect to fill

His cup at his high festivals, and spill

His fairer vice wherefrom comes newer birth--,

The clod of female embraces resolve

To dust, o father of the gods!, but spare

This boy and his white body and golden hair.

Maybe thy newer Ganymede thou mŽeanst

That he should be, and out of jealous care

From Hadrian's arms to thine his beauty steal'st.



He was a kitten playing with lust, playing

With his own and with Hadrian's, sometimes one

And sometimes two, now splitting, now one grown,

Now leaving lust, now lust's high lusts delaying,

Now eyeing lust not wide, but from askance

Jumping round on lust's half-unexpectance;

Then softly gripping, then with fury holding,

Now playfully playing, now seriously, now lying

By the side of lust looking at it, now spying

Which way to take lust in his lust's withholding.



Thus did the hours slide from their tangled hands

And from their mixed limbs the moments slip.

Now were his arms dead leaves, now iron bands,

Now were his lips cups, now the things that sip,

Now were his eyes too closed, and now too open,

Now were his ways such as none thought might happen,

Now were his arts a feather and now a whip.



That love they lived as a religion

Offered to gods that do to presence bend.

Sometimes he was adorned and made to don

Half-costumes, now a posing nudity

That imitates some god's eternity

Of body statue-known to craving men.

Now was he Venus, risen from the seas;

And now was he Apollo, white and golden;

Now as Jove sate he in mock-judgment over

The presence at his feet of his slaved lover;

Now was he an acted rite, by one beholden,

In ever-repositioned mysteries.



Now he is something anyone can be.

O white negation of the thing it is!

O golden-haired moon-cold loveliness!

Too cold! too cold! and love as cold as he.

Love wanders through the memories of his vice

As through a labyrinth, in sad madness glad,

And now calls on his name and bids him rise,

And now is smiling at his imaged coming

That is i'th'heart like faces in the gloaming--

Mere shining shadows of the forms they had.



The rain again like a vague pain arose

And put the sense of wetness in the air.

Suddenly did the Emperor suppose

He saw this room and all in it from far.

He saw the couch, the boy and his own frame

Cast down against the couch, and he became

A clearer presence to himself, and said

These words unuttered, save to his soul's dread:



«I shall build thee a statue that will be

To the astonished future evidence

Of my love and thy beauty and the sense

That beauty giveth of infinity,

Though death with subtle uncovering hands remove

The apparel of life and empire from our love,

Yet its nude statue-soul of lust made spirit

All future times, whether they will't or not,

Shall, like a curse-seeming god's boon earth-brought,

Inevitably inherit.



«Ay, this thy statue shall I build, and set

Upon the pinnacle of being-thine. Let Time

By its subtle dim crime

Eat it from life, or with men's violence fret

To pieces out of unity and presence.

Ay, let that be! Our love shall stand so great

In thy statue of us, like a god's fate,

Our love's incarnate and discarnate essence,

That, like a trumpet reaching over seas

And going from continent to continent,

Our love shall speak its joy and woe, death-blent,

Over infinities and eternities!



«The memory of our love shall bridge the ages.

It shall loom white out of the past and be

Eternal, like a Grecian victory,

In every heart the future shall give rages

Of not being our love's contemporary.



«Yet oh that this were needed not, and thou

Wert the red flower perfuming my life,

The garland on the brows of my delight,

The living flame on altars of my soul!

Would all this were a thing thou mightest now

Smile at from under thy death-mocking lids

And wonder that I should so put a strife

Twixt me and gods for thy lost presence bright;

Were there nought in this but my empty dole

And thy awakening smile half to condole

With what my dreaming pain to hope forbids».



Thus went he, like a lover who is waiting,

From place to place in his dim doubting mind.

Now was his hope a great bulk of will fating

Its wish to being, now felt he he was blind

In some point of his seen wish undefined.



When love meets death we know not what to feel.

When death foils love we know not what to know.

Now did his doubt hope, now did his hope doubt.

Now what his wish dreamed the dream's sense did flout

And to a sullen emptiness congeal.

Then again the gods fanned love's darkening glow.



«Thy death has given me a newer lust--

A flesh-lust raging for eternity.

On my imperial will I put my trust

That the high gods, that made me emperor be,

Will not annul from a more real life

My wish that thou shouldst live for e'er and stand

A fleshly presence on their better land,

More beautiful and as beautiful, for there

No things impossible our wishes mar

Nor pain our hearts with change and time and strife.



«Love, love, my love! thou art already a god.

This thought of mine, which I a wish believe,

Is no wish, but a sight, to me allowed

By the great gods, that love love and can give

To mortal hearts, under the shape of wishes--

Of wishes strong, having imperial reaches--

A vision of the real things beyond

Our life-imprisoned life, our sense-bound sense.

