segunda-feira, 30 de março de 2015

TE AMO, de Ana Cristina Pozza




  

Acho que te amo...

Se é que se tem que achar...

Amar é amar...

Esta coisa de fazer o peito pular,

Ter o coração na boca,

Os olhos no infinito...

Deixar o mundo fluir na alma

Sem calma,

Como se na tua ausência

Tudo fosse acabar!

Te amo.

Te amo mesmo que haja um fim...

Te amo assim...

Te amo teu toque.

Te amo teu cheiro.

Te amo teu sorriso.

Te amo tua insanidade.

Te amo tua saudade.

Te amo imensidade.

Te amo nosso momento.

Te amo nosso movimento.

Te amo nosso abraço.

Te amo nosso laço.

Te amo nosso presente.

Te amo inconsequente.

Te amo batidas no coração...

Te amo perdição...

Te amo de paixão...

Te amo e choro...

Te amo mais que te adoro...

Te amo porque me olhas assim...

Te amo porque sim...

Te amo porque tu és tu...

Te amo porque eu sou eu...

Te amo porque vivemos...

Te amo porque respiramos...

Te amo porque existem as estrelas...

Te amo porque não tem que ter porquê.

Te amo porque te amo.




(Ilustração: Ron English - kiss the bride)






sexta-feira, 27 de março de 2015

STELA DO PATROCÍNIO, de Valter Hugo Mãe





     



Perguntei a uma vendedora se me ajudava a descobrir o livro da Stela do Patrocínio. Ficou confusa. Achava que se tratava de uma figura da política. Eu expliquei que não. Foi uma mulher institucionalizada que, em delírio constante, dizia as coisas mais desconcertantes. A vendedora exclamou. Um livro de uma louca, dizia ela. E repetiu: você quer o livro de uma louca. Como se eu também já não estivesse bom da cabeça. Quando um rapaz, com ar de chefe, se aproximou, a vendedora mudou de atitude e disse: as pessoas dementeis falam coisificações impressionantes. São de fascínio. De morrer de fascinamento porque são muito honestas, igual criança.

Stela do Patrocínio passou trinta anos em hospícios. Nasceu a 1941 e morreu a 1997. Durante os anos 1980, uma artista plástica filmou o seu discurso espontâneo num pasmo gigante por encontrar tal fonte bruta de poesia. Uma filosofia selvagem, desordenada e desconcertante, incrivelmente abundante, caracterizava o que Stela dizia, como: "Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas / Fazer cabeça, pensar em alguma coisa / Ser útil, inteligente, ser raciocínio / Não tinha onde tirar nada disso / Eu era espaço vazio puro."

O livro que recolhe a poesia de Stela do Patrocínio levou o título de Reino dos Bichos e dos Animais É o Meu Nome. Não saio do Brasil sem ele. Depois que o vício pelo maravilhoso Bispo do Rosário se satisfez um pouco, fiquei com a vontade de prestar atenção a fenómenos de bizarria criativa que o Brasil parece esconder em grande quantidade. Há alguma coisa na arte que não quis conscientemente ser arte que se torna profundamente revelador. Como se os artistas propriamente ditos procurassem apenas merecer a bênção da genuinidade que define o Bispo ou a Stela, ou, no caso português, alguém como António Gancho.

"Não trabalho com o pensamento nem com a inteligência. Mas também não uso a ignorância", dizia Stela. Nesta fórmula, ela levanta a equação fundamental da criação. Nas artes, existirão os que a entendem e os que estarão sempre trancados do lado meramente técnico das capacidades ou dos talentos.

Olhei bem para a vendedora com a expectativa de que ela fosse a reencarnação esdrúxula e trabalhadeira da autora maravilhosa e visionária. Mas o choque do chefe foi tão fulminante que, a partir dali, a moça retraiu-se, nem encontrou o livro. Eu perguntei: e não terá outra edição qualquer que recolha escritos de pessoas dementeis? Ela respondeu: eu saio agora, senhor, não saberia responder a esse problema. Estou esgotada. A cabeça não quer ser cabeça.

