terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

THE PRICE OF EXPERIENCE/ O PREÇO DA EXPERIÊNCIA, de William Blake










What is the price of Experience? Do men buy it for a song?
Or wisdom for a dance in the street? No it is bought with the price
Of all that man hath, his house, his wife, his children.
Wisdom is sold in the desolate market where none come to buy
And in the wither'd field where the farmer plows for bread in vain. It is an easy thing to triumph in the summer's sun
And in the vintage and to sing on the waggon loaded with corn.
It is an easy thing to talk of patience to the afflicted,
To speak the laws of prudence to the homeless wanderer
To listen to the hungry raven's cry in wintry season
When the red blood is fill'd with wine and with the marrow of lambs.
It is an easy thing to laugh at wrathful elements
To hear the dog howl at the wintry door, the ox in the slaughter house moan;
To see a god on every wind and a blessing on every blast
To hear sounds of love in the thunder storm that destroys our enemies' house;
To rejoice in the blight that covers his field, and the sickness that cuts off his children,
While our olive and vine sing and laugh round our door, and our children bring fruits and flowers
Then the groan and the dolor are quite forgotten, and the slave grinding at the mill
And the captive in chains and the poor in the prison and the soldier in the field
When the shatter'd bone hath laid him groaning among the happier dead
It is an easy thing to rejoice in the tents of prosperity;
Thus could I sing and thus rejoice: but it is not so with me



Tradução de Orlando Ferreira:




Qual é o preço da experiência? Os homens a compram com uma canção?
Adquirem sabedoria dançando nas ruas? Não, ela é comprada pelo preço
De tudo que um homem possui, sua casa, sua esposa, seus filhos.
A sabedoria é vendida num mercado sombrio onde ninguém vem comprar,
E no campo infecundo que o fazendeiro ara em vão por seu pão.


É fácil triunfar sob o sol do verão
E na colheita cantar na carroça cheia de grão.
É fácil falar de prudência aos aflitos,
Falar das leis da prudência ao andarilho sem teto,
Ouvir o grito faminto do corvo na estação invernal
Quando o sangue vermelho mistura-se ao vinho e ao tutano do cordeiro


É tão fácil sorrir diante da ira da natureza
Ouvir o uivo do cão diante da porta no inverno, e o boi a mugir no matadouro;
Ver um deus em cada brisa e uma bênção em cada tempestade.
Ouvir o som do amor no raio que arrasa a casa do inimigo;
Rejubilar-se diante da praga que cobre seu campo, e da doença que ceifa seus filhos,
Enquanto nossas oliveiras e nosso vinho cantam e riem diante da porta, e nossos filhos nos trazem frutas e flores.


Então o lamento e a dor estão quase esquecidos, bem como o escravo que gira o moinho,
E o cativo acorrentado, o pobre prisioneiro, e o soldado no campo de batalha
Quando os ossos rompidos deixam-no gemendo à espera da morte feliz.
É fácil rejubilar-se sob a tenda da prosperidade:
Eu poderia cantar e me rejubilar deste modo: mas eu não sou assim.




(Ilustração: William Blake - Satan Afflicting Job)



sábado, 23 de fevereiro de 2013

A TATURANA E A PAREDE, de Fernando Reinach






Foi logo no primeiro dia que a taturana entrou no terraço. Espalhado em uma poltrona, tentando ler a coletânea completa dos contos de Ann Beattie, viu a futura borboleta se deslocar pelo piso de pedra mineira. Dois contos mais tarde, lá estava ela subindo pela parede de tijolo. Mais um conto e ela chegou aos caibros do telhado. Contos depois, estava perto do piso. Depois subiu novamente, desceu e subiu.

Com a vista cansada, as pernas duras e as costas doendo, foi caminhar pelo jardim, pensando não nos contos de Beattie, mas no sobe e desce da taturana. Como seria a mente de uma taturana? Por que esse constante subir e descer pela parede? Provavelmente ela imaginou que a parede era uma árvore, subiu para procurar alimento.

Melancólico, concluiu que a casa estava interferindo no ciclo natural das taturanas. Durante milhões de anos, os ancestrais daquela taturana viveram em um mundo em que todos os planos verticais eram caules e troncos de árvores. E no topo de cada uma dessas superfícies verticais estavam as folhas de que necessitava. Pobre taturana, imaginar que uma parede de tijolo possui folhas no seu topo. Morreria de fome.

Voltou para o terraço. Os contos de Beattie estavam lá, mas a taturana havia desaparecido.

Foi na segunda noite, enquanto lia Greenwich Time na mesma poltrona, que um enorme besouro entrou voando no terraço. Bateu na lâmpada e caiu de barriga para cima no piso de pedra mineira. Talvez o fato tivesse passado despercebido se seu filho não tivesse corrido para observar o inseto, que recolhia as asas e agitava as pernas, tentando se colocar de pé. Bastou alguns segundos de observação para o menino concluir que os besouros são incapazes de se virar quando caem de costas e vir comunicar a grande descoberta. Largou o livro e explicou que o besouro só fica imobilizado se cai em uma superfície lisa e plana como o piso do terraço.

Para convencer o filho incrédulo, nada como um experimento. Capturado, o besouro foi levado para o gramado e colocado de ponta-cabeça. Rapidamente, agarrou uma folha e se virou. Enquanto o filho e um amigo repetiam o experimento, levando o besouro da grama ao terraço, testando diferentes superfícies, voltou à poltrona. O terraço no qual gostava tanto de ler não só matava taturanas, mas podia enlouquecer besouros. Selecionados durante milênios para se virar em qualquer ambiente natural, estavam condenados à morte se caíssem de costas nos pisos construídos pelo homem. Não bastavam as paredes, os pisos também eram culpados.