Ay, what I will thee to be thou art now

Already. Already on Olympic ground

Thou walkest and art perfect, yet art thou,

For thou needst no excess of thee to don

To perfect be, being perfection.



«My heart is singing like a morning bird.

A great hope from the gods comes down to me

And bids my heart to subtler sense be stirred

And think not that strange evil of thee

That to think thee mortal would be.



«My love, my love! My god-love! Let me kiss

On thy cold lips thy hot lips now immortal,

Greeting thee at Death's portal's happiness,

For to the gods Death's portal is Life's portal.



«Thus is the memory of thee a god

Already, already a statue made of me--

Of that part of me that, like a great sea,

Girds in me a great red empire more broad

Than all the lands and peoples that are in

My power's reach. Thus art thou myself made

In that great stretch Olympic that betrays

The true-wholed gods present in river and glade

And hours eternal in its different days.



«So strong my love is that it is thyself,

Thy body as it was ere death was it,

Towering above the silence infinite

That girds round life and its unduring pelf.

Even as thou wert in life, thy corporal shade

Is in the presence of the gods. My love

Permits not that its carnal being fade

Or one whit false to fleshly presence prove.

Creeds may arise and pass, and passions change,

Other ways may be born out of Time's dream,

But this our love, made but thy body, 'll range

On deathless meads from happy stream to stream.



«Were there no Olympus for thee, my love

Would make thee one, where thou sole god mightst prove,

And I thy sole adorer, glad to be

Thy sole adorer through infinity.

That were a divine universe enough

For love and me and what to me thou art.

To have thee is a thing made of gods' stuff

And to look on thee eternity's best part.



«O love, my love! Awake with my strong will

Of loving to Olympus and be there

The latest god, whose honey-coloured hair

Takes divine eyes! As thou wert on earth, still

In heaven bodifully be and roam,

A prisoner of that happiness of home,

With elder gods, while I on earth do make

A statue for thy deathlessness' seen sake.



«That deathless statue of thee I shall build

Will be no stone thing, but my great regret

By which our love's eternity is willed.

My sorrow shall make thee its god, and set

Thy naked presence on the parapet

That looks over the seas of future times.

Some shall say all our love was vice and crimes.

Others against our names, as stones, shall whet

The knife of their glad hate of beauty, and make

Our name a pillory, a scaffold and a stake

Whereon to burn our brothers yet unborn.

Yet shall our presence, like eternal morn,

Ever return at Beauty's hour, and shine

Out of the East of Love, and be the shrine

Of future gods that nothing human scorn.



«My love for thee is part of what thou wert

And shall be part of what thy statue will be.

Our double presence unified in thee

Shall make to beat many a future heart.

Ay, were't a statue to be broken and missed,

Yet its stone-perfect memory

Would, still more perfect, on Time's shoulders borne,

Overlook the great Morn

From an eternal East.



«Thy statue is of thyself and of me.

Our dual presence has its unity

In that perfection of body, which my love,

In loving it, did out of mortal life

Raise into godness, set above the strife

Of times and changing passions far above.



«The end of days, when Jove is born again,

And Ganymede again pour at his feast,

Shall see our dual soul from death released

And recreated unto love, joy, pain,

Life--all the beauty and the vice and lust,

All the diviner side of flesh, flesh-staged.

And, if our very memory wore to dust,

By the giant race of the end of ages must

Our dual presence once again be raised.»



It rained still. But slow-treading night came in

Closing the weary eyelids of each sense.

The very consciousness of self and soul

Grew, like a landscape through dim raining, dim.

TheŽ Emperor lay still, so still that now

He half forgot where now he lay, or whence

The sorrow that was still salt on his lips.

All had been something very far, a scroll

Rolled up. The things he felt were like the rim

That haloes round the moon when the night weeps.



His head was bowed into his arms, and they

On the low couch, foreign to his sense, lay.

His closed eyes seemed open to him and seeing

The naked floor, dark, cold, sad and unmeaning.

His hurting breath was all his sense could know.

Out of the falling darkness the wind rose

And fell. A voice swooned in the courts below.

And the Emperor slept.



The gods came now

And bore something away, no sense knows how,

On unseen arms of power and repose.







Tradução de Cunha e Silva Filho:



Lá fora a chuva de Adriano a alma engelhava.



Morto jazia o mancebo

Em sua nudez completa, no baixo leito,

Ante os olhos de Adriano, cujo sofrimento algo terrível lhe era.



Do eclipse da morte, sombreada, esparzia-se a luz.

Inerte jazia o mancebo. Lembrava o dia uma noite.

Lá fora, caía a chuva qual um enfermo apavorado

Com a Natureza que lhe roubava a vida.

De sua memória o legado nada contentava

Pois morta e apagada a alegria do que tinha sido estava.



