quinta-feira, 31 de outubro de 2019

AUTO-RETRATO, de Ana Hatherly






Este que vês, de cores desprovido,

o meu retrato sem primores é

e dos falsos temores já despido

em sua luz oculta põe a fé.



Do oculto sentido dolorido,

este que vês, lúcido espelho é

e do passado o grito reduzido,

o estrago oculto pela mão da fé.



Oculto nele e nele convertido

do tempo ido excusa o cruel trato,

que o tempo em tudo apaga o sentido;



E do meu sonho transformado em acto,

do engano do mundo já despido,

este que vês, é o meu retrato.



(A Idade da Escrita)


(Ilustração: Anne-Marie Zilberman - La dame au miroir) 





segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O MONSTRO VICTOR HUGO, de Mario Vargas Llosa




Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. 

A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplêndida da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre. 

Quem foi Victor Hugo? Depois de ter passado os dois últimos anos imerso de corpo e alma nos seus livros e em sua época, agora sei que nunca vou saber a resposta. 

Jean-Marc Hovasse, o mais meticuloso dos seus biógrafos até o presente – sua biografia ainda está inconclusa –, calculou que um apaixonado bibliógrafo do bardo romântico, lendo catorze horas diárias, levaria uns vinte anos só para percorrer os livros dedicados ao autor de Os Miseráveis que se encontram na Biblioteca Nacional de Paris. 

Porque Victor Hugo é, depois de Shakespeare, o autor ocidental que gerou mais estudos literários, análises filológicas, edições críticas, biografias, traduções e adaptações de suas obras nos cinco continentes. 

Quanto tempo levaria esse titânico leitor para ler as obras completas do próprio Victor Hugo, incluindo os milhares de cartas, anotações, papéis e rascunhos ainda inéditos que pululam nas bibliotecas públicas e particulares e nos antiquários do mundo? Não menos de dez anos, se essa leitura for sua única e obsessiva dedicação na vida. 

A fecundidade do poeta e dramaturgo emblemático do romantismo na França provoca vertigem em quem se debruça nesse universo sem fundo. Sua precocidade foi tão notável quanto sua capacidade de trabalho e a terrível facilidade com que as rimas, as imagens, as antíteses, os achados geniais e as pieguices mais sonoras saíam da sua pena. 

Antes de completar quinze anos já havia escrito milhares de versos, uma ópera cômica, o melodrama em prosa Inez de Castro, o rascunho de uma tragédia em cinco atos (em verso), Athélie ou les Scandinaves, o poema épico Le Déluge e esboçado centenas de desenhos. (…) 

Dir-se-ia que alguém que produziu toneladas de papel rabiscado de tinta deve ter levado a vida de um monge laborioso e sedentário, confinado durante dias e anos no seu gabinete sem levantar a cabeça da prancheta, onde sua mão incansável fatigava as penas e esvaziava os tinteiros. 

Mas não, o extraordinário é que Victor Hugo fez na vida quase tantas coisas quanto sua imaginação e sua palavra fantasiaram, pois teve uma das mais ricas e aventureiras existências do seu tempo, no qual mergulhou de corpo e alma, sempre conseguindo, com um olfato genial, estar no centro da história viva como protagonista ou testemunha privilegiada. 

Já sua vida amorosa é tão intensa e variada que causa assombro (e certa inveja, claro). Chegou virgem ao casamento com Adèle Foucher, aos vinte anos, mas exatamente a partir da noite de núpcias começou a recuperar o tempo perdido. 

Nos muitos anos que teve pela frente, perpetrou um sem-número de proezas amorosas com uma imparcialidade democrática, pois ia para a cama com damas de todas as condições – de marquesas a criadas, com certa preferência por estas últimas nos seus anos provectos –, e seus biógrafos, esses voyeurs, descobriram que poucas semanas antes de morrer, aos 83 anos, fugiu de casa para fazer amor com uma antiga camareira da sua perene amante, Juliette Drouet. 

Sua comunicação com o além teve uma etapa entre truculenta e cômica, ainda mal-estudada: durante dois anos e meio praticou o espiritismo na sua casa de Marine Terrace, em Jersey, onde passou parte dos seus dezenove anos de exílio. 

Ao que parece, quem o iniciou nessas práticas foi uma médium parisiense, Delphine de Girardin, que veio passar uns dias com a família Hugo nessa ilha do Canal. A senhora Girardin comprou uma mesa apropriada – redonda e de três pés – em Saint-Hélier, e a primeira sessão ocorreu na noite de 11 de setembro de 1853. Após uma espera de quarenta e cinco minutos, apareceu Leopoldine, a filha de Victor Hugo falecida num naufrágio. 

A partir de então, e até dezembro de 1854, inúmeras sessões se realizaram em Marine Terrace – participavam delas, além do poeta, sua esposa Adèle, seus filhos Charles e Adèle, e amigos ou vizinhos –, durante as quais Victor Hugo teve oportunidade de conversar com Jesus Cristo, Maomé, Josué, Lutero, Shakespeare, Molière, Dante, Aristóteles, Platão, Galileu, Luís XVI, Isaías, Napoleão (o grande) e outras celebridades. (…) 

Os espíritos manifestavam a sua presença fazendo os pés da mesa pularem e vibrarem. Uma vez identificada a visita do além, começava o diálogo. As respostas do espírito eram batidinhas que correspondiam às letras do alfabeto (as aparições só falavam francês). Victor Hugo passava horas e horas – às vezes, noites inteiras – transcrevendo os diálogos. 

Embora tenham sido publicadas algumas recompilações desses “documentos mediúnicos”, ainda há centenas de páginas inéditas que deveriam figurar com todos os direitos entre as obras do poeta, nem que seja apenas porque todos os espíritos com que ele dialoga concordam de fio a pavio com suas convicções políticas, religiosas e literárias, e compartilham sua desenvoltura retórica e suas manias estilísticas, além de professarem por ele a admiração que sua egolatria exigia. 

