quinta-feira, 7 de setembro de 2017
A MORTE DE ANTÍNOO, de Marguerite Yourcenar
Era o primeiro dia do mês de Atir, o segundo da Olimpíada de duzentos e vinte e seis... Aniversário da morte de Osíris, deus das agonias: em todas as aldeias, ao longo do rio, ressoavam durante três dias agudas lamentações. Meus hóspedes romanos, menos acostumados que eu aos mistérios do Oriente, demonstravam certa curiosidade pelas cerimônias daquela raça diferente. A mim, pelo contrário, irritavam-me. Mandara atracar meu barco a alguma distância dos outros, longe de qualquer lugar habitado: todavia, um templo faraônico meio abandonando erguia-se nas proximidades da margem. Esse templo tinha ainda seu colégio de sacerdotes; não escapei inteiramente ao som das lamentações.
Na noite anterior, Lúcio convidou-me a cear no seu barco, onde cheguei ao pôr do sol. Antínoo recusou-se a acompanhar-me. Deixei-o na minha cabine de popa, estendido sobre sua pele de leão, absorto no jogo dos ossinhos em companhia de Chábrias. Uma meia hora mais tarde, já noite fechada, ele mudou de ideia e mandou chamar um bote. Auxiliado por um só barqueiro, percorreu contra a corrente a distância bastante longa que nos separava dos outros barcos. Sua entrada sob o toldo onde se realizava a ceia interrompeu os aplausos provocados pelas contorções de uma dançarina. Ataviara-se com uma longa veste síria, fina como a pelo de um fruto, toda semeada de flores e de Quimeras. Para remar mais à vontade, havia baixado a manga direita: o suor brilhava sobre seu peito liso. Lúcio atirou-lhe uma guirlanda, que ele apanhou no ar. Sua alegria esfuziante não se desmentiu um só instante, estimulada apenas por uma única taça de vinho grego. Regressamos juntos a meu bote movido por seis remadores. Lúcio gritou-nos um “Boa noite!” seco e mordaz. A alegria selvagem de Antínoo persistiu. Contudo, pela manhã aconteceu-me tocar, por acaso, um rosto molhado de lágrimas. Perguntei-lhe, cheio de impaciência, a razão do pranto; respondeu-me humildemente, alegando cansaço. Aceitei a mentira e tornei a adormecer. Sua verdadeira agonia começara naquele leito, ao meu lado.
O correio de Roma acabava de chegar e o dia se passou entre a leitura e o despacho da correspondência. Como de costume, Antínoo ia e vinha silenciosamente na peça: não saberia dizer o momento exato em que o belo galgo saiu da minha vida. Por volta da décima segunda hora, Chábrias entrou agitado. Contrariamente a todas regaras, o jovem deixara o barco sem explicar o motivo e a duração de sua ausência: duas horas pelo menos haviam decorrido desde a sua partida. Chábrias recordava-se de estranhas frases ditas na véspera e de uma recomendação a meu respeito, feita naquela mesma manhã. Comunicou-me seus temores. Descemos apressadamente até a margem. O velho preceptor dirigiu-se instintivamente à capela situada à beira do rio, pequeno edifício isolado que fazia parte das dependências do templo e que Antínoo visitara em sua companhia. Sobre a mesa de oferendas, as cinzas de um sacrifício ainda estavam mornas. Chábrias mergulhou os dedos nelas e retirou, quase intacto, um anel de cabelos cortados.
Não havia nada mais a fazer senão explorar a margem. Uma série de reservatórios, que deviam ter servido antigamente para cerimônias sagradas, comunicava-se com uma enseada dor rio. Sob o crepúsculo que caía, rapidamente, Chábrias avistou na beirada do último tanque uma veste dobrada e um par de sandálias. Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lodo do rio. Com a ajuda de Chábrias consegui erguer o corpo que pesava, subitamente, como pedra. Chábrias gritou pelos barqueiros, que improvisaram uma maca de lona. Hermógenes, chamado às pressas, só pôde constatar a morte. Aquele corpo, tão dócil antes, recusava a deixar-se reaquecer, reviver. Nós o transportamos para bordo. Tudo se desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo aluíram; de repente, existiu apenas um homem de cabelos grisalhos soluçando no convés de um barco.