Foi no quinto e último dia que as superfícies verticais voltaram a interromper a leitura dos contos. Logo de manhã, os meninos chegaram ao terraço com as mãos em concha, abrigando um passarinho desacordado. "Ele veio voando e bateu na janela de vidro." Com o pássaro sobre a mesa, ponderaram se ele sobreviveria. Ainda respirava, mas os olhos estavam fechados.

Conformado, explicou para os meninos que no mundo em que os pássaros surgiram não existiam grandes painéis de vidro transparentes, invenção recente do Homo sapiens. Suspirou. Era demais: o vidro que permitia que olhasse as jabuticabeiras estava matando passarinhos. Protegido dos cachorros por uma tela de cobrir bolos e sob a observação dos meninos, alguns contos depois, o pássaro acordou do trauma, ficou de pé, e saiu voando.

No final da tarde, quando achava que terminaria o livro, um grande lagarto, perseguido pelos cachorros, pulou na piscina. Pobre lagarto, sempre soube que para escapar de carnívoros basta correr para a represa ou para um buraco. Mas esta represa de azulejos é cercada de paredes verticais e o lagarto andava pelo fundo, buscando um plano inclinado que o levasse para o raso e finalmente para fora da água.

Inútil, o lagarto nunca havia aprendido a sair de represas com paredes verticais e azulejos lisos. Quase com tédio, explicou aos meninos por que seria necessário resgatar o lagarto com uma peneira de coletar folhas. Resgate feito, sem dúvida o ponto alto dos feriados, voltou aos contos por algumas horas.

O Sol se punha e as malas estavam sendo colocadas no carro. Largou o livro com olhos cansados e foi dar um último passeio. Comeu algumas jabuticabas e pitangas, procurou os micos no topo das árvores e alguma capivara nos arredores da represa. Enquanto refletia como algo tão simples como as superfícies verticais e horizontais de uma casa são suficientes para atrapalhar a vida dos animais, consolou-se com o fato de pelo menos achar que compreendia o que estava acontecendo.

Foi quando se lembrou de que seus ancestrais também não se sentavam em cadeiras, quase imóveis, lendo livros. Talvez isso explicasse a dor nas costas e a vista cansada. Lembrou que seus ancestrais foram selecionados durante centenas de milhares de anos para viver em pequenos grupos, caminhando pela floresta, comendo frutas, caçando e observando a natureza. Talvez isso explicasse por que se sentia alegre naquele final de tarde.

Resignado, concluiu que os seres humanos não foram selecionados ao longo do tempo para passar horas dirigindo de volta para São Paulo em uma estrada congestionada.

Entraram no carro e, quando ligou o motor, percebeu que a crônica que teria de escrever na manhã seguinte já estava pronta. Feliz, encarou a estrada de volta.



(OESP/22 de novembro de 2012)


(Ilustração: Odilon Redon - smiling spider)



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

WHEN YOU ARE OLD / QUANDO FORES VELHA, de William Butler Yeats






When you are old and gray and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face among a crowd of stars.

(Publicado em The Rose, em 1893)

Tradução de José Agostinho Baptista:


Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;


Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;


Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

Tradução de Adriano Nunes:



Quando fores velha e triste e cansada,
E em ordem co' o fogo, pega este livro
E lê lentamente, e lembra o olhar vivo
Que tinhas, e da sombra aprofundada.

Amaram-te dias de graça grácil,
E teu fulgor co' amor falso ou sincero,
Mas amou-te um ser n'alma o destempero,
E as mágoas da tua face volátil.

E curvando-te à grade incandescente,
Murmura, amarga, como o amor fugiu
E seguiu monte acima, a subir sempre
E a face em grupos d'astros encobriu.



Tradução de Bezerra de Freitas:


Quando fores velhinha, de cabelos brancos e cheia de sono,
Cabeleando junto ao fogo, toma este livro,
Lê-o vagarosamente e sonha com o doce brilho
Que teus olhos tinham outrora e com as suas sombras carregadas;


Muitos adoraram os teus instantes de graça juvenil,
E amaram a tua beleza com amor dissimulado ou verdadeiro;
Mas, um homem amou as amarguras que o teu rosto estampava.


E, reclinada sobre as barras incandescentes,
Recordarás, um pouco tristonha, o amor que fugiu
E atravessou as altas montanhas
Ocultando a face por entre miríades de estrelas.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos:


Quando já fores velha, e grisalha, e com sono,
Pega este livro: junto ao fogo, a cabecear,
Lê com calma; e com os olhos de profundas sombras
Sonha, sonha com o teu antigo e suave olhar.

Muitos amaram-te horas de alegria e graça,
Com amor sincero ou falso amaram-te a beleza;
Só um, amando-te a alma peregrina em ti,
De teu rosto a mudar amou cada tristeza.

E curvando-te junto à grade incandescente,
Murmura com amargura como o amor fugiu
E caminhou montanha acima, a subir sempre,
E o rosto em multidão de estrelas encobriu.


Tradução de Paulo Vizoli:


Quando velha e grisalha e exausta ao fim do dia
Tu cabeceares junto ao fogo, vem folhear
Lentamente este livro, e lembra o doce olhar
E as sombras densas que nos olhos teus havia;

Quantos, com falsidade ou devoção sincera,
Amaram-te a beleza e a graça da menina!
Um só, porém, amou tua alma peregrina,
E amou as dores desse rosto que se altera.