É difícil imaginar hoje a extraordinária popularidade que, no seu tempo, Victor Hugo chegou a ter em todo o mundo ocidental, e fora dele. (…) Seus romances, sobretudo Notre-Dame de Paris e, mais tarde, Os Miseráveis, multiplicaram de maneira geométrica o número dos seus leitores, ultrapassaram o âmbito francês e invadiram outras línguas, nas quais em pouco tempo Quasímodo e Jean Valjean ficaram tão famosos quanto na França. 

Tanto quanto o seu prestígio literário, sua ativa participação política, como representante no parlamento e como orador, comentarista e polemista da atualidade, foi consolidando o seu prestígio com uma auréola de referência cívica, consciência política e moral da sociedade. 

Em seus dezenove anos e pouco de exílio, essa imagem de grande patriarca das letras, da moral pública e da vida cívica adquiriu nuances legendárias. 

Seu retorno à França, em 5 de setembro de 1870, com a instauração da República, foi um acontecimento multitudinário, sem precedentes, com a participação de milhares de parisienses que o aclamavam, muitos deles sem terem lido uma linha das suas obras. 

Essa popularidade continuaria crescendo sem descanso até o dia da sua morte, e por isso toda a França, toda a Europa, o pranteou. Paris inteira, ou quase, seguiu o seu cortejo fúnebre pelas ruas, numa demonstração de afeto e solidariedade que desde então só certos estadistas ou dirigentes políticos receberam. 

Quando morreu, em 1885, Victor Hugo se transformou em algo mais que um grande escritor: era um mito, a personificação da República, um símbolo da sua sociedade e do seu século. 

O professor Henri Guillemin decifrou, num livro muito divertido, Hugo et la Sexualité, os cadernos secretos que Victor Hugo escreveu em Jersey e Guernesey durante os seus anos de exílio. Anos que, por razões óbvias, alguns comentaristas batizaram de “os anos das empregadas”. 

O grande vate, apesar de ter levado consigo para as ilhas do Canal sua esposa Adèle e sua amante Juliette e de estabelecer esporádicas relações íntimas com damas locais ou de passagem, manteve um constante comércio carnal com as moças do serviço doméstico. 

Era um comércio em todos os sentidos da palavra, a começar pelo mercantil. Ele pagava os serviços de acordo com uma tabela estrita. Se a moça só o deixasse olhar os seus peitos, recebia uns poucos centavos. Caso se despisse totalmente, mas o poeta não pudesse tocá-la, cinquenta centavos. Se pudesse acariciá-la sem chegar a passar daí, um franco. Quando passava desses limites, a retribuição podia chegar a um franco e meio e vez por outra, numa tarde pródiga, a dois francos! 

Quase todas essas anotações das cadernetas secretas estão escritas em espanhol para disfarçar as pistas. O espanhol, idioma da transgressão, do proibido e do pecado, quem diria, do grande romântico. Alguns exemplos: “E. G. Esta manhã. Tudo, tudo”, “Mlle. Rosiers. Pernas”, “Marianne. A primeira vez”, “Ferman Bay. Toda. 1fr.25”, “Visto muito. Conquistado tudo. Osculum” etc. 

Será que agem mal os biógrafos explorando estas intimidades sórdidas e baixando o deus olímpico do seu pedestal? Agem bem. Assim o humanizam e o trazem para a altura do comum dos mortais, a massa com que também é feita a carne do gênio. 

Victor Hugo foi um gênio, não em todas, mas em algumas das obras que escreveu, como Notre-Dame de Paris, Cromwell e principalmente Os Miseráveis, uma das mais ambiciosas empreitadas literárias do século XIX, um século de grandes deicidas, como Tolstói, Dickens, Melville e Balzac. 

Mas também foi vaidoso e piegas, e boa parte do muito que escreveu é hoje palavra morta, literatura circunstancial. (André Breton elogiou-o com maldade, dizendo dele: “Era surrealista quando não era con [um idiota].” Mas a definição mais bonita a seu respeito foi Jean Cocteau quem fez: “Victor Hugo era um doido que achava que era Victor Hugo.”) 

Na casa da Place des Vosges onde morou, há um museu dedicado à sua memória onde se pode ver numa vitrine um envelope dirigido a ele que trazia como endereço: “Mr. Victor Hugo. Océan.” E ele já era tão famoso que a carta chegou às suas mãos. 

A ideia de oceano, aliás, lhe cai como uma luva. É isto o que foi: um mar imenso, às vezes quieto e outras agitado por tempestades assustadoras, um oceano habitado por lindos bandos de golfinhos, por crustáceos sórdidos e por elétricas enguias, um infinito mare magnum de águas agitadas onde convivem o melhor e o pior – o mais belo e o mais feio – das criações humanas. 




(A Tentação do Impossível – Victor Hugo e Os Miseráveis; tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman) 



(Ilustração: Jean Béraud - The Funeral of Victor Hugo,1885)



sexta-feira, 25 de outubro de 2019

MARGEM / MARGEN, de Antonio Carlos Secchin






Vou andando para a beira desse porto,

entre cheiros de cigarra e de sardinha

e um desejo líquido de partir.

Meu olhar desliza no horizonte, querendo saber

a que distância um nome deixa de doer.

Seu nome, marcado em minha boca

como a polpa de uma pera .

O navio enorme avisa que vai embora.

Escrevo a palavra salto,

e paro no sal, e não chego ao alto.

A noite está boiando

num óleo grosso de silêncio e luz.

Molho os pés, penso em seu nome: gozo

de um poço tapado. Insônia de musgos

na beira das águas redondas.