Sim, acho que encontrei uma reencarnação da Stela. Fiquei orgulhoso de mim. Não trouxe o livro. Trouxe o privilégio de ter falado com ela. Queria ter-lhe dado um abraço.



(Ilustração: Stela do Patrocínio)




quarta-feira, 25 de março de 2015

POEMAS, de Stela do Patrocínio








É dito: pelo chão você não pode ficar

Porque lugar da cabeça é na cabeça

Lugar de corpo é no corpo

Pelas paredes você também não pode

Pelas camas também você não vai poder ficar

Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar

Porque lugar da cabeça é na cabeça

Lugar de corpo é no corpo



*



Olha quantos estão comigo

Estão sozinhos

Estão fingindo que estão sozinhos

Para poder estar comigo




*




Eu já fui operada várias vezes

Fiz várias operações

Sou toda operada

Operei o cérebro, principalmente




Eu pensei que ia acusar

Se eu tenho alguma coisa no cérebro

Não, acusou que eu tenho cérebro

Um aparelho que pensa bem pensado

Que pensa positivo

E que é ligado a outro que não pensa

Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar




Eles arrancaram o que está pensando

E o que está sem pensar

E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar

Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro




Estudar fora da cabeça

Funcionar em cima da mesa

Eles estudando fora da minha cabeça

Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria




*




Eu não queria me formar

Não queria nascer

Não queria formar forma humana

Carne humana e matéria humana

Não queria saber de viver

Não queria saber da vida




Eu não tive querer

Nem vontade para essas coisas

E até hoje eu não tenho querer

nem vontade para essas coisas



*



Não sou eu que gosto de nascer

Eles é que me botam para nascer todo dia

E sempre que eu morro me ressuscitam

Me encarnam me desencarnam me reencarnam

Me formam em menos de um segundo

Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver

Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto

Ou pra cabeça deles e pro corpo deles



*



Eu sobrevivi do nada, do nada

Eu não existia

Não tinha uma existência

Não tinha uma matéria

Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos

Logo de uma vez, já velha

Eu não nasci criança, nasci já velha

Depois é que eu virei criança

E agora continuei velha

Me transformei novamente numa velha

Voltei ao que eu era, uma velha





(Reino dos bichos e dos animais é o meu nome)



(Ilustração: Kay Sage - the fourteen daggers)










domingo, 15 de março de 2015

SEM ENFEITE NENHUM, de Adélia Prado







A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?

Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.

Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai. Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia. Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais. Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.

Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,

Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,

O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.

Era raiva não. Era marca de dor.




(Prosa Reunida)




(Ilustração:Igor Belkowsky)










quinta-feira, 12 de março de 2015

KLEINE ASTER / VIOLETA / PEQUENO ÁSTER, de Gottfried Benn



     




Ein ersoffener Bierfahrer wurde auf den Tisch gestemmt.

Irgendeiner hatte ihm eine dunkelhellila Aster

zwischen die Zähne geklemmt.

Als ich von der Brust aus

unter der Haut

mit einem langen Messer

Zunge und Gaumen herausschnitt,

muss ich sie angestossen habe, denn si glitt

in das nebenliegende Gehirn.

Ich packte sie ihm in die Brusthöhle

zwischen die Holzwolle,

als man zunähte.

Trinke dich satt in deiner Vase!

Ruhe sanft,

kleine Aster!




Tradução de Ana Rüsche:



Um entregador de cerveja afogado foi posto sobre a mesa.

Alguém fincou-lhe entre os dentes uma violeta de um lilás claro-escuro.

Quando de dentro do peito,

por baixo da pele,

com um grande bisturi,

cortei para fora língua e palato,

devo tê-la acertado, pois escorregou

para dentro do cérebro ali ao lado.

Coloquei-a na cavidade toráxica

entre a linha dos pontos

costurados.

Sacie no seu vaso sua sede!

Descanse em paz,

violeta!



