sábado, 3 de julho de 2010
SEGUNDA ESTÓRIA DE FAMÍLIA, de Luiz Cláudio Cerqueira
Quando Eneida se aproximou do grupo que vinha em sentido contrário, o instinto lhe avisou que algo um tanto inusitado iria acontecer.
Era uma mulher grávida e um cabrito. A mulher ouvia, atenta, o que loquaz lhe falava o cabrito ao pé do ouvido quando, já próxima de Eneida, sobressaltou-se e deu um berro.
Nesse momento escorreu-lhe pela manga do vestido um inesperado ser, mais precisamente um Pachydactylus bibronii, um gecko de Bibron.
O lagartinho parou no dorso da mão da espantadíssima gestante, tão espantado quanto, e olhou obliquamente em torno como olham os lagartos e certas pessoas de gênio. Depois executou dois ou três movimentos performáticos de língua, certamente por saber que àquela altura já monopolizava atenções. Feito isto, pulou no chão e saiu em disparada.
Instaurou-se uma barafunda. O cabrito, de puro susto, cagou ali mesmo seis cocozinhos redondíssimos, redondos como jamais os cagara em toda a sua vida. E gritava:
- Eu não te disse? Eu não te disse?
Eneida pensou: É nisso que dá. Mulher buchuda assim levar um susto desses...
A confusão dever ter gerado algum pânico no gecko, pois ele correu direto de encontro a um muro e, ao trombar nele, imediatamente transformou-se num rato. No mesmo embalo em que como gecko foi e bateu, como rato em disparada voltou.
O cabrito, após repetir mais uma vez “Eu não te disse?”, talvez exagerando na repetição, mas esclareço aqui que a estória está contada como ocorreu, virou um gato e partiu pra cima do apressado ratinho.
Eneida viu o pior. “Ai, ai, ai”, murmurou.
Ao interceptar o rato, o ex-cabrito agora gato pegou-o com as duas patas dianteiras e aplicou-lhe uma certa pressão nas têmporas, um tipo de shiatsu que fez com que o outro imediatamente apagasse, apagasse mesmo.
- Não se preocupem, não se preocupem, disse o gato. Aqui está tudo sob controle.
De fato, segundos depois o rato voltou a si. Agradeceu ao ex-cabrito agora gato, pediu a palavra e falou:
- Pois não. Boa tarde, distinto público. Vejo uma senhora ali, é da comunidade? Pois não.
- Na verdade eu vinha em sentido contrário e..., respondia Eneida, mas o rato não lhe eu tempo de terminar:
- A esta altura os sentidos são vários, distinta senhora, pois bem?
E dirigindo-se a todos:
- Que fome! O que vamos comer?
Aí então olhou para a mulher grávida e exclamou:
- Mamãe! Mãezinha!
De fato, constatou Eneida, buchuda ela já não estava mais.
Ouviu-se então o ronco característico. E ele surgiu, modelo 1979, um lindo fuscão Fafá. No volante, um novo personagem, o gecko tatu. Ou seja, um tatu que antes fora também gecko. Sem desligar o motor, ele disse:
- Bem, parece que está tudo conforme planejado, certo, Darwin?
- Certo, respondeu o ex-cabrito agora gato. Darwin era seu nome.
- Então só queria avisar que está vindo aí uma carrocinha do pet shop, de modo que eu já vou puxando o barco...
Pernas, para que vos quero! No ato embarcaram todos e rasparam-se dali, zunindo, exceto Eneida que ainda teve tempo de ver quão animados estavam a mulher, já não mais buchuda, o rato seu filho ex-gecko (cuja menção por este último qualificativo não mais se recomenda, pois outro ex-gecko agora existe, o gecko tatu), e também o ex-cabrito agora gato, que insistia: “Eu não te disse? Eu não te disse?”, esquecido dos redondíssimos cocozinhos obras de arte que cagara quando cabrito fora, ele que...
Eneida bateu na testa:
- É o pai! Darwin é o pai!
E com sabedoria sentenciou:
- Errou quem disse que o bom cabrito não berra. Além disto, malandro é o gato...
A felicidade se instalou em seu coração, uma felicidade em três, a mulher, o gato e o rato, o pai, a mãe, o filho...
- Ingrid! Berrou a mãe, já sumindo de vista.
- Uma ratinha, não é rato não, uma ratinha, Ingrid!
A felicidade das coisas resolvidas, a felicidade de um bom desfecho, um bom fim, quase se transformando em tristeza porque o fim entristece, tudo que acaba entristece, mas Eneida não achou que nada estivesse acabando. Afinal de contas, ela apenas caminhava por ali e encontrou aquela família que vinha em sentido contrário, ou melhor, uma família que ainda não era uma família mas que virou uma família, ou talvez uma família que já era uma família só que ela, Eneida, percebeu mais tarde, ainda há pouco, ou quem sabe... bem, talvez fosse mais simples deixar de tantas conjecturas e apenas ficar feliz.
Achou uma boa idéia recolher os cocozinhos, nalguma bienal poderiam fazer sucesso, ou pelo menos boas bolinhas de gude quem sabe dariam depois de endurecidos...
Freada brusca. A carrocinha do pet shop. No volante um sujeito pálido, bigodinho fino, que a primeira coisa que fez foi tomar-lhe um dos cocozinhos redondíssimos e colocar no lugar de um olho de vidro que perdera, pois a freada foi tão brusca que bateu com o peito no volante, e no baque o vítreo globo saltou da órbita.
- Posso saber o que a senhora faz por aqui?
- Quem, eu?
- Não se faça de gente! Conheço esses truques! JJJJJá pra dentro!
- Senhor, está havendo um sério equívoco.
- PPPPPPrá dentrrro! JJJJJá falei!
E lá se ia, ou melhor, para lá retornaria Eneida, subitamente transformada em cadelinha poodle solitária sem ninguém, recém fugida do pet shop, que bem pouco tempo teve de gozar sua liberdade.
Mas houvera um maravilhoso insólito encontro, e agora tudo diferente. De fato ela não era mais Eneida, era alguém novo, e esse novo alguém fora criado por ela mesma e não por outrem, muito menos por algum sujeito pálido de olho de vidro e bigodinho fino, motorista de carrocinha de pet shop. Até mesmo porque, se desse lugar saíra cadelinha poodle solitária e sem ninguém, agora eram ela e cinco redondíssimos cocozinhos obras de arte, e o sexto haveria de retomar logo logo.
A primeira coisa que fez foi rosnar:
- Grrrrr!
- Rrrrrrrr! Rrrrruuuummmm!
Não foi outro rosnado não! Era o fuscão Fafá voltando!
Ah, os amigos! A família!
Um cavalo de pau assustou o pálido vilão, que correu a se refugiar na carrocinha. Na fuga, o cocozinho-olho caiu e Eneida o recuperou, ainda no ar.
- Entra!, gritou o gecko tatu, sem desligar o motor.
- Rrrrruuuummmm!
Agora tudo muito claro. Eneida era aquilo mesmo que a estória lhe mostrou, uma cadelinha poodle que nalgum remoto tempo quem sabe até agruras mil praticara, como peidar em elevadores e latir mensagens de salvação em praça pública, mas acima de tudo solitária sem ninguém, que não caíra na mudança, pelo contrário se levantara naquele caminho em que um maravilhoso insólito encontro ocorreu, achando assim seu sentido, seu verdadeiro sonho.
A felicidade das coisas resolvidas.
Pernas! Para que vos quero?
- Rrrrruuuummmm!
(Ilustração: Joseph Barbaccia – sustenance)
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