segunda-feira, 19 de junho de 2017

A LENDA DA PEUGEOT, de Yuval Noah Harari






Nossos primos chimpanzés normalmente vivem em pequenos bandos de várias dezenas de indivíduos. Eles formam fortes laços de amizade, caçam juntos e lutam lado a lado contra babuínos, guepardos e chimpanzés inimigos. Sua estrutura social tende a ser hierárquica. O membro dominante, que quase sempre é um macho, é denominado “macho alfa”. Outros machos e fêmeas demonstram sua submissão ao macho alfa curvando-se diante dele enquanto emitem grunhidos, de modo não muito diferente de súditos humanos se ajoelhando diante de um rei. O macho alfa se esforça para manter a harmonia social em seu bando. Quando dois indivíduos brigam, ele intervém e impede a violência. Em uma atitude menos benevolente, ele pode monopolizar alimentos particularmente cobiçados e evitar que machos de postos inferiores na hierarquia acasalem com as fêmeas.

Quando dois machos estão disputando a posição de alfa, eles normalmente fazem isso formando grandes coalizões de apoiadores, tanto machos quanto fêmeas, dentro do grupo. Os laços entre os membros da coalizão se baseiam em contato íntimo diário – abraçar, tocar, beijar, alisar e fazer favores mútuos. Assim como os políticos humanos em campanha eleitoral saem por aí distribuindo apertos de mão e beijando bebês, também os aspirantes à posição superior em um grupo de chimpanzés passam muito tempo abraçando, dando tapinhas nas costas e beijando filhotes. O macho alfa normalmente conquista essa posição não porque seja fisicamente mais forte, mas porque lidera uma coalizão grande e estável. Essas coalizões exercem um papel central não só durante as lutas pela posição de alfa como também em quase todas as atividades cotidianas. Membros de uma mesma coalizão passam mais tempo juntos, partilham alimentos e ajudam uns aos outros em momentos de dificuldade.

Há limites claros ao tamanho dos grupos que podem ser formados e mantidos de tal forma. Para funcionar, todos os membros de um grupo devem conhecer uns aos outros intimamente. Dois chimpanzés que nunca se encontraram, nunca lutaram e nunca se alisaram mutuamente não saberão se podem confiar um no outro, se valerá a pena ajudar um ao outro nem qual deles é superior na hierarquia. Em condições normais, um típico bando de chimpanzés consiste de 20 a 50 indivíduos. À medida que o número em um bando de chimpanzés aumenta, a ordem social se desestabiliza, levando enfim à ruptura e à formação de um novo bando por alguns dos animais. Apenas em alguns casos os zoólogos observaram grupos maiores que cem. Grupos separados raramente cooperam e tendem a competir por território e por alimentos. Os pesquisadores documentaram guerras prolongadas entre grupos, e até mesmo um caso de atividade “genocida” em que um bando assassinou sistematicamente a maioria dos membros de um bando vizinho.

Padrões similares provavelmente dominaram a vida social dos primeiros humanos, incluindo o Homo sapiens arcaico. Os humanos, como os chimpanzés, têm instintos sociais que possibilitaram aos nossos ancestrais construir amizades e hierarquias e caçar ou lutar juntos. No entanto, como os instintos sociais dos chimpanzés, os dos humanos só eram adaptados para pequenos grupos íntimos. Quando o grupo ficava grande demais, sua ordem social se desestabilizava, e o bando se dividia. Mesmo se um vale particularmente fértil pudesse alimentar 500 sapiens arcaicos, não havia jeito de tantos estranhos conseguirem viver juntos. Como poderiam concordar sobre quem deveria ser o líder, quem deveria caçar onde, ou quem deveria acasalar com quem?

Após a Revolução Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis. Mas até mesmo a fofoca tem seus limites. Pesquisas sociológicas demonstraram que o tamanho máximo “natural” de um grupo unido por fofoca é de cerca de 150 indivíduos. A maioria das pessoas não consegue nem conhecer intimamente, nem fofocar efetivamente sobre mais de 150 seres humanos.

