domingo, 31 de agosto de 2014

YO FRANÇOIS VILLON / EU, FRANÇOIS VILLON..., de Leopoldo María Panero

  


  



Yo François Villon, a los cincuenta y un años

gordo y corpulento, de labios color ceniza

y mejillas que el vino amoratara,

a una cuerda ahorcado

lo sé todo acerca del pecado.

Yo, François Villon,

a una cuerda pendido

me balalnceo lento, habiendo sido

peor que Judas, quien también murió ahorcado.

Las viejas se estremecen al oír mis hazañas

pues no tuve respeto para la vida humana.

Que el viento me mueva, ya oigo cerca las voces

de aquellos que mandé a freír monas.

Me esperan en el infierno

y alargan las manos

porque se ha corrido allí, del Leteo al Cocyto

¡que al fin Villon había muerto ahorcado!

Ya la luna aparece, e ilumina la horca

dando a mi rostro el color de la sangre

yo, que hice mal sabedor de que lo hacía

hasta que por fin he muerto ahorcado.

Ya los lobos ladran en torno al patíbulo

y los niños gritan, parecidos a ratas:

¡Villon ha muerto ahorcado!

Viejas que me insultabais en la carretera oscura:

¡sabed que el semen moja mis caderas

y es fresco y sabroso el semen del ahorcado!

Que mis dientes sirvan

de jugo en tu caldera

bruja de los límites, tú a quien admiro

sabedora de embrujos, de filtros y de hechizos

más poderosos que la fe y que los apóstoles

de quienes se burló el Mago, más apta que ellos

para conocer el dolor

¡de este que un sepulcro merece!

Y que el viento diga, al amanecer, mañana

vanamente a ranas y a gusanos

Villon se ha hecho al fin célebre

pues al fin una horca dibuja su figura

¡Villon ha muerto ahorcado!

Y que de mi mano ajada caiga la rosa

que mis dientes estrujaron

pues ella supo mis crímenes

y fue mi confidente

y dígalo ella al mundo, cayendo sobre el suelo

¡Villon ha muerto ahorcado!

Pronto vendrá la canalla

a hozar en mi tumba

y orinarán encima, y los amantes

harán seguro el amor sobre mis huesos

y será la nada mi más escueto premio

para que ella lo diga,

no sé si nada o rosa:

¡Villon ha muerto ahorcado!

Sabrán de mí los niños

de edades venideras

como de un gran pecador

y asustados correrán a esconderse

bajo las sábanas cuando sus madres

les digan: «Cuidado ahí viene».

Y esa será la fama de Villon, el Ahorcado.

Y será tal mi fama que prefiero el olvido

porque un día, mañana

de ese futuro que el hedor hace

parecerse al recuerdo, una mano

dejará caer, al oír mi nombre

el fruto del culo, el excremento

y mi vida, y mi carne, y todos mis escritos

¡promesa serán sólo para las moscas!





Tradução de Jorge Melícias:




Eu, François Villon, aos cinquenta e um anos

gordo e corpulento, de lábios cor de cinza

e bochechas que o vinho arroxeara,

a uma corda enforcado

sei tudo acerca do pecado.

Eu, François Villon,

de uma corda pendido

balanceio-me lento, tendo sido

pior que Judas, que também morreu enforcado.

As velhas estremecem ao ouvir as minhas façanhas

pois não tive respeito pela vida humana.

Que o vento me mova, oiço já próximas as vozes

daqueles a quem mandei pentear macacos.

Esperam-me no inferno

e esfregam as mãos

porque correu ali, do Lete(1) ao Cócito(2),

que por fim Villon tinha morrido enforcado!

E a lua aparece, e ilumina a forca

dando ao meu rosto a cor do sangue,

eu, que me fiz de mau entendedor do que fazia

até que por fim morri enforcado.

E os lobos ladram em torno do patíbulo

e, semelhantes a ratazanas, as crianças gritam:

Villon morreu enforcado!

Velhas que me insultáveis na estrada escura:

sabei que o sémen molha os meus quadris

e é fresco e saboroso o sémen do enforcado!

Que os meus dentes façam

proveito ao teu caldeirão

bruxa dos confins, tu a quem admiro

conhecedora de bruxedos, de poções e de feitiços

mais poderosos que a fé e que os apóstolos

de quem se riu Simão, o Mago(3), mais apta que eles

a conhecer a dor

deste que nem um sepulcro merece!