Me vejo na ponta do cais,

cacos de luz

abrindo a cara do mar.

Destroços de palavras, pedaços de seu nome,

sílabas que batem contra os cascos.

Estou parado na beira de um porto,

azul e morte no oco do ar.



Traducción de Yhana Riobueno:



Voy andando hacia la orilla de ese puerto,

entre olores de cigarro y de sardina

y un deseo líquido de partir.

Mi mirada se desliza en el horizonte, queriendo saber

a qué distancia un nombre deja de doler.

Tu nombre, marcado en mi boca

como la pulpa de una pera.

El navío enorme avisa que se va.

Escribo la palabra salto,

y paro en la sal, y no llego al alto.

La noche está flotando

en un grueso aceite de silencio y luz.

Me mojo los pies, pienso en tu nombre: gozo

de un pozo tapado. Insomnio de musgos

a la orilla de aguas redondas.

Me veo en la punta del muelle,

añicos de luz

abriendo la cara del mar.

Destrozos de palabras, pedazos de tu nombre

sílabas que golpean los cascos.

Estoy parado a la orilla de un puerto,

azul y muerte en lo hueco del aire.



(Todos os ventos / Todos los ventos)



(Ilustração: Carl Bloch - 1834-1890 - Moonlight on the sea at Hellebeck)




terça-feira, 22 de outubro de 2019

UMA NOITE DE MÚSICA, de Isaac Asimov





Tenho um amigo que insinua, às vezes, que é capaz de conjurar espíritos do além. 

Ou pelo menos um espírito. Um espírito pequeno, com poderes limitados. Na verdade, ele só fala a respeito depois do quarto uísque com soda. É um equilíbrio delicado: com três drinques, não sabe nada a respeito de espíritos; com cinco ele pega no sono. 

Naquela noite, achei que ele estava bem no ponto, de modo que puxei o assunto: 

— Você se lembra daquele espírito seu amigo, George? 

— Hein? — disse George, olhando para o seu drinque como se não soubesse do que eu estava falando. 

— Aquele pequeno espírito de dois centímetros de altura, que uma vez você disse que era capaz de chamar na hora que quisesse. Aquele que possui poderes paranormais. 

— Ah! — exclamou George. — Está falando de Azazel! é o nome dele, é claro. Não seria capaz de pronunciar o nome verdadeiro. É por isso que o chamo de Azazel. Sim, eu me lembro. 

— Você recorre muito a ele? 

— Não. É perigoso. Muito perigoso. Há sempre a tentação de brincar com o poder. Sou muito cauteloso com isso. 

— Sabe, tenho altos padrões morais. Foi por isso que me senti na obrigação de ajudar um amigo em dificuldades. Foi grande erro! Não gosto nem de pensar... 

— Que aconteceu? 

— Acho que estou mesmo precisando desabafar com alguém — disse George, pensativo. — Talvez isso faça com que eu me sinta melhor... 

Eu era bem mais moço [disse George], e naquele tempo as mulheres eram uma parte importante da vida dos homens. Parece tolice agora, mas me lembro nitidamente de pensar, naquela época, que não me interessaria por qualquer mulher. 

Hoje em dia, a gente fica com a que aparecer, não faz muita diferença, mas naquele tempo... 

Eu tinha um amigo chamado Mortenson. Andrew Mortenson. Acho que você não o conhece. Há anos que não o vejo. 

Acontece que Mortenson estava caído por uma mulher, uma mulher em particular. Ela era um anjo, dizia meu amigo. Não podia viver sem ela. Era um ser único no universo. Você sabe como falam as pessoas apaixonadas. 

O problema é que ela o havia deixado, e de uma forma particularmente cruel e humilhante. Começara um namoro com outro homem bem na frente dele, estalando os dedos na cara dele e rindo impiedosamente das lágrimas dele. 

Não estou falando de forma literal. Estou apenas tentando transmitir a impressão que ele me causou. Estava aqui sentado, bebendo comigo, neste mesmo bar. Fiquei com muita pena e disse para ele: 

— Sinto muito, Mortenson, mas você não deve se deixar abalar desse jeito. Quando puder pensar com clareza, verá que ela é apenas uma mulher. Se olhar para a calçada, verá centenas como ela. 

Ele protestou, com amargura: 

— De agora em diante, meu amigo, não quero saber mais de mulheres..., com exceção, é claro, da minha esposa, que de vez em quando não consigo evitar. Só que eu gostaria de fazer alguma coisa para ela. 

— Para sua mulher? — perguntei. 

— Não, não, por que eu estaria querendo fazer alguma coisa para minha esposa? Estou falando daquela mulher que me tratou de forma tão impiedosa. 

— O que você faria com ela? 

— Sei lá... 

— Talvez eu esteja em condições de ajudá-lo — disse eu, ainda com pena do meu amigo. — Posso recorrer a um espírito com poderes extraordinários. Um espírito pequeno, é claro — mostrei-lhe o polegar e indicador, separados por uma distância de uns dois centímetros, para ter certeza de que estava me entendendo —, que também tem suas limitações. 

Contei-lhe a respeito de Azazel e ele, é claro, acreditou. Já reparei que quando conto uma história, todos acreditam em mim. Agora quando você conta uma história, amigo velho, o ar de incredulidade que paira sobre a sala é de dar gosto. 

Nada como uma reputação de probidade e um ar de decência. 

Quando lhe contei sobre Azazel, seus olhos brilharam. Perguntou-me se ele poderia fazer alguma coisa para a ex-namorada. 

— Depende do que for, amigo velho. Espero que não esteja pensando em algo como fazê-la cheirar mal ou cuspir um sapo toda vez que tentar falar. 

— Claro que não! — protestou, indignado. — Quem pensa que sou? Ela me deu dois anos de felicidade e quero recompensá-la. Você disse que os poderes do seu espírito são limitados? 