E junto às brasas, inclinando-se sobre elas,
Murmura, um pouco triste, como o amor distante
Passou por cima das montanhas adiante
E escondeu sua face entre um milhão de estrelas.


Tradução de Jorge Wanderley:


Quando estiveres grisalha e com sono,
Dormitando ante o fogo, lê meu livro
Bem lentamente e lembra o sensitivo
Olhar que tinhas de suave abandono.

Muitos amaram tuas alegrias,
Tua beleza; mas só num culmina
O amor por tua alma peregrina
E a mágoa que teu rosto pressentia.

Reclina-te ante as chamas; e que ao vê-las
Lamentes, triste Amor - que te deixou
Pelos montes mais altos que encontrou
E o rosto disfarçou entre as estrelas.


Tradução de Áquila Teófilo:


Quando fores velha, cinza e letárgica,
Toma este livro, junto ao fogo, vacilante,
Lê-o lenta, sonhando com o olhar deleitante
Dos olhos de outrora, e suas sombras, trágica;

Muitos teus feitos de doce graça amaram,
E amaram-te bela, em estima falsa ou genuína,
Mas um homem amou em ti a alma peregrina,
E amou as tristezas que o teu rosto mudaram;

E inclinada sobre barras de metal cintilantes,
Murmura, triste, o amor que de ti fugiu
E galgando as altas montanhas partiu
E recolheu o seu rosto nas estrelas abundantes.


Tradução de Ferreira Gullar:


Quando já fores velha e grisalha, e com sono
Cochiles frente ao fogo, abre este livro e lê-o
Com vagar e relembra o olhar que era o teu,
Suave, pleno de sombras, luzes e abandono.

Muitos amaram os teus momentos de alegria,
Outros, fingindo ou não, amaram-te a beleza;
Mas um somente soube amar tua tristeza
E essa alma inquieta que em teu rosto refletia.

E curvando-te junto às brasas mas sem vê-las,
Triste, dirás a ti que o Amor fugira
Para sempre se foi, à montanha subira,
E ocultara afinal seu rosto entre as estrelas.


Tradução de Maverico:


Quando fores grisalha e velha e exausta,
Junto à lareira, pega estes escritos
E, lendo aos poucos, sonha os tão bonitos
Olhos de outrora e a sombra que os contrasta.

Quantos te amaram quando eras menina
E, falsos ou sinceros, teu encanto...
Mas um só amou tua alma peregrina
E a dor de teu rosto que muda tanto...

E se inclinando à brasa incandescente,
Murmure, um pouco triste, Amor que esvai-se
E escala a cordilheira mais à frente
E em meio a mil estrelas vela a face.


Tradução de Pedro Mohallem
:


Quando pesar-te o cinza do cabelos,
Jazendo ao pé do fogo, lentamente
Abre este livro, e encontra o brilho ausente
Dos olhos teus, e as sombras a envolvê-los;

Quantos, de amor falso ou sincero, amaram
O encanto e a graça do alto de teus dias...
Mas um amou-te a alma fugidia,
Teu triste rosto e as linhas que o marcaram;

E, inclinando-te junto das centelhas,
Murmura tristemente o Amor perdido
No cimo de algum monte, ora escondido
Entre a montanha a multidão de estrelas.




(Ilustração: Jean Bally)

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A ARTE DE VANGUARDA CENTRO-EUROPEIA DA ERA DOS CATACLISMOS, de Eric Hobsbawm







A Bauhaus - como mostram seus problemas com políticos hostis a ela - foi considerada profundamente subversiva. E na verdade algum tipo de compromisso político domina as arte "sérias" na Era da Catástrofe. Na década de 1930, chegou até a Grã-Bretanha, ainda um porto seguro de estabilidade social e política em meio à revolução europeia, e aos EUA, distantes da guerra mas não da Grande Depressão. Esse compromisso político não era de modo algum apenas da esquerda, embora os amantes radicais de arte achassem difícil, sobretudo quando jovens, aceitar que gênio criador e opiniões progressistas não andassem juntos. Contudo, especialmente na literatura, opiniões profundamente reacionárias, às vezes traduzidas em práticas fascistas, eram bastante comuns na Europa Ocidental. Os poetas T. S. Eliot e Ezra Pound na Grã-Bretanha e no exílio; William Butler Yeats (1865-1939) na Irlanda. o romancista Knut Hamsun (1859-1952) na Noruega, um apaixonado colaborador dos nazistas; D. H. Lawrence na Grã-Bretanha e Louis Ferdinand Céline na França (!884-1961) são exemplos óbvios. Os brilhantes talentos dos emigrados russos não podem, claro, ser automaticamente classificados como "reacionários", embora alguns deles o fossem, ou assim se tornassem; pois a recusa a aceitar o bolchevismo unia emigrados de opiniões políticas largamente diferentes.