Ainda hoje, um limite crítico nas organizações humanas fica próximo desse número mágico. Abaixo desse limite, comunidades, negócios, redes sociais e unidades militares conseguem se manter principalmente com base em relações íntimas e no fomento de rumores. Não há necessidade de hierarquias formais, títulos e livros de direito para manter a ordem. Um pelotão de 30 soldados ou mesmo uma companhia de cem soldados podem funcionar muito bem com base em relações íntimas, com um mínimo de disciplina formal. Um sargento respeitado pode se tornar “rei da companhia” e exercer autoridade até mesmo sobre oficiais de patente. Um pequeno negócio familiar pode sobreviver e florescer sem uma diretoria, um CEO ou um departamento de contabilidade.

Mas, quando o limite de 150 indivíduos é ultrapassado, as coisas já não podem funcionar dessa maneira. Não é possível comandar uma divisão com milhares de soldados da mesma forma que se comanda um pelotão. Negócios familiares de sucesso normalmente enfrentam uma crise quando crescem e contratam mais funcionários. Se não forem capazes de se reinventar, acabam falindo.

Como o Homo sapiens conseguiu ultrapassar esse limite crítico, fundando cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios que governam centenas de milhões? O segredo foi provavelmente o surgimento da ficção. Um grande número de estranhos pode cooperar de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos.

Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Dois católicos que nunca se conheceram podem, no entanto, lutar juntos em uma cruzada ou levantar fundos para construir um hospital porque ambos acreditam que Deus encarnou em um corpo humano e foi crucificado para redimir nossos pecados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados. Dois sérvios que nunca se conheceram podem arriscar a vida para salvar um ao outro porque ambos acreditam na existência da nação sérvia, da terra natal sérvia e da bandeira sérvia. Sistemas judiciais se baseiam em mitos jurídicos partilhados. Dois advogados que nunca se conheceram podem unir esforços para defender um completo estranho porque acreditam na existência de leis, justiça e direitos humanos – e no dinheiro dos honorários

Mas nenhuma dessas coisas existe fora das histórias que as pessoas inventam e contam umas às outras. Não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça fora da imaginação coletiva dos seres humanos.

As pessoas entendem facilmente que os “primitivos” consolidam sua ordem social acreditando em deuses e espíritos e se reunindo a cada lua cheia para dançar juntos em volta da fogueira. Mas não conseguimos avaliar que nossas instituições modernas funcionam exatamente sobre a mesma base. Considere, por exemplo, o mundo das corporações. Os executivos e advogados modernos são, de fato, feiticeiros poderosos. A principal diferença entre eles e os xamãs tribais é que os advogados modernos contam histórias muito mais estranhas. A lenda da Peugeot nos fornece um bom exemplo.

Um ícone que lembra um pouco o homem-leão de Stadel aparece hoje em carros, caminhões e motocicletas de Paris a Sydney. É o ornamento que adorna o capô dos veículos fabricados pela Peugeot, uma das maiores e mais antigas fabricantes de carros da Europa. A Peugeot começou como um negócio familiar no vilarejo de Valentigney, a apenas 300 quilômetros da caverna de Stadel. Hoje a empresa emprega cerca de 200 mil pessoas em todo o mundo, a maioria delas completamente estranhas umas às outras. Esses estranhos cooperam de maneira tão eficaz que em 2008 a Peugeot produziu mais de 1,5 milhão de automóveis, gerando uma receita de aproximadamente 55 bilhões de euros.

Em que sentido podemos afirmar que a Peugeot SA (nome oficial da empresa) existe? Há muitos veículos da Peugeot, mas estes obviamente não são a empresa. Mesmo que todos os Peugeot no mundo fossem descartados ao mesmo tempo e vendidos para o ferro-velho, a Peugeot SA não desapareceria. Continuaria a fabricar novos carros e a publicar seu relatório anual. A empresa tem fábricas, maquinário e showrooms e emprega mecânicos, contadores e secretárias, mas tudo isso junto não constitui a Peugeot. Um desastre poderia matar cada um dos empregados da Peugeot e destruir todas as suas linhas de montagem e todos os seus escritórios executivos. Mesmo assim, a empresa poderia obter empréstimos, contratar novos empregados, construir novas fábricas e comprar novo maquinário. A Peugeot tem gestores e acionistas, mas eles também não constituem a empresa. Todos os gestores poderiam ser demitidos e todas as suas ações, vendidas; mas a empresa propriamente dita permaneceria intacta.