— Ele é deste tamaninho — disse eu, mostrando de novo o polegar e o indicador. 

— Poderia dar a ela uma voz perfeita? Nem que fosse temporariamente? Nem que fosse para uma única apresentação? 

— Vou perguntar a ele. 

A proposta de Mortenson parecia muito cavalheiresca. Sua ex-namorada cantava na igreja. Naquela época, eu tinha um bom ouvido e costumava frequentar a mesma igreja (mantendo distância da caixa de oferendas, é claro). Gostava de ouvi-la cantar e acho que os outros fiéis também. Talvez a sua conduta moral não estivesse de acordo com o ambiente, mas Mortenson me explicou que, no caso de sopranos, eles estavam dispostos a ser bastante compreensivos. 

De modo que consultei Azazel. Estava ansioso para ajudar. Nada daquelas bobagens de exigir minha alma em troca. Lembro-me de que uma vez perguntei a Azazel se ele queria minha alma e ele me perguntou o que era alma. Não soube o que responder. Acontece que ele é um ser insignificante em seu próprio universo e se sente muito importante podendo fazer coisas grandiosas no nosso universo. Ele gosta de ajudar. 

Azazel me disse que poderia fazer com que ela cantasse com perfeição durante três horas. Contei a Mortenson, e ele me disse que estava ótimo. Escolhemos uma noite em que ela estaria cantando Bach, Haendel ou outro daqueles velhos batucadores de piano, e daria um solo longo e difícil. 

Mortenson foi à igreja naquela noite e, naturalmente, eu fui também. Sentia-me responsável pelo que estava para acontecer e achei que era melhor ver a situação de perto. 

Mortenson me disse, em tom sombrio: 

— Assisti aos ensaios. Ela estava cantando da mesma maneira que antes. Você sabe, como se tivesse um rabo e estivesse pisando nele. 

Não era assim que costumava descrever a voz da moça. A música das esferas, era como se referira a ela em várias ocasiões. Daí para mais. Naturalmente, ele tinha sido passado para trás, o que pode distorcer o senso crítico de um homem. 

Olhei-o com ar de censura. 

— Isso não é jeito de falar de uma mulher a quem você está prestes a oferecer um grande presente. 

— Aí é que está. Quero que a voz dela seja perfeita. Simplesmente perfeita. E agora compreendo, agora que meus olhos estão livres do manto diáfano do amor que os cobria, que a voz dela está longe da perfeição. Acha que seu amigo pode fazer isso para mim? 

— A mudança vai ocorrer exatamente às 8:15 da noite. — Senti uma ponta de suspeita. — Você não estava pretendendo usar a perfeição no ensaio para depois desapontar a audiência? 

— De jeito nenhum — disse ele. 

A coisa começou antes da hora, e quando ela se levantou para cantar, toda vestida de branco, eram 8:14 pelo meu velho relógio de bolso, que nunca está errado mais que dois segundos. Ela não era um daqueles sopranos raquíticos; pelo contrário, tinha um físico avantajado, com muito espaço interno para conseguir aquele tipo de ressonância que se torna necessário para sustentar uma nota aguda sem se deixar abafar pela orquestra. Quando inspirou profundamente para dar o primeiro agudo, pude ver o que Mortenson via nela, mesmo descontando as várias camadas de tecido. 

Ela começou a cantar normalmente, mas, exatamente às 8:15, foi como se uma segunda voz tivesse entrado em cena. Vi quando num leve sobressalto, como se não acreditasse no que estava acontecendo, a mão, que estava na altura do diafragma, começou a tremer. 

A voz aumentou de volume. Era como se tivesse se transformado em um órgão. As notas eram perfeitas, límpidas, irretocáveis. Diante delas, todas as notas anteriores pareciam imitações grosseiras. 

Cada nota era emitida com o vibrato correto, se é esta a palavra, aumentando ou diminuindo de intensidade com um controle perfeito da emissão. 

E ela melhorava a cada nota. O organista não estava olhando mais para a partitura, e sim para ela, e não posso jurar, mas acho que parou de tocar. Mesmo que estivesse tocando, ninguém notaria. Ninguém ouviria nenhum outro som enquanto ela estivesse cantando. 

O olhar de surpresa desapareceu do rosto da moça e foi substituído por uma expressão de júbilo. Ela também pôs de lado a partitura que estava segurando; não precisava mais dela. Cantava sem nenhum esforço, sem pensar no que estava fazendo. O maestro estava paralisado, e os membros do coro pareciam atônitos. 

Afinal, o solo acabou e o coro começou a cantar de forma tímida, titubeante, como se estivessem com vergonha de que suas vozes fossem ouvidas na mesma igreja e na mesma noite. 

O resto do programa foi todo dela. Quando cantava, era a única a ser ouvida, mesmo que o coro e a orquestra a estivessem acompanhando. Quando calava, era como se estivéssemos no escuro e não pudéssemos suportar a ausência da luz. 

E quando a audição terminou... eu sei que não é costume aplaudir na igreja, mas todo mundo bateu palmas. Todos se puseram de pé como se fossem marionetes e aplaudiram freneticamente. Era evidente que continuariam aplaudindo até que ela cantasse de novo. 

Ela cantou de novo; desta vez, sozinha, acompanhada apenas pelo órgão e iluminada pelo projetor de luz. O coro tinha desaparecido. 

Cantava sem nenhum esforço. Era impressionante. Tento observar sua respiração, surpreendê-la tomando fôlego, descobrir quanto tempo conseguiria sustentar uma nota a todo volume com apenas um par de pulmões para fornecer o ar. 

