sábado, 28 de novembro de 2020

CANTATA DE DIDO, de Pedro António Correia Garção

 








Já no roxo oriente branqueando,

As prenhes velas da troiana frota

Entre as vagas azuis do mar dourado

Sobre as asas dos ventos se escondiam.

A misérrima Dido,

Pelos paços reais vaga ululando,

C'os turvos olhos inda em vão procura

O fugitivo Eneias.

Só ermas ruas, só desertas praças

A recente Cartago lhe apresenta;

Com medonho fragor, na praia nua

Fremem de noite as solitárias ondas;

E nas douradas grimpas

Das cúpulas soberbas

Piam nocturnas, agoureiras aves.

Do marmóreo sepulcro

Atónita imagina

Que mil vezes ouviu as frias cinzas

De defunto Siqueu, com débeis vozes,

Suspirando, chamar: – Elisa! Elisa!

D'Orco aos tremendos numens

Sacrifícios prepara;

Mas viu esmorecida

Em torno dos turícremos altares,

Negra escuma ferver nas ricas taças,

E o derramado vinho

Em pélagos de sangue converter-se.

Frenética, delira,

Pálido o rosto lindo

A madeixa subtil desentrançada;

Já com trémulo pé entra sem tino

No ditoso aposento,

Onde do infido amante

Ouviu, enternecida,

Magoados suspiros, brandas queixas.

Ali as cruéis Parcas lhe mostraram

As ilíacas roupas que, pendentes

Do tálamo dourado, descobriam

O lustroso pavês, a teucra espada.

Com a convulsa mão súbito arranca

A lâmina fulgente da bainha,

E sobre o duro ferro penetrante

Arroja o tenro, cristalino peito;

E em borbotões de espuma murmurando,

O quente sangue da ferida salta:

De roxas espadanas rociadas,

Tremem da sala as dóricas colunas.

Três vezes tenta erguer-se,

Três vezes desmaiada, sobre o leito

O corpo revolvendo, ao céu levanta

Os macerados olhos.

Despois, atenta na lustrosa malha

Do prófugo dardânio,

Estas últimas vozes repetia,

E os lastimosos, lúgubres acentos,

Pelas áureas abóbadas voando

Longo tempo depois gemer se ouviram:



«Doces despojos,

Tão bem logrados

Dos olhos meus,

Enquanto os fados,

Enquanto Deus

O consentiam,

Da triste Dido

A alma aceitai,

Destes cuidados

Me libertai.



«Dido infelice

Assaz viveu;

D'alta Cartago

O muro ergueu;

Agora, nua,

Já de Caronte,

A sombra sua

Na barca feia,

De Flegetonte

A negra veia

Surcando vai.



(Antologia Poética)



(Ilustração: escultura de Augustin Cayot - 1667-17772:  Dido´s death)

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

FOLIAS CLERICAIS, de Reinaldo Moraes

 




O jornalista italiano Carmelo Abbate é especializado em produzir matérias investigativas sobre temas de relevância social, tais como trabalho clandestino, as agruras da imigração, os descalabros no sistema de saúde, o comércio do sexo e outras ciladas e sinucas que afetam os pobres, desvalidos e incautos em seu país. Muitas vezes Abbate se disfarça de objeto de seu estudo, virando imigrante marroquino, paciente da rede pública, trabalhador clandestino, ator pornô, e por aí vai, para melhor escarafunchar os dramas que pretende revelar ao público. Seu último trabalho, o livro-reportagem Sex and the Vatican — viaggio segreto nel regno dei casti (O sexo e o Vaticano — viagem secreta ao reino dos castos), que tem provocado não pouco buchicho nos meios católicos, traz revelações desconfortáveis sobre o comportamento sexual dos servos da Igreja num país ainda muito carola e conservador, pelo menos de fachada, como a Itália. 

Abbate se infiltrou no mundo íntimo do Vaticano através de um amigo homossexual que tinha lhe contado uma história curiosa iniciada numa sauna gay, em Roma. Ali, o amigo trepou com um francês radicado na Itália que, logo a seguir, se revelaria padre, e não qualquer padreco, e sim um dos sacerdotes que rezavam missa de manhã na Basílica de São Pedro, templo magno do catolicismo no Ocidente. E quando esse amigo gay do Abbate contou-lhe que planejava ir a uma festinha de embalo no apê do tal padre francês, o jornalista não teve dúvida: pediu pra ir junto, posando de namorado liberal do amigo. Foi e levou a fatídica câmera oculta com a qual, sabe-se lá como, gravou uma bela suruba clerical. Ele só não conta o seu grau de participação na suruba, se ajoelhou e rezou, etc. e tal. O que interessa é que “lá estavam muitos prelados”, em suas palavras. Prelados e de mão no bolso, eu diria, no meu irrefreável trocadilhismo. Ali tinha início uma investigação sobre a vida sexual dos supostos castos da Igreja católica, que iria durar um ano inteiro. 

E o que apurou, no geral, a bisbilhotice jornalística do Abbate, que deixou mais de um prelado em palpos de aranha pelado dentro da batina? Nada de muito novo ou original, ao meu ver. Basicamente que tem um monte de padre que faz sexo à vontade, gays e héteros, dentro e fora dos muros do Vaticano, sendo que muitos levam vida dupla, mantendo mulher e filhos em alguma quebrada mais ou menos discreta. Há relatos de surubas rotineiras também, como aquela da qual o autor participou. E não é raro, diz Abbate, que os servos de Cristo, ao gerarem rebentos indesejados em seus relacionamentos com mulheres, acabem batendo às portas dos aborteiros pra se livrar do estorvo, não raro por insistência do bispo ao qual devem obediência. E, claro, não faltam sacerdotes que se atolam no crime hediondo da pedofilia, como lemos a toda hora nos jornais. Ou seja, a turma da batina tende a agir segundo seus desejos carnais, da mesma forma que nós outros, integrantes do rebanho laico e por vezes ateu do Senhor. 

Uma das fontes secundárias de Abbate é um estudo do psiquiatra Richard Sipe, ex-monge beneditino, apontando que 25% dos padres americanos tiveram relações com mulheres e outros 20% praticaram o amor que não ousa dizer seu nome. Quer dizer, tirando uns 5% de bissexuais, que estão cá e lá nas estatísticas, concluímos que pelo menos uns 40% do clero americano já botou a genitália e a anália pra rockar e rollar fora da batina. 

Na Alemanha, outro pesquisador do assunto, ex-padre excomungado, aponta que, dos dezoito mil servidores da Igreja atuantes no país, um terço vive com uma mulher. Difícil resistir ao impulso de deduzir que pelo menos outro terço ande às voltas com homens na cama. Já no Brasil, como informa a matéria que eu li no UOL, o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) apontou que 41% dos clérigos confessaram já ter tido relações não canônicas com membros e membranas dos incautos fiéis que se aproximaram demais da conta deles. 