Isso não significa que a Peugeot SA seja invulnerável ou imortal. Se um juiz ordenasse a dissolução da empresa, suas fábricas permaneceriam de pé e seus trabalhadores, contadores, gestores e acionistas continuariam a viver – mas a Peugeot SA desapareceria imediatamente. Em suma, a Peugeot SA parece não ter conexão alguma com o mundo físico. Ela existe de fato?

A Peugeot é um produto da nossa imaginação coletiva. Os advogados chamam isso de “ficção jurídica”. Não pode ser sinalizada; não é um objeto físico. Mas existe como entidade jurídica. Como você ou eu, está submetida às leis dos países em que opera. Pode abrir uma conta bancária e ter propriedades. Paga impostos e pode ser processada, até mesmo separadamente de qualquer um de seus donos ou das pessoas que trabalham para ela.

A Peugeot pertence a um gênero particular de ficção jurídica chamado “empresas de responsabilidade limitada”. A ideia por trás de tais empresas está entre as invenções mais engenhosas da humanidade. O Homo sapiens viveu sem elas por milênios. Durante a maior parte da história de que se tem registro, a propriedade só poderia pertencer a seres humanos de carne e osso, do tipo que anda sobre duas pernas e tem cérebro grande. Se na França do século XIII Jean abrisse uma oficina para fabricar vagões, ele próprio seria o negócio. Se um vagão por ele fabricado parasse de funcionar uma semana após a compra, o comprador insatisfeito processaria Jean pessoalmente. Se Jean tomasse emprestadas mil moedas de ouro para abrir sua oficina e o negócio falisse, ele teria de pagar o empréstimo vendendo sua propriedade privada – sua casa, sua vaca, sua terra. Talvez até precisasse vender seus filhos como escravos. Se não pudesse honrar a dívida, poderia ser jogado na prisão pelo Estado ou ser escravizado por seus credores. Ele era totalmente responsável, de maneira ilimitada, por todas as obrigações assumidas por sua oficina.

Se tivesse vivido naquela época, você provavelmente pensaria duas vezes antes de abrir um negócio próprio. E, com efeito, essa situação jurídica desencorajava o empreendedorismo. As pessoas tinham medo de começar novos negócios e assumir riscos econômicos. Dificilmente parecia valer a pena correr o risco de sua família acabar totalmente destituída.

Foi por isso que as pessoas começaram a imaginar coletivamente a existência de empresas de responsabilidade limitada. Tais empresas eram legalmente independentes das pessoas que as fundavam, ou investiam dinheiro nelas, ou as gerenciavam. Ao longo dos últimos séculos, essas empresas se tornaram os principais agentes na esfera econômica, e estamos tão acostumados a elas que nos esquecemos de que existem apenas na nossa imaginação. Nos Estados Unidos, o termo técnico para uma empresa de responsabilidade limitada é “corporação”, o que é irônico, porque o termo deriva de “corpus” (“corpo” em latim) – exatamente aquilo de que as corporações carecem. Apesar de não ter um corpo real, o sistema jurídico norte-americano trata as corporações como pessoas jurídicas, como se fossem seres humanos de carne e osso.

Também foi isso o que fez o sistema jurídico francês em 1896, quando Armand Peugeot, que herdara de seus pais uma oficina de fundição de metal que fabricava molas, serrotes e bicicletas, decidiu entrar no ramo de automóveis. Para isso, ele criou uma empresa de responsabilidade limitada. Batizou a empresa com seu nome, mas ela era independente dele. Se um dos carros quebrasse, o comprador poderia processar a Peugeot, e não Armand Peugeot. Se a empresa tomasse emprestados milhões de francos e então falisse, Armand Peugeot não deveria a seus credores um único franco. O empréstimo, afinal, fora concedido à Peugeot, a empresa, e não a Armand Peugeot, o Homo sapiens. Armand Peugeot morreu em 1915. A Peugeot, a empresa, continua firme e forte.

Como exatamente Armand Peugeot, o homem, criou a Peugeot, a empresa? Praticamente da mesma forma como os padres e os feiticeiros criaram deuses e demônios ao longo da história e como milhares de padres católicos franceses continuaram recriando o corpo de Cristo todo domingo nas igrejas da paróquia. Tudo se resumia a contar histórias e convencer as pessoas a acreditarem nelas. No caso dos padres franceses, a história crucial foi a da vida e morte de Cristo tal como contada pela Igreja Católica. De acordo com essa história, se um padre católico usando suas vestes sagradas pronunciasse solenemente as palavras certas no momento certo, o pão e o vinho mundano se transformariam na carne e no sangue de Deus. O padre exclamava: “Hoc est corpus meum!” (“Este é meu corpo” em latim) e abracadabra! – o pão se transformava no corpo de Cristo. Vendo que o padre havia observado assiduamente todos os procedimentos, milhões de católicos franceses devotos se comportavam como se Deus de fato existisse no pão e no vinho consagrados.