Mas não podia durar para sempre, e não durou. Até os aplausos cessaram. Só então me dei conta de que, ao meu lado, Mortenson parecia estar em transe, com os olhos fixos, todo o seu ser concentrado no sentido da audição. Só então comecei a compreender o que havia acontecido. 

Afinal de contas, sou uma pessoa reta, sem nenhuma malícia, de modo que posso ser desculpado por não perceber qual era a intenção real de meu amigo. Você, por outro lado, um tipo tão tortuoso que é capaz de subir uma escada em espiral sem virar o corpo, já deve saber há muito tempo o que ele pretendia. 

A ex-namorada havia cantado com perfeição... mas nunca mais seria capaz de repetir a façanha. 

Era como se fosse cega de nascença e de repente, por apenas três horas, fosse capaz de ver. Ver tudo que existe para ver, todas as cores, formas e maravilhas que nos cercam e que não nos despertam a atenção porque já estamos acostumados. Suponha que você pudesse ver tudo que existe durante três horas... e depois ficasse cego outra vez! 

É relativamente fácil suportar a cegueira se você nunca enxergou. Mas saber por alguns instantes o que é ver e depois ficar cego de novo? Ninguém suportaria isso. 

Aquela mulher nunca mais tornou a cantar, naturalmente. Mas isso é apenas parte da história. A tragédia real foi para nós, para a plateia. 

Tivemos uma música perfeita durante três horas. Uma música perfeita. Acha que desse dia em diante podemos nos contentar com menos que isso? 

Até hoje, meus ouvidos se recusam a ouvir música. Recentemente, fui a um desses festivais de rock, que estão tão na moda, só para experimentar. Você não vai acreditar, mas não consegui distinguir uma nota musical. Para mim, era apenas ruído. 

Meu único consolo é que Mortenson, que escutou com mais ansiedade e concentração do que todo mundo, foi a pessoa mais atingida da plateia. Ele passa o tempo todo usando tampões nos ouvidos. Qualquer som o deixa nervoso. 

Bem feito! 



(Azazel; tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi) 



(Ilustração: Pierre Auguste Renoir - Yvonne et Christine Lerolle au piano)



sábado, 19 de outubro de 2019

TO NATURE / À NATUREZA, de Samuel Taylor Coleridge






It may indeed be phantasy, when I

Essay to draw from all created things

Deep, heartfelt, inward joy that closely clings;

And trace in leaves and flowers that round me lie

Lessons of love and earnest piety.

So let it be; and if the wild world rings

In mock of this belief, it brings

Nor fear, nor grief, nor vain perplexity.

So will I build my altar in the fields,

And the blue sky my fretted dome shall be,

And the sweet fragrance that the wild flower yields

Shall be the incense I will yield to thee,

Thee only God! and thou shalt not despise

Even me, the priest of this poor sacrifice.



Tradução de Ricardo Sobreira:


Talvez seria phantasia achar

Que eu posso ver em todo ser vivente

Um gozo imo, cordial e comovente;

E nestas folhas e flores traçar

Lições de amor e de franca piedade.

Que assim seja; e se o mundo maldizente

Ri desta crença, isso sinceramente

Não traz nem temor nem perplexidade.

Nos campos farei meu altar então,

E o teto será o azul celestial,

E da mais doce flor a exalação

Será um incenso a ti deste mortal;

E não desprezarás a mim, Senhor!

Que do sacrifício sou o pobre autor.



(Ilustração: Camille-Pissarro - The Pond at Montfoucault)

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

NASCENDO DE NOVO, de Salman Rushdie





"Para nascer de novo", cantava Gibreel Farishta despencando do céu, preciso morrer primeiro. Ho ji! Ho ji! Para pousar no seio da terra, é preciso voar primeiro. Tat-taa! Taka-thun! Como sorrir de novo, se não se chorou primeiro? Como conquistar o coração da amada, mister, sem um suspiro? Baba, se você quer nascer de novo..." Pouco antes do amanhecer de uma manhã de inverno, no dia de Ano-Novo, ou por aí, dois homens de verdade, adultos, vivos, caíram de grande altura, vinte e nove mil e dois pés, em direção ao canal da Mancha, sem a garantia de paraquedas nem de asas, caíram do céu limpo. 

"Tem de morrer, estou dizendo, tem de morrer, tem de morrer", e assim foi, sob uma lua de alabastro, até que um grito alto atravessou a noite: "Pro inferno com essa música", as palavras suspensas, cristalinas, na branca noite gelada. "Nos filmes você usava playback e só mexia a boca, portanto me poupe desse barulho infernal." 

Gibreel, o solista desafinado, brincava ao luar, cantando seu gazal improvisado, nadando no ar, borboleta, de peito, se enrolava numa bola, abria braços e pernas no quase-infinito do quase alvorecer, adotava posturas heráldicas, rampante, agachado, opondo leveza à gravidade. Ele rolou, feliz, na direção da voz sardônica. "Alô-alô, Salad baba, é você, que bom. Que tal, Chumch?" Ao que o outro, uma sombra meticulosa caindo de cabeça, o terno cinzento com todos os botões do paletó abotoados, braços colados ao corpo, confiante na improbabilidade do chapéu-coco na cabeça, fez uma careta de quem não gosta de apelidos. "E aí, Spoono", Gibreel gritou, provocando uma segunda careta de ponta-cabeça, "A Própria Londres, bhai! Lá vamos nós! Aqueles filhos da puta lá embaixo não vão nem saber o que foi que caiu em cima deles. Se foi meteoro ou raio ou a ira de Deus. Saído do nada, baby. Drrraaammm! Rrram, na? Que chegada, yaar. É ou não é: splat." 

