sexta-feira, 16 de junho de 2017

CARTA AOS MORTOS, de Affonso Romano de Sant’Ana

    







Amigos, nada mudou

em essência.

Os salários mal dão para os gastos,

as guerras não terminaram

e há vírus novos e terríveis,

embora o avanço da medicina.

Volta e meia um vizinho

tomba morto por questão de amor.

Há filmes interessantes, é verdade,

e como sempre, mulheres portentosas

nos seduzem com suas bocas e pernas,

mas em matéria de amor

não inventamos nenhuma posição nova.

Alguns cosmonautas ficam no espaço

seis meses ou mais, testando a engrenagem

e a solidão.

Em cada olimpíada há récordes previstos

e nos países, avanços e recuos sociais.

Mas nenhum pássaro mudou seu canto

com a modernidade.



Reencenamos as mesmas tragédias gregas,

relemos o Quixote, e a primavera

chega pontualmente cada ano.



Alguns hábitos, rios e florestas

se perderam.

Ninguém mais coloca cadeiras na calçada

ou toma a fresca da tarde,

mas temos máquinas velocíssimas

que nos dispensam de pensar.



Sobre o desaparecimento dos dinossauros

e a formação das galáxias

não avançamos nada.

Roupas vão e voltam com as modas.

Governos fortes caem, outros se levantam,

países se dividem

e as formigas e abelhas continuam

fiéis ao seu trabalho.



Nada mudou em essência.



Cantamos parabéns nas festas,

discutimos futebol na esquina

morremos em estúpidos desastres

e volta e meia

um de nós olha o céu quando estrelado

com o mesmo pasmo das cavernas.

E cada geração , insolente,

continua a achar

que vive no ápice da história.





(Ilustração: Ismael Nery - Adão e Eva)




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