quarta-feira, 16 de outubro de 2019
NASCENDO DE NOVO, de Salman Rushdie
"Para nascer de novo", cantava Gibreel Farishta despencando do céu, preciso morrer primeiro. Ho ji! Ho ji! Para pousar no seio da terra, é preciso voar primeiro. Tat-taa! Taka-thun! Como sorrir de novo, se não se chorou primeiro? Como conquistar o coração da amada, mister, sem um suspiro? Baba, se você quer nascer de novo..." Pouco antes do amanhecer de uma manhã de inverno, no dia de Ano-Novo, ou por aí, dois homens de verdade, adultos, vivos, caíram de grande altura, vinte e nove mil e dois pés, em direção ao canal da Mancha, sem a garantia de paraquedas nem de asas, caíram do céu limpo.
"Tem de morrer, estou dizendo, tem de morrer, tem de morrer", e assim foi, sob uma lua de alabastro, até que um grito alto atravessou a noite: "Pro inferno com essa música", as palavras suspensas, cristalinas, na branca noite gelada. "Nos filmes você usava playback e só mexia a boca, portanto me poupe desse barulho infernal."
Gibreel, o solista desafinado, brincava ao luar, cantando seu gazal improvisado, nadando no ar, borboleta, de peito, se enrolava numa bola, abria braços e pernas no quase-infinito do quase alvorecer, adotava posturas heráldicas, rampante, agachado, opondo leveza à gravidade. Ele rolou, feliz, na direção da voz sardônica. "Alô-alô, Salad baba, é você, que bom. Que tal, Chumch?" Ao que o outro, uma sombra meticulosa caindo de cabeça, o terno cinzento com todos os botões do paletó abotoados, braços colados ao corpo, confiante na improbabilidade do chapéu-coco na cabeça, fez uma careta de quem não gosta de apelidos. "E aí, Spoono", Gibreel gritou, provocando uma segunda careta de ponta-cabeça, "A Própria Londres, bhai! Lá vamos nós! Aqueles filhos da puta lá embaixo não vão nem saber o que foi que caiu em cima deles. Se foi meteoro ou raio ou a ira de Deus. Saído do nada, baby. Drrraaammm! Rrram, na? Que chegada, yaar. É ou não é: splat."
Saindo do nada: um big bang, seguido de estrelas cadentes. Um começo universal, um eco em miniatura do nascer do tempo... o jato jumbo Bostan, voo AI-420, desintegrou-se sem aviso prévio, muito acima da grande, podre, bela, branca de neve, iluminada cidade, Mahagonny, Babilônia, Alphaville. Mas Gibreel já a batizou, não devo interferir: Própria Londres, capital de Vilayet, cintilando, piscando, acenando na noite. Enquanto nas alturas himalaias um sol breve e prematuro explodia no ar empoeirado de janeiro, um bip desaparecia das telas de radar, e o ar rarefeito se enchia de corpos, despencando do Evereste da catástrofe para a palidez leitosa do mar.
Quem sou eu?
Quem mais está aí?
A aeronave partiu-se em dois, como uma vagem cuspindo sementes, como um ovo que revela seu mistério. Dois atores, o irrequieto Gibreel e o abotoado, carrancudo Mr. Saladin Chamcha, caíam como farelos de tabaco de dentro de um velho charuto partido. Acima, atrás, abaixo deles no vazio, poltronas reclináveis, fones de ouvido estereofônicos, carrinhos de bebidas, saquinhos para enjoo, cartões de embarque, videogames do free shop, toucas, copos de papel, cobertores, máscaras de oxigênio. Além disso — pois havia mais do que uns poucos migrantes a bordo, sim, uma boa quantidade de esposas que tinham sido interrogadas por razoáveis, aplicados funcionários sobre o tamanho e as pintas da genitália dos maridos, um bom número de crianças cuja legitimidade o governo britânico colocava em mui compreensível dúvida — misturados aos restos do avião, igualmente fragmentados, igualmente absurdos, flutuavam fragmentos de alma, memórias partidas, eus degradados, línguas pátrias cortadas, privacidades violadas, piadas intraduzíveis, futuros extintos, amores perdidos, sentidos esquecidos de palavras ocas e sonoras, terra, vínculo, lar. Um pouco tontos por causa da explosão, Gibreel e Saladin caíam como trouxas derrubadas pelo bico aberto de uma cegonha descuidada, e como Chamcha estava caindo de cabeça para baixo, na posição recomendada para os bebês que penetram no canal de parto, começou a sentir uma surda irritação pela recusa do outro em cair do jeito normal. Saladin mergulhava de cabeça enquanto Farishta abraçava o ar com pernas e braços, um ator excessivo, exagerado, sem nenhuma técnica de contenção. Lá embaixo, cobertas de nuvens, esperando a entrada deles, as correntes congeladas do canal da Mancha, área escolhida para sua reencarnação aquática.