E que o vento, ao amanhecer, amanhã,

vaidosamente diga a rãs e a vermes

Villon tornou-se finalmente célebre

pois no fim uma forca delineia a sua figura

Villon morreu enforcado!

E que da minha mão emurchecida caia a rosa

que os meus dentes apertaram

pois ela soube os meus crimes

e foi minha confidente

e que o diga ela ao mundo, caindo ao chão

Villon morreu enforcado!

Logo virá a canalha

fossar no meu túmulo

e urinarão em cima, e certamente os amantes

farão amor sobre os meus ossos

e será o nada a minha mais simples recompensa

para que o diga,

não sei se o nada ou a rosa:

Villon morreu enforcado!

De mim saberão as crianças

de idades vindouras

como de um grande pecador

e assustadas correrão a esconder-se

debaixo dos lençóis quando as suas mães

lhes disserem: “Cuidado, vem aí.”

E essa será a fama de Villon, o Enforcado.

E será tanta a minha fama que prefiro o esquecimento

porque um dia, amanhã

desse futuro que o fedor

assemelha à memória, uma mão

deixará cair, ao ouvir o meu nome

o fruto do cu, o excremento

e a minha vida, e a minha carne, e todos os meus escritos

serão, prometo, só para as moscas!






Notas:


(1) Na segunda parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri, o Purgatório, o Lete aparece como um rio de cujas águas os pecadores tinham de beber para apagarem a memória dos seus pecados cometidos - e já apagados pelos castigos purificadores do Purgatório - e entrarem no Céu.


(2) Na Divina Comédia, de Dante Alighieri, o Cócito é um rio de gelo no 9°Círculo do inferno, onde estão os traidores. Nesse rio estão quatro esferas por onde eles se distribuem, e é inclusive a morada de Lúcifer.


(3) Simão, o Mago, também chamado de Simão de Gitta, foi um líder religioso samaritano com quem o apóstolo Pedro terá travado uma acesa polémica (At. 8, 9-24). Encontram-se referências a este personagem no livro dos Actos dos Apóstolos e noutras obras ligadas ao gnosticismo. O texto bíblico narra o episódio em que Simão tenta comprar dos apóstolos o poder de operar milagres. Tal acto, considerado pecaminoso pela teologia cristã, foi denominado de simonia (acto de Simão), termo que define especificamente o comércio ou tráfico de coisas sagradas e espirituais, tais como sacramentos, dignidades, indulgências e benefícios eclesiásticos, e que estaria no centro das críticas e discussão que conduziriam à Reforma protestante no século XVI.




(Leopoldo María Panero, Piedra Negra o del Temblar, XV, 1992, trad. Jorge Melícias)





(Ilustração: Antonio Pisanelo - afresco da igreja de santa Anastácia em Verona)






quinta-feira, 28 de agosto de 2014

CARTA-TESTAMENTO, de Getúlio Vargas








Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.

Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício nos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.



(Nota: carta datilografada, encontrada junto ao corpo do Presidente)


(Ilustração: Flavio de Carvalho - as três mulheres)



















segunda-feira, 25 de agosto de 2014

AMOR BASTANTE, de Paulo Leminski









quando eu vi você


tive uma ideia brilhante


foi como se eu olhasse


de dentro de um diamante


e meu olho ganhasse


mil faces num só instante






basta um instante


e você tem amor bastante




(Ilustração: Michael Mobius - face)





sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A SEPARAÇÃO ACABADA, de Guy Debord









E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.


Feuerbach - Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo




1


Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.


2


As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objecto de exclusiva contemplação. A especialização das imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si próprio. O espectáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autónomo do não-vivo.


3


O espectáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o sector que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio facto de este sector ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada.


4


O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.


5


O espectáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objectivou. 


6


O espectáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo directo de divertimentos, o espectáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação omnipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espectáculo são identicamente a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espectáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.


7


A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, perante a qual se põe o espectáculo autónomo, é também a totalidade real que contém o espectáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de fazer aparecer o espectáculo como sua finalidade. A linguagem do espectáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última desta produção


8


Não se pode opor abstractamente o espectáculo e a actividade social efectiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espectáculo que inverte o real é efectivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espectáculo, e retoma em si própria a ordem espectacular dando-lhe uma adesão positiva. A realidade objectiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espectáculo, e o espectáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.


9


No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso.


10


O conceito de espectáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenómenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espectáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espectáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível.


11


Para descrever o espectáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir artificialmente elementos inseparáveis. Ao analisar o espectáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espectacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espectáculo. Mas o espectáculo não é outra coisa senão o sentido da prática total de uma formação económico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.