No caso da Peugeot SA, a história crucial foi o código jurídico francês, tal como redigido pelo parlamento francês. De acordo com os legisladores franceses, se um advogado certificado seguisse todos os rituais e liturgias adequados, escrevesse todos os discursos e juramentos requeridos em um pedaço de papel maravilhosamente decorado e afixasse sua assinatura ornamentada ao pé do documento, abracadabra! – uma nova empresa era incorporada. Quando, em 1896, Armand Peugeot quis criar sua empresa, ele pagou para que um advogado fizesse todos esses procedimentos sagrados. Uma vez que o advogado tivesse desempenhado todos os rituais corretos e pronunciado todos os discursos e juramentos necessários, milhões de cidadãos franceses honrados se comportaram como se a empresa Peugeot realmente existisse.

Contar histórias eficazes não é fácil. A dificuldade está não em contar a história, mas em convencer todos os demais a acreditarem nela. Grande parte da nossa história gira em torno desta questão: como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias específicas sobre deuses, ou nações, ou empresas de responsabilidade limitada? Mas, quando isso funciona, dá aos sapiens poder imenso, porque possibilita que milhões de estranhos cooperem para objetivos em comum. Tente imaginar o quão difícil teria sido criar Estados, ou igrejas, ou sistemas jurídicos se só fôssemos capazes de falar sobre coisas que realmente existem, como rios, árvores e leões.

Com o passar dos anos, as pessoas teceram uma rede incrivelmente complexa de histórias. Nessa rede, ficções como a da Peugeot não só existem como acumulam enorme poder. Têm mais poder do que qualquer leão ou bando de leões.

Os tipos de coisa que as pessoas criam por meio dessa rede de histórias são conhecidos nos meios acadêmicos como “ficções”, “construtos sociais” ou “realidades imaginadas”. Uma realidade imaginada não é uma mentira. Eu minto se digo que há um leão perto do rio quando sei perfeitamente que não há leão algum. Não há nada de especial nas mentiras. Macacos-verdes e chimpanzés podem mentir. Já se observou, por exemplo, um macaco-verde gritando “Cuidado! Um leão!” quando não havia leão algum por perto. Convenientemente, esse alarme falso afastava outro macaco que tinha acabado de encontrar uma banana, abrindo caminho para que o mentiroso roubasse o prêmio para si.

Ao contrário da mentira, uma realidade imaginada é algo em que todo mundo acredita e, enquanto essa crença partilhada persiste, a realidade imaginada exerce influência no mundo. O escultor da caverna de Stadel pode ter acreditado sinceramente na existência do espírito guardião do homem-leão. Alguns feiticeiros são charlatães, mas a maioria acredita sinceramente na existência de deuses e demônios. A maioria dos milionários acredita sinceramente na existência do dinheiro e das empresas de responsabilidade limitada. A maioria dos ativistas dos direitos humanos acredita sinceramente na existência de direitos humanos. Ninguém estava mentindo quando, em 2011, a ONU exigiu que o governo líbio respeitasse os direitos humanos de seus cidadãos, embora a ONU, a Líbia e os direitos humanos sejam todos produtos de nossa fértil imaginação.

Desde a Revolução Cognitiva, os sapiens vivem, portanto, em uma realidade dual. Por um lado, a realidade objetiva dos rios, das árvores e dos leões; por outro, a realidade imaginada de deuses, nações e corporações. Com o passar do tempo, a realidade imaginada se tornou ainda mais poderosa, de modo que hoje a própria sobrevivência de rios, árvores e leões depende da graça de entidades imaginadas, tais como deuses, nações e corporações.




(Sapiens: uma breve história da humanidade; tradução de Janaína Marcoantonio)




(Ilustração: Bernadeth Rocha - meu mundo perfeito)





sexta-feira, 16 de junho de 2017

CARTA AOS MORTOS, de Affonso Romano de Sant’Ana

    







Amigos, nada mudou

em essência.