"Oh, meu sapato é japonês", Gibreel cantava, traduzindo a velha canção para o inglês, em deferência semiconsciente à nação hospedeira que se aproximava depressa, "este meu terno é bem inglês. Meu chapéu russo é vermelho, mas eu sou indiano, meu velho." As nuvens borbulhavam na direção deles, e talvez por causa da grande mistificação de cúmulos e cúmulos-nimbos, poderosos focos de trovão eretos como martelos no alvorecer, ou talvez por causa da cantoria (um aplicado no desempenho, o outro vaiando o desempenho), ou por causa do delírio da explosão que lhes poupava a previsão do iminente... pela razão que fosse, os dois homens, Gibreelsaladin Farishtachamcha, condenados a essa infindável, mas também finita queda angélicodivina, não se deram conta do momento em que os seus processos de transmutação começaram.
Mutação?
Simssenhor, mas não ao acaso. Lá em cima, no ar-espaço, naquele campo macio, imperceptível, que o século tornou possível, e que, desde então, tornou o século possível, transformando-se numa de suas locações definidoras, campo de movimento e guerra, redutor do planeta e vácuo de poder, mais insegura e transitória das zonas, ilusória, descontínua, metamórfica — porque quando se joga alguma coisa para o ar qualquer coisa passa a ser possível — láemcima, ocorreram nos delirantes atores mudanças que alegrariam o coração do velho Lamarck: sob pressão ambiental extrema, adquirem-se características.
Que características quais? Calma; está pensando que a Criação é coisa rápida? Então, a revelação também não... dê uma olhada nos dois. Está notando alguma coisa estranha? São só dois homens escuros, caindo depressa, nada de novo aí, você pode achar; subiram alto demais, acima de si mesmos, voaram perto demais do Sol, é isso?
Não é. Escute só: Mr. Saladin Chamcha, horrorizado com os ruídos que emanavam da boca de Gibreel Farishta, reagiu com versos próprios. O que Farishta escutou flutuando pelo improvável céu noturno foi uma canção velha também, letra de Mr. James Thomson, mil setecentos a mil setecentos e quarenta e oito."... por ordem do Céu", Chamcha cantarolou com lábios jingoisticamente vermelhobrancoazuis por causa do frio, "surgiiiiiu da aaaazul imensidão".
Farishta, horrorizado, cantou mais e mais alto os sapatos japoneses, os chapéus russos, os corações subcontinentais inviolados, mas não conseguiu silenciar o louco recital de Saladin: "e os anjos da guaaaaarda cantaram a missão".
Vamos encarar os fatos: era impossível um ouvir o outro, muito menos conversar e mesmo ainda competir, assim, cantando. Acelerando na direção do planeta, a atmosfera rugindo à sua volta, como poderiam? Mas encaremos também este fato: eles conseguiram.
Caindocaindo iam eles, e o vento de inverno que lhes congelava os cílios e ameaçava congelar seus corações estava a ponto de despertá-los daquele delírio sonhado, os dois estavam a ponto de tomar consciência do milagre do canto, da chuva de membros e de bebês de que faziam parte, e do terror do destino que se precipitava para eles, vindo lá de baixo, quando mergulharam na fervura a zero grau das nuvens e ficaram imediatamente encharcados e congelados.
Estavam no que parecia um longo túnel vertical. Chamcha, primoroso, rígido e ainda de cabeça para baixo, viu Gibreel Farishta com sua camisasafári roxa, nadando na direção dele pelo funil de nuvens, e podia ter gritado: "Fique longe, longe de mim", mas algo o impediu, o começo de uma espécie de gritinho flauteado em seu intestino, e, portanto, em vez de enunciar palavras de rejeição, abriu os braços, e Farishta nadou para dentro deles até que estavam abraçados, pés com cabeças, a força da colisão fazendo os dois rolarem em saltos estrela geminados ao longo de todo o buraco que ia até o País das Maravilhas; enquanto perfuravam seu trajeto pelo branco passou uma sucessão de formas nebulosas, em incessante metamorfose, deuses virando touros, mulheres virando aranhas, homens virando lobos. Híbridas criaturas de nuvens se lançavam sobre eles, flores gigantes com seios humanos dependurados de caules carnosos, gatos alados, centauros, e Chamcha em sua semiconsciência foi tomado pela ideia de que também ele tinha adquirido a qualidade nebulosa, também ele metamórfico, híbrido, como se estivesse se transformando na pessoa cuja cabeça se aninhava entre suas pernas e cujas pernas enlaçavam seu longo pescoço senhorial.