12


O espectáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.


13


O carácter fundamentalmente tautológico do espectáculo decorre do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.


14


A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espectacular, ela é fundamentalmente espectaculista. No espectáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espectáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio.


15


Enquanto indispensável adorno dos objectos hoje produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto sector económico avançado que modela directamente uma multidão crescente de imagens-objectos, o espectáculo é a principal produção da sociedade actual.


16


O espectáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objectivação infiel dos produtores.




(A sociedade do espectáculo; tradução de Leonel Santos)




(Ilustração: Edward Munch - gólgota)




terça-feira, 19 de agosto de 2014

LE LAC / O LAGO, de Lamartine





    



Ainsi, toujours poussés vers de nouveaux rivages,

Dans la nuit éternelle emportés sans retour,

Ne pourrons-nous jamais sur l'océan des âges

Jeter l'ancre un seul jour?



O lac! l'année à peine a fini sa carrière,

Et près des flots chéris qu'elle devait revoir,

Regarde! je viens seul m'asseoir sur cette pierre

Où tu la vis s'asseoir !



Tu mugissais ainsi sous ces roches profondes;

Ainsi tu te brisais sur leurs flancs déchirés;

Ainsi le vent jetait l'écume de tes ondes

Sur ses pieds adorés.



Un soir, t'en souvient-il? nous voguions en silence,

On n'entendait au loin, sur l'onde et sous les cieux,

Que le bruit des rameurs qui frappaient en cadence

Tes flots harmonieux.



Tout à coup des accents inconnus à la terre

Du rivage charmé frappèrent les échos;

Le flot fut attentif, et la voix qui m'est chère

Laissa tomber ces mots:



O temps, suspends ton vol! et vous, heures propices

Suspendez votre cours:

Laissez-nous savourer les rapides délices

Des plus beaux de nos jours !



Assez de malheureux ici-bas vous implorent:

Coulez, coulez pour eux;

Prenez avec leurs jours les soins qui les dévorent,

Oubliez les heureux.



Mais je demande en vain quelques moments encore,

Le temps m'échappe et fuit;

Je dis à cette nuit: Sois plus lente; et l'aurore

Va dissiper la nuit.



Aimons donc, aimons donc! de l'heure fugitive,

Hâtons-nous, jouissons !

L'homme n'a point de port, le temps n'a point de rive;

Il coule, et nous passons !



Temps jaloux, se peut-il que ces moments d'ivresse,

Où l'amour à longs flots nous verse le bonheur,

S'envolent loin de nous de la même vitesse

Que les jours de malheur?



Eh quoi! n'en pourrons-nous fixer au moins la trace?

Quoi! passés pour jamais? quoi! tout entiers perdus?

Ce temps qui les donna, ce temps qui les efface,

Ne nous les rendra plus?



Eternité, néant, passé, sombres abîmes,

Que faites-vous des jours que vous engloutissez?

Parlez: nous rendrez-vous ces extases sublimes

Que vous nous ravissez?



O lac! rochers muets! grottes! forêt obscure!

Vous, que le temps épargne ou qu'il peut rajeunir,

Gardez de cette nuit, gardez, belle nature,

Au moins le souvenir!



Qu'il soit dans ton repos, qu'il soit dans tes orages,

Beau lac, et dans l'aspect de tes riants coteaux,

Et dans ces noirs sapins, et dans ces rocs sauvages

Qui pendent sur tes eaux.



Qu'il soit dans le zéphyr qui frémit et qui passe,

Dans les bruits de tes bords par tes bords répétés,

Dans l'astre au front d'argent qui blanchit ta surface

De ses molles clartés.



Que le vent qui gémit, le roseau qui soupire

Que les parfums légers de ton air embaumé,

Que tout ce qu'on entend, l'on voit ou l'on respire,

Tout dise: Ils ont aimé!




Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Assim, sempre impelidos rumo a novas beiras,

Levados pela noite eterna sem cessar,

Nem mesmo por um só dia no mar das eras

Iremos ancorar?



Ó lago! Mal findou o ano sua carreira,

E junto às ondas caras que ela reveria,

Olha! aqui solitário sento nesta pedra

Onde a avistaste um dia.



Assim bramias sobre essas rochas profundas;

Assim quebravas sobre os costados rompidos;

Assim lançava o vento as espumas das ondas

Sobre seus pés queridos.