Dois dias mais tarde, Hermógenes conseguiu fazer-me pensar nos funerais. Os ritos do sacrifício que Antínoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o caminho a seguir: não por acaso a hora e o dia do seu fim haviam coincidido com a hora e o dia em que Osíris descera a seu túmulo. Dirigi-me à outra margem, a Hermópolis, à casa dos embalsamadores. Vira seus colegas trabalharem em Alexandria; sabia a quantos ultrajes o corpo seria submetido. O fogo que grelha e carboniza a carne amada e a terra onde apodrecem os mortos – ambos são horríveis. A travessia foi breve; acocorado a um canto da cabine de popa, Eufórion ululava em voz baixa um lamento africano fúnebre e desconhecido; o canto abafado e rouco parecia-me quase meu próprio grito. Transportamos o morto para uma sala rigorosamente lavada, que me lembrou a clínica de Sátiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera. Todas as metáforas voltavam a ter um sentido: tive aquele coração entre minhas mãos. Quando o deixei, o corpo vazio não era mais que um objeto preparatório nas mãos do embalsamador, primeiro estágio de uma atroz obra-prima, substância preciosa tratada com o sal e a geleia de mirra, que o ar e o sol nunca mais tocariam.
No regresso, visitei o templo junto ao qual o sacrifício fora consumado. Falei aos sacerdotes: seu santuário seria restaurado e se tornaria um lugar de peregrinação para todo o Egito; seu colégio enriquecido, ampliado, se consagraria dali por diante ao serviço do meu deus. Mesmo nos momentos mais conturbados do nosso relacionamento, jamais duvidei de que aquela juventude fosse divina. A Grécia e a Ásia o venerariam à nossa maneira, através da promoção de jogos, danças e oferendas rituais aos pés de uma estátua branca e nua. O Egito, que presenciara sua agonia, teria também sua parte na apoteose. Seria a mais sombria, a mais secreta e a mais árdua; aquele país desempenharia junto dele o papel eterno de embalsamador. Durante séculos, sacerdotes de crânios raspados recitariam litanias onde figuraria aquele nome, para eles sem valor, mas que para mim encerrava o conteúdo de todas as coisas. Todos os anos, a barca sagrada conduziria a efígie sobre o rio. No primeiro dia do mês de Atir, carpidores desfilariam ao longo aquela margem que eu percorrera um dia. Cada hora tem seu dever imediato, sua injunção que domina as outras: a daquele momento era a de defender contra a morte o pouco que me restava. A meu pedido, Flégon reuniu às margens do rio os arquitetos e os engenheiros da minha comitiva. Sustentado por uma espécie de embriaguez lúcida, levei-os ao longo das colinas pedregosas, explicando meu plano: o desenvolvimento dos quarenta e cinco estádios de muralha. Marquei na areia o lugar do arco do triunfo e o do túmulo. Antinoé ia nascer: impor àquela terra sinistra uma cidade totalmente grega, um bastião que manteria em respeito aos nômades da Eritreia, um novo mercado na estrada da Índia, seria uma forma de vencer a morte. Alexandre celebrara os funerais de Heféstion através de devastações e hecatombes. Parecia-me mais emocionante oferecer ao favorito uma cidade onde seu culto estaria para sempre misturado ao movimento da praça pública, onde seu nome seria mencionado nas reuniões noturnas, quando os rapazes atirariam guirlandas de flores uns aos outros, à hora dos banquetes.
Mas havia um ponto em que meu pensamento hesitava. Parecia-me impossível abandonar o corpo amado em solo estrangeiro. Tal como um homem inseguro quanto à etapa seguinte reserva alojamento em várias hospedarias ao mesmo tempo, mandei erguer para ele um monumento em Roma, às margens do Tibre, junto a meu túmulo; pensei igualmente nas capelas egípcias que, por capricho, fizera edificar na Vila e que, súbito, se mostravam tragicamente úteis. O dia dos funerais foi marcado: teriam lugar ao cabo de dois meses exigidos pelos embalsamadores. Encarreguei Mesomedes de compor os coros fúnebres. Era noite alta quando voltei a bordo. Hermógenes preparou-me uma poção para dormir.
(Memórias de Adriano; tradução de Martha Calderaro)
(Ilustração: Antínoo Capitolino; Palazzo Nuovo Musei Capitolini; Rome)
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