Saindo do nada: um big bang, seguido de estrelas cadentes. Um começo universal, um eco em miniatura do nascer do tempo... o jato jumbo Bostan, voo AI-420, desintegrou-se sem aviso prévio, muito acima da grande, podre, bela, branca de neve, iluminada cidade, Mahagonny, Babilônia, Alphaville. Mas Gibreel já a batizou, não devo interferir: Própria Londres, capital de Vilayet, cintilando, piscando, acenando na noite. Enquanto nas alturas himalaias um sol breve e prematuro explodia no ar empoeirado de janeiro, um bip desaparecia das telas de radar, e o ar rarefeito se enchia de corpos, despencando do Evereste da catástrofe para a palidez leitosa do mar. 

Quem sou eu? 

Quem mais está aí? 

A aeronave partiu-se em dois, como uma vagem cuspindo sementes, como um ovo que revela seu mistério. Dois atores, o irrequieto Gibreel e o abotoado, carrancudo Mr. Saladin Chamcha, caíam como farelos de tabaco de dentro de um velho charuto partido. Acima, atrás, abaixo deles no vazio, poltronas reclináveis, fones de ouvido estereofônicos, carrinhos de bebidas, saquinhos para enjoo, cartões de embarque, videogames do free shop, toucas, copos de papel, cobertores, máscaras de oxigênio. Além disso — pois havia mais do que uns poucos migrantes a bordo, sim, uma boa quantidade de esposas que tinham sido interrogadas por razoáveis, aplicados funcionários sobre o tamanho e as pintas da genitália dos maridos, um bom número de crianças cuja legitimidade o governo britânico colocava em mui compreensível dúvida — misturados aos restos do avião, igualmente fragmentados, igualmente absurdos, flutuavam fragmentos de alma, memórias partidas, eus degradados, línguas pátrias cortadas, privacidades violadas, piadas intraduzíveis, futuros extintos, amores perdidos, sentidos esquecidos de palavras ocas e sonoras, terra, vínculo, lar. Um pouco tontos por causa da explosão, Gibreel e Saladin caíam como trouxas derrubadas pelo bico aberto de uma cegonha descuidada, e como Chamcha estava caindo de cabeça para baixo, na posição recomendada para os bebês que penetram no canal de parto, começou a sentir uma surda irritação pela recusa do outro em cair do jeito normal. Saladin mergulhava de cabeça enquanto Farishta abraçava o ar com pernas e braços, um ator excessivo, exagerado, sem nenhuma técnica de contenção. Lá embaixo, cobertas de nuvens, esperando a entrada deles, as correntes congeladas do canal da Mancha, área escolhida para sua reencarnação aquática. 

"Oh, meu sapato é japonês", Gibreel cantava, traduzindo a velha canção para o inglês, em deferência semiconsciente à nação hospedeira que se aproximava depressa, "este meu terno é bem inglês. Meu chapéu russo é vermelho, mas eu sou indiano, meu velho." As nuvens borbulhavam na direção deles, e talvez por causa da grande mistificação de cúmulos e cúmulos-nimbos, poderosos focos de trovão eretos como martelos no alvorecer, ou talvez por causa da cantoria (um aplicado no desempenho, o outro vaiando o desempenho), ou por causa do delírio da explosão que lhes poupava a previsão do iminente... pela razão que fosse, os dois homens, Gibreelsaladin Farishtachamcha, condenados a essa infindável, mas também finita queda angélicodivina, não se deram conta do momento em que os seus processos de transmutação começaram. 

Mutação? 

Simssenhor, mas não ao acaso. Lá em cima, no ar-espaço, naquele campo macio, imperceptível, que o século tornou possível, e que, desde então, tornou o século possível, transformando-se numa de suas locações definidoras, campo de movimento e guerra, redutor do planeta e vácuo de poder, mais insegura e transitória das zonas, ilusória, descontínua, metamórfica — porque quando se joga alguma coisa para o ar qualquer coisa passa a ser possível — láemcima, ocorreram nos delirantes atores mudanças que alegrariam o coração do velho Lamarck: sob pressão ambiental extrema, adquirem-se características. 

Que características quais? Calma; está pensando que a Criação é coisa rápida? Então, a revelação também não... dê uma olhada nos dois. Está notando alguma coisa estranha? São só dois homens escuros, caindo depressa, nada de novo aí, você pode achar; subiram alto demais, acima de si mesmos, voaram perto demais do Sol, é isso? 

Não é. Escute só: Mr. Saladin Chamcha, horrorizado com os ruídos que emanavam da boca de Gibreel Farishta, reagiu com versos próprios. O que Farishta escutou flutuando pelo improvável céu noturno foi uma canção velha também, letra de Mr. James Thomson, mil setecentos a mil setecentos e quarenta e oito."... por ordem do Céu", Chamcha cantarolou com lábios jingoisticamente vermelhobrancoazuis por causa do frio, "surgiiiiiu da aaaazul imensidão". 

Farishta, horrorizado, cantou mais e mais alto os sapatos japoneses, os chapéus russos, os corações subcontinentais inviolados, mas não conseguiu silenciar o louco recital de Saladin: "e os anjos da guaaaaarda cantaram a missão". 

Vamos encarar os fatos: era impossível um ouvir o outro, muito menos conversar e mesmo ainda competir, assim, cantando. Acelerando na direção do planeta, a atmosfera rugindo à sua volta, como poderiam? Mas encaremos também este fato: eles conseguiram. 

Caindocaindo iam eles, e o vento de inverno que lhes congelava os cílios e ameaçava congelar seus corações estava a ponto de despertá-los daquele delírio sonhado, os dois estavam a ponto de tomar consciência do milagre do canto, da chuva de membros e de bebês de que faziam parte, e do terror do destino que se precipitava para eles, vindo lá de baixo, quando mergulharam na fervura a zero grau das nuvens e ficaram imediatamente encharcados e congelados. 

