quinta-feira, 29 de julho de 2010

FEMININA, de Mário de Sá Carneiro










Eu queria ser mulher pra me poder estender


Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.

Eu queria ser mulher para poder estender

Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.



Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida

E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -

Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro

A falar de modas e a fazer potins - muito entretida.



Eu queria ser mulher pra mexer nos meus seios

E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -

Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios

Que num homem, francamente, não se podem desculpar.



Eu queria ser mulher para ter muitos amantes

E enganá-los a todos - mesmo ao predileto -

Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,

Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...



Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,

Eu queria ser mulher para me poder recusar...



(Ilustração: Goya - maja desnuda)

terça-feira, 27 de julho de 2010

O MASSACRE DOS INOCENTES , de Maurice Maeterlink






Numa sexta-feira, 26 de dezembro, à hora da ceia, um pequeno pastor entrou correndo em Nazaré, gritando terrivelmente.

Alguns aldeões que bebiam cerveja no Leão Azul abriram os postigos para olhar a praça, e viram o garoto aproximar-se por sobre a neve. Reconheceram-no como o filho de Korneliz e gritaram-lhe da janela:

- Que tens ? É hora de criança ir para a cama !

Mas o garoto respondeu com voz de terror, contando que os espanhóis tinham vindo e haviam incendiado a fazenda, enforcado sua mãe num galho de castanheiro e amarrado as suas nove irmãzinhas ao tronco de uma grande árvore. Os homens saíram imediatamente da taverna, rodearam o rapazinho e crivaram-no de perguntas. Ele continuou contando-lhes que os soldados vestiam armaduras de aço e estavam todos montados, que tinham apreendido o gado de seu tio, Petrus Krayer, e logo entrariam no bosque trazendo consigo os bois e as ovelhas.

Todos correram para o Sol de Ouro, onde Korneliz e seu cunhado estavam também bebendo cerveja, enquanto o taberneiro se precipitou para a rua a espalhar a notícia da chegada dos espanhóis.

Houve grande reboliço em Nazaré. Mulheres escancaravam as janelas e homens saíam correndo de suas casas, trazendo luzes que extinguiam tão logo alcançavam a praça, onde estava claro como de dia por causa da neve e da lua cheia. Aglomeraram-se em torno de Korneliz e Krayer, diante da taberna. Muitos haviam trazido enxadas e foices. Reuniram-se em conselho, falando com acento de terror, embaixo das árvores.

Como não tinham certeza do que fazer, um deles correu a buscar o cura, que era o dono da fazenda onde Korneliz trabalhava. Ele veio de casa com as chaves da igreja, em companhia do sacristão, e os outros todos acompanharam-no até o adro para ouvi-lo, do alto da torre, anunciar que nada podia ver, tanto no bosque como através dos campos, mas que havia nuvem vermelhas na direção da sua. fazenda. Sobre todo o resto do horizonte o céu estava azul e cheio de estrelas.

Após longa deliberação no adro da igreja, decidiram os aldeões esconder-se no bosque por onde os espanhóis deviam vir, atacá-los se não fossem muito numerosos, e recuperar o gado de Petrus Krayer, bem como o produto de qualquer pilhagem que eles tivessem praticado na fazenda.

Os homens armaram-se com variados instrumentos de lavoura, enquanto as mulheres permaneceram com o cura perto da igreja. Em busca de local favorável para uma emboscada, chegaram os aldeões a um ponto elevado, junto de um moinho, na orla do bosque, de onde podiam ver as chamas ao longe contra as estrelas. Tomaram posição embaixo de enormes carvalhos, ao pé de uma lagoa coberta de gelo.

Um pastor apelidado Anão Vermelho subiu ao topo da colina a fim de avisar o moleiro, que já tinha parado o seu moinho ao avistar as chamas no horizonte. Mas ele deixou entrar o pastor e os dois postaram-se numa janela para vigiar os arredores.

A lua resplandecia sobre a conflagração e os homens conseguiram avistar qualquer coisa que se movia através da neve. O Anão Vermelho tornou a descer para junto dos que esperavam à entrada do bosque. Logo puderam ser vistos à distância quatro cavaleiros atrás de um rebanho, avançando pelos campos. Como os homens se mantivessem, com os seus calções azuis e mantos vermelhos, em expectativa à margem da lagoa gelada, sob as árvores tornadas quase luminosas pela abundante neve que caía, o sacristão indicou-lhes uma cerca de buxos atrás da qual eles se agacharam.

Os espanhóis, tocando à sua frente ovelhas e bois, avançaram sobre o gelo e, quando as ovelhas chegaram à margem e puseram-se a mordiscar os tufos de relva, Korneliz arremeteu, os outros seguindo-o ao clarão da lua, todos armados de enxadas e foices. Houve então um grande massacre em presença das ovelhas e bois amontoados, que olhavam com terror a súbita carnificina sob a luz da lua.