Ó mãos que outrora abraçado haviam de Adriano as mãos cálidas

Que, agora, pela friagem, gélidas sentia!

Ó cabelos com fitas vigorosas amarradas antigamente!

Ó olhos de ousadia meio tímida!

Ó corpo nu macho-fêmeo

Que, aos olhos da humanidade, a um deus semelhava!

Ó lábios, cuja vermelha abertura outrora roçar sabiam

Da luxúria os lugares com uma vívida variedade de artifícios!



Ó hábeis dedos das indizíveis coisas!

Ó línguas que, tornadas uma só, o sangue incandesciam!

Ó domínio completo da concupiscência entronizada

Na interrupção líquida da consciência em fúria!

Inexistentes para sempre devem ser agora todas essas coisas.

Silenciosa é a chuva, e o Imperador,

Ao pé do leito, se desespera... Fúria é sua dor,

Pois os deuses consigo levam a vida que nos deu

E arruínam a beleza à qual da vida o sopro deram.

Ele chora e sabe que, cada época vindoura,

Além do futuro, o observa.

Num nível universal posiciona seu amor.

Milhares de olhos futuros a miséria pranteiam-lhe.



Morto está Antinous. Morto para sempre,

Para sempre extinto. De todos os amores geral lamentação.

A própria Vênus, que era o amor de Adônis,

Vendo-o, aquele que de novo viveu e, agora, novamente morto está,

Aquele que há pouco existia e, agora, de novo defunto está,

Leva-a do antigo pesar a comungar.



Apolo, agora, triste anda porque o ladrão

De seu alvo corpo para sempre gélido fica.

Naquele ponto do mamilo nenhum beijo cuidadoso

Cobrindo o lugar silencioso das batidas do coração restaura

Para lhe abrir os olhos outra vez e sentir-lhe

A presença nas veias seguras da fortaleza do Amor.

Nenhum calor seu do outro calor exige

Suas mãos, soltas agora, por detrás de sua cabeça,

Naquela postura que tudo concede exceto as mãos,

Sobre o corpo projetado suplicarão mãos.



Cai a chuva e ele jaz como alguém que

Todos os gestos de seu amor esqueceu

E, despertado, continua por seu apaixonado amor esperando

Com a Morte se foram todas as suas habilidades e galanterias.

Não pode este gelo humano calor algum mover.

De um fogo estas cinzas nenhuma chama queimar não podem.



Ó Adriano, o que farás agora de vossa gélida vida?

Que botas deveriam ser senhor dos homens e do poder?

Por sobre o teu império visível sua ausência

Dele a ausência se faz sentida qual uma noite.

Não mais existirão manhãs de esperanças e de delícias.

Agora enviuvadas são tuas noites de amor e beijos.

Os dias de esperas noturnas te foram agora roubados.

Teus lábios agora o sentido perderam de tuas alegrias,

A não ser para nomear que a Morte é

Companheira da solidão, da tristeza e do medo.



Tuas mãos indefinidas tateiam, como se tivessem deixado escapar a alegria.

Tua cabeça ergue a fim de ouvires que a chuva acabou,

E dirige ao teu adorável mancebo o teu levantado olhar.

Sobre aquele leito memorial nu, jaz ele.

Descoberto por tua própria mão, ali permanece.

Afeito a saciar teu senso instável, lá estava ele.

Insaciável e saciando mais e importunando-o

Com renovadas insaciabilidades até que sangrassem os sentidos.



Jogos conheciam sua mão e sua boca para restabelecerem

Desejos que tua gasta espinha com dificuldades suportaria.

Às vezes, a ti afigurava que era tudo vazio

De percepção em cada novo esforço de chupada luxúria.

Em seguida, para novos volteios de galanterias convocaria eles

À carne de teus nervos e tu estremecerias

sobre tuas almofadas recaindo com a sensação de teu espírito silente



- ”Belo foi meu amor, melancólico, todavia.

Daquela arte senhor que o amor cativo por inteiro torna,

Por ser lentamente triste entre as paixões da lascívia.

O Nilo, agora, o abandonou, o eterno Nilo

Sob suas madeixas molhadas da Morte a palidez azul

Contra nossos anelos de sorrisos tristes agora guerra trava.”



Até mesmo quando, pelo pensamento, a luxúria, que não é mais

Do que um esquecimento que pelas mãos reacende-lhe,

Desperta-lhe os sentidos a carne viva

E tudo de novo parece o que antes fora.

O corpo inerte no leito recompõe-se, vive

E vem para junto dele, cada vez mais junto e

Em movimentos uma invisível mão com gestos amorosos

Direcionados a todas as aberturas do corpo, a concupiscência estimulando,

Sussurra carícias rápidas que, no entanto, apenas

Demoram o bastante para sangrar de seu derradeiro vigor as fibras.