Numa noite, não lembras? ao irmos calados,

Não entendemos, ao longe, entre o céu e as ondas,

O ruído de remos batendo ritmados

Tuas águas eufônicas.



De repente, sotaques estranhos à terra

Percutiram seus ecos nas bordas formosas;

A onda se pôs atenta, e a voz que me é tão cara

Disse-lhe estas palavras:



Ó tempo, para teu voo! vós, horas propícias,

Findai vossa fluência:

Deixai-nos desfrutar as fugazes delícias

Do nosso melhor dia!



Muitos desventurados daqui vos imploram:

Fluí, fluí por eles;

Com seus dias levai os zelos que os devoram,

Esquecei os felizes.



Mas em vão peço ao tempo um só momento agora,

Ele foge de mim;

Eu digo à noite: sê mais vagarosa; e a aurora

À noite traz seu fim.



Amemos pois, amemos! das horas que fogem,

Corramos, desfrutemos!

O homem não tem um porto; o tempo, uma margem;

Ele flui, nós iremos!



Tempo cioso, este instante de embriaguez,

Quando em ondas o amor nos traz contentamento,

Pode voar distante e com a rapidez

Dos dias de tormento?



O quê! não nos sobrará ao menos uma amostra?

Quê! para sempre findo? quê! se perderá?

Esse tempo que os doa, esse tempo que os frustra

Nunca os devolverá?



Eternidade, nada, passado, ermo abismo,

Que fizestes dos dias que vós desgastastes?

Dizei: devolvereis estes sublimes mimos

Que de nós arrancastes?



Ó lago! rochas mudas! grutas! mata obscura!

Vós, que o passar dos anos conserva ou remoça,

Desta noite guardai, natural formosura,

Ao menos a lembrança!



Com tuas tempestades, tuas quietudes,

Belo lago, com tuas encostas risonhas,

Com teus negros pinheiros, tuas rochas rudes,

Suspensos sobre as águas.



Que esteja com o zéfiro que freme e vai-se,

Com os sons que de borda a borda repercutes,

Com a lua de prata que te aclara a face

Com suas claridades.



Que o vento em seu gemido, o juncal que suspira,

Que os aromas ligeiros que os ares perfumam,

Que tudo o que se ouve, se vê ou se respira,

Possam dizer: se amaram.




Tradução de José Lino Grünevald:





Assim, sempre impelidos a outro litoral,

Arrastados na noite eterna e sem voltar,

Não podemos jamais no oceano ancestral

Um só um dia ancorar?



Lago! Mal findou o ano seu curso diário

Junto às ondas amadas a que ia rever,

Mira! Sento-me aqui na pedra solitário

Onde viste-a deter-se!



Tu bramias assim sob essas rochas fundas;

Ferias-te em ilhargas delas laceradas;

Lançava o vento assim a escuma dessas ondas

Em seus pés adorados.



Uma tarde, recordas? vogando em silêncio;

Longe, sobre onda ouvia-se e sob esses céus,

Só um som dos remadores em sua cadência

Os belos fluxos teus.



De repente sinais a nós desconhecidos

Enlevo ao litoral, ecos a percutir;

Fluxo atento; deixou a voz que me é querida

Tais palavras cair:



“Ó tempo, suste o vôo! e vós, horas propícias,

Suspendei vossa via!

Permite-nos gozar as rápidas delícias

Do mais belo dos dias!



“Muitos desventurados aqui vos imploram:

que deslize, deslize

Por eles e que dome os medos que os devoram;

Esquecei os felizes.



“Mas peço em vão alguns momentos para agora,

Foge o tempo a escapar;

E digo à noite: “Seja lenta”; e vai a aurora

A noite dissipar.



“Amar então, amar! nesta hora que desliza,

Depressa ao prazer, vamos!

O homem nunca tem porto, o tempo nem baliza;

Desliza e nós passamos!”



Tempo de inveja, instantes desta embriaguez,

Onde em alta onda o amor verte-nos a ventura,

Voam longe de nós na mesma rapidez

Como dias de agrura?



Pois quê! não fixaremos nem mesmo o sinal?

Quê! idos para sempre? quê! todos perdidos?

Esse tempo que os deu, tal tempo dá final,

Não os terá trazido?



Passado, Eterno, Nada, abismos bem sombrios,

Que fizestes dos dias que vós devorastes?

Falai: nos dareis vós sublimes desvarios

Com que nos encantastes?



Ó lago! rochas mudas! grutas! mata escura!