Os salários mal dão para os gastos,

as guerras não terminaram

e há vírus novos e terríveis,

embora o avanço da medicina.

Volta e meia um vizinho

tomba morto por questão de amor.

Há filmes interessantes, é verdade,

e como sempre, mulheres portentosas

nos seduzem com suas bocas e pernas,

mas em matéria de amor

não inventamos nenhuma posição nova.

Alguns cosmonautas ficam no espaço

seis meses ou mais, testando a engrenagem

e a solidão.

Em cada olimpíada há récordes previstos

e nos países, avanços e recuos sociais.

Mas nenhum pássaro mudou seu canto

com a modernidade.



Reencenamos as mesmas tragédias gregas,

relemos o Quixote, e a primavera

chega pontualmente cada ano.



Alguns hábitos, rios e florestas

se perderam.

Ninguém mais coloca cadeiras na calçada

ou toma a fresca da tarde,

mas temos máquinas velocíssimas

que nos dispensam de pensar.



Sobre o desaparecimento dos dinossauros

e a formação das galáxias

não avançamos nada.

Roupas vão e voltam com as modas.

Governos fortes caem, outros se levantam,

países se dividem

e as formigas e abelhas continuam

fiéis ao seu trabalho.



Nada mudou em essência.



Cantamos parabéns nas festas,

discutimos futebol na esquina

morremos em estúpidos desastres

e volta e meia

um de nós olha o céu quando estrelado

com o mesmo pasmo das cavernas.

E cada geração , insolente,

continua a achar

que vive no ápice da história.





(Ilustração: Ismael Nery - Adão e Eva)




terça-feira, 13 de junho de 2017

UM CAVALO COR DE MEL, de Lya Luft








Vinha devagar, ousado mas esquivo.

Começava e logo fugia de mim.


No início eu não via nada: só escutava vindo do céu um rufar, um ruflar, um tatalar de vento - e algo viajava nele.


Saí da cama, sentei-me no peitoril, e como os quartos ficavam no andar de cima podia ver longe. Abri e fechei portas enquanto todos dormiam, fui até o terraço: algo se preparava como uma celebração, nas lajes do pátio, nos canteiros de rosas, no gramado e na mata escura atrás de tudo isso.


Esfreguei os olhos para ver o que ali sobrevoava.


Depois de tanta espera e tanta busca, ele enfim chegava - para mim, para mim. No ar, no céu, enorme anjo ou demônio dourado, aquele por quem esperei.


Desci as escadas descalça, mas dessa vez vi apenas o rastro de seu voo baixo sobre o capim vazio.


De de novo e de novo eu fui chamada, me invocava aquele que queria ser descrito. Fui seduzida pelo que precisava acontecer e ser narrado em páginas e páginas de um futuro ainda impreciso.


Fui convocada.


Antes mesmo de abrir os olhos, eu sabia:


Está chegando. Hoje vou ser informada, iniciada, hoje vou contemplar o invisível, hoje vou recitar o inenarrável, hoje eu vou.


Mais uma vez saí da cama, nem me vesti porque não havia calor nem frio: havia silêncio e lua, mistura de jardim e maresia, e cheiro de cavalo. Avancei sem temor pelo gramado. Além do que minha vista podia alcançar, eu já enxergava.


Um cavalo cor de mel quer voar no meu sonho - ou no meu jardim.


Sob a lua, por cima da relva imóvel, ele começa a existir: estica o dorso, move os flancos, levanta a cabeça e fareja no ar a presença de uma menina que enfrenta o milagre. Sua crina esvoaça no vento apenas anunciado, porque ainda não é a tempestade.


Aparecem devagar as duas asas. Primeiro somente lhes diviso a linha do encaixe nos flancos - depois se destacam e desabrocham.


Tiritando na sua própria novidade, ele se desenha no vazio. O cavalo dourado brota do meu desejo: narinas nervosas, patas inquietas, é meu próprio coração que explode.


Num impulso forte ele bate as asas, primeiro ainda plantado na terra morna: hesitante.


Então começa a ventar mais, e ele se alça e sobe. O rufar das asas se mistura ao rumor do mar que não se vê, o mar impossível jaz a quilômetros e quilômetros dali, mas rumoreja aqui embaixo com água e conchas.