Essa pessoa não tinha, porém, tempo para tão "altas pretensões"; era, na verdade, inteiramente incapaz de qualquer pretensão; tendo acabado de ver, surgindo do redemoinho de uma nuvem, a figura de uma sedutora mulher de certa idade, usando um sari de brocado verde e ouro, com um diamante na aba do nariz e os cabelos penteados para cima protegidos com laquê contra a pressão do vento naquela altitude, sentada com toda a serenidade sobre um tapete voador. "Rekha Merchant", Gibreel a saudou. "Perdeu o caminho do céu ou o quê?" Palavras pouco sensíveis para se dizer a uma morta! O estado de concussão mergulhatória, porém, pode servir de desculpa para ele...
Chamcha, agarrado a suas pernas, demonstrou incompreensão: "Que diabo?".
"Não está vendo?", Gibreel gritou. "Não está vendo o seu maldito tapete de Bukhara?"
Não, não, Gibo, a voz dela sussurrou no ouvido dele, não espere que ele diga sim. Eu só existo para os seus olhos, talvez você esteja ficando louco, que tal?, seu namaqool, pedaço de excremento de porco, meu amor. A morte traz a franqueza, meu amado, de forma que posso chamar você por seus nomes verdadeiros.
A nebulosa Rekha murmurou ácidas trivialidades, e Gibreel tornou a gritar para Chamcha: "Então, Spoono? Está vendo ou não?".
Saladin Chamcha não via nada, não ouvia nada, não dizia nada. Gibreel enfrentou-a sozinho: "Você não devia ter feito aquilo", censurou. "Não, senhora. Que pecado. Coisa mais feia."
Ah, pode fazer o sermão que quiser agora, ela riu. Você cheio de moralismos, essa é boa. Foi você que me abandonou, a voz dela relembrou no ouvido dele, parecendo mordiscar-lhe o lóbulo. Foi você, oh, lua das minhas delícias, que se escondeu atrás de uma nuvem. E eu no escuro, cega, perdida de amor.
Ele ficou com medo. "O que você quer? Não, não diga, vá embora."
Quando esteve doente eu não podia ver você, para evitar um escândalo, você sabia que eu não podia, e me afastei por sua causa, mas depois você se vingou, usou isso como desculpa para ir embora, como uma nuvem para se esconder. Isso, e ela também, a mulher de gelo. Filho da puta. Agora que morri esqueci como perdoar. Eu maldigo você, meu Gibreel, que a sua vida seja um inferno. Inferno, porque foi para lá que você me mandou, maldito, de lá que você saiu, demônio, e para onde está indo, idiota, aproveite a descida. A maldição de Rekha; e depois disso, versos numa língua que ele não entendia, toda aspereza e sibilos, na qual imaginou entender, mas talvez não, o nome Al-Lat várias vezes repetido.
Agarrou-se a Chamcha; e atravessaram o fundo das nuvens.
Velocidade, a sensação de velocidade voltou, assobiando sua nota apavorante. O teto de nuvens subia, o chão de água vinha em zoom na direção deles, seus olhos se abriram. Um grito, o mesmo grito que tinha flauteado em suas entranhas quando Gibreel nadava pelo céu, explodiu dos lábios de Chamcha; um raio de sol penetrou sua boca aberta e o libertou. Mas eles tinham atravessado as transformações das nuvens, Chamcha e Farishta, e era a fluidez, uma indistinção nos limites dos dois, e quando o sol tocou Chamcha ele liberou mais do que ruído: "Voe", Chamcha gritou para Gibreel. "Comece a voar agora." E acrescentou, sem identificar a fonte, um segundo mandamento: "E cante".
Como a novidade penetra no mundo? Como é que nasce?
De que fusões, transformações, conjunções é feita?
Como sobrevive, extrema e perigosa como é? Que concessões, que acordos, que traições de sua natureza secreta tem ela de fazer para repelir a fúria das multidões, o anjo exterminador, a guilhotina?
Nascer é sempre uma queda?
Anjos têm asas? Homens podem voar?