A vós que o tempo acolhe e pode remoçar,

Desta noite, guardai, guardai bela natura

Ao menos o lembrar!



Que seja em teu repouso, ou em tuas voragens,

Lindo lago, e no ver as risonhas vertentes,

E nos negros abetos e em rochas selvagens

Sobre as águas, pendentes!



Que ele seja no zéfiro que freme e passa,

Nos ruídos das bordas, em bordas repetidos

No astro de fronte prata a aclarar tua face

Com seus brandos luzidos!



Com o vento a gemer, a cana que suspira,

Como em ti, leve aroma em teu ar perfumado,

Como tudo que se ouve, ou vê-se ou se respira,

Dizem: tinham amado!





(Ilustração: Karl Heffner)







sábado, 16 de agosto de 2014

NEM TODO DIA É DOMINGO, de Cida Pedrosa








Naquela quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Chegou meia hora antes do expediente começar. O dia já ia longe. Farda passada café da manhã bolsa escolar lancheira camisa do marido marmita e até uma oração apressada antes de sair da cama. O dia já ia longe. Caminho da escola bolsa cheia de livros mãos de crianças pasta executiva biscoito preferido do chefe saia de secretária apertada e o sapato scarpin salto fino comprado na ponta de estoque da fábrica local. O dia já ia longe. Parada de ônibus motorista sem sexo cobradora com sono e passageiros em pé. O dia já ia longe.

Naquela quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Chegou meia hora antes do expediente começar. Silêncio no escritório uma voz no andar de baixo e o barulho da CPU engrenando para a execução do Windows.

Naquela quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Acendeu um incenso e entregou-se à cadeira giratória para acessar a caixa postal. Reconheceu o login de uma velha amiga da escola e entre curiosa e alegre, abriu o e-mail de Evânia. Enquanto espera o download do arquivo, deleta várias mensagens sacanas e pensa: — Por que a Karina continua mandando esses e-mails de sexo?

(O postcard de Evânia enche a tela de cores, paisagens longínquas, mensagens de paz e a voz de Louis Armstrong cantando: What a wonderful world se instala na sala. Um dois três quatro cinco slides... Quebre as amarras, esqueça os muros, se entregue às estrelas, em algum lugar existe alguém esperando você. Malásia Albânia China Nigéria e luzes de Paris. Letras que brilham bailam entram e saem da tela.)

— São cinco para as oito horas e o elevador se aproxima do décimo nono andar, carregando os trabalhadores pontuais —.

Naquela quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Levantou-se, tirou o sapato e andou para a sala contígua. No computador Louis gorjeia o último verso: Sim, eu penso comigo... que mundo maravilhoso. A janela convida, a saia se rasga, o corpo se parte e Bruna não ouve o grito do chefe: — Está demitida. Já lhe disse várias vezes, que aqui não é sua casa para acender incenso e deixar o sapato rolando na sala. A vida já ia longe.





(Ilustração: Daniel Carranza - saving the world)






quarta-feira, 13 de agosto de 2014

MUITO OBRIGADO, de Francisco Alvim

     






Ao entrar na sala

cumprimentei-o com três palavras

boa tarde senhor

Sentei-me defronte dele

(como me pediu que fizesse)

Bonita vista

pena que nunca a viste

Colhendo meu sangue: a agulha

enfiada na ponta do dedo

vai procurar a veia quase no sovaco

Discutir o assunto

fume do meu cigarro

deixa experimentar o seu

(Quanto ganhará este sujeito)

Blazer, roseta, o país voltando-lhe

no hábito do anel profissional

Afinal, meu velho, são trinta anos

hoje como ontem ao meio-dia

Uma cópia deste documento

que lhe confio em amizade

Sua experiência nos pode ser muito útil

não é incômodo algum

volte quando quiser




(Ilustração: Max Beckemann)




domingo, 10 de agosto de 2014

HOJE NÃO ESCREVO, de Carlos Drummond de Andrade

   








Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos. 

Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário. 

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é posspivel contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - à vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa berta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles. 

Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese - transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma ideia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação. 

Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel. 

E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando... 

Então hoje não tem crônica. 