Ó doces e cruéis fugitivos parasitas!



Destarte, meio que se levanta com os olhos no amante postos,

O qual, agora, nada amar pode senão o que ninguém conhece.

Vagamente, meio enxergando o que na verdade observa,

Percorre com os lábios frios o corpo inteiro.

E, assim, sem se importar com a gelidez, são os lábios que, olha!,

Na frieza do corpo imóvel mal sente ele a presença da morte,

No entanto, parece que ambos mortos ou vivos estão

Pois é o amor ainda a presença e o alento,

Enfim, na indolência gélida dos lábios do outro se cansam seus lábios.



Ah, ali a respiração pesada faz-lhe recordar os lábios

Que, independente dos deuses, uma neblina dissipou

Entre ele e o mancebo. As pontas dos dedos

Ainda indolentemente examinando-lhe o corpo, aguardam

Alguma reação da carne a seu estímulo para despertar.

Porém, a pergunta deles sobre o amor entendida não é:

Morto é o deus cujo culto devesse ser beijado!



A mão se levanta para o lugar onde o céu deveria estar

E grita para que mudos os deuses sua dor ouçam

Que vossas mansas faces à sua súplica atendam,

Ó forças decisórias! De seu reino ele abdicará.

Ressequido viverá nos calmos desertos.

Nos distantes e selvagens caminhos um mendigo ou escravo será,

Porém, devolvei aos seus braços novamente o caloroso mancebo!

Se o privardes dessa oportunidade, estareis sua morte decretando!



Retirai da terra toda a feminina delicadeza

E num túmulo ainda restará algum vestígio!

Porém, pelo suave e valioso Ganimedes, Júpiter

Substituiu Hebe por ele e decidiu encher

Sua taça em grande festejo, instilando

O amor mais propício que a falta do outro.

Dos abraços femininos dissolve-se a terra

Em pó. Ó pai dos deuses, poupai, contudo,

Este mancebo, seu alvo corpo e seus áureos cabelos!

Talvez se fosse por vosso grandioso Ganimedes

Vós o farias, mas só por razões de ciúmes

Dos braços de Adriano a sua beleza para ti arrebatastes.



Um gatinho ele era fazendo o jogo da volúpia,

Sem ninguém, ou com Adriano, às vezes, só.

E às vezes ambos, ora unidos, ora afastados.

Ora sem sensualidade, ora prolongando-a em altas doses;

Ora com os olhos nela não tão abertos, no entanto, de esguelha

Saltando em volta em meia expectativa libidinosa;

Ora levemente reprimindo-a, em seguida, em incontida fúria,

Ora brincando só por brincar, ora com vontade, ora deitando-se

Junto dele, olhando-o, ora espreitando

Qual maneira de segurá-lo em seu justo controle de libidinagem.



Assim passavam as horas nos gestos das entrelaçadas mãos

E com seus membros unidos as horas voam.

Ora folhas mortais seus braços eram, ora fitas de ferro;

Ora eram seus lábios xícaras, ora as coisas que sorvem;

Ora seus olhos ficavam muito unidos; ora eram apenas olhares;

Ora em ação se achavam em descontínuos delírios;

Ora eram suas destrezas uma pluma, ora finalmente um chicote.



Uma religião se lhes tornara o amor.

Oferecida aos deuses que aos homens surgem.

Por vezes, adornava-se ou se deixava vestir

Parcialmente, depois, em nudez de estátuas,

Imitavam, na realidade, algum deus que semelhava ser,

Em virtude da qualidade apurada do mármore, novamente homens.

Ora era Vênus, branca dos mares surgindo;

Ora era Apolo, jovem e louro;

Ora era Júpiter sentado, saciado ele em julgamento simulado diante da

Presença de seu amante a seus pés;

Ora era ele um rito representado por alguém vigiado

Em mistérios sempre renovados.



É ele agora alguma coisa que qualquer um pode ser.

Ó inflexível negação da coisa que existe!

Ó amorosidade qual a lua de áureos cabelos!

Em demasia frios! Excessivamente frios! e o amor como ele tão frio!

Vagueia sim o amor através da memória de seu amor,

Como num labirinto, em triste júbilo da loucura.

Muito frio! Demasiadamente frio! e o amor tão frio como ele!

Vagueia sim através da memória de seu amor,

Qual num labirinto, em triste júbilo da loucura,

Que ora lhe invoca o nome e lhe pede que venha,

E ora sorria para a sua vinda representada,

Que é o coração como rostos vespertinos –

Puras sombras brilhantes das originais formas.



De volta veio a chuva qual uma indefinida dor

E no ar pôs a sensação líquida.

De súbito, o Imperador supôs que,

Bem distante, avistava esta sala e tudo ao seu redor.