Tradução de Viviane de Santana Paulo:



Um motorista de caminhão de cerveja afogado foi colocado sobre a mesa.

Alguém lhe fincou um áster violeta escuro-claro

entre os dentes.

Quando extraí com uma longa faca

a partir do peito

por baixo da pele

a língua e o palato,

devo ter tocado nele, pois

deslizou para o lado do cérebro.

Eu o peguei da cavidade torácica no

meio do chumaço de madeira1

ao costurá-lo.

Sacie-se dentro do vaso!

Descanse em paz,

pequeno áster!





Nota:


1 algodão/chumaço de madeira (Holzwolle) usado no preparo dos cadáveres. Os órgãos são extraídos e as cavidades ósseas preenchidas com o chumaço de madeira ou pequenas fibras de madeira. É usado também no preenchimento do espaço interno de embalagens. (n.t.)



(Ilustração: Tim Lane - the burden)



segunda-feira, 9 de março de 2015

É MEU DEVER DIZER AOS JOVENS O QUE É UM GOLPE DE ESTADO, de Hildegard Angel




  

Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento.

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.

Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.

Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.

Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…

Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.

Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.

Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.

As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.

E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.

Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.

E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.

Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.

Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.

Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.

Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.

Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.

E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!




(Ilustração: Botero - dores da colômbia - masacre de las bananeras)










sexta-feira, 6 de março de 2015

POEMA DE AMOR / POEMA DE AMOR, de Roque Dalton


   





Los que ampliaron el Canal de Panamá
(y fueron clasificados como "silver roll" y no como "golden roll"),
los que repararon la flota del Pacífico
en las bases de California,
los que se pudrieron en las cárceles de Guatemala,
México, Honduras, Nicaragua
por ladrones, por contrabandistas, por estafadores,
por hambrientos
los siempre sospechosos de todo
("me permito remitirle al interfecto
por esquinero sospechoso
y con el agravante de ser salvadoreño"),
las que llenaron los bares y los burdeles
de todos los puertos y las capitales de la zona
("La gruta azul", "El Calzoncito", "Happyland"),
los sembradores de maíz en plena selva extranjera,
los reyes de la página roja,
los que nunca sabe nadie de dónde son,
los mejores artesanos del mundo,
los que fueron cosidos a balazos al cruzar la frontera,
los que murieron de paludismo
o de las picadas del escorpión o la barba amarilla
en el infierno de las bananeras,
los que lloraran borrachos por el himno nacional
bajo el ciclón del Pacífico o la nieve del norte,
los arrimados, los mendigos, los marihuaneros,
los guanacos hijos de la gran puta,
los que apenitas pudieron regresar,
los que tuvieron un poco más de suerte,
los eternos indocumentados,
los hacelotodo, los vendelotodo, los comelotodo,
los primeros en sacar el cuchillo,
los tristes más tristes del mundo,
mis compatriotas,
mis hermamos.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:


Os que alargaram o Canal do Panamá
(e foram classificados como "silver roll" e não como "golden roll"), [1]
os que repararam a frota do Pacífico
nas bases navais da Califórnia,
os que apodreceram nos cárceres da Guatemala,
México, Honduras, Nicarágua
como ladrões, como contrabandistas, como caloteiros,
como esfomeados
os sempre suspeitos de tudo
("permito-me remetê-lo ao que morre violentamente
em esquinas suspeitosas
e com o agravante de ser salvadorenho"),
as que lotam os bares e bordeis
de todos os portos e todas as capitais da zona [2]
("La gruta azul", "El Calzoncito", "Happyland"),
os plantadores de milho em plena selva estrangeira,
os reis das notícias sangrentas, [3]
os que nunca sabem de onde são,
os melhores artesãos do mundo,
os que foram costurados à bala ao cruzar a fronteira,
os que morrem de malária,
ou das picadas do escorpião ou da barba amarela [4]
no inferno das bananeras [5]
os que choraram embriagados pelo hino nacional
sob o ciclone do Pacífico ou sob a neve do norte,
os parasitas, os mendigos, os puxadores de fumo,
os guanacos filhos da grande puta, [6]
os que a duras penas puderam regressar,
os que tiveram um pouco mais de sorte,
os eternos ilegais,
os faz-tudo, vende-tudo e come-tudo,
os primeiros a sacar a faca,
os tristes mais tristes do mundo,
meus compatriotas,
meus irmãos.