Depois de mortos todos os espanhóis e seus cavalos, Korneliz dirigiu-se pelo campo para a fazenda em chamas, enquanto os outros despojavam os cadáveres. Depois voltaram todos à aldeia com os bois e as ovelhas. As mulheres, que olhavam por trás dos muros do adro da igreja na direção do bosque espesso, viram- nos sair do meio das árvores e, em companhia do cura, foram ao seu encontro. E todos regressaram dançando de contentamento, entre crianças que riam e cães que latiam. Reunidos agora em baixo das pereiras, às quais o sacristão suspendera lanternas coloridas como para uma quermesse, perguntaram alegremente ao cura o que era para fazer em seguida. Decidiu-se mandar um carro para trazer a mulher que fora enforcada e suas nove filhinhas. As irmãs da morta e vários outros parentes entraram no carro, e também o cura, pois que era velho, muito gordo e só com dificuldade podia caminhar. Seguiram através do bosque e, em silêncio, alcançaram o campo aberto, onde viram os soldados mortos, completamente nus, e os cavalos estripados, jazendo de costas sobre o gelo brilhante, entre as árvores. Prosseguiram rumo à fazenda, que ardia ainda à distância.

Quando chegaram à casa em chamas, fizeram alto diante do portão do jardim e contemplaram a terrível tragédia. A mulher de Korneliz pendia nua, dos galhos de um enorme castanheiro. O próprio Korneliz trepara por uma escada até os ramos da árvore, sob a qual suas nove filhinhas esperavam pelo corpo da mãe. Ele fazia o seu trajeto aéreo através dos galhos recurvos quando num relance, destacando-se contra a brancura da neve, percebeu o grupo lá embaixo, olhando para ele. Em pranto, acenou para que viessem em seu auxílio, e todos ingressaram no jardim, e o sacristão, o Anão Vermelho, os taberneiros do Leão Azul e do Sol de Ouro, o cura levando uma lanterna e vários outros campónios, subiram ao castanheiro coberto de neve para retirar o corpo da mulher enforcada. As mulheres, embaixo, receberam o cadáver nos braços, como aquelas outras que uma vez receberam Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ela foi enterrada no dia seguinte e, por toda uma semana nada de extraordinário ocorreu em Nazaré, mas no domingo imediato lobos famintos atravessaram a aldeia logo depois da missa, e a neve caiu até o meio-dia. Depois o sol apareceu brilhou magnífico no céu, e os camponeses foram para casa jantar como de uso, e vestir-se para a Bênção.

Àquela hora não estava ninguém na praça, pois o frio era terrível. Apenas cães e galinhas perambulavam por entre a árvores, e ovelhas tosavam a relva, e a criada do cura varria a neve no jardim.

Então uma tropa de homens armados cruzou a ponte de pedra no extremo da aldeia, e irrompeu na praça. Alguns aldeões saíram de suas casas, mas logo voltaram em pânico ao ver que os cavaleiros eram espanhóis, e foram para as janelas observar o que iria acontecer. Eram trinta ginetes, de armadura. Rodeavam um homem idoso de barba branca. E cada cavaleiro trazia na garupa um infante vestido de vermelho e amarelo. Estes desmontaram e puseram-se a andar rapidamente sobre a neve para se aquecer, enquanto alguns dos soldados de armadura desmontavam também.

Eles se dirigiram ao Sol de Ouro e bateram na porta. Esta foi aberta com alguma hesitação e os espanhóis entraram, aqueceram-se diante do fogo e pediram cerveja. Deixaram depois a taberna levando jarros, pichéis e pão para os companheiros e o velho de barba branca que ficara esperando entre os seus soldados. Como a rua estivesse ainda deserta, mandou o comandante que alguns dos cavaleiros se fossem postar atrás das casas para guardar a aldeia do lado que dava para o campo aberto, e ordenou aos infantes que lhe trouxessem todas as crianças com dois anos de idade ou menos, pois tencionava massacrá-las, de acordo com o que está escrito no Evangelho de São Mateus.

Os homens foram primeiro à pequena taberna do Repolho Verde, e à loja do barbeiro, que ficavam contíguas na parte central da rua. Um deles abriu o chiqueiro e todo um bando de porcos se espalhou pela aldeia. O taberneiro e o barbeiro saíram de suas casas e perguntaram humildemente aos soldados o que desejavam, mas os espanhóis não entendiam flamengo e entraram à procura de crianças. O taberneiro tinha um filhinho que, vestido em sua camisola de lã, estava sentado à mesa do jantar, chorando. Um dos soldados tomou-o nos braços e carregou-o consigo para debaixo das macieiras, enquanto os pais o acompanhavam aos gritos. Em seguida os infantes arrombaram os estábulos do tanoeiro, do ferreiro e do sapateiro, e vacas, novilhos, asnos, porcos, cabras e ovelhas começaram a circular pela praça. 