O voo sossegado vai por cima dos canteiros, das árvores e dos telhados, e todo o resto para: nem vez noturnas nem anjos ousam aparecer diante daquela majestade.


Só ele, o meu cavalo-anjo, volteia no céu. Faz rasantes sobre a terra. Em uma curva mais perto de mim, relincha. Sua respiração me comove. Ele suspira e arqueja.


Não vai longe. Não sai do território que estendo para ele com minha ansiedade e minhas alegrias, palavras e silêncios, no tempo sobreposto ao tempo natural.


Depois o vento enfim o leva, barco no mar perdido que há milhões de anos varria talvez este lugar.


Ele é a minha arte: vela, caravela do meu mar de dentro, e é também o fundo silencioso. Esse sentimento tão maior que eu, essa parte de mim que não me pertence, me define tanto.


Se lhe desse um nome, seria: Vidaminha.


Hoje sou adulta. Mas não se iludam: ainda saio da cama de madrugada para ver um cavalo em revoada no jardim quando venta.


Está em cada frase que escrevo.


Nesta mesma claridade de uma lua impossível, aprisionada na tela do meu computador, nesta noite verdadeira ou falsa, nesta hora nenhuma é que as coisas acontecem. Quando desabam paredes e abrem-se portas em tantos corredores dando para outros salões e novas portas, a fantasia senta-se ao pé de mim desembaraçando os cabelos.


O meu é o reino das palavras: aqui tudo pode ser dito - a cada um cabe inventar significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios.


Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros sem ler, sacodem a cabeça - e não entenderão.


Porque eu falo para os da minha raça: os que além de racionais são também ilógicos, os bem estabelecidos que amam o imprevisível, os que na margem concreta enxergam mais que isso e não têm com quem o partilhar.


Por isso atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, ou simplesmente vagam alertas pela sua casa quando os outros ancoraram no sono.


Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida - esta que escreve não sou eu, mas algo que transborda dos meus contornos como o mar transbordava de uma concha naquela mão, na dourada infância.


E minha alma, esse cavalo alado, inocente menina ou feiticeira perversa, fará deste novelo de caos e luz o seu porto de partida, num sopro desenrolando infinitamente o nome que é todos os nomes e é a minha alegria:


Vidaminhavidaminhavidaminha...



(Mar de dentro)





(Ilustração: Mais Mkhitaryan)



sábado, 10 de junho de 2017

EU SOU UMA MULHER, de Marina Colasanti







Eu sou uma mulher

que sempre achou bonito

menstruar.

Os homens vertem sangue

por doença

sangria

ou por punhal cravado,

rubra urgência

a estancar

trancar

no escuro emaranhado

das artérias.

Em nós

o sangue aflora

como fonte

no côncavo do corpo

olho-d’água escarlate

encharcado cetim

que escorre

em fio.

Nosso sangue se dá

de mão beijada

se entrega ao tempo

como chuva ou vento.

O sangue masculino

tinge as armas e

o mar

empapa o chão

dos campos de batalha

respinga nas bandeiras

mancha a história.

O nosso vai colhido

em brancos panos

escorre sobre as coxas

benze o leito

manso sangrar sem grito

que anuncia

a ciranda da fêmea.

Eu sou uma mulher

que sempre achou bonito

menstruar.

Pois há um sangue

que corre para a Morte.

E o nosso

que se entrega para a Lua.





(Ilustração: Aleah Chapin - laugh)



quarta-feira, 7 de junho de 2017

PRETO DEMAIS!, de Angelica Basthi








“Você é preto demais, não vão te aprovar”, avisou o renomado Muniz Sodré. “Mas não desista”, acrescentou, em voz experiente e fraternal. O diálogo travado entre Sodré e um amigo pessoal – cujo sonho era ser aprovado num processo seletivo para professor numa universidade federal – foi revelado durante uma defesa de tese na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O conselho, vindo de ninguém menos do que Sodré, foi seguido à risca.


O trecho da conversa denuncia a profunda desigualdade que permeia as relações raciais travadas cotidianamente na sociedade brasileira. Seja implícita ou explicitamente, a mobilidade social – cujo principal elemento propulsor é o trabalho – é pautada pelo tom da pele mais escuro (ou, seja, pela raça à qual o indivíduo pertence). No Brasil, a meritocracia tem cor e é acionada segundo as circunstâncias e interesses. Mas para quem é preto/a (ou negro/a), parece que o mérito é sempre algo devido e o indivíduo é obrigado a, literalmente, correr atrás de uma conta que não lhe pertence.