A espada moralista do Abbate pende, enfim, sobre uma instituição que prega a castidade como virtude cristã para todos e valor absoluto para os servos de Deus, e que sempre condenou o homossexualismo, o sexo fora do casamento e o aborto. As revelações sobre a vida privada dos castos, já se vê, não combinam muito com tal ideário. Castos um cazzo! E se necessário fosse dar mais uma voltinha no parafuso, o autor poderia acrescentar, numa próxima edição do seu livro, um dado curioso que em tudo combina com as revelações bombásticas que estão lá. É que o Instituto do Vinho da Califórnia acaba de publicar uma pesquisa apontando o país com maior consumo per capita de vinho do mundo. 

Qual você acha que é? A França? Não, essa vem em quinto lugar. Também não é a Itália nem Portugal, e sim o Vaticano, cidade-estado situada dentro de Roma. Os oitocentos castos que ali vivem consomem nada menos que setenta e quatro litros de vinho por pessoa ao ano, o que dá uma média de cento e cinco garrafas de 750 ml. A Itália vem apenas em nono lugar, com 37,6 litros per capita, a metade do vinho consumido no Vaticano. De fato, nada como um vinhozinho pra acompanhar uma boa sacanagem. O velho Baco já sabia disso alguns séculos antes de Cristo. 

A questão, em todo caso, é antiga. Gilberto Freyre, em seu Casa-Grande & Senzala, cravou: “O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.” 

Na mesma época, o século XVI, Pietro Aretino (1492-1556), poeta (Sonetos luxuriosos), puxa-saco de papas e reis, chantagista da nobreza e libertino em tempo integral, escreveu os Raggionamenti (Tertúlias), traduzido no Brasil como Pornólogos, por J.M. Bortolote (Editora De Gustar), livrinho difícil de achar, mas uma iguaria para os amantes da boa sacanagem erudita. Nele, a narradora, a Nanna, conta sua vida como freira, esposa e puta, nessa ordem. Embora obra de ficção, é difícil supor que um homem esperto e observador como Aretino não tivesse se inspirado nas práticas correntes nas famílias abastadas e nos monastérios da Renascença italiana para compor suas historietas safadas. 

Nanna conta como, ainda bela e fresca donzela, foi encaminhada pela família a um convento para se entregar aos braços de Deus. Depois de acolhida num lauto banquete de boas-vindas, com padres e freiras mandando ver nas finas viandas e no generoso vinho, Nanna ganha seu kit de noviça, do qual consta um consolo de vidro oco, feito em Murano, dentro do qual se injetam líquidos quentes, como a própria urina da usuária. É com esse cazzo artificial morninho que ela mesma se desvirgina enquanto espia um animado frade “cravar a vara pelos fundos da padaria” da abadessa do convento. Logo em seguida, já livre do incômodo da virgindade, Nanna é abordada por um piedoso vigário “que me fez três vezes, modéstia à parte, duas à antiga e uma à moderna”, sendo que essa modalidade moderna do fazer sexual é a mesma que Nanna viu a abadessa experimentar pelos fundos de sua “padaria”. Aliás, o tempo todo na história de Nanna os ardorosos membros do clero e demais serviçais do convento, uma vez “satisfeitos com o primeiro bocado da cabra, queriam ainda o cabrito”. Tá certo. Um cabritinho, de vez em quando, sempre cai bem. 

A Renascença italiana era mesmo pródiga em putarias clericais e os exemplos históricos abundam (e abucetam e acaralham). Há não muito tempo, uma editora brasileira lançou uma (porno)graphic novel desenhada pelo italiano Milo Manara, com texto do chileno Alejandro Fodorowsky — ops, Jodorowsky —, relatando as façanhas políticas e sexuais de Rodrigo Bórgia (1431-1503), que virou Alexandre VI, tido como o papa mais devasso da história. O papa-papão papava de coroinhas a cardeais, de princesas a criadinhas, com fé inabalável em seu santo taco. Teve pelo menos sete filhos conhecidos. Um deles era a bela e igualmente devassa Lucrécia Bórgia, que deixaria qualquer Paris Hilton no chinelo. Dizem que dava umas comparecidas até debaixo do baldaquim do leito papal. Ou seja, mandava bala com o próprio papi papa, com quem teve um baby — ao mesmo tempo filho e neto do sumo pontífice. Não havia ainda paparazzi em Roma naqueles tempos, mas os satiristas de plantão, um certo Filofila à frente, não lhe davam trégua. Filofila chegou a escrever que “a filha do papa adora copular. Pode ser com irmão, pai, poeta, cachorro, bode e até macaco”. E, ao que consta nos anais (e também nos vaginais) da história, nada disso era nenhum grande exagero ou novidade. 

Não foi à toa, pois, que Petrarca (1304-1374), o criador da forma soneto, chamava o Vaticano de “Babilônia infernal, cárcere indecente onde nada é sagrado. Habitação de gente de peitos de feno, ânimo de pedra e vísceras de fogo”. Que as coisas não se passem de forma muito diferente por lá, hoje em dia, não deveria espantar muita gente, a julgar pelo livro do Abbate. Os “castos” do Vaticano, já se vê, além das aspas, pedem igualmente uma profilática camisinha benta. Quanto ao Carmelo Abbate, que se declara católico e gostaria de ver a Igreja modernizada e moralizada, deve ter sido uma experiência catártica tripudiar sobre a proverbial hipocrisia dos servos de Deus, que praticam o nobre e laico esporte na vida privada e vomitam virtudes e ameaças aos pecadores do púlpito. Me senti eu mesmo o meu tanto vingado com o trabalho do Abbate. De família católica, com uma ala feminina carola composta por mãe, avó e tias que não perdiam missa aos domingos e dias santos, vivi na infância e primeira adolescência sob o manto de uma vigilante repressão sexual defumada em incenso de igreja. Entre o “catecismo” do Carlos Zéfiro e o sem aspas da Santa Madre Igreja meu pau balançava. Saltei fora dessa masmorra mental aos dezesseis anos, quando mandei a turma da batina às favas e passei a acreditar piamente em sexo — e ele em mim, nos melhores dias. Como Aretino, dei uma grossa banana “a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que eles não podem ver o que mais os deleita”. 

Ecco! Deleitemo-nos, pois, seguindo o pio exemplo dos catsos, ops, castos do Vaticano. 



(O cheirinho do amor, crônicas safadas



(Ilustração: Heinrich Lossow - el pecado)



domingo, 22 de novembro de 2020

CRÔNICA VIII – DA TRANSFIGURAÇÃO NECESSÁRIA, de Ruy Apocalypse

 





Que as horas chorem fora das vidraças,

construindo seus musgos sobre os mastros

de velhos casarios alumbrados

e derradeiras praças penitentes.



Que os bairros mais burgueses alinhavem

suas rendas de chá, em velhas xícaras.