Apesar disso, provavelmente seria seguro dizer que no ambiente da guerra mundial e da Revolução do Outubro, e mais ainda na era de antifascismo das décadas de 1930 e 1940, foi a esquerda, muitas vezes a esquerda revolucionária, que basicamente atraiu a vanguarda. Na verdade, guerra e revolução politizaram vários movimentos de vanguarda não políticos antes da guerra na França e na Rússia. (A maior parte da vanguarda russa, porém, não mostrou qualquer entusiasmo inicial pelo movimento de Outubro.) Como a influência de Lenin trouxe o marxismo de volta ao mundo ocidental, também assegurou a conversão das vanguardas ao que os nacional-socialistas, não incorretamente, chamavam de "bolchevismo cultural" (Kulturbolchewismus). O dadaísmo era a favor da revolução. Seu sucessor, o surrealismo, só tinha problemas para decidir que tipo de revolução, a maioria da seita preferindo Trotski a Stalin. O Eixo Moscou-Berlim, que influenciou tão grande parte da cultura, baseava-se em simpatias comuns. Mies van der Rohe construiu um monumento aos líderes espartaquistas assassinados Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo para o Partido Comunista alemão. Gropius, Bruno Taut (1880-1938), Le Corbusier, Hannes Mayer e toda a "Brigada Bauhaus" aceitaram encomendas soviéticas - verdade que numa época em que a Grande Depressão tornava a URSS não apenas ideológica, mas também profissionalmente atraente para os arquitetos ocidentais. Mesmo o cinema alemão, em essência não muito político, foi radicalizado, como atesta o maravilhoso diretor G. W. Pabst (1885-1967), um homem mais interessado em apresentar mulheres que assuntos públicos, e mais tarde bastante disposto a trabalhar sob os nazistas. Contudo, nos últimos anos de Weimar foi autor de alguns filmes mais radicais, incluindo A ópera dos três vinténs, de Brecht-Weill. 

A tragédia dos artistas modernistas, de esquerda ou direita, foi que o compromisso político muito mais efetivo de seus próprios movimentos de massas e de seus próprios governantes - para não falar de seus adversários - os rejeitaram. Com a parcial exceção do fascismo italiano influenciado pelo futurismo, os novos regimes autoritários da direita e da esquerda preferiam prédios e vistas monumentais anacrônicos e gigantescos, representações edificantes na pintura e na escultura, elaboradas interpretações dos clássicos no palco e ideologia aceitável em literatura. Hitler, claro, era um pintor frustrado que acabou encontrando um jovem arquiteto competente para realizar suas concepções gigantescas, Albert Speer. Contudo, nem Mussolini, nem Stalin, nem o general Franco, os quais inspiraram todos seus próprios dinossauros arquitetônicos, começaram a vida com tais ambições pessoais. Nem a vanguarda alemã, nem a russa, portanto, sobreviveram à ascensão de Hitler e Stalin, e os dois países, na ponta de tudo que era avançado e reconhecido nas artes da década de 1920, quase desapareceram do panorama cultural.

Retrospectivamente, podemos perceber melhor que os contemporâneos o desastre cultural que o triunfo de Hitler e Stalin se revelou, ou seja, como as artes de vanguarda tinham raízes no solo revolucionário da Europa Central e Oriental. O melhor vinho das artes parecia dar nas encostas raiadas de lava dos vulcões. Não era apenas que as autoridade culturais de regimes politicamente revolucionários davam mais reconhecimento oficial, isto é, patrocínio, aos revolucionários artísticos que os conservadores que eles substituíram, mesmo que suas autoridade políticas não mostrassem entusiasmo. Anatol Lunacharsky, o "Comissário para Esclarecimento", estimulava a vanguarda, embora o gosto de Lenin em arte fosse bastante convencional. O governo social-democrata da Prússia, antes de ser expulso do cargo em 1933 (sem resistência) pelas autoridades do Reich alemão, mais de direita, encorajou o maestro radical Otto Klemperer a transformar um dos teatros de ópera de Berlim numa vitrine de tudo que era avançado em música entre 1928 e 1931. Contudo, de uma maneira indefinível, também parece que as épocas de cataclismo aumentaram as sensibilidades, aguçaram as paixões dos que as viveram, na Europa Central e Oriental. A visão deles era dura, sem alegria, e a própria dureza e o senso trágico que a infundiam eram o que às vezes dava a talentos não especialmente destacados uma amarga eloquência denunciatória, por exemplo, B. Traven, um insignificante emigrante boêmio anarquista antes ligado à breve República Soviética de Munique de 1919, que passou a escrever sobre marinheiros e o México (O tesouro de sierra Madre, de Huston e com Bogart, baseou-se nele). Sem isso, ele teria continuado em merecida obscuridade. Quando um artista desses perdia o senso de que o mundo era intolerável, como fez o selvagem satirista alemão George Grosz ao emigrar para os EUA após 1933, restava-lhe apenas sentimentalismo tecnicamente competente.

A arte de vanguarda centro-europeia da era dos cataclismos raramente expressou esperança, embora seus membros politicamente revolucionários estivessem comprometidos com uma visão positiva do futuro, por convicções ideológicas. Suas mais vigorosas realizações, a maioria datando dos anos anteriores à supremacia de Hitler e Stalin - "Não posso pensar no que dizer sobre Hitler", * brincava o grande satirista austríaco Karl Kraus, que a Primeira Guerra Mundial deixara tudo menos mudo (Kraus, 1922) -, brotaram do apocalipse e da tragédia : a ópera Wozzek de Alban Berg (apresentada pela primeira vez em 1926); A ópera dos três vinténs (1928) e Mahagonny (1931), Brecht e Weill; Die Massnahme (1930), de Brecht-Eisler; os contos da Cavalaria vermelha (1926), de Isaac Babel; o filme Encouraçado Potemkim (1925), de Eisenstein; ou Berlin-Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin. Quanto ao colapso do império habsburgo, produziu uma extraordinária explosão de literatura, que foi da denúncia de Os últimos dias da humanidade (1922), de Karl Kraus, passando pela ambígua bufoneria de O bravo soldado Schwejk (1921), até a melancólica lamentação de Radetskymarsch (1932), de Joseph Roth, e a interminável autorreflexão de O homem sem qualidade (1930), de Robert Musil. Nenhum conjunto de acontecimentos políticos do século XX teve um impacto tão profundo sobre a imaginação criadora, embora à sua maneira a revolução e a guerra civil irlandesas (1916-22), com O'Casey, e de um modo mais simbólico a Revolução Mexicana (1910-23), com seus muralistas - mas não a Revolução Russa -, tivessem influenciado as artes em seus respectivos países. Um império destinado a cair como metáfora de uma elite cultural ocidental minada e em desmoronamento ela própria: essas imagens há muito rondavam os escuros desvãos da imaginação centro-europeia. O fim da ordem encontrou expressão nas Elegias de Duíno (1913-23), do grande poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926). Outro escritor de Praga, de língua alemã, apresentou um sentido ainda mais absoluto da incompreensibilidade da situação humana, individual e coletiva: Franz Kafka (1883-1924), cuja obra foi quase toda publicada postumamente.