Quando eles quebraram as vidraças da casa do carpinteiro, alguns dos mais abastados e antigos membros da paróquia reuniram-se na rua e aproximaram-se dos espanhóis. Tiraram respeitosamente os gorros diante do chefe trajado de veludo, perguntando-lhe o que pretendia fazer, mas também ele não entendeu o que lhe foi dito e um dos aldeões partiu em demanda do cura. Este preparava-se para dar a Bênção e estava justamente paramentando-se na sacristia. O aldeão gritou: "Os espanhóis estão na praça!" Aterrorizado, correu o cura à porta da igreja, seguido pelos seus acólitos que levavam círios e incensórios. Podia ver da porta os animais soltos que vagueavam sobre a relva e a neve, os cavaleiros espanhóis, os infantes diante das casas, cavalos amarrados às árvores em toda a extensão da rua e homens e mulheres dirigindo súplicas ao soldado que carregava o menino vestido ainda com a sua camisola. Precipitou-se para o adro, os aldeões voltando-se ansiosos para ele, seu sacerdote, ao vê-lo surgir como um deus coberto de ouro no meio das pereiras. Comprimiram-se atrás dele, quando o cura defrontou o homem de barba branca. Ele falou em flamengo e latim, mas o comandante sacudiu lentamente os ombros para mostrar que não estava compreendendo.
Alguns paroquianos perguntavam-lhe em voz baixa: "Que disse ele? O que vai fazer?" Outros, vendo o cura na praça, emergiram cautelosamente de suas casas, e mulheres acorriam apressadas e cochichavam entre si em pequenos grupos, enquanto os soldados que tinham assediado a taverna tornaram a sair quando viram a multidão reunida na praça.

Então aquele que segurava por uma perna o filho do taberneiro cortou-lhe a cabeça com um golpe de espada. Os aldeões viram a cabeça cair e o sangue escorrendo no chão. A mãe arrebatou o corpo em seus braços e, esquecendo a cabeça, correu para casa. No trajeto foi de encontro a uma árvore, tombou sobre a neve e ficou desmaiada, enquanto o pai lutava com dois soldados. Alguns dos campónios mais jovens arremessaram pedras e pedaços de madeira contra os espanhóis, mas os cavaleiros juntaram-se e baixaram as lanças, as mulheres dispersaram-se em todas as direções e o cura, no meio dos seus outros paroquianos, gritou de horror com o acompanhamento das vozes assustadas das ovelhas, dos cães e dos gansos.

Quando os soldados tornaram a afastar-se rua abaixo, todos novamente se aquietaram, à espera do que ainda estava para vir. Um grupo invadiu a loja das irmãs do sacristão, mas logo se retirou sem tocar nas diversas mulheres presentes, que rezavam de joelhos. Os soldados entraram depois na taberna do Corcunda de São Nicolau. Ali também a porta foi aberta instantaneamente a fim de aplacá-los, mas quando tornaram a aparecer, no meio de um grande tumulto, traziam três crianças nos braços e estavam rodeados pelo Corcunda, sua mulher e filhas, que pediam piedade de mãos postas. Quando os soldados chegaram à presença do seu chefe, deixaram as crianças embaixo de um olmo, todas ataviadas com suas vestes domingueiras. Uma delas, que estava com um traje amarelo, ergueu-se e correu com pezinhos incertos para junto das ovelhas. Um espanhol perseguiu-a com a espada desembainhada. A criança morreu com o rosto na terra. As outras foram massacradas junto da árvore. Os aldeões e a filha do taberneiro fugiram aos gritos e voltaram para suas casas. Sozinho na praça, o cura caiu de joelhos, ao mesmo tempo que o pai e a mãe das crianças assassinadas, sentados na neve, choravam mansamente tendo no regaço seus pequenos corpos dilacerados.

Ao descer a rua, notaram os infantes uma grande casa pintada de azul. Tentaram arrombar a porta, mas esta era de carvalho e reforçada com enormes pregos. Assim, fizeram uma pilha com barris que encontraram no pátio e entraram pelas janelas do segundo andar.

Festejava-se um aniversário na casa: parentes tinham vindo para celebrar com pastéis, salsichas e pudins. Ouvindo o ruído das vidraças estilhaçadas, agacharam-se atrás da mesa carregada ainda de iguarias e bebidas. Os soldados foram à cozinha e, após uma luta selvagem na qual muitos deles ficaram feridos, apanharam todos os meninos e meninas, bem como um pequeno servo que tinha mordido a mão de um espanhol, deixaram a casa e fecharam a porta atrás de si para impedir que fossem seguidos.

Os que não tinham filhos saíram cautelosamente de suas casas e seguiram os soldados à distância. Puderam vê-los atirar as suas vitimas aos pés do velho comandante e massacrá-las friamente com suas lanças e espadas. Enquanto isso, homens e mulheres apinhavam-se às janelas da casa azul e do celeiro, amaldiçoando e erguendo os braços para o céu ao contemplar as pequenas formas coloridas e ensanguentadas dos seus filhinhos atirados pelo chão, entre as árvores. Então os soldados enforcaram o servo na tabuleta da Taverna da Meia Lua, do outro lado da praça. Fez-se um enorme silêncio na aldeia.