Viu, então, o leito, o mancebo e a sua própria imagem

Lançada contra o leito e ele para si mesmo se tornou

Uma presença mais evidente, dizendo

Estas não proferidas palavras, exceto para a angústia de sua alma:



- “Para vós uma estátua edificarei, que servirá como

Prova, aos tempos futuros,

De meu amor, da vossa beleza e da percepção

Da divindade que a beleza propicia,

Posto que a morte, com sutis mãos reveladoras, destrói

da vida o aparato e de nosso amor o império.

Entretanto, sua estátua nua, à qual realmente vós dais vida,

A posteridade, contra a sua vontade ou não,

Sem dúvida, há de herdar, como uma dádiva de um deus constrangido.



Sim, uma estatua vossa hei de erigir e marcar

Sobre o pináculo de vosso ser,

Por seu sutil e obscuro crime, aquele Tempo

Que receará destruir-te a vida, ou desgastar-se

Com a ferocidade da guerra e da inveja da massa e da pedra.

Não pode ser isso o Destino! Os próprios deuses, que fazem

Alterar as coisas, se transformam, a própria mão

Do Destino que por força suplanta

Os deuses propriamente ditos com a escuridão, recuará

Em arruinar desta forma vossa estátua e minha dádiva.



Esta imagem de nosso amor os tempos cimentará.

Surgirá ele límpido do passado e será

Eterno que nem uma vitória romana.

Em cada coração se enfurecerá o futuro

Por não ter sido contemporâneo de nosso amor.



No entanto, oh, se tudo sucedesse diversamente

Seríeis a vermelha flor minha vida perfumando.

Sobre as fontes das minhas delícias as grinaldas,

Da minh’alma a viva chama dos altares!

Fosse tudo isso algo de que agora pudésseis

Sorrir por sob as pálpebras da morte zombeteiras.

Imaginar que eu pudesse assim um prélio travar

Entre mim e os deuses em favor do brilho de vossa perdida presença;

Nada disso houve, salvo o vazio do meu ser

E vosso sorriso despertando meio consolando

O que proíbe a dor de com a esperança sonhar.”



Destarte, encaminhava-se ele qual um amante em espera,

Com esta tênue dúvida, de lugar para lugar.

Sua esperança, ora era uma grande intenção condenando-lhe

O desejo do ser, ora sentia ele que cego estava

De certo modo à percepção de seu indefinido desejo.



Não sabemos o que sentimos quando o amor a morte encontra.

Não sabemos o que dizer quando o amor a morte frustra.

Ora da esperança duvidava ele, ora sua esperança duvidava;

Ora o que seu desejo sonhava, a razão do sonho na realidade dele escarnecia.

E congelava a avivam um exasperado vazio.

Por outro lado, avivam os deuses do amor o escuro brilho.



- “Vossa morte uma sensualidade mais elevada me concedeu -

Uma fulminante licenciosidade para a eternidade vociferando.

No meu destino imperial minha confiança deposito

A fim de que os altos deuses, que imperador me fizeram,

De mais autêntica uma vida não me negarão

O desejo de que vós devíeis viver para sempre e permanecerdes

Uma fresca presença no mundo deles melhor,

Mais encantadora e no entanto não mais sedutora,

Coisas impossíveis não há que destruam nossos desejos,

Nem nossos corações aflijam com mudança, tempo e luta.



Amor, amor, amor meu! Sois um deus completo.

Este pensamento meu que, creio eu, seja um desejo,

Não o é , mas uma visão a mim concedida

Pelos grandes deuses, os quais amam de verdade e podem dar

Aos corações mortais, sob a forma de desejos –

De desejos contendo limites ocultos –

Das coisas genuínas uma visão além de

Nossa vida emparedada, de nossa percepção aos sentidos presa.

Sim, o que vos desejo que sejais já o sois.

Agora. Já no solo Olímpico.

Caminhais e sois perfeito, sois, todavia, o que sois,

Porquanto de nada mais necessitais para vos assumirdes

Perfeito, de vez que a perfeição sois.



Canta meu coração qual um pássaro matinal,

Nos deuses chega até mim uma grande esperança

E a meu coração pede que animado seja pelo mais sutil sentimento

E que maldade estranha alguma vos atinja

Pois pensar assim de vós mortal seria.



Meu amor, meu amor, meu deus-amor! Deixai-me beijar

Vossos frígidos lábios ferventes, imortais agora,

Saudando-vos ante a ventura do portal da Morte.



Não houvesse ainda nenhum Olimpo para vós, meu amor

Dar-vos-ia um, no qual o único deus poderia domínio ter

E eu vosso único adorador alegremente seria.

Vosso exclusivo adorador por toda eternidade.

Que um divino universo suficiente fosse

Para o amor e para mim e o que para mim sois.