(Ilustração: Darel Valença Lins - a leitora)














quinta-feira, 7 de agosto de 2014

TIRA-TEIMA, de Bernardo Vilhena








Tire a faca do peito
e o medo dos olhos
Ponha uns óculos escuros
e saia por aí. Dando bandeira

Tire o nó da garganta
que a palavra corre fácil
sem desculpas nem contornos
Direta: do diafragma ao céu da boca

Tire o trinco da porta
liberte a corrente de ar
Deixe os bons ventos levantarem a poeira
levando o cisco ao olho grande

Tire a sorte na esquina
na primeira cigana ou no velho realejo
Leia o horóscopo e olhe o céu
lembre-se das estrelas e da estrada
Tire o corpo da reta
e o cu da seringa
que malandro é você, rapaz
o lado bom da faca é o cabo

Tire a mulher mais bonita
pra dançar e dance
Dance olhando dentro dos olhos
até que ela morra de vergonha

Tire o revólver e atire
a primeira pedra
a última palavra
a praga e a sorte
a peste, ou o vírus?



(Ilustração:  Dalí - Nature Morte Vivante - Still Life - Fast Moving)


terça-feira, 5 de agosto de 2014

SEGUNDA CARTA, de Albino Forjaz de Sampaio





Foi em Dostoiewsky que eu encontrei um dia esta frase: "No fundo de cada um dos nossos contemporâneos residem latentes os instintos dum carrasco!" 

Não tens tu encontrado, ó caricato, nas tuas horas de angústia, somente semblantes frios, corações empedernidos e ouvidos cerrados? Quantas vezes perguntaste onde estavam a Bondade humana, a justiça humana? Quem te respondeu? Inútil pergunta. 

Ninguém. 

Deus? Onde estava Deus? 

Deus não é deste mundo! E cada dia que passa me convenço mais que nele só canalhas existem. Quem sou eu? Um canalha. Quem és tu? Um canalha. 

Todos nós disfarçamos os piores instintos. Inútil mascarada, se todos nos conhecemos bem. 

Tenho ouvido mais juras sem fé do que de minutos tem um século. 

Tenho visto mais traições, mais egoísmos e mais crimes que de mortos tem a eternidade ou de beijos tem levado o corpo duma prostituta que envelheceu no ofício. 

Filhas do homem, mães do homem, foi para ele que todas essas mulheres se prostituíram; que elas dançam cancãs infames e sofrem abandalhamentos sem nome. 

O seu corpo, onde todos bolçam o seu quinhão de infâmia é como os mármores divinos dos museus, toda a gente lá vai pousar o olhar. Tem alguma coisa duma sentina ou dum confessionário. 

Elas é que sabem por quanto se compra um riso. Quanto império, quanta vontade não é preciso para no meio duma carícia não cuspirem a cara dum canalha. "Filhinho, filhinho..." e aquele pedaço de belo lixo rebusca frases, prepara gozos requentados, pedidos sem cerimónia, como se eu lhes arremessasse à cara uma baforada de fumo de cigarro ou lhes salpicasse o rosto com o meu hálito cheio de lama. 

Elas ali são minhas, muito minhas. Paguei-as à hora como a corrida dos cocheiros. E o gozo, o gozo brutal, o gozo Deus, fere-me a retina, fricciona-me a epiderme, abraça-me, deslumbra-me e puxa-me para si com seus pulsos de aço como uma amante no cio. 

O vício tem recantos como uma cidade à noite. 

A quantos já teria pertencido aquilo? Quem seriam? Tateio. "A carne, essa coisa brutal cheia de veias, de nervos, tendões, glândulas e ossos, cheia de instintos e misérias; a carne que sua e cheira mal; que se desforma, se infecta, se ulcera, se cobre de gelhas, de pústulas, verrugas e pêlos" (G. D'annunzio), é mole, viscosa, flácida. 

Parece moída. Quantos a terão beijado? Quantos a terão acariciado? Quantos lhe terão batido, quantos? 

O pobre corpo nu corre a roda toda como um copo numa bodega, amarrota-se, enlameia-se. Toca-me a vez: os mesmos abraços que dei a minha mãe dou-os agora a esta. Isto é lógico. 

Vender o corpo é melhor do que vender a alma, mas vender a alma e o corpo como seria bom! 

Mulheres honradas? Ah! tu crês em mulheres honradas e homens bons? És parvo. Todo o homem atraiçoa e toda a mulher falseia. Todos mentem. Mentira é o céu, o inferno é mentira. É mentira Deus, é mentira o Bem, o Amor e a humanidade. 

Em que acredito eu? No crime e no dinheiro. O crime é Deus, o dinheiro é Deus, e de ambos o dinheiro é maior. É por dinheiro que se compram almas, por dinheiro é que as mulheres se vendem. Quantas almas não conterá um saco de dobrões, quantas? A quantos corpos não poderia ele fazer despir? 