Essa, pois foi a arte criada

nos dias em que o mundo desabava

nas horas em que fugiam as fundações da Terra

para citar o intelectual clássico e poeta A. E. Housman, que estava longe da vanguarda (Housman, 1988, p. 138). Essa era uma arte com a visão do "anjo da história", que o marxista judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) dizia reconhecer no quadro Angelus novus, de Paul Klee:

O rosto volta-se para o passado. Onde vemos uma cadeia de acontecimentos à nossa frente, ele vê uma única catástrofe, que prossegue amontoando detritos sobre ruínas até chegarem a seus pés. Se ao menos ele pudesse ficar para acordar os mortos e juntar os fragmento do que se quebrou! Mas sopra uma tempestade dos lados do Paraíso, batendo em suas asas com tal força que o Anjo não mais pode fechá-las. Essa tempestade o leva irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o mente de detritos a seus pés chega aos céus. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Benjamin, 1971, pp. 84-5).




(*) "Mir fäll zu Hitler nichts ein." Isso não impediu Kraus, após um longo silêncio, de escrever uma cem páginas sobre o assunto, que no entanto ultrapassou sua compreensão.





(Era dos Extremos - o breve século XX, 1914-1991 - tradução de Marcos Santarrita)



(Ilustração: Paul Klee - angelus novus)








quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

EU NUNCA MAIS TEREI TEU CORPO, de Alex Sartorelli







Eu nunca mais terei teu corpo,
Um rio segue sem esforço
E deságua no mar, o teu rosto
Tão bonito não mais de novo.


Os pássaros não mais cantam
A canção que te acordava.
Recolhem-se sem luz e encanto,
Não veem a noite, a madrugada.


Longa a fuga em que me perco
Na busca da sombra de um cheiro,
Um cheiro que tu não mais exalas.


Sem teu corpo não há sossego:
Ontem acordei mais cedo,
Olhei ao lado e tu não estavas.




(Ilustração: Aaron Coberly)



segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A CONDIÇÃO HUMANA, NO INCÔMODO LIMITE ENTRE O BEM E O MAL, de Anthony Burgess






Sou, por ofício, um romancista. Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro. O romancista faz o tempo passar para você entre uma ação útil e outra; ajuda a preencher os buracos que surgem na árdua trama da existência. É um mero recreador, um tipo de palhaço. Ele faz mímica e gestos grotescos; é patético ou cômico e, às vezes, os dois; ele faz malabarismo com palavras, como se essas fossem bolas coloridas.

O uso que ele faz das palavras não deve ser levado excessivamente a sério. O presidente dos Estados Unidos usa palavras; o médico, o mecânico, o general do Exército ou o filósofo usam palavras; e essas palavras parecem estar relacionadas ao mundo real, um mundo em que impostos precisam ser arrecadados e depois evitados; carros precisam ser dirigidos; doenças, curadas; grandes pensamentos, pensados; batalhas decisivas, travadas. Nenhum criador de enredos ou personagens, por maior que seja, deve ser considerado um pensador sério, nem mesmo Shakespeare. Na realidade, é difícil saber o que o escritor criativo realmente pensa, pois ele se esconde atrás de suas cenas e de seus personagens. E quando os personagens começam a pensar e a expressar seus pensamentos, não se trata, necessariamente, dos pensamentos do escritor. Macbeth pensa uma coisa e Macduff, algo diametralmente oposto; as ponderações do Rei não são as mesmas de Hamlet. Até mesmo o dramaturgo trágico é um palhaço, soprando uma melodia triste em um trombone velho. E então seu ânimo trágico se esgota e ele se torna um bufão, cambaleando por aí e plantando bananeiras. Nada que deva ser levado a sério.