Que o sono seja grande e seja amargo

aos que amaram o amor, perdendo a sorte...

para que tudo nasça das ideias

que os ventos espalharam nas migalhas

de luzes e de carnes assombradas.



Do amanhã, outras vozes serão vindas;

e do agora, outros céus serão nascidos,

além do olhar das lâmpadas caídas.





(Ilustração: Giuseppe Pellizza da Volpedo - estudo para il quarto stato)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

VOU VER A LÚCIA!, de José de Alencar

 




A corte tem mil seduções que arrebatam um provinciano aos seus hábitos, e o atordoam e preocupam tanto, que só ao cabo de algum tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de sua pessoa. 

Assim me aconteceu. Reuniões, teatros, apresentações às notabilidades políticas, literárias e financeiras de um e outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e jantares obrigados; tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada no Rio de Janeiro. Depois desse tributo pago à novidade, conquistei os foros de cortesão e o direito de aborrecer-me à vontade. 

Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição de um homem que não sabe o que fazer. Li os anúncios dos jornais; escrevi à minha família; participei a minha chegada aos amigos; e por fim ainda me achei com uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente. Acendi o charuto; e através da fumaça azulada, lancei uma vista pelos dias decorridos. « Lembrar-se é viver outra vez» , diz o poeta. 

De repente caiu-me um nome da memória. Achara em que empregar a manhã. 

— Vou ver a Lúcia. 

Depois da festa da Glória tinha-a encontrado algumas vezes, mas sem lhe falar. Lembro-me de uma manhã em casa do Desmarais. Lúcia passava, parou na vidraça e entrou para comprar algumas perfumarias; o seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu ter-me visto. Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto que deixara a minha decepção, tiraram-me a vontade de a cumprimentar; contudo conservei o chapéu na mão todo tempo que esteve na loja. Quando escolhia alguns vidros de extratos, mostraram-lhe um que ela repeliu com um gesto vivo e um sorriso irônico: 

— Flor de laranja!. . . É muito puro para mim! 

Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma profunda cortesia disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto habitual de faceirice feminina. 

Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha visita a um camarote durante o último intervalo, e conversando reparei na insistência com que me examinava um binóculo da segunda ordem. Da pessoa que o fitava só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher. Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção, e pareceu-me reconhecer nela a indiscreta luva cor de pérola e o curioso instrumento que me perseguira com o seu exame. 

Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e confesso que vestindo-me sentia algumas apreensões sobre a recepção que me esperava; não há nada que mais vexe do que a posição de um homem solicitando da memória rebelde da pessoa a quem se dirige um reconhecimento tardio. 

Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas apenas falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e fez-me o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil futilidades, que nos ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a graça natural com que se exprimia. 

O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente, sem nenhuma afetação pretensiosa. 

Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais ousado, desde que tem no coração o instinto da delicadeza, não se anima a amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a fraqueza da mulher. Se a resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve rubescência que veste a beleza como de um santo esplendor, influem mágico respeito. Isto, quando se ama; quando a atração irresistível da alma emudece os escrúpulos e as suscetibilidades. O que não será pois quando apenas um desejo ou um capricho passageiro nos excita? Então, ousar é mais do que uma ofensa; é um insulto cruel. 

Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou quarta vez, teria certamente a coragem de falar-lhe do que sentia; se quisesse fingir um amor degradante, acharia força para mentir; mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moca uma ideia talvez falsa; e receava seriamente que uma frase minha lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de indignar-se, nem o consolo que deve dar a consciência de uma virtude rígida. 

Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como do seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me parecia claro; mas se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra. 

E continuávamos a conversar tranquilamente de mil coisas, menos daquela que me tinha levado à sua casa. Não posso repetir-lhe todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as minhas lembranças algum fragmento dele. 

— Há muito tempo que está no Rio de Janeiro? perguntou-me Lúcia depois de uma pausa. 

— Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no dia em que a encontrei pela primeira vez. 

— Ah! no mesmo dia?... 

Acabava de desembarcar. 

— Mas naquela tarde, lembro-me... o senhor estava fumando. Se quer, pode acender o seu charuto; não me incomoda. 

Recusei por delicadeza. 

— Veio passear? Demora-se pouco naturalmente. 

— Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a ficar. 

— De uma vez? 

— Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre; preciso fazer uma carreira; e a corte oferece-me outros recursos, que não encontro em Pernambuco. 

— Ah! é filho de Pernambuco?... Que bonita cidade que é o Recife! Como são lindos aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do Uchoa e da Soledade!.. 

— Já esteve no Recife! Em que época? 

— Faz dois anos. 

— Em 1853... Devo tê-la visto alguma vez! Nesse tempo era eu estudante e conhecia todas as moças bonitas da cidade. 

— Então já vê que não me podia conhecer! Demais, estive apenas uma tarde. O vapor pouco se demorou. 

— Donde vinha? 

— Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num carro, e fui passear. Vinte dias embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade das árvores e dos campos de minha terra, que eu não via há oito meses! Que passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que bordam as margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranquila e sossegada que se devia viver naquele retiro. 

— A senhora me faz saudades de minha terra. Lembrei-me de minha casa, e das tardes em que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe e minha irmã. 

— O senhor tem mãe e irmã! Como deve ser feliz! disse Lúcia com sentimento. 

— Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe sorrindo. E minha mãe ainda é muito moça para que eu tivesse a desgraça de a haver perdido. 

— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão bom a gente sentir-se amada sem interesse! 

Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei sem ter arriscado um gesto ou uma palavra duvidosa. 

— Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu. 

— Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha visita não lhe aborrece, voltarei outro dia. 

— Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim? 

E apertou-me a mão cordialmente. 

Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e cinco anos e os meus escrúpulos extravagantes, que estive para voltar. Como podia eu temer um engano, depois do que sabia dessa mulher? 

Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa, onde costumava jantar. Estava ainda muito viva a lembrança do que me sucedera naquela manhã para não aproveitar a ocasião de falar-lhe a respeito, tendo porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na pequena comédia. 

— Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe. 

— Não; há muito tempo que não a encontro. 

— Tu a conheces bem, Sá? 

— Ora! Intimamente! 

— Tens toda a certeza de que ela seja o que me disseste na Glória? 

— E esta! Pois duvidas?. . . Vá à casa dela; já te apresentei. 

— Supunha que fosse apenas uma dessas mocas fáceis, a quem contudo é preciso fazer a corte por algum tempo. 

— O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da lua, Paulo. Queres saber como se faz a corte à Lúcia?... Dando-lhe uma pulseira de brilhante, ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein. 

— Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a há dias, e a sua conversa, os seus modos, pareceram-me tão sérios! 

— Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como da primeira vez; e lhe fizeste duas ou três barretadas. Essas borboletas são como as outras, Paulo; quando lhes dão asas, voam, e é bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me, é deixá-las arrastarem-se pelo chão no estado de larvas. A Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância. 

Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto. 



(Lucíola



(Ilustração: Kiéra Malone) 






segunda-feira, 16 de novembro de 2020

THE SOLDIER / O SOLDADO, de Rupert Brooke

 







If I should die, think only this of me:



That there's some corner of a foreign field

That is for ever England. There shall be

In that rich earth a richer dust concealed;

A dust whom England bore, shaped, made aware,

Gave once her flowers to love, her ways to roam;

A body of England's, breathing English air,

Washed by the rivers, blest by suns of home.

And think, this heart, all evil shed away,

A pulse in the eternal mind, no less

Gives somewhere back the thoughts by England given;

Her sights and sounds; dreams happy as her day;

And laughter, learnt of friends; and gentleness,

In hearts at peace, under an English heaven.



Tradução de Abgar Renault:



Se eu acaso morrer, de mim pensai somente: 



há um recanto, lá numa terra estrangeira,

que há de ser a Inglaterra, eterna, eternamente.

Nessa terra tão rica, - escondida, uma poeira

mais rica existirá, que a Inglaterra fez,

e modelou, e a que deu alma, e a que, uma vez,

deu flores para amar, caminhos onde errar,

um corpo da Inglaterra, aspirando o ar inglês,

que os rios banham e abençoa a luz solar.

De todo mal despido, este meu coração,

que no espírito eterno agora é pulsação,

restitui à Inglaterra, enfim, os pensamentos

que ela lhe deu: suas paisagens e seus sons,

sonhos felizes como o esplendor do seu dia;

e o riso que a amizade ensina, e a palidez,

nos corações em paz, por sob um céu inglês.




Tradução de Gustavo Gouveia:



Se eu morrer, apenas isto pense de mim: 



Que algum lugar de um campo estrangeiro

Será para sempre Inglaterra. Que assim,

Naquele rico solo, um pó mais rico é prisioneiro;

Um pó que a Inglaterra gerou, moldou, fez consciente,

Deu suas flores amadas, seus caminhos andados,

Um corpo inglês, o ar da Inglaterra respirando inocente,

Banhado pelos rios, pelos sóis da terra natal abençoado.

E pense, este coração, limpo de maldades vazias,

Um pulso na mente eterna, nada menos com certeza

Gera algures os pensamentos pela Inglaterra dados;

Seus lugares e ares; sonhos felizes como seus dias;

E risos, aprendidos de amigos; e a delicadeza,

Sob o céu da Inglaterra, em corações pacificados.





(Ilustração: Laura Knight - spring 1916-20)



sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O QUE É A FILOSOFIA? UMA CARTA PARA SOFIA AMUNDSEN, de Jostein Gaarder





Cara Sofia! Há muitas pessoas que têm diversos “hobbys”. Algumas colecionam moedas antigas ou selos, outras fazem trabalhos manuais, outras ainda dedicam quase todo o tempo livre a uma modalidade desportiva. 

Muitos gostam de ler. Mas aquilo que lemos pode variar muito. Há quem leia apenas jornais ou banda desenhada, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre os mais variados temas como a astronomia, a vida selvagem ou as descobertas técnicas. 

Se estou interessado em cavalos ou pedras preciosas, não posso exigir que todos os outros partilhem deste interesse. Se me sento em frente à televisão encantado com todos os programas esportivos, tenho de aceitar que outros possam achar o esporte aborrecido. 

Haverá alguma coisa que interesse a toda a gente? 

Haverá alguma coisa que diga respeito a todas as pessoas, independentemente do que são e do lugar do mundo onde vivem? Sim, cara Sofia, há questões que dizem respeito a todos os homens. E neste curso trata-se precisamente dessas questões. 

Qual a coisa mais importante na vida? Se o perguntarmos a alguém num país com o problema da fome, a resposta é: a comida. Se pusermos esta questão a alguém que esteja com frio, nesse caso a resposta é: o calor. E se perguntarmos a uma pessoa que se sinta muito sozinha a resposta será certamente: a companhia de outras pessoas. 

Mas admitindo que todas estas necessidades estão satisfeitas — será que resta alguma coisa de que todos os homens precisam? Os filósofos acham que sim. 

Segundo eles, o homem não vive apenas do pão. É evidente que todos os homens precisam comer. Todos precisam de amor e de atenção, mas há algo mais de que todos os homens precisam. Precisamos descobrir quem somos e porque é que vivemos. Interessarmo-nos pela razão da nossa existência não é um interesse ocasional, como o interesse em colecionar selos. 

Quem se interessa por tais problemas, preocupa-se com tudo aquilo que os homens discutem desde que apareceram neste planeta. A questão acerca da origem do universo, do globo terrestre e da vida é mais vasta e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos. 

A melhor maneira de nos iniciarmos na filosofia é colocar perguntas filosóficas: 

Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como podemos encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como deveríamos viver? Estas perguntas foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo. As perguntas filosóficas que podemos colocar não são muitas mais. Já colocamos algumas das mais importantes. 

A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada uma destas perguntas. 

Por isso, é mais fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar a sua resposta. 

Mesmo hoje, cada um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não podemos saber se Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a enciclopédia. A enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que outros homens pensaram pode, no entanto, ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria concepção da vida e do mundo. 

A busca da verdade pelos filósofos pode ser talvez comparada a um romance policial. Alguns pensam que Andersen é o assassino, outros pensam que é Nielsen ou Jepsen. Talvez o verdadeiro mistério deste crime possa ser um dia esclarecido subitamente pela polícia. Podemos também pensar que a polícia nunca conseguirá resolver o enigma. Mas este tem, no entanto, uma solução. 

Mesmo quando é difícil responder a uma pergunta, é possível imaginar que a pergunta possa ter uma — e apenas uma — resposta correta. 

Ou há uma forma de vida após a morte ou não. 

Muitos enigmas antigos foram, entretanto, resolvidos pela ciência. Outrora, o aspecto da face oculta da Lua era um grande mistério. Não se podia descobrir a resposta através da discussão, e assim era deixada à imaginação de cada um. Mas hoje em dia sabemos exatamente qual é o aspecto da face oculta da Lua. Já não podemos acreditar que haja um homem vivendo na lua, ou que ela seja um queijo. 

Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender. O homem acha tão estranho viver, que as perguntas filosóficas surgem por si mesmas. 

Pensa no que sucede quando observamos um truque de magia: não conseguimos perceber como é possível aquilo que estamos a ver. E perguntamo-nos: como é que o ilusionista conseguiu transformar dois lenços brancos de seda num coelho vivo? 

Para muitos homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira subitamente de uma cartola até então vazia. No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou. 

Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho branco é apenas o fato de o coelho não saber que participa num truque de magia. Conosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado. 

P.S.: No que diz respeito ao coelho branco, o melhor é talvez compará-lo com o conjunto do universo. Nós, que vivemos aqui, somos parasitas minúsculos que vivem na pele do coelho. Mas os filósofos procuram subir pelos pelos finos, de modo a poderem fixar nos olhos o grande ilusionista. 