Ter-vos é algo feito da matéria dos deuses.



Esta, contudo, é a verdade, e a minha própria arte: o deus

Que agora sois corpo é por mim criado.

Porque, se agora sois da carne realidade

Além da qual os homens envelhecem e a noite ainda desce,

É graças ao meu grandioso poder de criar o amor que vós deveis

Essa vida que infundistes em vossa memória

E a tornastes carnal. Não tivesse meu amor

Possuído um império feito de minha poderosa vontade legionária,

Não teríeis sido enviado à companhia dos deuses.



Descobriu-vos meu amor no momento em que vos

Acháveis apenas no vosso próprio corpo e natural aparência.

Portanto, quando agora invoco vossa lembrança,

Eu apenas ascendo

Ao topo da altaneira coluna da morte na forma que assumiu

E a ponho lá como uma visão de todos os amores.



Ó amor, meu amado, com a minha firme amorosa vontade, juntai-vos

Ao Olimpo, e lá sede o último dos deuses, cujos cabelos da cor de mel

Revelem divinos olhos! Assim como fostes na terra, ainda

No céu vos mostrais em forma física e vos movimentais,

Daquela felicidade do lar, um prisioneiro

Junto aos deuses mais antigos, enquanto eu na terra farei, sim,

Uma estátua em louvor à vossa viva imortalidade.



Entretanto, vossa verdadeira estátua viva hei de construir.

Não será de pedra somente, porém daquela mesma tristeza

Ditada pela vontade do eterno amor.

Sois um lado dela, consoante vos veem os deuses

Agora, e o outro, aqui, fala da memória vossa.

O deus daqueles homens meu lamento tornar-se-á e porão

No parapeito vossa nua memória

A qual dá para os mares dos tempos pósteros.

Dirão alguns que todo nosso amor não foi senão nossos crimes;

Outros afiarão contra nossos nomes os punhais

De seu ódio feliz contra a beleza da beleza e farão

Com que nossos nomes uma base de apoio sejam com a qual apaguem

Com desprezo total os nomes de todos os nossos irmãos.

Contudo, nossa presença, como eterna Manhã,

Haverá sempre de retornar à hora da Beleza e cintilar

Do Leste do Amor, como luz em relicários engastando

Novos futuros deuses, com o fim de adornar o mundo carente.



Tudo que agora sois somos eu e vós.

Contém sua unidade nossa dual presença

Naquela perfeição do corpo em que meu amor,

Por vos amar, se tornou e na verdade da vida

Fez-se deusa, em paz superior à luta

Dos tempos, e das muito superiores cambiantes paixões.



Dado que, porém, os homens veem mais com os olhos do que com a alma,

Imóvel eu, na condição de pedra, confessarei esta grande dor;

Imóvel, desejosa de que anseiem os homens por vossa presença,

Este pesar conduzirei até ao mármore

Que, em meu coração, se incrusta qual uma estrela especial.

Destarte, mesmo na pedra, nosso amor

Há de tão grandioso permanecer

Em vossa nossa alma, como, destino dos deuses,

De nosso amor encarnado e desencarnado a essência,

O qual, à semelhança de uma trombeta pelos mares ressoando

E atravessando de continente a continente

Sua alegre tristeza, com o sabor da morte nosso amor há de exclamar

Por sobre infinidades e eternidades.



E aqui, memória ou estátua, continuaremos,

Ainda unidos, de mãos dadas, sempre.

Simplesmente por sentir, não sentimos a mão um do outro.

Ainda me compreenderão os homens quando perceberem o vosso sentimento.

Poderiam todos os deuses passar pela enorme rotação dos

Tempos terrestres. Se, a não ser por vossa causa, e sendo vós um deles, foi

Que vós havíeis acompanhado a partida daqueles deuses.

Ainda assim, retornariam eles, porquanto, para despertarem, dormido haviam.



Então, no fim dos dias, logo que Júpiter renascesse

E Ganimedes outra vez início desse a seus dias festivos,

Veria nossa dual alma da morte libertada

E renascida para a alacridade, o medo, a dor –

Ou seja, tudo que no amor se encerra;

A vida – toda a beleza que realmente em lascívia se torna .

Do lídimo amor propriamente dito do amor com o encanto surpreso;

E, se nossa própria memória por inteiro se apagasse,

Mercê da raça de alguns deuses do final dos tempos, ressuscitar

Deveria nossa dual unidade.”



Prossegue a chuva. Todavia, noites com passos lentos caíam,

Fechando as pálpebras de cada sentido cansadas,

A consciência própria de si mesmo e da alma

Aumentou, tal qual uma paisagem em que pouco chovia, pouco mesmo.