Estavam no que parecia um longo túnel vertical. Chamcha, primoroso, rígido e ainda de cabeça para baixo, viu Gibreel Farishta com sua camisasafári roxa, nadando na direção dele pelo funil de nuvens, e podia ter gritado: "Fique longe, longe de mim", mas algo o impediu, o começo de uma espécie de gritinho flauteado em seu intestino, e, portanto, em vez de enunciar palavras de rejeição, abriu os braços, e Farishta nadou para dentro deles até que estavam abraçados, pés com cabeças, a força da colisão fazendo os dois rolarem em saltos estrela geminados ao longo de todo o buraco que ia até o País das Maravilhas; enquanto perfuravam seu trajeto pelo branco passou uma sucessão de formas nebulosas, em incessante metamorfose, deuses virando touros, mulheres virando aranhas, homens virando lobos. Híbridas criaturas de nuvens se lançavam sobre eles, flores gigantes com seios humanos dependurados de caules carnosos, gatos alados, centauros, e Chamcha em sua semiconsciência foi tomado pela ideia de que também ele tinha adquirido a qualidade nebulosa, também ele metamórfico, híbrido, como se estivesse se transformando na pessoa cuja cabeça se aninhava entre suas pernas e cujas pernas enlaçavam seu longo pescoço senhorial. 

Essa pessoa não tinha, porém, tempo para tão "altas pretensões"; era, na verdade, inteiramente incapaz de qualquer pretensão; tendo acabado de ver, surgindo do redemoinho de uma nuvem, a figura de uma sedutora mulher de certa idade, usando um sari de brocado verde e ouro, com um diamante na aba do nariz e os cabelos penteados para cima protegidos com laquê contra a pressão do vento naquela altitude, sentada com toda a serenidade sobre um tapete voador. "Rekha Merchant", Gibreel a saudou. "Perdeu o caminho do céu ou o quê?" Palavras pouco sensíveis para se dizer a uma morta! O estado de concussão mergulhatória, porém, pode servir de desculpa para ele... 

Chamcha, agarrado a suas pernas, demonstrou incompreensão: "Que diabo?". 

"Não está vendo?", Gibreel gritou. "Não está vendo o seu maldito tapete de Bukhara?" 

Não, não, Gibo, a voz dela sussurrou no ouvido dele, não espere que ele diga sim. Eu só existo para os seus olhos, talvez você esteja ficando louco, que tal?, seu namaqool, pedaço de excremento de porco, meu amor. A morte traz a franqueza, meu amado, de forma que posso chamar você por seus nomes verdadeiros. 

A nebulosa Rekha murmurou ácidas trivialidades, e Gibreel tornou a gritar para Chamcha: "Então, Spoono? Está vendo ou não?". 

Saladin Chamcha não via nada, não ouvia nada, não dizia nada. Gibreel enfrentou-a sozinho: "Você não devia ter feito aquilo", censurou. "Não, senhora. Que pecado. Coisa mais feia." 

Ah, pode fazer o sermão que quiser agora, ela riu. Você cheio de moralismos, essa é boa. Foi você que me abandonou, a voz dela relembrou no ouvido dele, parecendo mordiscar-lhe o lóbulo. Foi você, oh, lua das minhas delícias, que se escondeu atrás de uma nuvem. E eu no escuro, cega, perdida de amor. 

Ele ficou com medo. "O que você quer? Não, não diga, vá embora." 

Quando esteve doente eu não podia ver você, para evitar um escândalo, você sabia que eu não podia, e me afastei por sua causa, mas depois você se vingou, usou isso como desculpa para ir embora, como uma nuvem para se esconder. Isso, e ela também, a mulher de gelo. Filho da puta. Agora que morri esqueci como perdoar. Eu maldigo você, meu Gibreel, que a sua vida seja um inferno. Inferno, porque foi para lá que você me mandou, maldito, de lá que você saiu, demônio, e para onde está indo, idiota, aproveite a descida. A maldição de Rekha; e depois disso, versos numa língua que ele não entendia, toda aspereza e sibilos, na qual imaginou entender, mas talvez não, o nome Al-Lat várias vezes repetido. 

Agarrou-se a Chamcha; e atravessaram o fundo das nuvens. 

Velocidade, a sensação de velocidade voltou, assobiando sua nota apavorante. O teto de nuvens subia, o chão de água vinha em zoom na direção deles, seus olhos se abriram. Um grito, o mesmo grito que tinha flauteado em suas entranhas quando Gibreel nadava pelo céu, explodiu dos lábios de Chamcha; um raio de sol penetrou sua boca aberta e o libertou. Mas eles tinham atravessado as transformações das nuvens, Chamcha e Farishta, e era a fluidez, uma indistinção nos limites dos dois, e quando o sol tocou Chamcha ele liberou mais do que ruído: "Voe", Chamcha gritou para Gibreel. "Comece a voar agora." E acrescentou, sem identificar a fonte, um segundo mandamento: "E cante". 

Como a novidade penetra no mundo? Como é que nasce? 

De que fusões, transformações, conjunções é feita? 

Como sobrevive, extrema e perigosa como é? Que concessões, que acordos, que traições de sua natureza secreta tem ela de fazer para repelir a fúria das multidões, o anjo exterminador, a guilhotina? 

Nascer é sempre uma queda? 

Anjos têm asas? Homens podem voar? 