Por dinheiro tudo se compra. As bênçãos das santas e o crânio dos heróis, a camisa de dormir da tua noiva e o rosário do teu confessor. Ciganas e écuyères, saltimbancos e mendigos, fidalgos e aguardente, trapaceiros e sacerdotes, coveiros e apóstolos, santos e famintos, sultanas e cadelas, bobos e cortesãs, escravos e libertos, tudo isto é da sua corte. O próprio Deus, o próprio céu rende-se, quando se lhe mostra um punhado de oiro. 

E como o dinheiro ri! Tu nunca ouviste o dinheiro rir? Despeja um saco de oiro e ouvirás uma gargalhada. O som do oiro que se choca é o seu riso, e esse riso a quantos não despedaça a alma?! 

Quero que mates teu irmão, que dispas tua irmã na praça pública, que esbofeteies tua mãe. Chego-me a ti e digo-te: oiro, terás muito oiro, um grande deboche de oiro se o fizeres. E tu não resistirás, eu sei-o. 

Uma prostituta não é ninguém. Aquela que se dá aos marujos e aos ladrões, à noite, nos recantos, levando-lhes a sua carne para que eles se saciem, vale tanto como a que se dá ao ministro, e a que é cortesã do Papa. A vida das primeiras é mais suada. 

Como elas devem odiar as mães. 

Pobres mulheres? É uma como qualquer outra. A da esfregadeira, e da mulher a dias, a da amortalhadeira não pesa mais, não custa mais? 

Aquilo rende, aquilo inda dá muito dinheiro. 

Por que não trabalham? É boa! Então quem me havia de aturar a mim, a ti, a todo o mundo, a todos os canalhas? Quem, não me dirás? Tua irmã? Tua mãe? 

O crime é um negócio, a Vida uma escravatura. A alma é escrava do crime, a carne é escrava do gozo. 

Morrem? Que temos nós com isso? Todos nós temos que morrer. Quem se lembra duma prostituta que morre? Os corpos perdem-se na terra e no esquecimento como as blasfêmias se perdem no ar. 

A vida é uma grande cama onde existe sempre a plena orgia da carne. Lá passam as noites uma rameira abraçada a um poeta, um bêbado no peito duma marquesa que empobreceu. É o panteão ignorado dessa carne infame que o homem chicoteou com beijos. E não sei, como de cada um, assim amassado em lágrimas, não floriu uma chaga, tanta peçonha e amargura eles continham. É a sarjeta onde se escoa a lama da Vida, para onde a terra baba a nata da podridão. 

A vida é feita de lodo e os homens do pó do crime. Tudo é lama e toda a lama é igual. A que salpica uma toilette de seda e a que traça constelações nos trapos das mendigas. As almas são de lama, as rosas são de lama, os lírios são de lama, como as estrelas, como as hóstias, como os mortos, como os vivos. Há a lama vestida de pérolas e a vestida de escrófulas, a lama toucada de sedas e cetins e a vestida de crostas e farrapos. 

Mas é tudo a mesma impureza, tudo a mesma podridão. Tão impuras são as vestes de Messalina como a escova de dentes da Gauthier, as ligas de Agripina como a cama de Rigolbeche, e tudo isto como o manto da Imaculada Conceição. 

A diferença que vai daquele bandalho, que passa de chapéu alto, àquele malandro, que pisca os olhos e pede esmola, não é nenhuma. Pura convenção. Se tu fosses buscar uma rameira de hospital e a toucasses de sedas ela arranjaria corte. 

Viriam a seus pés os famintos, as rascoas, os interesseiros, os honrados, os banqueiros, o mundo todo. 

Que me importa que a imagem desta libra seja a duma rainha ou a duma prostituta se com ela eu posso comprá-las ambas? 

Tudo é dor. A dor é igual. Senti-la maior ou menos é diferença dos nervos que a sentem, como a grandeza dos que a veem: A dor é egoísta como o mundo. A dor da mãe que perdeu o filho é egoísta. São os lamentos pela felicidade que perdeu. Como a da águia a quem roubaram os ovos, como a do avaro a quem roubaram um dobrão, como a da Virgem a quem roubaram Jesus. 

Tu já leste os Homens do Mar, de Vítor Hugo? Recordas-te da pieuvre? A dor é a pieuvre. Enlaça os corpos, as almas, suga-as, bebe-as em vida. A alguns deixa somente o esqueleto. 