(O mundo de Sofia – romance da história da filosofia; tradução de Leonardo Pinto Silva) 



(Ilustração: Almeida Júnior -1850-1899 - caipira picando fumo,1893)




terça-feira, 10 de novembro de 2020

THE ROAD NOT TAKEN / A ESTRADA NÃO TRILHADA, de Robert Frost

 




Two roads diverged in a yellow wood,

And sorry I could not travel both

And be one traveler, long I stood

And looked down one as far as I could

To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,

And having perhaps the better claim,

Because it was grassy and wanted wear;

Though as for that the passing there

Had worn them really about the same,



And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black.

Oh, I kept the first for another day!

Yet knowing how way leads on to way,

I doubted if I should ever come back.



I shall be telling this with a sigh

Somewhere ages and ages hence:

Two roads diverged in a wood, and I-

I took the one less traveled by,

And that has made all the difference.





Tradução de Renato Suttana:





Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,

mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.

Assim, por longo tempo eu ali me detive,

e um deles observei até um longe declive

no qual, dobrando, desaparecia…



Porém tomei o outro, igualmente viável,

e tendo mesmo um atrativo especial,

pois mais ramos possuía e talvez mais capim,

embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,

os tivesse marcado por igual.



E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos

de folhas que nenhum pisar enegrecera.

O primeiro deixei, oh, para um outro dia!

E, intuindo que um caminho outro caminho gera,

duvidei se algum dia eu voltaria.



Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,

nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:

a estrada divergiu naquele bosque – e eu

segui pela que mais ínvia me pareceu,

e foi o que fez toda a diferença.



(Ilustração: Gustave Doré - Inferno)



sábado, 7 de novembro de 2020

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ATEÍSTA, de Antonio Vides Júnior

 





“Era uma vez um casal de ateus que tinha uma filha de seis anos. Um dia, durante uma briga, o marido matou a mulher e depois se matou com um tiro na cabeça, tudo na frente da criança...” 

Não importa como continua a história. Nós, ateus, conhecemos a sua moral. Fomos criados sob esses preconceitos. A maior parte de nós não nasceu ateísta nem teve pais ateus, ao contrário da infeliz historinha acima. Nascemos na maior nação cristã do mundo, somos batizados e sabemos o pai-nosso (com minúscula mesmo) de cor. 

A moral cristã é impiedosa com os ateus. Nossa imagem não goza de status social e, invariavelmente, somos considerados estranhos e pecaminosos. É a nossa herança. Revoltadas, legiões de ateus se formam para proclamar sua aversão aos preceitos cristãos e da Igreja. O que é isso? Guerra? 

A crença no além está enraizada na sociedade. Não podemos odiar aqueles que creem. Estaremos odiando nossos pais e irmãos. “Mas como vamos combater esse preconceito com a nossa filosofia?” perguntarão alguns. Não vamos. Em vez disso, vamos encarar o problema de frente e mostrar a eles que nossa filosofia é, antes de tudo, baseada na humildade. 

É difícil ser ateu. Encaramos a morte com olhos aterrorizados. A despeito de todos saberem que ela é inevitável, nós a encaramos como o fim de tudo. Não esperamos nada do além-túmulo. Não estamos indo ao encontro a deus ou a eternidade. Quando nos apaixonamos, não esperamos viver no paraíso ao lado de nossas esposas ou maridos. Tornar-se-á célebre a frase de Ann Druyan, viúva de Carl Sagan, um dos ateus mais respeitáveis dessa geração, ao falar da despedida do marido, no leito de morte: “Nenhum apelo a Deus, nenhuma esperança sobre uma vida pós-morte, nenhuma pretensão que ele e eu, que fomos inseparáveis por vinte anos, não estávamos dizendo adeus para sempre.” São palavras terríveis, mas sabemos que são verdade. Sabemos. A consciência ateísta, quando surge, nos eleva a uma percepção única. Passamos a enxergar a vida como a areia da ampulheta, que escorre inexoravelmente pela fenda. Não importa o quão correta tenha sido sua vida, no fim, a morte reina absoluta. 

“Pessimista!”, gritam alguns frente a estas verdades. Já estamos acostumados. Somos ateus, percebemos nossa limitação. Somos feitos de carne e osso. Dúvidas quanto a isso? Cientistas já decifraram o código genético, não temos mais segredos. Até agora, nem sinal de um espírito. Estamos vazios. 

Ora, retire do cristão a promessa da vida eterna. De que adiantaria, então, seguir os passos do Senhor? A religião está impregnada da relação oferta-procura: “Eu sou bonzinho, o Senhor me dá a vida eterna. Sou humilde, por isso viverei para sempre”. Se a promessa da vida eterna fosse arrancada do Homem, este se revoltaria contra deus. Viveríamos num universo burlesco e trágico, onde os crentes tornar-se-iam os ateus da historinha acima. Ainda assim, é difícil afirmar que a crença em Deus está associada à ignorância. Conheço pessoas bastante inteligentes de todas as religiões. A questão é mais profunda do que isso. Está ligada ao resto de instinto de sobrevivência que temos. 

Nossos ancestrais hominídeos eram caçados por animais maiores. Quase sempre, a morte era sangrenta e violenta. Desenvolvemos um medo natural por ela. Tínhamos medo de muitas coisas. Tínhamos medo da escuridão quando o Sol morria no horizonte ou quando as montanhas rugiam, soltando fumaça. Divinizamos aqueles fenômenos, não podíamos explicá-los, pois éramos pouco mais que macacos enormes e desengonçados, aprendendo a explorar suas potencialidades. Chorávamos quando tínhamos que abandonar um membro doente na migração do inverno ou quando nossos velhos eram expulsos da aldeia por não servirem mais ao trabalho. Não havia enterros e, talvez, nem piedade. 

Estabelecemos morada para os deuses no alto das montanhas e no fundo do mar. Quando subimos ao cume das montanhas e cruzamos o oceano em toscos barcos de junco, empurramos os deuses para outras esferas. Nossos aviões nunca atropelaram um anjo, nunca encontramos um par de chifres enterrados no quintal de casa. Arrebatados para o “céu” ou o inferno, os deuses nunca mais foram acessíveis. Hoje, são vistos apenas em igrejas, por um número seletíssimo de escolhidos que têm a sorte de ver, mas nunca a chance de registrar. 

Com o surgimento da tecnologia, tornaram-se fontes de luz ou sombras, receberam explicações espirituais complicadas e teorias esotéricas profundas e claras como um bueiro. Não precisamos disso. A humanidade tem criado seus pesadelos, mas também tem realizado sonhos sociais, materiais, divinos. Cientistas, no século XX, fizeram mais pela Humanidade (esta sim, com maiúscula) que deus fez em toda sua história. Empurramos a presença de deus cada vez mais para o fundo do poço. Não rezamos mais para curar as doenças. O papel de deus diminui a olhos vistos. Aprendemos a creditar nossos problemas à nossa incompetência ou ignorância, já não existem demônios a assombrar nossos feitos. 