(Historias Prohibidas de Pulgarcito (1974) - Histórias Proibidas do Pequeno Polegar  - do conto dos Irmãos Grimm. Em El Salvador foi batizado como Pulgarcito pela embaixadora e poeta chilena Gabriela Mistral.)



Notas do tradutor:

 [1] Rol prateado, rol dourado: planilhas de trabalhadores adotadas em empresas norte-americanas da Zona do Canal do Panamá. Os brancos eram listados nas golden rolls; os antilhanos, nas silver rolls, caracterizadas pelas condições inferiores de emprego e salário.
[2] Zona do Canal
[3] Pagina roja (página vermelha): página de jornal em que são noticiados crimes sangrentos.
[4] Conhecida no Brasil como jararaca-do-norte (Bothrops atrox). Cobra venenosa comum na América Latina.
[5] Bananeras: plantações de banana da extinta, e famigerada United Fruit Company, multinacional norte-americana conhecida na América Latina como La Frutera.
[6] Guanaco (animal de carga, parecido com o lhama): gentílico depreciativo para salvadorenho.




(Ilustração: Olga Sinclair - El Lanzador)



terça-feira, 3 de março de 2015

O ANIMAL DOS MOTÉIS, de Márcia Denser




    





“Mas sempre acabo em seus braços / 

do jeito que você quer...” 


- Desabafo - Roberto Carlos



Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis, “por que me arrasto a seus pés?”. Porque sexo é isso mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos motéis. Ele diz: esse motel já foi bom, e eu olho o banheiro, caixa amplificadora de fibroplast, as toalhas embaladas em sacos plásticos, os lençóis castanhos com ramagens duvidosas entre encardido e vestígios de cor, os três espelhos redondos, montados em curvim (um em frente ao outro, no meio a cama, o terceiro no teto, sobre a cama), claro que para transformar-nos numa espécie de confuso coquetel de siris assados: pernas, braços, carnes vivas, canteiro de patas, antenas, pelos moventes, espiando de esguelha uma outra hidra em perspectiva no espelho da frente, de trás, de cima, de baixo, devassados, misturados, confundidos, a 850,00 a diária, porque (e então eu sei porque) todos os motéis é sempre o mesmo motel, o animal mitológico, a quimera que se arrasta interminavelmente na madrugada ao som de Roberto Carlos.

Apoiada nos cotovelos, a cabeça dela surge no horizonte do espelho. A brasa do cigarro, no ponto quase central da bola ensombrecida, como o primeiro sol de um universo, sopra a fumaça:

— Você já leu Hemingway?

— O que?

— Perguntei se você já leu...

— É importante? Ele soergue-se ligeiramente.

— Fatos. Parece que ele só se preocupa com os fatos, no princípio. Naquele conto do toureiro, não lembro o título. Começa que o sujeito bate na porta do patrão, quer voltar às corridas, o patrão não está interessado, diz: só nas noturnas, 300 pesos, discutem o salário. Muito seco, direto. De repente, o patrão olha bem na cara do toureiro e pensa: é assim que todos morrem. E pronto. Eis a cabeça do monstro, a cutilada no boca do estômago, Hemingway nos pega despre...

— E o cara? Morre? reprime um bocejo.

— A morte só o rodeia. Toda a tourada. Ele a persegue. Ela o arranha e o abandona. Mas ele volta a provocá-la. Como um cego. Ou um tolo. É inútil. Duas vezes entre os chifres do touro. Debaixo das patas dos cavalos. A espada se parte. Não acerta — o que é muito simples para um veterano — o local exato no dorso do animal, do diâmetro de uma moeda de prata. A morte apenas o maltrata, como se estivesse brincando, como se ele não a merecesse, como...