O massacre tornara-se agora geral. Mães escapavam de suas casas, tentando fugir através dos pomares e jardins para o campo aberto, mas os soldados perseguiam-nas a cavalo e traziam-nas de volta à aldeia. Camponeses, com os gorros apertados entre as mãos, caíam de joelhos diante dos soldados que arrastavam seus filhos, e cães latiam alegremente no meio da desordem. O cura, mãos levantadas, corria desatinado de casa em casa e por entre as árvores, rezando desesperadamente como um mártir. Os soldados, tremendo de frio, sopravam os dedos ao mover-se de um lado para outro, ou permaneciam ociosos, mãos enfiadas nos bolsos e espada debaixo do braço, diante das casas que eram varejadas. Pequenos grupos, guiando-se pelo terror estampado no rosto dos campónios, invadiam casas em todas as direções e por toda parte as cenas dolorosas se repetiam. A mulher do jardineiro do mercado, que morava num velho casebre de telhas vermelhas perto da igreja, perseguiu com uma cadeira dois soldados que estavam carregando as suas crianças num carrinho de mão. Ela teve uma crise terrível quando viu morrerem os seus filhos e fizeram-na sentar encostada ao tronco de uma árvore.

Outros soldados treparam numa grande tília diante de uma casa cor de lilases e nela penetraram arrancando as telhas. Quando reapareceram sobre o telhado, os pais acompanharam-nos de braços estendidos até que eles os forçaram a recuar, sendo para isto necessário baterem com as espadas em suas cabeças até conseguirem desvencilhar-se e descer para a rua.

Uma família, que se escondera na adega de uma grande casa, observava com desespero, pelas aberturas gradeadas, os horrores que se passavam no exterior, o pai brandindo freneticamente uma foice através das grades. Fora, um velho de crânio luzidio, sentado sobre um montão de detritos, soluçava solitário. Na praça, uma mulher de coifa amarela estava desmaiada, o desolado marido sustentando-a desajeitadamente pelos braços contra uma pereira Outra mulher, de vermelho, debruçava-se sobre a filhinha, cujas mãos tinham sido amputadas, levantando-lhe os braços para ver se ela ainda se movia. E outra mulher tentava escapar para c campo, os soldados correndo em sua perseguição entre os montes de feno, que formavam nítidos relevos contra a neve.

Diante da taverna dos Quatro Filhos de Aymon reinava tumulto. Os camponeses tinham armado uma barricada e os soldados rodeavam o local, incapazes de efetuar a invasão. Tentavam subir à tabuleta, valendo-se das trepadeiras, quando avistaram uma escada atrás do portão do jardim. Encostando-a na parede, subiram por ela um após outro. Mas o proprietário e sua família arremessavam-lhes mesas e cadeiras, pratos de cerâmica e até berços pelas janelas, impedindo-lhes a abordagem.

Num chalé de madeira nos arredores da aldeia, outro grupo de soldados encontrou uma velha lavando os netinhos numa tina, diante da lareira aberta. Ela era surda e não os ouvira entrar. Dois soldados carregaram a tina com as crianças dentro, enquanto a velha, assombrada, corria atrás deles, trazendo nas mãos as roupinhas com que ia vesti-los. Já na aldeia, ela viu rastos de sangue, espadas nuas no meio da praça, berços destroçados nas ruas, mulheres rezando e torcendo as mãos sobre os filhos mortos, e começou a gritar e a bater nos soldados, que precisaram arriar a tina para se defender. O cura correu para ela, com as mãos ainda cruzadas sobre a casula dourada, e suplicou misericórdia aos soldados, em presença das crianças nuas que choravam de frio e terror. Outros soldados acorreram, amarraram a velha desvairada a uma árvore e prosseguiram com as crianças.

O açougueiro, tendo escondido a sua filhinha, postou-se diante da casa com aparente indiferença. Um infante e um dos cavaleiros de armadura entraram na casa e encontraram a menina escondida dentro de uma grande caçarola de cobre. O açougueiro apanhou alucinadamente uma faca e lançou-se em perseguição, mas os soldados desarmaram-no e suspenderam-no pelas mãos aos ganchos do açougue, onde ele ficou esperneando e contorcendo-se entre as suas reses mortas até o anoitecer.

Perto da igreja uma multidão aglomerou-se em frente duma casa baixa e comprida, pintada de verde. À porta, o proprietário chorava convulsivamente. Era gordo, simpático e logrou despertar compaixão de alguns soldados que se encostavam a um muro, apanhando sol e afagando um cão. O soldado que levava o seu filho fazia gestos que queriam significar: "Que posso fazer? Não é culpa minha! "

Um aldeão que estava sendo perseguido saltou num bote perto da ponte de pedra e, com a mulher e os filhos, pôs-se a remar lestamente através da parte não congelada da lagoa. Os espanhóis, que não ousaram acompanhá-lo, caminhavam muito irritados entre os juncos da margem. Inclinaram-se sobre a água várias vezes e tentaram alcançar o bote com suas lanças. Não o conseguindo fazer, continuaram ameaçando os fugitivos, que cada vez mais se afastavam por sobre a água escura.

A praça estava ainda cheia de gente: ali, em presença do chefe de barba branca, é que as crianças, na sua maior parte, eram assassinadas. Os pequeninos de mais de dois anos e que apenas podiam andar, estavam juntos comendo pão com geléia e assistindo de olhos esbugalhados ao massacre dos companheiros indefesos, ou agrupavam-se em volta do louco da aldeia, que alegremente soprava a sua flauta.