Essa é a verdadeira essência da humildade. Sabermos nosso papel na história do desenvolvimento humano, a consciência do fim cada vez mais próximo. A semelhança entre o Homem e o peixinho que ele cria no aquário é de 98% em ordem genética. Não há divindade no nosso nascimento, não há milagres no cotidiano. 

A revelação da humildade chega ao ateu quando este encara, pela primeira vez, a inigualável sensação de livrar-se da culpa da religião, do pecado natural. Não precisamos de religião para aprender a humildade. Quando encaramos nossas limitações, ela surge naturalmente. Ficamos assombrados pela nossa ignorância e pela impotência frente a todo conhecimento. Aprendemos que até o matuto tem a nos ensinar. 

Talvez a religião ainda seja um mal necessário. Quando deixarmos de ser julgados pelos crentes, talvez possamos expor nossas idéias com clareza. Neste dia, a humildade poderá florescer entre os homens, fundamentada em princípios humanos, e não em fantasias envolvendo deuses e demônios. Será um tempo, então, onde todos poderão considerar-se irmãos, pois ninguém esperará mais da vida do que seu semelhante. 



(Fonte: Sociedade da Terra Redonda) 



(Ilustração: Georges de la Tour) 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

AVERNO / AVERNO, de Louise Glück




 

1.

You die when your spirit dies.

Otherwise, you live.

You may not do a good job of it, but you go on —

something you have no choice about.

When I tell this to my children

they pay no attention.

The old people, they think —

this is what they always do:

talk about things no one can see

to cover up all the brain cells they’re losing.

They wink at each other;

listen to the old one, talking about the spirit

because he can’t remember anymore the word for chair.

It is terrible to be alone.

I don’t mean to live alone —

to be alone, where no one hears you.

I remember the word for chair.

I want to say — I’m just not interested anymore.

I wake up thinking

you have to prepare.

Soon the spirit will give up —

all the chairs in the world won’t help you.

I know what they say when I’m out of the room.

Should I be seeing someone, should I be taking

one of the new drugs for depression.

I can hear them, in whispers, planning how to divide the cost.

And I want to scream out

you’re all of you living in a dream.

Bad enough, they think, to watch me fall apart.

Bad enough without this lecturing they get these days

as though I had any right to this new information.

Well, they have the same right.

They’re living in a dream, and I’m preparing

to be a ghost. I want to shout out

the mist has cleared —

It’s like some new life:

you have no stake in the outcome;

you know the outcome.

Think of it: sixty years sitting in chairs. And now the mortal spirit

seeking so openly, so fearlessly —

To raise the veil.

To see what you’re saying goodbye to.



2.

I didn’t go back for a long time.

When I saw the field again, autumn was finished.

Here, it finishes almost before it starts —

the old people don’t even own summer clothing.

The field was covered with snow, immaculate.

There wasn’t a sign of what happened here.

You didn’t know whether the farmer

had replanted or not.

Maybe he gave up and moved away.

The police didn’t catch the girl.

After awhile they said she moved to some other country,

one where they don’t have fields.

A disaster like this

leaves no mark on the earth.

And people like that — they think it gives them

a fresh start.

I stood a long time, staring at nothing.

After a bit, I noticed how dark it was, how cold.

A long time — I have no idea how long.

Once the earth decides to have no memory

time seems in a way meaningless.

But not to my children. They’re after me

to make a will; they’re worried the government

will take everything.

They should come with me sometime

to look at this field under the cover of snow.

The whole thing is written out there.

Nothing: I have nothing to give them.

That’s the first.

The second is: I don’t want to be burned.



3.

On one side, the soul wanders.

On the other, human beings living in fear.

In between, the pit of disappearance.

Some young girls ask me

if they’ll be safe near Averno —

they’re cold, they want to go south a little while.

And one says, like a joke, but not too far south —

I say, as safe as anywhere,

which makes them happy.

What it means is nothing is safe.

You get on a train, you disappear.

You write your name on the window, you disappear.

There are places like this everywhere,

places you enter as a young girl

from which you never return.

Like the field, the one that burned.

Afterward, the girl was gone.

Maybe she didn’t exist,

we have no proof either way.

All we know is:

the field burned.

But we saw that.

So we have to believe in the girl,

in what she did. Otherwise

it’s just forces we don’t understand

ruling the earth.

The girls are happy, thinking of their vacation.

Don’t take a train, I say.

They write their names in mist on a train window.

I want to say, you’re good girls,

trying to leave your names behind.



4.

We spent the whole day

sailing the archipelago,

the tiny islands that were

part of the penisula

until they’d broken off

into the fragments you see now

floating in the northern sea water.

They seemed safe to me,

I think because no one can live there.

Later we sat in the kitchen

watching the evening start and then the snow.

First one, then the other.

We grew silent, hypnotized by the snow

as though a kind of tubulence

that had been hidden before

was becoming visible,

something within the night

exposed now —

In our silence, we were asking

those questions friends who trust each other

ask out of great fatigue,

each one hoping the other knows more

and when this isn’t so, hoping

their shared impressions will amount to insight.

Is there any benefit in forcing upon oneself

the realization that one must die?

Is it possible to miss the opportunity of one’s life?

Questions like that.

The snow was heavy. The black night

transformed into busy white air.

Something we hadn’t seen revealed.

Only the meaning wasn’t revealed.



5.

After the first winter, the field began to grow again.

But there were no more orderly furrows.

The smell of the wheat persisted, a kind of random aroma

intermixed with various weeds, for which

no human use has been as yet devised.

It was puzzling — no one knew

where the farmer had gone.

Some people thought he died.

Someone said he had a daughter in New Zealand,

that he went there to raise

grandchildren instead of wheat.

Nature, it turns out, isn’t like us;

it doesn’t have a warehouse of memory.

The field doesn’t become afraid of matches,

of young girls. It doesn’t remember

furrows either. It gets killed off, it gets burned,

and a year later it’s alive again

as though nothing unusual has occured.

The farmer stares out the window.

Maybe in New Zealand, maybe somewhere else.

And he thinks: my life is over.

His life expressed itself in that field;

he doesn’t believe anymore in making anything

out of earth. The earth, he thinks,

has overpowered me.

He remembers the day the field burned,

not, he thinks, by accident.

Something deep within him said: I can live with this,

I can fight it after awhile.

The terrible moment was the spring after his work was erased,

when he understood that the earth

didn’t know how to mourn, that it would change instead.

And then go on existing without him.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:




1.

Você morre quando seu espírito morre.

Caso contrário, você vive.

Você talvez não lide bem com isso, mas continua –

você não tem nenhuma escolha.