Por vezes, entretanto, um mero recreador como eu pode ser tragado a contragosto para a esfera do pensamento "sério". Ele se vê forçado a dar sua opinião sobre questões profundas. A causa dessa obrigação pode ser um repentino interesse público por um de seus romances - um livro que ele tenha escrito sem considerar profundamente o significado, cujo objetivo era render algum dinheiro para pagar o aluguel, mas que acabou adquirindo uma importância não prevista pelo autor. Ou pode ser um romance em que, graças a uma preocupação ou a um rancor irredutível em relação a algo que acontece no mundo real, o romancista - para seu próprio arrependimento - cria algo menos recreativo do que o normal; algo mais assemelhado a um sermão ou a uma declaração homilética ou didática - e a elaboração de tais coisas não é, na realidade, a função do romancista. No momento, encontro-me escrevendo um livro bastante diferente de qualquer outro que eu tenha escrito, e o motivo pelo qual escrevo não é tanto o interesse público por um de meus romances, mas o interesse público por um filme realizado a partir de um dos meus romances.
Tanto o romance quanto o filme chamam-se Laranja Mecânica (Clockwork Orange). Publiquei o livro pela primeira vez em 1962, e desde aquele ano conquistou leitores nos dois lados do Atlântico, o suficiente para garantir sua contínua impressão. No entanto, dez anos depois de corrigir as provas de gráfica, seu título e conteúdo tornaram-se conhecidos por milhões, não apenas milhares, graças à adaptação cinematográfica bastante fiel feita por Stanley Kubrick. Vi-me convocado, então, a explicar o verdadeiro significado, tanto do livro quanto do filme, em todas as mídias públicas dos Estados Unidos, e também em algumas da Europa, e minha explicação tem sido, mais ou menos, a seguinte.

Primeiramente, o título. Ouvi a expressão "tão estranho quanto uma laranja mecânica" pela primeira vez em um pub londrino, antes da 2.ª Guerra Mundial. Trata-se de uma gíria cockney antiga que se refere a uma esquisitice ou insanidade tão extrema que chega a subverter a natureza - afinal, que noção poderia ser mais bizarra do que uma laranja mecânica? A imagem atraiu-me não somente como algo fantástico, mas também como algo obscuramente significativo; surreal, mas também obscenamente real. O casamento forçado de um organismo com um mecanismo; de uma coisa com vida, que amadurece, é doce, suculenta, com um artefato frio e morto - seria apenas um conceito assustador? Descobri a relevância dessa alegoria para o século 20 quando, em 1961, comecei a escrever um romance sobre curar a delinquência juvenil. Li em algum lugar que seria uma boa ideia liquidar o impulso criminoso por meio de terapia de aversão; fiquei estarrecido. Comecei a investigar as implicações dessa noção em um breve trabalho de ficção. O título Laranja Mecânica parecia estar ali, esperando para se vincular ao livro: era o único nome possível.

O herói, tanto do livro quanto do filme, é um jovem delinquente chamado Alex. Dei-lhe esse nome por causa de seu caráter internacional (você não veria um rapaz inglês ou russo chamado Chuck ou Butch), e também graças às suas conotações de ironia. Alex é uma redução cômica de Alexandre, o Grande, talhando seu caminho pelo mundo e conquistando-o. Mas Alex se torna o conquistado - impotente, mudo. Ele fazia sua própria lei (a lex); torna-se uma criatura sem uma lex e sem léxico. Os trocadilhos ocultos, claro, não se relacionam com o verdadeiro significado do nome Alexandre, que é "defensor dos homens".

No início do livro e do filme, Alex é um ser humano dotado, talvez exageradamente, de três características que consideramos atributos essenciais do homem. Ele se deleita com o uso de uma linguagem articulada e até inventa uma nova forma de comunicação (a esta altura, ele está longe de ser aléxico); ele ama a beleza, que encontra, acima de tudo, na música de Beethoven; ele é agressivo. Com seus companheiros - menos humanos do que ele, pois não dão importância à música - ele aterroriza as ruas de uma grande cidade, à noite. Essa cidade poderia ser qualquer uma, mas eu a visualizei como uma espécie de amálgama entre minha nativa Manchester, Leningrado e Nova York. A época poderia ser qualquer uma, mas é, essencialmente, o hoje. Alex e seus amigos roubam, mutilam, estupram, vandalizam; acabam matando. O jovem anti-herói é preso e punido, mas punição não é suficiente para o Estado. Como a prisão não é um inibidor muito eficiente para o crime, o Home Office ou o Ministério do Interior introduz uma forma de terapia de aversão que garante, em apenas duas semanas, eliminar propensões criminosas para sempre.

Alex, em sua inocência, abraça a oportunidade de ser "curado". Ele tem tanta fé na indestrutibilidade de sua própria libido que se considera mais do que um desafio para os especialistas em comportamento do Estado. Injetam-lhe uma substância que provoca náusea extrema, e a deflagração da náusea é deliberadamente associada a violentos. Em pouco tempo, ele não consegue ver cenas de violência sem se sentir desesperadamente enjoado. Fazer amor era, para ele, apenas um aspecto da agressão; portanto, até mesmo observar uma parceira sexual desejável desperta a náusea avassaladora. Ele é forçado a andar por uma corda bamba de "bondade" imposta. A sociedade fica satisfeita e mal pode esperar por um milênio livre do crime.

Mas homens não são máquinas, afinal, e o limite entre um impulso humano e outro é sempre difícil. O tratamento de Alex consistiu em assistir a filmes violentos e sentir a náusea induzida. Tais filmes empregaram trilhas sonoras de música sinfônica como "amplificadores emocionais". Após seu tratamento, o delinquente reformado descobre que não consegue mais ouvir Beethoven sem se sentir desesperadamente doente. O Estado foi longe demais: invadiu uma região além de seu pacto com os cidadãos; fechou para sua vítima um universo de belezas amorais, a visão de ordem paradisíaca que grandes peças musicais transmitem. Perturbado por uma gravação da Nona Sinfonia, Alex tenta cometer suicídio, causando perplexidade e despertando compaixão entre os elementos liberais da sociedade; Alex, então, é submetido a uma terapia hipnopédica que o restaura à sua condição "livre" anterior. Despedimo-nos de Alex enquanto ele sonha com novos e mais elaborados métodos de agressão. A intenção era a de um final feliz.

