sábado, 29 de setembro de 2012

OS APARATOS DO TEMPO, de Octavio Paz







Cada civilização é uma visão do tempo. Instituições, obras de arte, técnicas, filosofias, tudo o que fazemos ou sonhamos é um tecido do tempo. Ideia e sentimento do transcorrer, o tempo não é mera sucessão; para todos os povos é um processo que possui uma direção e aponta para um fim. O tempo tem um sentido. Melhor dito: o tempo é o sentido do existir, inclusive se afirmamos que este carece de sentido. As opostas atitudes dos hindus e cristãos ante a condição humana – karma e pecado original, moksha e redenção – se inscrevem em distintas visões do tempo. As duas atitudes são manifestações e consequências do suceder temporal; não somente passam no tempo e estão feitas de tempo, e sim que são efeitos de um fato que determina o tempo e a sua direção. O fato, no caso do cristianismo, ocorreu antes do começo do tempo: a falta de Adão e Eva foi cometida em um lugar até então imune a mudanças: o Paraíso. A história do gênero humano começa com a expulsão do Éden e nossa caída na história. No caso do hinduísmo (e do budismo) a causa não é anterior, e sim inerente ao próprio tempo. Para o cristianismo, o tempo é filho da falta original e por isto sua visão do tempo é negativa, ainda que não inteiramente: os homens, pelo sacrifício de Cristo, e graças ao exercício da sua liberdade, que é um dom de Deus, podem salvar-se. O tempo não só é condenação; é também uma prova. Para o hindu o tempo é mal em si mesmo. Melhor dito, por ser impermanente e cambiante, é ilusório. O tempo é maya; uma mentira em aparência prazerosa, porém que não é senão sofrimento, erro e ao final, morte que nos condena a renascer na horrível ficção de outra vida igualmente dolorosa e quimérica.


Para os cristãos e para os judeus, também para os muçulmanos, só houve uma criação. “A cosmografia clássica”, disse Louis Renau, “imagina um ovo de Brahma de onde brotam as séries de criações sucessivas” (La civilisation de l’Inde ancienne d’aprés les textes sanscrites, Paris, 1950). Não uma única criação, e sim muitas. Renau agrega: “A duração do universo, desde o começo até sua dissolução, é um dia de Brahma; uma infinidade de nascimentos o terá precedido e outras dissoluções o seguirão.” O universo dura o que dura o sonho de Brahma; ao despertar, o universo se desvanece porém volta a nascer logo que a divindade se põe a dormir de novo. Brahma está condenado a sonhar o mundo e nós. a ser o seu sonho. Conhecemos a duração destes sonhos recorrentes: 2190 milhões de anos terrestres. Em outras versões a duração destes sonhos é de 4.320 milhões de anos. Cada ciclo (kalpa) está composto por eras (yugas). Há quatro em cada kalpa e nós vivemos na quarta era, a final, deste ciclo: Kaliyuga. É a era do erro, a confusão de castas e a degradação da ordem cósmica e social. Seu fim se aproxima e perecerá pela dupla ação do fogo e água. Depois de um período de letargia cósmica, o universo recomeçará outro ciclo. Assim posto, o tempo se acaba, tem um fim: porém renasce e torna a percorrer o mesmo circulo; é um sem fim (Luis Gonzales Reiman, Tiempo cíclico y eras del mundo em La India, El Colegio de México, 1988). No budismo e no jainismo há ciclos e cifras semelhantes. Contrasta a enormidade destes ciclos com a duração que os cristãos atribuem ao mundo: uns poucos milhares de anos. Na cosmologia hindu, incluindo a budista e a jainita, também há, como em Giordano Bruno e nas hipóteses de muitos cientistas modernos, pluralidade de mundos habitados por criaturas inteligentes. Em cada um destes mundos há outros Budas e outros Mahaviras (Mahavira: fundador do jainismo). Os textos budistas nos dizem, inclusive, que um Buda futuro ensinará aos homens esquecidos o caminho reto para o nirvana. Conhecemos seu nome: Maitreya.