Quando digo isso a meus filhos

eles não prestam atenção.

Os velhos, pensam eles –

é isso o que fazem sempre:

falar sobre coisas que ninguém pode ver

para encobrir todos os neurônios que estão perdendo.

Piscam um para o outro;

escute a velha, falando de espírito

por não mais se lembrar da palavra para cadeira.



É terrível estar só.

Não me refiro a viver só –

estar só, onde ninguém escuta você.



Lembro-me da palavra para cadeira.

Quero dizer – não mais estou interessada.



Acordo pensando

você tem de se preparar.

Logo o espírito vai desistir –

todas as cadeiras do mundo não irão ajudar você.



Sei o que dizem quando estou fora da sala.

Eu deveria procurar alguém, eu deveria estar tomando

um dos novos remédios para depressão.

Posso ouvi-los, aos sussurros, planejando como dividir os custos.

E eu quero gritar

vocês todos vocês estão vivendo em um sonho.

Já é ruim, pensam eles, ver-me cair aos pedaços.

Já é ruim sem esses sermões diários que eles ouvem

como se eu tivesse algum direito a essa nova informação.



Bem, eles têm o mesmo direito.

Eles estão vivendo em um sonho, e eu estou me preparando

para ser um fantasma. Eu quero gritar



a névoa se dissipou –

É como uma nova vida:

você não tem interesse no resultado;

você sabe o resultado.



Pense nisto: sessenta anos sentada em cadeiras. E agora o espírito mortal

buscando tão sem rodeios, tão sem receios –



Levantar o véu.

Ver a quê você está dizendo adeus.



2

Não voltei por muito tempo.

O outono havia terminado quando vi o campo de novo.

Aqui, ele termina quase antes de começar –

os idosos nem mesmo possuem roupas de verão.



O campo estava coberto de neve, imaculado.

Não havia nenhum vestígio do que aconteceu aqui.

Você não sabia se o fazendeiro

havia replantado ou não.

Talvez ele tenha desistido e se mudado.



A polícia não prendeu a jovem.

Pouco depois, disseram que ela se mudara para outro país,

algum onde não tenham campos.



Um desastre como esse

não deixa marcas na terra.

E pessoas como aquelas – elas pensam que isso lhes oferece

um novo recomeçar.



Permaneci por muito tempo, fitando o nada.

Um instante depois, percebi que estava muito escuro, muito frio.

Há muito tempo – não tenho ideia desde quando.

Se a terra decide não ter memória

de certo modo o tempo parece não ter sentido.



Mas não para meus filhos. Andam atrás de mim

para que eu faça um testamento; estão cismados de que o governo

levará tudo.



Deveriam vir comigo algum dia

para ver esse campo sob a crosta de neve.

A história toda está escrita lá fora.



Nada: não tenho nada a lhes dar.



Essa é a primeira parte.

A segunda é: não quero ser cremada.



3.

Em um lado, a alma vagueia.

No outro, seres humanos vivendo com medo.

Entre eles, o fosso da desesperança.



Algumas garotas me perguntam

se estarão seguras próximo ao Averno –

Estão com frio, querem seguir mais um pouco rumo ao sul.

E uma diz, fazendo piada, mas não muito ao sul –



Digo, tão seguro quanto qualquer lugar,

o que as deixa felizes.

O que isso quer dizer é que nada é seguro.



Você toma um trem, você desaparece.



Você escreve seu nome na janela, você desaparece.

Há lugares como esses por toda parte,

lugares nos quais você entra como uma jovem

e deles não volta mais.



Como o campo, aquele que queimou.

Em seguida a jovem desapareceu.

Talvez ela não tenha existido,

de qualquer modo não temos nenhuma prova.



Tudo o que sabemos é:

o campo queimou.

Mas nós vimos aquilo.



Então nós temos de acreditar na jovem,

no que ela disse. De outro modo

são apenas forças que não compreendemos

governando a terra.



As garotas estão felizes, pensando em suas férias.

Não tomem o trem, eu digo.



Escrevem seus nomes no vidro enevoado do trem.

Quero lhes dizer, vocês são boas garotas,

tentando deixar seus nomes para trás.



4.

Passamos todo o dia

navegando pelo arquipélago,

pelas ilhas minúsculas que eram

parte da península



até que se despedaçaram

nos fragmentos que você vê agora

flutuando na água do mar do norte.



Elas me pareciam seguras,

penso que em razão de ninguém conseguir viver lá.

Mais tarde nos sentamos na cozinha

observando o início do anoitecer e depois a neve.

Primeiro uma, depois a outra.



Permanecemos em silêncio, hipnotizadas pela neve

como se uma espécie de turbulência

que antes estivera oculta

estivesse se tornando visível,



algo dentro da noite

por fim se revela –



Em nosso silêncio, estamos nos fazendo

aquelas perguntas que amigos que confiam um no outro

fazem após grande fadiga,

um esperando que o outro saiba mais.



E quando assim não é, esperando

que as impressões partilhadas levem a uma súbita compreensão.



Há algum proveito em impormos a nós mesmos

a percepção de que devemos morrer?

É possível deixar passar a oportunidade de nossa vida?



Perguntas como essa.



A neve caía pesada. A noite negra

transmutada em agitado ar esbranquiçado.



Algo que não víramos desvelado.

Porém o significado não foi desvelado.



5.

Após o primeiro inverno, o campo começou a germinar.

No entanto, não mais havia sulcos alinhados.

O cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma aleatório

mesclado com ervas variadas, para as quais

nada de útil aos humanos fora até então encontrado.



Foi intrigante – ninguém sabia

para aonde o fazendeiro fora.

Alguns pensaram que ele morrera.

Alguém disse que ele tinha uma filha na Nova Zelândia,

para aonde fora criar

netos em vez trigo.



A natureza, diga-se, não é como nós;

ela não possui um armazém de lembranças.

O campo não passa a ter medo de fósforos,

de garotas. Muito menos se lembra

de sulcos. Ele é aniquilado, queimado,

e depois de um ano está vivo de novo

como se nada invulgar houvesse acontecido.



Da janela o fazendeiro fixa a distância.

Talvez na Nova Zelândia, talvez em algum outro lugar.

E pensa: minha vida se acabou.

Sua vida se expressou naquele campo;

ele não mais acredita em poder extrair algo

da terra. A terra, ele pensa,

derrotou-me.



Lembra-se do dia em que o campo queimou,

não por acaso, ele pensa.

Algo em seu íntimo profundo disse: posso viver com isso,

Posso enfrentar isso depois de um tempo.



O momento terrível foi a primavera após a devastação de seu trabalho,

quando compreendeu que a terra

não sabia como se lamentar, que em vez disso ela mudaria.

E seguiria existindo sem ele.



Tradução de Piero Euben:




1

Você morre quando seu espírito morre.

Caso contrário, você vive.