O que tentei argumentar, com o livro, era o fato de que é melhor ser mau a partir do próprio livre-arbítrio do que ser bom por meio de lavagem cerebral científica. Quando Alex tem o poder da escolha, opta apenas por violência. Entretanto, existem outras áreas de escolha, como ilustra seu amor pela música. Na edição inglesa do livro (mas não na norte-americana, tampouco no filme), há um epílogo que mostra Alex crescendo, aprendendo a desgostar de seu antigo estilo de vida, pensando no amor como algo maior do que uma forma de manifestar violência; até mesmo imaginando-se como marido e pai. Tal caminho sempre esteve aberto; ele, enfim, opta por segui-lo. Antes uma laranja podre, ele agora se preenche com algo mais próximo da doçura humana decente.

Liberdade de escolha é mesmo tão importante? O homem é capaz disso? O termo "liberdade" tem algum significado intrínseco? São questões que preciso perguntar e tentar responder. Devo registrar que fui ridicularizado e criticado por expressar meus receios em relação ao poder do Estado moderno - seja na Rússia, na China ou na que poderíamos chamar de Anglo-América - de reduzir a liberdade individual. A literatura já denunciou esse poder em livros como Brave New World (Admirável Mundo Novo), de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, mas pessoas "sensatas", que não se comovem muito com textos criativos, garantem que há pouco com o que se preocupar. O livro Beyond Freedom and Dignity (O Mito da Liberdade), de B. F. Skinner, foi lançado na mesma época em que Laranja Mecânica surgiu nas telas, pronto para demonstrar as vantagens do que poderíamos chamar de lavagem cerebral benéfica. Nosso mundo está em má situação, diz Skinner, com os problemas das guerras, da poluição ambiental, da violência civil, da explosão demográfica. O comportamento humano precisa mudar - isso, diz ele, é autoevidente, e poucos discordariam - e, para tanto, precisamos de uma tecnologia para o comportamento humano. Podemos deixar de fora desta equação o homem interior, o homem que encontramos quando discutimos com nós mesmos, o ser oculto que se preocupa com Deus, com a alma e com a realidade absoluta. Precisamos enxergar o homem de fora, considerando especialmente o que leva uma característica do comportamento humano transferir-se de um indivíduo para outro. A abordagem behaviorista do homem, da qual o professor Skinner é um grande expoente, prega que ele é levado a vários tipos de ações por estímulos de aversão e não aversão. Medo do chicote fazia o escravo trabalhar; medo da demissão ainda faz o escravo do salário trabalhar. São tais reforços negativos para a ação que o professor Skinner condena; o que ele deseja ver são reforços positivos. Você ensina truques a um animal de circo não por meio da crueldade, mas da bondade. (...)

Com os estímulos positivos certos - aos quais respondemos não de maneira racional, mas por meio de nossos instintos condicionados -, todos nós poderemos nos tornar cidadãos melhores, submissos a um Estado cujo objetivo maior é o bem-estar da comunidade. Não devemos, diz tal argumento, temer o condicionamento. Precisamos ser condicionados para salvar o ambiente e a raça. Mas precisa ser condicionamento do tipo certo.

Segundo o discurso skinneriano, é o tipo errado de condicionamento que transforma o herói de Laranja Mecânica em um nauseado modelo de não agressão. O fato de eu mesmo considerar qualquer tipo de condicionamento um erro deve ser atribuído, imagino, à força da tradição religiosa na qual fui educado. Eu fui, pode-se dizer, condicionado por ela, mas minha consciência aprova as convicções que sinto em meu âmago. Minha família é de Lancashire, um condado ao Norte do Reino Unido que foi uma fortaleza da fé católica. A Reforma Protestante, que transformou a Inglaterra no que ela é hoje, nunca chegou a Lancashire ou, caso tenha chegado, o fez de maneira suave e moderada, nas infiltrações pacíficas dos períodos mais tolerantes que seguiram as sangrentas imposições dos Tudors. O tipo de protestantismo que floresceu na época de Cromwell e criou uma nova estirpe de mercadores burgueses era calvinista. Predestinação era seu eixo doutrinal. O homem não teria arbítrio sobre a própria salvação; seu estado futuro havia sido predeterminado por Deus.

O catolicismo rejeita uma doutrina que parece enviar alguns homens arbitrariamente ao Paraíso, e outros, de maneira não menos arbitrária, para o Inferno. Seu destino, diz a teologia católica, está em suas mãos. Não há nada que o impeça de pecar, se você quiser pecar; ao mesmo tempo, não há nada que o impeça de se aproximar dos canais de graça divina que são a garantia de sua salvação. O fato de duas doutrinas opostas - a do livre-arbítrio e a da predestinação - poderem coexistir na mesma fé religiosa requer explicação. Primeiramente, há a onisciência de Deus. Se Deus sabe tudo, Ele sabe se eu serei condenado ou salvo: meu destino derradeiro foi, digamos, reservado desde o início dos tempos. Mas se Deus dá ao homem o poder da livre escolha, poderia parecer que Ele está deliberadamente renunciando à Sua consciência sobre o que o homem fará com esse poder. Um Deus onisciente e onipotente, em um gesto de amor pelo homem, limita tanto Seu poder quanto Seu conhecimento. (...)