O amigo de Sodré é um profissional brilhante e, rezemos, irá furar o cerco. Mas a que preço? Quantos outros/as profissionais negros/as brilhantes precisarão superar a si mesmos/as para ter o valor reconhecido? Quantos não desistirão no caminho? Quantos não aceitarão o sistema? Ou quantos sentirão que o cargo almejado, simplesmente, deixará de ter algum sentido ou relevância? Vale ressaltar que “furar o cerco” também implica em conquistar um bom ambiente de trabalho (ou seja, não ter aquele/a colega ou chefe que não aceita uma pessoa negra brilhante) e ter a “sorte” de ser contemplado/a com uma remuneração compatível com o cargo que exerce. De novo, a meritocracia vai sorrir somente para alguns com aquele sorriso do gato da Alice.


Outro dia ouvi de um aposentado negro e concursado numa importante empresa pública, uma história que também denuncia o mecanismo do racismo no ambiente do trabalho nas instituições. Lá pelos anos 1970, quando meu amigo ainda estava na ativa e assumiu um cargo de destaque no departamento de pessoal, notou que os/as candidatos/as negros/as eram substituídos/as por candidatos/as brancos/as, independente do resultado do concurso. Por exemplo, se um/a candidato/a negro/a fosse aprovado/a em primeiro lugar, o “sistema” chamava o/a candidato/a branco/a sem nenhuma vergonha alheia. O meu amigo, hoje aposentado, lutou durante anos para reverter este lamentável quadro. Atualmente, a tal empresa pública está implantando um sistema de gestão que prevê e pune a discriminação racial.


Ainda que possamos comemorar o exemplo dado por esta empresa pública, histórias como a contada por Muniz Sodré nos alertam para a persistência do problema na sociedade brasileira. Ser preto ou preta demais é um obstáculo para milhões de pessoas negras conquistarem um bom emprego e terem garantidos o direito à partilha do bem estar social.


É responsabilidade do Estado e também das organizações públicas e privadas eliminar toda e qualquer norma, prática e comportamento de discriminação nas relações cotidianas no trabalho seja na oferta de serviços, seja na relação entre profissionais. A sociedade brasileira tem o dever de destruir todo e qualquer mecanismo de racismo que gere situações de desvantagem para as pessoas negras exercerem o direito ao emprego público ou privado. Pretos e pretas demais, sim. E daí?



(Portal Áfricas)



(Ilustração: xfig african painter - Masila)



domingo, 4 de junho de 2017

EINE ART VERLUST / UMA ESPÉCIE DE PERDA, de Ingeborg Bachmann






Gemeinsam benutzt: Jahreszeiten, Bücher und eine Musik.

Die Schlüssel, die Teeschalen, den Brotkorb, Leintücher und ein Bett.

Eine Aussteuer von Worten, von Gesten, mitgebracht, verwendet, verbraucht.

Eine Hausordnung beachtet. Gesagt. Getan. Und immer die Hand gereicht.

In Winter, in ein Wiener Septett und in Sommer habe ich mich verliebt.

In Landkarten, in ein Bergnest, in einen Strand und in ein Bett.

Einen Kult getrieben mit Daten, Versprechen für unkündbar erklärt,

angehimmelt ein Etwas und fromm gewesen vor einem Nichts,

(– der gefalteten Zeitung, der kalten Asche, dem Zettel mit einer Notiz)

furchtlos in der Religion, denn die Kirche war dieses Bett.

Ausdem Seeblick hervor ging meine unerschöpfliche Malerei.

Von dem Balkon herab waren die Völker, meine Nachbarn, zu grüßen.

Am Kaminfeuer, in der Sicherheit, hatte mein Haar seine äußerste Farbe.

Das Klingeln an der Tür war der Alarm für meine Freude.

Nicht dich habe ich verloren,

sondern die Welt.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:




Compartilhados: estações do ano, livros, uma música.

As chaves, as chávenas de chá, a cesta de pão, lençóis de linho e uma cama.

Um dote de palavras, gestos, o que foi trazido, usado, consumido.