Subitamente houve um movimento geral na aldeia e os camponeses seguiram em direção ao castelo, que aparecia sobre uma elevação no extremo da longa rua. Eles tinham avistado o senhor no alto das muralhas, assistindo ao morticínio. Homens e mulheres, moços e velhos, estenderam os braços, numa súplica muda, para aquela figura envolta em seu manto de espesso veludo, um gorro bordado a ouro na cabeça, como um rei em plena glória. Porém o senhor apenas levantou as mãos abertas e encolheu os ombros para mostrar que era impotente, enquanto seus súbditos imploravam com dramático desespero, descobertos e ajoelhados na neve, mas chorando em silêncio. Ele voltou-se lentamente sobre si mesmo e desapareceu. A última esperança desvanecera-se.
Depois de mortas todas as crianças, os soldados exaustos limparam suas espadas na relva e comeram a sua ceia entre as pereiras, depois montaram aos pares e retiraram-se de Nazaré pela mesma ponte por onde tinham vindo.

O pôr do sol tornou o bosque flamejante e tingiu a aldeia num tom vermelho de sangue. Extenuado, o cura deixou-se cair na neve diante da igreja, a velha empregada de pé ao seu lado. Ambos olharam a rua, a praça, que estavam cheias de aldeões envergando os seus trajos domingueiros. Nas portas de muitas casas estavam sentados homens e mulheres com cadáveres de crianças sobre os joelhos, tomados ainda de assombro e lamentando sua imensa tragédia. Outros choravam seus filhos nos próprios locais onde eles tinham perecido, ao lado de um barril, sob um carrinho de mão, ou junto da lagoa. Outros ainda carregavam seus pequenos mortos em silêncio. Algumas pessoas puseram-se a lavar bancos, cadeiras, mesas, roupas manchadas de sangue, ou recolher berços que tinham sido lançados à rua. Muitas mães pranteavam seus filhos, sentadas sob as árvores, havendo-os reconhecido pelas roupinhas de algodão. Aquelas que nunca tiveram filhos vagueavam pela praça, parando junto das mães desatinadas, que soluçavam e diziam coisas ininteligíveis. Os homens, que tinham parado de chorar, perseguiam teimosamente os animais tresmalhados, entre cães que latiam; outros começaram silenciosamente a trabalhar, reparando as suas janelas quebradas e telhados arruinados.
Ao aparecer majestosamente a lua no céu tranquilo, um silêncio dormente caiu sobre a aldeia, onde afinal não se movia nem sombra de coisa viva.





(Ilustração: Bruegel – children games)


domingo, 25 de julho de 2010

THE FORCE THAT THROUGH THE GREEN FUSE DRIVES THE FLOWER / A FORÇA QUE IMPELE ATRAVÉS DO VERDE RASTILHO DA FLOR / A FORÇA QUE DO PAVIO VERDE INFLAMA A FLOR, de Dylan Thomas







The force that through the green fuse drives the flower

Drives my green age; that blasts the roots of trees

Is my destroyer.

And I am dumb to tell the crooked rose

My youth is bent by the same wintry fever.



The force that drives the water through the rocks

Drives my red blood; that dries the mouthing streams

Turns mine to wax.

And I am dumb to mouth unto my veins

How at the mountain spring the same mouth sucks.



The hand that whirls the water in the pool

Stirs the quicksand; that ropes the blowing wind

Hauls my shroud sail.

And I am dumb to tell the hanging man

How of my clay is made the hangman’s lime.



The lips of time leech to the fountain head;

Love drips and gathers, but the fallen blood

Shall calm her sores.

And I am dumb to tell a weather’s wind

How time has ticked a heaven round the stars.



And I am dumb to tell the lover’s tomb



How at my sheet goes the same crooked worm.



Tradução de Fernando Guimarães:



A força que impele através do verde rastilho a flor

impele os meus verdes anos; a que aniquila as raízes das árvores

é o que me destrói.

E não tenho voz para dizer à rosa que se inclina

como a minha juventude se curva sob a febre do mesmo inverno.


A força que impele a água através das pedras

impele o meu rubro sangue; a que seca o impulso das correntes

deixa as minhas como se fossem de cera.

E não tenho voz para que os lábios digam às minhas veias

como a mesma boca suga as nascentes da montanha.


A mão que faz oscilar a água no pântano

agita ainda mais a areia; a que detém o sopro do vento

levanta as velas do meu sudário.

E não tenho voz para dizer ao homem enforcado

como da minha argila é feito o lodo do carrasco.


Como sanguessugas, os lábios do tempo unem-se à fonte;

fica o amor intumescido e goteja, mas o sangue derramado

acalmará as suas feridas.

E não tenho voz para dizer ao dia tempestuoso

como as horas assinalam um céu à volta dos astros.


E não tenho voz para dizer ao túmulo da amada

como sobre o meu sudário rastejam os mesmos vermes.




Tradução de Augusto de Campos:



A força que do pavio verde inflama a flor

Inflama a minha idade verde; que rói as raízes das árvores

É a que me destrói.

E mudo eu sou pra dizer à rosa curva

Que à minha juventude encurva a mesma febre de inverno.