Todos nós poderíamos concordar com o professor Skinner: uma sociedade bem governada e condicionada é algo excelente para uma nova raça - uma espécie de homem racionalmente convencida da necessidade de ser condicionada, desde que o condicionamento seja baseado em recompensas, não em punições. Mas não somos essa nova raça, e teimamos em não ser nada além do que somos. (...)

Poder-se-ia considerar o princípio do mal no âmbito da conduta em que a destruição de um organismo não é intencional. É errado forçar crianças a consumir drogas, mas poucos negariam que é, também, maldade: a capacidade de autodeterminação daquele organismo está sendo prejudicada. Mutilar é maldade. Atos de agressão são maldosos, apesar de sermos propensos a encontrar fatores atenuantes no espírito passional da vingança ("um tipo de justiça selvagem", definiu Francis Bacon) ou no desejo de proteger os outros de esperados, senão praticados, atos de violência. Todos nó guardamos, na imaginação ou na memória, imagens do mal em que não há sequer um sopro de atenuação - quatro jovens sorridentes torturando um animal, um estupro em gangue, vandalismo a sangue frio. Aparentemente, o condicionamento forçado de uma mente, por melhor que seja a intenção social, é maldade.



(OESP/10 de novembro de 2012; Copyright The Clockwork Condition -A Condição Mecânica -  © The Estate of Anthony Burgess; tradução de Henrique B. Szolnoky)


(Ilustração: foto do filme Clockwork Orange, sem indicação de autoria)



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A FLOR DO MARACUJÁ, de Catullo da Paixão Cearense







Encontrando-me com um sertanejo  
Perto de um pé de maracujá 
Eu lhe perguntei:  
Diga-me caro sertanejo  
Porque razão nasce roxa  
A flor do maracujá? 
Ah, pois então eu lhi conto  
A estória que ouvi contá 
A razão pro que nasci roxa  
A flor do maracujá 
Maracujá já foi branco  
Eu posso inté lhe ajurá 
Mais branco qui caridadi  
Mais brando do que o luá 
Quando a flor brotava nele  
Lá pros cunfim do sertão 
Maracujá parecia  
Um ninho de argodão 

Mais um dia, há muito tempo  
Num meis que inté num mi alembro  
Si foi maio, si foi junho  
Si foi janero ou dezembro  
Nosso sinhô Jesus Cristo  
Foi condenado a morrer 
Numa cruis crucificado  
Longe daqui como o quê 
Pregaro Cristo a martelo  
E ao vê tamanha crueza  
A natureza inteirinha  
Pois-se a chorá di tristeza  
Chorava us campu  
As foia, as ribera  
Sabiá também chorava  
Nos gaio a laranjera  
E havia junto da cruis  
Um pé de maracujá 
Carregadinho de flor 
Aos pé de nosso sinhô 
I o sangue de Jesus Cristo  
Sangui pisado de dô 
Nus pé du maracujá  
Tingia todas as flor 
Eis aqui seu moço 
A estoria que eu vi contá 
A razão proque nasce roxa  
A flor do maracujá. 



(Ilustração: flor de maracujá; foto da internet com autoria identificada na imagem)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

EL LIBRO DE PREGUNTAS/ O LIVRO DAS PERGUNTAS, de Pablo Neruda









¿ És verdad que las esperanzas deben regarse con rocío ?
¿ Porque Colón no pudo descubrir la España ?
¿ Y a quién le sonrie el arroz com infinitos dentes blancos ?
¿ Quiénes gritaran de alegría cuando nació el color azul ?
¿ Trabajan la sal y el azúcar construyendo una blanca torre ?
¿ Cómo se llama una flor que vuella de pájaro en pájaro ?
¿ Y cuando el preso pensa en la luz és la misma que te ilumina ?
¿ A quiém pudo perguntar que vine hacer en este mondo ?
¿ Sufre más el que espera siempre que aquél que nunca esperó a nadie ?
¿ Quién era aquella que te amó en el sueno ?
¿ Donde está el niño que yo fue ? ¿ Sigue adentro de mi, o se fue ?
¿ Y como se llama ese mes entre Deciembre y Enero ? (Decenero ?)
¿Porque sin razón llora la lluvia su alegría ?
¿ Porque, si todos los rios son dulces, de donde saca sal el mar ?
¿ Hay algo más tonto en la vida que tener amor por alguién ?


Versão de Eduardo Diatahy B. de Menezes:



É verdade que as esperanças devem regar-se com orvalho?
Por que Colombo não pôde descobrir a Espanha?
E a quem sorri o arroz com infinitos dentes brancos?
Quais os que gritaram de alegria quando nasceu a cor azul?
Trabalham o sal e o açúcar construindo branca torre?
Como se chama uma flor que voa de pássaro em pássaro?
E quando o preso pensa na luz é a mesma que te ilumina?
A quem pude perguntar que veio fazer neste mundo?
Sofre mais o que espera sempre que aquele que jamais esperou por ninguém?
Quem era aquela que te amou no sonho?
Onde está o menino que eu fui? Permanece dentro de mim ou se foi?
E como se chama esse mês entre Dezembro e Janeiro? (Dezeneiro?)
Por que sem razão chora a chuva sua alegria?
Se todos os rios são doces, de onde extrai sal o mar?
Há algo mais tolo na vida que ter amor por alguém?


(Ilustração: Peter Fendi - Die Lauscherin - 1833)



sábado, 2 de fevereiro de 2013

A FÍSICA DO SUSTO, de Cassiano Ricardo





]
O espelho caiu da parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede meu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.


(Ilustração: Dalí - apparition of face and fruit dish on a beach)