Quando Mr. Saladin Chamcha caiu das nuvens sobre o canal da Mancha, sentiu o coração cerrado por uma força tão implacável que compreendeu ser-lhe impossível morrer. Depois, quando seus pés estavam de novo plantados com firmeza no chão, ele começaria a duvidar disso, e a atribuir as implausíbilidades do seu trânsito à confusão provocada pela explosão em suas percepções, e a atribuir sua sobrevivência, a sua e a de Gibreel, à mera e cega sorte. Mas, naquele momento, ele não tinha dúvida; o que o dominara era a vontade de viver, não adulterada, irresistível, pura, e a primeira coisa que essa vontade fez foi informá-lo de que não queria ter nada a ver com sua patética personalidade, aquela coisa semi-reconstruída feita de mímica e vozes, que pretendia passar por cima de tudo aquilo, e ele se viu cedendo à vontade de viver, sim, continue, como se fosse um espectador de sua própria mente, de seu próprio corpo, porque a sensação começava no centro mesmo de seu corpo e se espalhava para fora, transformando o sangue em ferro, mudando a carne em aço, só que havia uma outra sensação também, como um punho que o envolvia de fora, prendendo-o de uma forma que era, ao mesmo tempo, insuportavelmente forte e intolerávelmente suave; até que finalmente o dominou por inteiro e podia mover sua boca, seus dedos, o que escolhesse, e ao ter segurança de seu domínio começou a expandir-se para fora de seu corpo até agarrar Gibreel Farishta pelo saco. 

"Voe", a força ordenava a Gibreel. "Cante." 

Chamcha continuou agarrado a Gibreel até que o outro começou, primeiro devagar, depois com progressiva rapidez e força, a bater os braços. 

Mais e mais forte ele batia os braços, e, enquanto batia, uma canção brotou de dentro dele, assim como a canção do espectro de Rekha Merchant, essa também era cantada numa língua que ele não conhecia, com melodia que nunca tinha ouvido. Gibreel jamais repudiava o milagre; ao contrário de Chamcha, que tentava expulsá-lo racionalmente da existência, ele não parava de dizer que o gazal tinha sido celestial, que sem a canção o bater de braços não teria adiantado nada, e que sem o bater de braços com toda a certeza teriam atingido as ondas como pedras ou qualquer outra coisa e simplesmente explodido em pedaços ao fazer contato com a pele esticada do tambor do mar. 

E, em vez disso, começaram a ir mais devagar. Quanto mais enfaticamente Gibreel batia os braços e cantava, cantava e batia, mais pronunciada era a desaceleração, até que finalmente os dois estavam flutuando em direção ao canal como pedaços de papel em uma brisa. 

Eram os únicos sobreviventes do desastre, os únicos a despencar do Bostan e sobreviver. Foram encontrados atirados numa praia. O mais falante dos dois, o de camisa roxa, jurou, em seu matraquear descontrolado, que tinham caminhado sobre a água, que as ondas os tinham depositado suavemente na costa; mas o outro, em cuja cabeça um chapéu-coco ensopado parecia preso por mágica, negou. "Meu Deus, que sorte tivemos", disse. "Até onde vai a sorte?" 

Evidentemente, eu sei a verdade. Eu vi tudo. Quanto a onipresença e potência, não estou pleiteando nenhuma das duas no momento, mas até esse ponto posso ir, acho. Chamcha decidiu assim e Farishta fez o que foi decidido. 

Qual dos dois era o milagroso? 

De que tipo — angélica, satânica — era a canção de Farishta? 

Quem sou eu? 

Vamos colocar da seguinte maneira: quem tem as melhores melodias? 



Estas foram as primeiras palavras que Gibreel Farishta disse ao despertar na praia inglesa coberta de neve com a improbabilidade de uma estrela-domar ao lado da orelha: "Nascemos de novo, Spoono, você e eu. Feliz aniversário, mister; parabéns a você". 

Ao que Saladin Chamcha tossiu, gaguejou, abriu os olhos e, como convém a um bebê recém-nascido, caiu no choro. 



Glossário

Baba — velho santo. 

Bhai — irmão. 

Bostan — um dos dois paraísos tradicionais do islamismo. O outro é Gulistan. 

Gazal — forma poética da Pérsia clássica. 

Ho ji! — expressão de entusiasmo usada como refrão de música popular. 

Namaqool — (islâmico) 

Spoono — palavra forjada a partir de spoon, colher, em inglês, equivalente a chamcha, colher em hindi. 

Vilayet — país estrangeiro. 

Yaar — amigo. 



(Os Versos Satânicos; tradução de Misael H. Dursan) 



(Ilustração: Harry Holland – Homeward)





domingo, 13 de outubro de 2019

CONHEÇO VOCÊS PELO CHEIRO, de Ricardo Aleixo





Conheço vocês

pelo cheiro,



pelas roupas,

pelos carros,



pelos anéis e,

é claro,



por seu amor

ao dinheiro.



Por seu amor

ao dinheiro



que algum

ancestral remoto



lhes deixou

como herança.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Conheço vocês

pelo cheiro



e pelos cifrões

que adornam



esses olhos que

mal piscam



por seu amor

ao dinheiro.



Por seu amor

ao dinheiro



e a tudo que

nega a vida:



o hospício, a

cela, a fronteira.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Conheço vocês

pelo cheiro



de peste e horror

que espalham



por onde andam

– conheço-os



por seu amor

ao dinheiro.



Por seu amor

ao dinheiro,



deus é um

pai tão sacana



que cobra por

seus milagres.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Conheço vocês

pelo cheiro



mal disfarçado

de enxofre



que gruda em

tudo que tocam



por seu amor

ao dinheiro.



Por seu amor

ao dinheiro,



é com ódio

que replicam



ao riso, ao gozo,

à poesia.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Cheiro um e

cheirei todos



vocês que só

sobrevivem



por seu amor

ao dinheiro.



Por seu amor

ao dinheiro,



fazem até das

próprias filhas



moeda forte,

ouro puro.



Conheço vocês

pelo cheiro.



Conheço vocês

pelo cheiro



de cadáver

putrefato que,



no entanto,

ainda caminha



por seu amor

ao dinheiro.





(Ilustração: Adriana Varejão - filho bastardo II)