A força que através das rochas move a água

Move o meu sangue rubro; que seca os rios vociferantes

Torna em cera os meus rios.

E mudo eu sou para gritar às minhas veias

Que é a mesma boca a sorver a fonte da montanha.



A mão que faz girar a água no charco

Acorda a areia movediça; que amarra o sopro do vento,

Me arma a vela e a mortalha.

E mudo eu sou pra dizer ao enforcado

Que a minha argila e a do carrasco são a mesma argila.

O tempo com seus lábios suga as minhas fontes;

O amor goteja e coalha mas o sangue caído

Calmará suas chagas.

E mudo eu sou pra dizer ao vento como o tempo

Pulsou um céu em torno das estrelas.



E mudo eu sou pra dizer ao tumulo da amante

Que, curvo, em meus lençóis, se arrasta o mesmo verme.



(A Mão ao Assinar Este Papel; tradução de Fernando Guimarães) 

(Poesia da recusa; organização e tradução Augusto de Campos)
(Ilustração: Deborah Poynton – train journey)




sexta-feira, 23 de julho de 2010

AS LEIS DA ROBÓTICA, de Isaac Asimov





  • Um robô não pode causar dano a um ser humano nem, por omissão, permitir que um ser humano sofra. 
  • Um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a primeira lei. 
  • Um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não se choque com a primeira e a segunda lei.

(Ilustração: Siegfried Zademack – beijo)




quarta-feira, 21 de julho de 2010

CATAGUASES, de Enrique de Resende







A cidade natal... Uma aquarela


que me vem do passado... e que me faz sonhar.


Cerro os olhos e vejo-a, adormecida e bela,


toda envolta em luar.





Aqui, uma rua pobre. Ali, uma viela.


Os jardins... O canal... A velha igreja, a orar.


E, mais além, o rio - uma fita amarela


na paisagem lunar.





Cantando a tua vida acolhedora e quieta,


serei sempre o teu poeta anônimo - o teu poeta,


cidade de interior.





Pois foi sob o teu céu, curvo como um diadema


que um dia florescera o meu primeiro poema,


e florescera um dia o meu primeiro amor.




(Ilustração: Leda Catunda – paisagem com estrada)


segunda-feira, 19 de julho de 2010

A LINGUAGEM DO FUTEBOL, de Pier Paolo Pasolini






O futebol é um sistema de signos, ou seja uma linguagem. Tem todas as características fundamentais da linguagem por excelência, o que expomos em seguida como termo de comparação, ou seja, a linguagem escrita-falada. De fato, as "palavras" da linguagem do futebol se formam exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada. Agora, como se formam estas últimas? Se formam através da "dupla articulação", ou seja através das infinitas combinações dos fonemas que são, em italiano, as vinte e uma letras do alfabeto. Os fonemas, portanto, são as "unidades mínimas" da língua escrita-falada.



Queremos nos divertir definindo a unidade mínima da língua do futebol? Vejamos: "Um homem que usa os pés para chutar a bola", essa é a unidade mínima: esse "podema" (se queremos continuar nos divertindo). As infinitas possibilidades de combinação dos "podemas" formam as "palavras futebolísticas", e o conjunto das "palavras futebolísticas" forma um discurso, regulado por autênticas normas sintáticas. Os "podemas" são vinte e dois (quase como os fonemas), as "palavras futebolísticas" são potencialmente infinitas, porque infinitas são as possibilidades de combinação dos "podemas" (na prática, os passes de bola entre cada jogador); a sintaxe se expressa na "partida", que é um autêntico discurso dramático.



Os codificadores desta linguagem são os jogadores, nós, nas arquibancadas, somos os intérpretes: assim, possuímos um código comum. Quem não conhece o código do futebol não entende o significado de suas palavras (os passes) nem o sentido de seu discurso (um conjunto de passes).



Não sou nem Roland Barthes nem [o semiólogo Algirdas Julius] Greimas, mas como aficcionado, se quisesse, poderia escrever um ensaio muito mais convincente que esta menção sobre a "língua do futebol". Penso, ademais, que se poderia escrever também um bonito ensaio intitulado "Vladimir Propp aplicado ao futebol", porque, naturalmente, como toda língua, o futebol tem seu instante puramente "instrumental", rigorosa e abstratamente regulado pelo código, e o seu instante "expressivo".



Com efeito, antes eu disse que toda língua se articula em várias sublínguas, cada uma das quais possui um subcódigo. Pois bem, na língua do futebol se podem fazer também distinções deste tipo: também o futebol possui subcódigos, desde o momento em que, de puramente instrumental, para converter-se em expressivo.



Pode haver um futebol como linguagem em prosa e um futebol como linguagem fundamentalmente poética. Para explicar-me, aponto - antecipando as conclusões - alguns exemplos: Bulgarelli joga um futebol em prosa: ele é um "prosador realista". Riva joga um futebol de poesia: ele é um "poeta realista". Corso joga um futebol de poesia, mas não é um "poeta realista": é um poeta um pouco maldito, extravagante. Rivera joga um futebol em prosa, mas é uma prosa poética, de Elzevir.