Quando Mr. Saladin Chamcha caiu das nuvens sobre o canal da Mancha, sentiu o coração cerrado por uma força tão implacável que compreendeu ser-lhe impossível morrer. Depois, quando seus pés estavam de novo plantados com firmeza no chão, ele começaria a duvidar disso, e a atribuir as implausíbilidades do seu trânsito à confusão provocada pela explosão em suas percepções, e a atribuir sua sobrevivência, a sua e a de Gibreel, à mera e cega sorte. Mas, naquele momento, ele não tinha dúvida; o que o dominara era a vontade de viver, não adulterada, irresistível, pura, e a primeira coisa que essa vontade fez foi informá-lo de que não queria ter nada a ver com sua patética personalidade, aquela coisa semi-reconstruída feita de mímica e vozes, que pretendia passar por cima de tudo aquilo, e ele se viu cedendo à vontade de viver, sim, continue, como se fosse um espectador de sua própria mente, de seu próprio corpo, porque a sensação começava no centro mesmo de seu corpo e se espalhava para fora, transformando o sangue em ferro, mudando a carne em aço, só que havia uma outra sensação também, como um punho que o envolvia de fora, prendendo-o de uma forma que era, ao mesmo tempo, insuportavelmente forte e intolerávelmente suave; até que finalmente o dominou por inteiro e podia mover sua boca, seus dedos, o que escolhesse, e ao ter segurança de seu domínio começou a expandir-se para fora de seu corpo até agarrar Gibreel Farishta pelo saco.
"Voe", a força ordenava a Gibreel. "Cante."
Chamcha continuou agarrado a Gibreel até que o outro começou, primeiro devagar, depois com progressiva rapidez e força, a bater os braços.
Mais e mais forte ele batia os braços, e, enquanto batia, uma canção brotou de dentro dele, assim como a canção do espectro de Rekha Merchant, essa também era cantada numa língua que ele não conhecia, com melodia que nunca tinha ouvido. Gibreel jamais repudiava o milagre; ao contrário de Chamcha, que tentava expulsá-lo racionalmente da existência, ele não parava de dizer que o gazal tinha sido celestial, que sem a canção o bater de braços não teria adiantado nada, e que sem o bater de braços com toda a certeza teriam atingido as ondas como pedras ou qualquer outra coisa e simplesmente explodido em pedaços ao fazer contato com a pele esticada do tambor do mar.
E, em vez disso, começaram a ir mais devagar. Quanto mais enfaticamente Gibreel batia os braços e cantava, cantava e batia, mais pronunciada era a desaceleração, até que finalmente os dois estavam flutuando em direção ao canal como pedaços de papel em uma brisa.
Eram os únicos sobreviventes do desastre, os únicos a despencar do Bostan e sobreviver. Foram encontrados atirados numa praia. O mais falante dos dois, o de camisa roxa, jurou, em seu matraquear descontrolado, que tinham caminhado sobre a água, que as ondas os tinham depositado suavemente na costa; mas o outro, em cuja cabeça um chapéu-coco ensopado parecia preso por mágica, negou. "Meu Deus, que sorte tivemos", disse. "Até onde vai a sorte?"
Evidentemente, eu sei a verdade. Eu vi tudo. Quanto a onipresença e potência, não estou pleiteando nenhuma das duas no momento, mas até esse ponto posso ir, acho. Chamcha decidiu assim e Farishta fez o que foi decidido.
Qual dos dois era o milagroso?
De que tipo — angélica, satânica — era a canção de Farishta?
Quem sou eu?
Vamos colocar da seguinte maneira: quem tem as melhores melodias?
Estas foram as primeiras palavras que Gibreel Farishta disse ao despertar na praia inglesa coberta de neve com a improbabilidade de uma estrela-domar ao lado da orelha: "Nascemos de novo, Spoono, você e eu. Feliz aniversário, mister; parabéns a você".
Ao que Saladin Chamcha tossiu, gaguejou, abriu os olhos e, como convém a um bebê recém-nascido, caiu no choro.
Glossário:
Baba — velho santo.
Bhai — irmão.
Bostan — um dos dois paraísos tradicionais do islamismo. O outro é Gulistan.
Gazal — forma poética da Pérsia clássica.
Ho ji! — expressão de entusiasmo usada como refrão de música popular.
Namaqool — (islâmico)
Spoono — palavra forjada a partir de spoon, colher, em inglês, equivalente a chamcha, colher em hindi.
Vilayet — país estrangeiro.
Yaar — amigo.
(Os Versos Satânicos; tradução de Misael H. Dursan)
(Ilustração: Harry Holland – Homeward)
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