— Mas ele morre ou o quê?

—Não sei, o picador...

— Como não sabe? Então esse Hemingway é...

— Precisaria ler a estória...

— Certo. Você já me contou.

A brasa desaparece no espelho, se apaga. É como uma sina, ela pensa, contemplar esta cabeça com fria ternura ou recorrer mais para trás, para uma piedade distante detonada pelo álcool, pela solidão, aquele sanduíche cinzento de noites de leitura e insônia e cigarros,como uma única noite boreal, amanhecer e crepúsculo, luz intermediária e intermitência de néon, de café, de galeria, de esperar sem mais esperar, suplicar, implorar por aquilo que sequer tem nome. O toureiro não merecia a morte. É como uma sina. Rastejar com Roberto: “você é mais que um problema / é uma loucura qualquer”, porque ele sabe de uma porção de coisas sem saber, coisas que eu ignoro. Lembra a Maga, uma personagem de Cortázar que, por sinal, ignora Hemingway e este, claro, além de vocês e todos, todos nós, amantes e condenados e Roberto.

Um touro espreita no fundo dos olhos dele: duas faíscas cúmplices transmitem a ordem ao dedo áspero que vadiamente começa a percorrer a coxa, queimado cilindro macio de luz negra. O dedo vai subindo, pincelando as penugens invisíveis — há partículas fosforescentes na superfície da pele — o dedo, e então são os dedos, vão se abrindo, agarrando, numa fofa mordida, a região dos pelos, capturando os lábios, separando-os com delicadeza: o indicador resvala pela fresta úmida. Imobiliza-o um instante lá dentro e então o leva à boca. A cabeça está inclinada sobre seu ventre, mas ela sabe que ele sorri: um garoto mergulhando o pão na panela e experimentando o molho. Olha-a, a mão agora pousada no seio, o tato pegajoso, feito clara de ovo.

— Você complica tudo. As faíscas divertidas, perversas. Como se fosse possível o amor, como se fosse muito fácil, muito simples. Possível. Fácil. Simples. Do diâmetro de uma moeda de prata. Uma fresta úmida. O ponto exato. Amor.

— Nunca estive na Espanha, ou no México. Ela acende outro cigarro.

— Ou aqui. Está precisando de um homem.

— Já pensei nisso. Aliás, não faço outra coisa.

— Pergunto se você já fez algo a respeito.

— Sinceramente...

— Por você mesma. Imagina que eu sou um idiota. Sei o que está pensando. Essa estória de toureiros fodidos e do tal Hemingway. Muito complicado, não acha?

— Então, nada de romance?

— As mulheres não mudam...

— Nem os homens. É bobagem. Penso: sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até à loucura, me penetrando até à loucura. Certo, o prazer também é meu, mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão distraidamente, tão alheiamente como um violino que se tocasse a si próprio num dormitório de quartel, tarefa da qual só poderia, só deveria, nascer amor e música, no entanto...

— Roberto Carlos, aponta o alto-falante.

— Não estou falando de fundo musical, e depois isso é outra estória (“por que me arrasto?”).

— Está querendo dizer que eu só me masturbo?

— Que nós.

— Isso. Que nós.

— Também não sente assim?

— Sei lá. Às vezes...

— É isso.

— O que quer? É bom pra mim, bom pra você...

— Exato. Bom-mim, bom-você, um em Guadalupe, outro no Japão, se fodendo por controle remoto.

— Garota engraçada, você. Vamos beber? Fisgou o cardápio na mesinha.

A brasa inflamou-se novamente no espelho: uma erupção solar. Mas este já é um outro capitulo: agora beber, começar a beber e ladeira abaixo.

— Vodca. Quero vodca.

— Pura? O telefone suspenso na pergunta, a expressão surpresa.

— Não. Com gelo.

Pousa o fone no gancho. Fita-a intrigado, ajustando o travesseiro.