Também Mazzola é um "elzeveriano", que poderia escrever no Corriere della Sera, mas é melhor poeta que Rivera: de vez em quando ele interrompe a prosa e logo inventa dois versos fulgurantes. Esclareço que entre a prosa e a poesia não fazemos diferença de valor; a minha é uma distinção puramente técnica. Entretanto, vamos nos entender: a literatura italiana, sobretudo a mais recente, é a literatura dos Elzevir: eles são elegantes e extremamente estetizantes, no fundo são quase sempre conservadores e um pouco provincianos... enfim, democrata-cristãos. Entre todas as linguagens que se falam num país, inclusive aqueles com mais gírias, há um terreno comum desse país: sua atualidade histórica. Assim, precisamente por razões de cultura e história, o futebol de alguns povos é fundamentalmente em prosa; prosa realista ou prosa estetizante (este é o caso da Itália), enquanto que o futebol de outros povos é basicamente em poesia.



Em futebol há momentos que são exclusivamente poéticos: são os momentos do gol. Cada gol é sempre uma invenção, é sempre uma perturbação do código: todo gol é inelutabilidade, fulguração, espanto e irreversibilidade.



Precisamente como a palavra poética. O melhor goleador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano.



Neste momento é Savoldi. O futebol que expressa mais gols é o futebol mais poético. Também o drible é por si poético (ainda que não se compare com o gol). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por todo espectador) é arrancar do centro do campo, driblar a todos e marcar o gol. Se, dentro dos limites, se pode imaginar uma coisa sublime, é precisamente esta. Mas isso nunca acontece. É um sonho que vi realizado somente em I due maghi del pallone (Os dois mágicos da bola), o filme de Franco Franchi que, mesmo num nível grosseiro, conseguiu ser perfeitamente onírico.



Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores goleadores? Os brasileiros. Portanto, seu futebol é um futebol de poesia: de fato, todo ele está baseado no drible e no gol. A troca de passe e a triangulação é um futebol de prosa: com efeito, está baseado na sintaxe, ou seja, no jogo coletivo e organizado: quer dizer, na execução racional do código. Seu único momento poético é o contra-ataque, com a adição do gol (que, como vimos, não pode ser mais poético). Definitivamente, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individualista (drible e gol; o passe inspirado).



O futebol em prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Seu esquema é o seguinte: o gol, neste esquema, está atrelado à definição, possível a um "poeta realista" como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, baseado numa série de passes geométricos executados segundo as regras do código (se trata de uma perfeição um pouco estetizante e não realista, como nos centroavantes ingleses ou alemães).



O futebol poético é o futebol latinoamericano. Seu esquema é o seguinte: esquema que para ser consumado deve requerer uma capacidade monstruosa de driblar (algo que na Europa é repudiado em nome da "prosa coletiva") e o gol pode ser inventado por qualquer um desde qualquer posição. Se o drible e o gol são os momentos individualistas-poéticos do futebol, é por isso que o futebol brasileiro é um futebol de poesia. Sem fazer diferença de valor, mas em sentido puramente técnico, no México a prosa estetizante italiana foi vencida pela poesia brasileira.






Nota: artigo escrito em 1971 e publicado no Jornal Página 12 da Argentina, 
em junho de 2010. O A. refere-se à vitória da seleção brasileira 
na Copa de 70 e a jogadores da época.





(Tradução de Cristóvao Feil)





(Ilustração: Portinari - futebol)




sábado, 17 de julho de 2010

A ÁRVORE DO MAL, de Guerra Junqueiro







Por debaixo do azul sereno, entre a fragrância
Dos mirtos, dos rosais,
Viviam numa doce e numa eterna infância
Nossos primeiros pais.
Seus corpos juvenis, mais alvos do que a Lua,
Mais puros que os diamantes,
Conservavam ainda a virgindade nua
Das coisas ignorantes.
Pôs Deus nesse jardim com sua mão astuta
Ao lado da inocência
A Árvore do Mal que produzia a fruta
Venenosa da ciência.
E, apesar de conter venenos homicidas
E o gérmen do pecado,
Era Deus quem comia ó noite, às escondidas,
Esse fruto vedado.
Por isso Jeová tinha ciência infinda;
Tinha um poder secreto,
E Adão que não provara os frutos era ainda
Um anjo analfabeto.
Eva colheu um dia o belo fruto impuro,
O fruto da Razão.
Nesse instante sublime Eva tinha o Futuro
Na palma da sua mão!
O homem, abandonando a submissão covarde,
Viu o fruto e comeu.
Esse fruto é a Luz que a Júpiter mais tarde
Roubará Prometeu.
E ao ver igual a si a estátua que criara,
O homem réprobo e nu,
Jeová exclamou: «Maldita seja a seara
Cuja semente és tu!»
Veio depois a Igreja e repetiu aos crentes
De toda a humanidade:
«Maldito seja sempre o que enterrar os dentes
Nos frutos da verdade!»
A Igreja permitia esse vedado pomo
Somente aos sacerdotes.
Da arvore do mal fugia o mundo, como
Os lobos dos archotes.
Se o sábio que buscava o oiro nas retortas
Ia como um ladrão
Roubar timidamente, à noite, às horas mortas,
Algum fruto do chão,
Tiravam-lhe da boca esse fruto daninho
Duma maneira suave:
Atando-lhe à garganta uma corda de linho
Suspensa duma trave.
Um dia um visionário, alma vertiginosa,
Espírito imortal,
Foi deitar-se, que horror! à sombra temerosa
Da Árvore do Mal.
A Igreja ao ver aquela intrépida heresia
Lança-lhe excomunhões;
Tomba por terra um fruto... e Newton descobria
A lei das atracções!
Sacudi, sacudi a árvore maldita,
Que os astros tombarão,
Como se sacudisse a abóbada infinita
Deus com a própria mão!
E quando o mundo inteiro enfim houver comido
Até à saciedade
O fruto que lhe estava há tanto proibido,
O fruto da Verdade,
Homens, dizei então a Jeová: - «Tirano,
Vai-te embora daqui!
Construímos de novo o paraíso humano;
Fizemo-lo sem ti.
Expulsaste do Olimpo a humanidade outrora,
Ó déspota feroz;
Pois bem: o Olimpo é nosso, e, Jeová, agora
Expulsamos-te nós!»