Você pode não fazer um bom trabalho, mas você continua –

algo sobre o qual você não tem escolha.



Quando eu digo isso a meus filhos

eles não prestam atenção.

Os velhos, eles pensam –

isso é o que eles sempre fazem:

falar sobre coisas que ninguém pode ver

para cobrir todas as células cerebrais que estão perdendo.

Eles piscam um para o outro;

escutando o velho, falar sobre o espírito

porque ele não consegue se lembrar mais da palavra para cadeira.



É terrível ficar sozinho.

Eu não pretendo viver sozinha –

estar sozinha, onde ninguém te ouve.



Lembro-me da palavra para cadeira.

Quero dizer – eu só não estou mais interessada.



Eu acordo pensando

você tem que se preparar.

Logo o espírito vai desistir –

todas as cadeiras do mundo não vão te ajudar.



Eu sei o que dizem quando estou fora da sala.

Devo estar vendo alguém, devo estar tomando

um dos novos medicamentos para a depressão?

Posso ouvi-los, em sussurros, planejando como dividir o custo.



E eu quero gritar

vocês todos estão vivendo em um sonho.



Já é ruim, eles pensam, me ver desmoronar.

Já ruim o suficiente sem esse sermão que eles ganham hoje em dia

como se eu tivesse qualquer direito a essas novas informações.



Bem, eles têm o mesmo direito.



Eles estão vivendo em um sonho, e eu estou me preparando

para ser um fantasma. Eu quero gritar



a névoa se dissipou –

É como uma nova vida:

você não tem interesse no resultado;

você sabe o resultado.



Pense nisso: sessenta anos sentado em cadeiras. E agora o espírito mortal

buscando tão abertamente, tão destemidamente –



Levantar o véu.

Ver do que você está se despedindo.



2

Eu não voltei por um longo tempo.

Quando voltei a ver o campo, o outono tinha acabado.

Aqui, termina quase antes de começar –

os idosos nem mesmo possuem roupas de verão.



O campo estava coberto de neve, imaculado.

Não havia sinal do que aconteceu aqui.

Você não sabia se o fazendeiro

replantou ou não.

Talvez ele tenha desistido e se mudou.



A polícia não pegou a garota.

Depois de um tempo, eles disseram que ela se mudou para outro país,

onde não há campos.



Um desastre como este

não deixa marcas na terra.

E pessoas assim – acham que isso lhes dá

um novo começo.



Fiquei muito tempo olhando para o nada.

Depois de um tempo, percebi como estava escuro, e frio.



Há muito tempo – não tenho ideia de quanto tempo.

Uma vez que a terra decide não ter memória

o tempo parece de certo modo sem sentido.



Mas não para meus filhos. Eles estão atrás de mim

para fazer um testamento; eles estão preocupados que o governo

pegue tudo.



Eles deveriam vir comigo algum dia

para olhar este campo coberto de neve.

A coisa toda está escrita lá.



Nada: não tenho nada para dar a eles.



Essa é a primeira parte.

A segunda é: não quero ser queimada.



3.

De um lado, a alma vagueia.

Por outro, seres humanos vivem com medo.

No meio, o poço do desaparecimento.



Algumas meninas me perguntam

se eles estarão seguros perto de Averno –

eles estão com frio, eles querem rumar para o sul um pouco.

E alguém diz, como uma piada, mas não muito ao sul –



Eu digo, tão seguro quanto em qualquer lugar,

o que os deixa felizes.

O que isso significa é que nada é seguro.



Você entra em um trem, e desaparece.

Você escreve seu nome na janela, e desaparece.



Existem lugares como este em todos os lugares,

lugares em que você entra quando jovem

e que você nunca retorna.



Como o campo, aquele que ardeu.

Depois disso, a garota se foi.

Talvez ela não existisse,

não temos provas de todo modo.



Tudo o que sabemos é:

o campo queimou.

Mas nós vimos isso.



Então temos que acreditar na garota,

no que ela fez. De outra forma

são apenas forças que não entendemos

governando a terra.



As meninas estão felizes pensando nas férias.

Não pegue um trem, eu digo.



Elas escrevem seus nomes em névoa na janela de um trem.

Eu quero dizer, vocês são boas meninas,

tentando deixar seus nomes para trás.



4.

Passamos o dia inteiro

navegando no arquipélago,

as minúsculas ilhas que eram

parte da península



até que elas se separaram

nos fragmentos que você vê agora

flutuando na água do mar do norte.



Elas pareciam seguras para mim,

Acho que porque ninguém pode morar lá.



Mais tarde nos sentamos na cozinha

vendo a noite começar e depois a neve.

Primeiro uma, depois a outra.



Ficamos em silêncio, hipnotizadas pela neve

como se fosse uma espécie de turbulência

que antes estava escondida

e agora se tornando visível,



algo dentro da noite

exposto agora –



Em nosso silêncio, estávamos nos perguntando

aquelas perguntas amigas que confiam umas nas outras

pedindo para sair da enorme fatiga,

cada uma esperando que a outra saiba mais



e quando não for assim, esperando que

suas impressões compartilhadas resultarão em intuição.



Há algum benefício em se forçar

a compreensão de que se deve morrer?

É possível perder a oportunidade da vida?



Perguntas assim.



A neve estava pesada. A noite negra

transformada em agitado ar branco.



Algo que não tínhamos visto revelado.

Apenas o significado não foi revelado.



5.

Depois do primeiro inverno, o campo voltou a crescer.

Mas não havia mais sulcos ordenados.

O cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma aleatório

misturado com várias ervas daninhas, para as quais

nenhum uso humano ainda foi inventado.



Foi intrigante – ninguém sabia

onde o fazendeiro tinha ido.

Algumas pessoas pensaram que ele morreu.

Alguém disse que ele tinha uma filha na Nova Zelândia,

que ele foi para lá criar

os netos em vez de trigo.



A natureza, ao que parece, não é como nós;

não tem um armazém de memória.

O campo não fica com medo de jogos,

de meninas. Não se lembra

tampouco de sulcos. É morto, queimado,

e um ano depois está vivo novamente

como se nada de incomum tivesse acontecido.



O fazendeiro olha pela janela.

Talvez na Nova Zelândia, talvez em outro lugar.

E ele pensa: minha vida acabou.

Sua vida se expressou nesse campo;

ele não acredita mais em fazer nada

fora da terra. A terra, ele pensa,

me dominou.



Ele se lembra do dia em que o campo queimou,

não, ele pensa, por acidente.

Algo dentro dele disse: eu posso viver com isso,

posso lutar contra isso depois de um tempo.



O momento terrível foi na primavera depois que seu trabalho foi apagado,

quando ele entendeu que a terra

não sabia como lamentar, que em vez disso mudaria.

E então continua existindo sem ele.



(Averno)



(Ilustração: Mel Kishner - Peshtigo Fire: Refuge in a Field - 1871)