Uma casa com normas respeitadas. O dito. O feito. E sempre a mão estendida.

Apaixonei-me pelo inverno, por um septeto vienense e pelo verão.

Por um mapa, um ninho na montanha, uma praia, uma cama.

Um culto praticado com datas, promessas irrevogáveis declaradas,

idolatrei um não-sei-quê adorável e devotei-me a um nada,

(– o jornal dobrado, as cinzas frias, o bilhete com um recado),

sem os temores da religião, pois a igreja era esta cama.

Da vista para o lago foi-se a minha inexaurível pintura.

Do balcão cumprimentei as pessoas, meus vizinhos.

Defronte à lareira, em segurança, meu cabelo adquiria a sua cor mais profunda.

O toque da campainha da porta era o alarme para a minha alegria.

Não foi a ti que perdi,

mas ao mundo.




(Nota do tradutor: poema escrito após o fim da relação amorosa da poeta com o escritor austríaco Max Frisch)



Tradução de Judite Berkemeier e João Barrento:




Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.

As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.

Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.

Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.

E estendemos sempre a mão.



Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.

Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.

Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,

idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,



(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)

sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.



De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.

Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.

A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,

perdi o mundo.





(Últimos poemas, 1957-1967)






(Ilustração : Javier Arizabalo García)







quinta-feira, 1 de junho de 2017

A CONSCIÊNCIA VEM À TONA COM A REVOLTA, de Albert Camus






Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste "não"?


Significa, por exemplo, "as coisas já duraram demais", "até aí, sim; a partir daí, não"; "assim já é demais", e, ainda, "há um limite que você não vai ultrapassar”. Encontra-se a mesma ideia de limite no sentimento do revoltado de que o outro "exagera", que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e delimita. Desta forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele "tem o direito de...". A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. É por isso que o escravo revoltado diz simultaneamente sim e não. Ele afirma, ao mesmo tempo em que afirma a fronteira, tudo que suspeita e que deseja preservar aquém da fronteira. Ele demonstra, com obstinação, que traz em si algo que "vale a pena..." e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.


O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não o é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor. Trata-se realmente de um valor?


Por mais confusa que seja, uma tomada de consciência nasce do movimento de revolta: a percepção, subitamente reveladora, de que há no homem algo com o qual pode identificar-se, mesmo que só por algum tempo. Até então, essa identificação não era realmente sentida. O escravo aceitava todas as exações anteriores ao movimento de insurreição. Muito frequentemente havia recebido, sem reagir, ordens mais revoltantes do que aquela que desencadeia a sua recusa. Usava de paciência, rejeitando-as talvez dentro de si, mas, já que se calava, mais preocupado com seu interesse imediato do que consciente de seu direito. Com a perda da paciência, com a impaciência, começa ao contrário um movimento que se pode estender a tudo o que antes era aceito. Esse ímpeto é quase sempre retroativo. O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante de seu superior, rejeita ao mesmo tempo a própria condição de escravo. O movimento de revolta leva-o além do ponto em que estava com a simples recusa. Ultrapassa até mesmo o limite que fixava para o adversário, exigindo agora ser tratado como igual. O que era no início uma resistência irredutível do homem transforma-se no homem que, por inteiro, se identifica com ela e a ela se resume. Coloca esta parte de si próprio, que ele queria fazer respeitar, acima do resto e a proclama preferível a tudo, mesmo à vida. Torna-se para ele o bem supremo. Instalado anteriormente num compromisso, o escravo lança-se, de uma vez ("já que é assim"), ao Tudo ou Nada. A consciência vem à tona com a revolta.


Mas vê-se que ela é consciência, ao mesmo tempo, de um tudo ainda bastante obscuro, e de um "nada" que anuncia a possibilidade de sacrifício do homem a esse tudo. O revoltado quer ser tudo, identificar-se totalmente com esse bem do qual subitamente tomou consciência, e que deseja ver, em sua pessoa, reconhecido e saudado – ou nada, quer dizer, ver-se definitivamente derrotado pela força que o domina. Em última instância, ele aceitará a derradeira derrota, que é a morte, se tiver que ser privado desta consagração exclusiva a que chamará, por exemplo, de sua liberdade. Antes morrer de pé do que viver de joelhos.


(O homem revoltado)




(Ilustração: Elifas Andreatto - 25 de outubro - morte de Vladimir Herzog)