O corpo enorme, em potente repouso, não faz parte do rosto. Coça os cabelinhos do peito. Ela está enrodilhada ao pé da cama (como se camas redondas tivessem alguma referência. São como o universo, não há direção, norte, sul, direita, esquerda, em cima, embaixo, esses caras são mesmo diabólicos, Deus é diabólico, ou seremos nós que...)

Ele se inclina, acariciando-lhe as ancas dobradas, avaliando-as no espelho às suas costas, as nádegas projetando aquele invisível biquíni de sol. Afaga-lhe o rosto, os cabelos, hesitando, ganhando tempo, subornando, com medo de falar:

— Bebe sempre vodca pura?

— As bandejas passeiam no pátio repletas de coquetéis de frutas, martínis doces...

— O que há de errado?

— Para as garotas boazinhas.

— E você? Não é? O dedo contorna os lábios: vai me calar, me silenciar com esse beijo, entupir-me com essa língua, porque esses encontros são acidentes vertiginosos cujo resultado é o titã de mil olhos, mil bocas famintas que murmuram te amo, te amo, e que respondem te amo, te amo, zumbindo num cercado de mentiras ciciantes de sons no espelho, dimensão da penumbra da vida, caixa de música abafando um só tema a repetir te amo, te amo, perseguindo o elo de uma cadeia prisioneira que nos abandona assim que sai da nossa boca, e a sua repetição implica na perseguição eterna daquilo que já esteve atrás da boca, do travesseiro. Ao formularmos com os lábios o rolo doce da língua e da saliva, saltamos à frente do tempo e imediatamente já nos sentimos abandonados por esse pássaro fugidio, que se debate te amo, te amo, ato irrefletido de cuspir, separar as coxas e tomar a primeira estocada, recuar, avançar, senti-lo rígido como um cilindro de aço vivo e então capturá-lo, mas, de leve, uns cinco centímetros, não mais, de repente, sugá-lo todo para dentro, frente a frente, de cócoras, como crianças agachadas brincando com bolinhas de gude, hipnotizadas pelo movimento das bolinhas que rolam, evoluem, param, prosseguem — o entrechoque das bolinhas líquidas — nova fisgada, novo recuo de quadris; as bocas navegando nas bocas, no rio das bocas, no mar das bocas, nas cavernas dos dentes e da língua, na correnteza das bocas, gargantas, ventres molhados e, lá embaixo, o borbulhar estourando as margens que recuam, cedem, enquanto ele bombeia, macho e terno, e bate e bate, martela o limite viscoso, implorando para nascer de novo, e combate e se estimula e a maltrata porque ela uiva, sussurra obscenidades — as primeiras palavras que um homem escuta, e as últimas — evoluindo, insuportável, maldita, insuportável, adorável, não é mais prazer, não é mais dor e é o milagre, a vertiginosa erupção, um terremoto visto ao longe e o centro de um furacão, assistir uma catástrofe atômica e, ao mesmo tempo, estar no centro dela, como Deus, como Deus, como Deus.

Depois do violento crepitar frio, o movimento cessa e então voltar a ouvir o vento se lastimando nas marquises dos edifícios, nas estruturas de aço da cidade industrial mais próxima e, não fosse o vento, poder ouvir até a nós mesmos (que é a última coisa que gostaríamos de ouvir na frequência dos motéis), por isso, nosso ego logrado retorna, monstro rugidor e oceânico, às cavernas interiores, lá se aferrolhando.

Lá em cima, no espelho, duas, quatro, seis, oito larvas rotas, libertas do emaranhado.

Termina a cerveja e dá-lhe uma palmada na coxa:

— Vamos (“pensando bem, amanhã eu nem vou trabalhar / e além do mais...”)

— Ainda tem vodca. Ela aponta um dedo preguiçoso para o copo dois terços vazio.

— Fica pra outra vez, já veste a camisa.




(Animal dos Motéis)




(Ilustração: Jack Vettriano)