Imóvel se encontrava o Imperador, tão imóvel que, agora,

Com que meio olvidara onde agora estava, ou

De onde vinha aquele lamento que era ainda sal para seus lábios.

Fora tudo algo muito distante, um pergaminho

Fechou-se. Aquilo que sentia era igual a um círculo

Que a lua aureola assim que chora a noite.



Curvada estava sua cabeça sobre os braços, e eles, deitados,

Sobre o baixo leito repousavam, aos seus sentidos alheios.

Seus olhos cerrados se lhe figuravam abertos e vendo

O chão vazio, escuro, frio, triste e sem sentido.

Seu arfar doente era tudo o que sua percepção saber podia.

Da escuridão que descia o vento levantou-se

E caiu. Nos pátios inferiores uma voz sumiu;

O Imperador dormia.

Os deuses, agora, surgiram

E consigo alguma coisa levaram - não há como saber o que fosse –

Nos invisíveis braços do poder e do descanso





(Poemas Ingleses, Lisbon, 1915) 
   

                                       

(Ilustração:  Hadrian and Antinous; British Museum)




quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A MORTE DE ANTÍNOO, de Marguerite Yourcenar






Era o primeiro dia do mês de Atir, o segundo da Olimpíada de duzentos e vinte e seis... Aniversário da morte de Osíris, deus das agonias: em todas as aldeias, ao longo do rio, ressoavam durante três dias agudas lamentações. Meus hóspedes romanos, menos acostumados que eu aos mistérios do Oriente, demonstravam certa curiosidade pelas cerimônias daquela raça diferente. A mim, pelo contrário, irritavam-me. Mandara atracar meu barco a alguma distância dos outros, longe de qualquer lugar habitado: todavia, um templo faraônico meio abandonando erguia-se nas proximidades da margem. Esse templo tinha ainda seu colégio de sacerdotes; não escapei inteiramente ao som das lamentações.

Na noite anterior, Lúcio convidou-me a cear no seu barco, onde cheguei ao pôr do sol. Antínoo recusou-se a acompanhar-me. Deixei-o na minha cabine de popa, estendido sobre sua pele de leão, absorto no jogo dos ossinhos em companhia de Chábrias. Uma meia hora mais tarde, já noite fechada, ele mudou de ideia e mandou chamar um bote. Auxiliado por um só barqueiro, percorreu contra a corrente a distância bastante longa que nos separava dos outros barcos. Sua entrada sob o toldo onde se realizava a ceia interrompeu os aplausos provocados pelas contorções de uma dançarina. Ataviara-se com uma longa veste síria, fina como a pelo de um fruto, toda semeada de flores e de Quimeras. Para remar mais à vontade, havia baixado a manga direita: o suor brilhava sobre seu peito liso. Lúcio atirou-lhe uma guirlanda, que ele apanhou no ar. Sua alegria esfuziante não se desmentiu um só instante, estimulada apenas por uma única taça de vinho grego. Regressamos juntos a meu bote movido por seis remadores. Lúcio gritou-nos um “Boa noite!” seco e mordaz. A alegria selvagem de Antínoo persistiu. Contudo, pela manhã aconteceu-me tocar, por acaso, um rosto molhado de lágrimas. Perguntei-lhe, cheio de impaciência, a razão do pranto; respondeu-me humildemente, alegando cansaço. Aceitei a mentira e tornei a adormecer. Sua verdadeira agonia começara naquele leito, ao meu lado.

O correio de Roma acabava de chegar e o dia se passou entre a leitura e o despacho da correspondência. Como de costume, Antínoo ia e vinha silenciosamente na peça: não saberia dizer o momento exato em que o belo galgo saiu da minha vida. Por volta da décima segunda hora, Chábrias entrou agitado. Contrariamente a todas regaras, o jovem deixara o barco sem explicar o motivo e a duração de sua ausência: duas horas pelo menos haviam decorrido desde a sua partida. Chábrias recordava-se de estranhas frases ditas na véspera e de uma recomendação a meu respeito, feita naquela mesma manhã. Comunicou-me seus temores. Descemos apressadamente até a margem. O velho preceptor dirigiu-se instintivamente à capela situada à beira do rio, pequeno edifício isolado que fazia parte das dependências do templo e que Antínoo visitara em sua companhia. Sobre a mesa de oferendas, as cinzas de um sacrifício ainda estavam mornas. Chábrias mergulhou os dedos nelas e retirou, quase intacto, um anel de cabelos cortados.