A águia que rói os fígados a Prometeu não é outra senão a Dor. Bendita seja a Dor que tiraniza e leva ao crime. 

Tudo mentira, tudo ilusão. Quem sabe lá vida quanta podridão levedou para dar uma rosa, para abrir um malmequer, e para florir uma chaga? Que as chagas o que são senão rubras e esquisitas flores? 

Abre um crânio e vê se distingues a alma de Dante da alma de Caim, a de Inocêncio III da do galego da esquina. 

Quem distinguirá lá em baixo no ventre da terra a carne de Impéria da carne de Chénier, a ossada de Gilbert da ossada de Ravachol? 

O rosto que ri não é o mesmo que chora? A boca que canta e ri não é a mesma que ameaça e insulta, que suspira, que geme e que reza? Os olhos não vêem Deus e o Diabo? As almas não servem a ambos, atraiçoando ambos? 

Vê quanto pus encerra esta palavra: Amor! Tu crês no Amor? Na Amizade? No teu semelhante? 

É preferível ver um cano de esgoto em toda a sua porcaria a uma alma em toda a sua intimidade. Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama é maior que a de todos os pântanos da terra. 

Cada homem dissimula em si um trágico carnaval. Murger disse algures que a Vida era "uma máscara de forçados". E se pudesses fazer cair a máscara que cada um afivela recuarias de terror. 

À face da terra o homem não tem feito senão mal. Foi ele quem inventou os tronos e os altares, que fez a Verdade e a Mentira. Que inventou o canalha que governa e o que sofre e sua até morrer, que inventou a guilhotina e a glória, o deboche e o dinheiro. 

Sobre cada ventre pesa uma maldição, sobre cada berço pesa uma agonia. 

Há mães que à hora da morte amaldiçoam a sua obra. Benditos os que amaldiçoam. O ventre das mães é o embrião do crime. Barregãs que o desejo ensandeceu deviam ser rompidas pelo ventre como o Senhor prometeu às prenhadas dos povos pecadores. Que seja maldito o ventre de todas as mães. 

Filhos fecundados em plena bebedeira, que bateis nas mães, que cuspis em Deus, que quebrais os santos e rasgais as páginas balofas dos missais, vede se na morte não sois iguais aos justos, se todos não são iguais na morte. 

Benditos sejam pois os matricidas, benditos sejam os homicidas, os perversos, os malditos. Bendito seja Orestes que violou a mãe, Amon que desflorou a irmã, Myrra que teve incesto com o pai. 

Benditas sejam as mães que matam os filhos, o irmão que mata o irmão, o canalha que mata o canalha. 

Benditos os que matam porque eles semeiam a felicidade. 

Há caveiras que riem bêbadas de riso, outras que cerram os dentes duma grande raiva. Nunca reparaste? 

Enchi-te de desolação e abandono. Que eu exagero? Mas isto ainda é pouco. A torpeza da vida não caberia em mil volumes como este. Que eu exagero?! Que eu Exagero?! Patife, tu bem sabes que eu digo a verdade. 

Já viste quanto cômico há na vida trágica e quanto trágico há na vida cômica? Há risos que são mais tristes que a tocha dum gato-pingado, lágrima que, por mais que se queira, fazem sempre soltar gargalhadas. 

As lágrimas choradas e que a terra tem bebido há 6.000 anos que o mundo é mundo davam um novo dilúvio capaz de afogar o mundo todo. A luz do sol tem visto mais podridões que o mármore duma casa de autópsias. 

O que é a vida? Não sei. Eu tenho visto nela muita torpeza e muita lama. Sê mau, ouves? Sê mau. Tens que ser muito mau que a "terra vive do mal". 

Às vezes sinto-me fatigado de só o ter sido mediocremente. 

Ah! Eu nunca poderia vir a ser um Nero! E Nero que incendiou Roma não é bem maior do que S. Francisco de Assis? Incendiar uma cidade é bom, mas incendiar o mundo? Incendiar o mundo, ó gentes? Que grande obra para um caricaturista! A lama a não querer morrer, a fugir do braseiro... 

Nesta hora, pensa, quanta sinceridade não haveria... no egoísmo do salvamento. Que de crimes essa última hora não conteria! 

E o fogo, o fogo enorme, lambendo tudo, triturando tudo, por entre o rir das labaredas até que a terra desfeita em cinza, como um bando enorme de andorinhas, voasse pelo espaço através dos séculos.



(Palavras cínicas)



(Ilustração: Danny Quirk - anatomic selfdissections)