(A Velhice do Padre Eterno)


(Ilustração: Gottardo Ciapanno – Adamo ed Eva)



quinta-feira, 15 de julho de 2010

MANIFESTO FUTURISTA, de Fellipo Tomaso Marinetti








1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.

2. A coragem, a audácia, a rebelião, serão elementos essenciais da nossa poesia.

3. Até hoje, a literatura exaltou a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o sopapo.

4. Declaramos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida com a carroçaria enfeitada por grandes tubos de escape como serpentes de respiração explosiva… um carro tonitruante que parece correr entre a metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia.

5. Queremos cantar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada, por sua vez, em corrida no circuito da sua órbita.

6. O poeta terá de se prodigar, com ardor, refulgência e prodigalidade, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

7. Não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser considerada obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las a prostrar-se perante o homem.

8. Estamos no promontório extremo dos séculos!… Porque deveremos olhar para detrás das costas se queremos arrombar as misteriosas portas do impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade.

9. Nós queremos glorificar a guerra, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias por que se morre e o desprezo da mulher.

10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo e combater o moralismo, o feminismo e todas as vilezas oportunistas ou utilitárias.

11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as gulosas estações de caminho-de-ferro engolindo serpentes fumegantes; as fábricas suspensas das nuvens pelas fitas do seu fumo; as pontes que saltam como atletas por sobre a diabólica cutelaria dos rios ensolarados; os aventureiros navios a vapor que farejam o horizonte; as locomotivas de vasto peito, galgando os carris como grandes cavalos de ferro curvados por longos tubos e o deslizante voo dos aviões cujos motores drapejam ao vento como o aplauso de uma multidão entusiástica.


(Ilustração: Kandinsky – transverse line)


terça-feira, 13 de julho de 2010

OS TRÊS AMORES, de Castro Alves





I



Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes. ..
-- Tu és Eleonora...



II



Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
-- E tu és Julieta...



III



Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és -- Júlia, a Espanhola!. . .



(Espumas Flutuantes)



(Ilustração: As três graças, de Yvonne Jeanette Karlsen)


domingo, 11 de julho de 2010

ANTES DE REGRESSAR AO MUNDO DOS SONHOS, de Marcel Proust







Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre meus olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adapatar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez mais ainda para meu espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastados, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à estação próxima: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.

Apoiava brandamente minhas faces contras as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces de nossa infância. Riscava um fósforo para olhar o relógio. Em breve seria meia-noite. É esse o instante em que o enfermo obrigado a partir e que teve de pousar em um hotel desconhecido, desperto por uma crise, alegra-se ao perceber debaixo da porta uma raia de luz. Que ventura! Já é dia! Dentro em pouco os criados se levantarão, poderá chamar, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer. Agora mesmo julgou ouvir passos; os passos se aproximam, depois se afastam. E a raia de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu, e será preciso ficar toda a noite a sofrer sem remédio.

Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos das madeiras, para abrir os olhos e ficar o caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me. Ou então, enquanto dormia, retrocedera sem esforço a uma época para sempre transcorrida de minha primitiva existência, tornando a encontrar alguns de meus terrores infantis, como o medo de que meu tio-avô me puxasse os cachos e que se dissipara no dia – início para mim de uma era nova – em que mos haviam cortado. Tal acontecimento, eu o esquecera durante o sono, mas sua lembrança voltava-me assim que conseguia despertar para fugir das mãos de meu tio-avô; em todo caso, como medida de precaução, envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de regressar ao mundo dos sonhos.





(Em Busca do Tempo Perdido – O Caminho de Swann, tradução de Mário Quintana)



(Ilustração: Camile Pissarro – rainbow)



sexta-feira, 9 de julho de 2010

AMOR — POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL, de Carlos Drummond de Andrade






Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e tudo a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
Reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma a expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
Fundido, dissolvido, volta à origem
Dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


(O Amor Natural)



(Ilustração: Katy Bailey – o beijo)