Não havia nada mais a fazer senão explorar a margem. Uma série de reservatórios, que deviam ter servido antigamente para cerimônias sagradas, comunicava-se com uma enseada dor rio. Sob o crepúsculo que caía, rapidamente, Chábrias avistou na beirada do último tanque uma veste dobrada e um par de sandálias. Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lodo do rio. Com a ajuda de Chábrias consegui erguer o corpo que pesava, subitamente, como pedra. Chábrias gritou pelos barqueiros, que improvisaram uma maca de lona. Hermógenes, chamado às pressas, só pôde constatar a morte. Aquele corpo, tão dócil antes, recusava a deixar-se reaquecer, reviver. Nós o transportamos para bordo. Tudo se desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo aluíram; de repente, existiu apenas um homem de cabelos grisalhos soluçando no convés de um barco.

Dois dias mais tarde, Hermógenes conseguiu fazer-me pensar nos funerais. Os ritos do sacrifício que Antínoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o caminho a seguir: não por acaso a hora e o dia do seu fim haviam coincidido com a hora e o dia em que Osíris descera a seu túmulo. Dirigi-me à outra margem, a Hermópolis, à casa dos embalsamadores. Vira seus colegas trabalharem em Alexandria; sabia a quantos ultrajes o corpo seria submetido. O fogo que grelha e carboniza a carne amada e a terra onde apodrecem os mortos – ambos são horríveis. A travessia foi breve; acocorado a um canto da cabine de popa, Eufórion ululava em voz baixa um lamento africano fúnebre e desconhecido; o canto abafado e rouco parecia-me quase meu próprio grito. Transportamos o morto para uma sala rigorosamente lavada, que me lembrou a clínica de Sátiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera. Todas as metáforas voltavam a ter um sentido: tive aquele coração entre minhas mãos. Quando o deixei, o corpo vazio não era mais que um objeto preparatório nas mãos do embalsamador, primeiro estágio de uma atroz obra-prima, substância preciosa tratada com o sal e a geleia de mirra, que o ar e o sol nunca mais tocariam.

No regresso, visitei o templo junto ao qual o sacrifício fora consumado. Falei aos sacerdotes: seu santuário seria restaurado e se tornaria um lugar de peregrinação para todo o Egito; seu colégio enriquecido, ampliado, se consagraria dali por diante ao serviço do meu deus. Mesmo nos momentos mais conturbados do nosso relacionamento, jamais duvidei de que aquela juventude fosse divina. A Grécia e a Ásia o venerariam à nossa maneira, através da promoção de jogos, danças e oferendas rituais aos pés de uma estátua branca e nua. O Egito, que presenciara sua agonia, teria também sua parte na apoteose. Seria a mais sombria, a mais secreta e a mais árdua; aquele país desempenharia junto dele o papel eterno de embalsamador. Durante séculos, sacerdotes de crânios raspados recitariam litanias onde figuraria aquele nome, para eles sem valor, mas que para mim encerrava o conteúdo de todas as coisas. Todos os anos, a barca sagrada conduziria a efígie sobre o rio. No primeiro dia do mês de Atir, carpidores desfilariam ao longo aquela margem que eu percorrera um dia. Cada hora tem seu dever imediato, sua injunção que domina as outras: a daquele momento era a de defender contra a morte o pouco que me restava. A meu pedido, Flégon reuniu às margens do rio os arquitetos e os engenheiros da minha comitiva. Sustentado por uma espécie de embriaguez lúcida, levei-os ao longo das colinas pedregosas, explicando meu plano: o desenvolvimento dos quarenta e cinco estádios de muralha. Marquei na areia o lugar do arco do triunfo e o do túmulo. Antinoé ia nascer: impor àquela terra sinistra uma cidade totalmente grega, um bastião que manteria em respeito aos nômades da Eritreia, um novo mercado na estrada da Índia, seria uma forma de vencer a morte. Alexandre celebrara os funerais de Heféstion através de devastações e hecatombes. Parecia-me mais emocionante oferecer ao favorito uma cidade onde seu culto estaria para sempre misturado ao movimento da praça pública, onde seu nome seria mencionado nas reuniões noturnas, quando os rapazes atirariam guirlandas de flores uns aos outros, à hora dos banquetes.

Mas havia um ponto em que meu pensamento hesitava. Parecia-me impossível abandonar o corpo amado em solo estrangeiro. Tal como um homem inseguro quanto à etapa seguinte reserva alojamento em várias hospedarias ao mesmo tempo, mandei erguer para ele um monumento em Roma, às margens do Tibre, junto a meu túmulo; pensei igualmente nas capelas egípcias que, por capricho, fizera edificar na Vila e que, súbito, se mostravam tragicamente úteis. O dia dos funerais foi marcado: teriam lugar ao cabo de dois meses exigidos pelos embalsamadores. Encarreguei Mesomedes de compor os coros fúnebres. Era noite alta quando voltei a bordo. Hermógenes preparou-me uma poção para dormir.




(Memórias de Adriano; tradução de Martha Calderaro) 



(Ilustração: Antínoo Capitolino; Palazzo Nuovo Musei Capitolini; Rome)