A ideia de sucessivas criações cósmicas e a concomitância de idades ou eras do mundo aparece em muitos povos. Foi uma crença dos índios americanos; os antigos mexicanos diziam que o número de criações, que eles chamavam sóis, eram cinco. A última, a quinta, é a atual: sol do movimento. Estas crenças também figuram em outros povos do Oriente, Ásia Menor e do Mediterrâneo. Dela compartilharam vários filósofos: Pitágoras, Empédocles, Platão, os estoicos. Outras semelhanças entre os hindus e os greco-romanos: o mundo sublunar é imperfeito e defeituoso porque se modifica sem cessar. A troca reflete uma carência; o ser incompleto, o homem, aspira à plenitude do ser, sempre idêntico a si mesmo. A troca, a incessante mutação que são o tempo e o mundo, aspira à identidade imutável do ser. Para os gregos e para os hindus o movimento era dificilmente compreensível, salvo como tentativa para alcançar a imutabilidade do ser, que está para além do tempo. Daí que Heráclito concebia o mundo não como progressão feita pela luta dos contrários – segundo supõe a moderna interpretação, errônea na minha avaliação -, e sim como um ritmo composto por sucessivas e repetidas rupturas seguidas de reconciliações: a unidade se divide em duas metades que se odeiam, se amam e terminam por reunir-se para tornar a se separar, e assim até o final dos séculos. Não afinidades eleitas, e sim regidas por uma fatalidade: cada afirmação engendra sua negação que, por sua vez, se nega em outra afirmação. Heráclito ignorou o progresso; também Platão e Aristóteles. Por isto os últimos veem no círculo a imagem da perfeição: o ponto de seu começo é também o do fim. O círculo está feito à semelhança do eterno movimento dos corpos celestes. O movimento tem sede de imobilidade, o tempo de imutabilidade.



A complexidade da cosmogonia hindu, e a enorme duração dos ciclos, se parecem com a lógica que rege os pesadelos. Ao final, essas cosmogonias se dissolvem; abrimos os olhos e nos damos conta de que estivemos entre fantasmas. O sonho de Brahma, o que chamamos realidade é uma quimera, um pesadelo. Despertar é descobrir a irrealidade deste mundo. A característica negativa do tempo não é decorrente de ser consequência de um pecado original, e sim pelo contrario: o pecado ou falta original do homem é ser um filho do tempo. Porque o tempo é mal? Por ser impermanente, ilusório, irreal. O tempo carece de substância: é sonho, é mentira, maya. Esta palavra é traduzida como ilusão. Porém tem que se acrescentar que a ilusão que é o mundo é uma criação divina. Um Upanishad diz: ”Deves saber que a Natureza (prakriti) é ilusão (maya) e que o Senhor é o ilusionista (mayin).” No Bhagavad Gita, para explicar a Arjuna seus nascimentos, Krishna disse: “Ainda que não tenha nascido, e meu ser seja imortal, encarnei em um ser mortal (neste mundo) por meio do meu poder (maya).” Aqui maya é poder. Porém, acrescenta Krishna em outra passagem, “aqueles que buscam refúgio em mim ultrapassam este poder divino (maya)”. Assim, maya é ilusão e igualmente poder criador de aparências. A realidade verdadeira, a única, não é uma criação nem uma aparência: é o Ser imutável e incriado. É a vacuidade para o budista. Maya é tempo, porém não no sentido ocidental que o vê como um processo dinâmico, sim como vã repetição de uma falsa realidade, uma aparência. Tudo o que muda adoece de realidade; o real é o que permanece: o ser absoluto (Brahma). O homem é impermanente como o cosmo, porém na sua profundidade está o ser (atman), idêntico ao ser universal. Ambos estão além do tempo, fora do acontecer. O Ser não pensa, nem sente, nem muda: é. Por sua vez, o budismo negou o ser e viu o ego como um conjunto de elementos sem substancia, que a meditação deve desagregar e depois dissolver. Hinduísmo e budismo são uma critica radical ao tempo.



Para o hinduísmo o tempo não tem sentido, ou melhor, não tem outro que o de se extinguir no pleno ser, como o diz Krishna a Arjuna. Esta concepção do tempo explica a ausência de consciência histórica entre os hindus. A Índia tem tido grandes poetas, filósofos, arquitetos, pintores, porém nenhum historiador. Entre os diversos meios pelos quais os hindus negam o tempo, há dois particularmente impressionantes: a negação metafísica e a social. A primeira impediu o nascimento deste gênero literário, cientifico e filosófico que chamamos historia; o segundo, a instituição das castas, imobilizou a sociedade.



O contraste com os muçulmanos é notável. Também com os chineses, para os quais a perfeição está no passado. Confúcio diz:”Não invento, transmito. Creio na antiguidade e a amo.” A civilização é uma ordem que não é diferente da ordem natural e cósmica: é um ritmo. A barbárie é a transgressão das regras da natureza, a confusão do princípio celeste com o terrestre, a mistura dos cinco elementos e dos quatro pontos do horizonte: ruptura do ritmo cósmico. A barbárie não está antes da historia, e sim fora dela. O alvorecer da civilização, a mítica idade feliz do Imperador Amarelo, é também seu meio-dia, seu momento mais alto. O apogeu está no amanhecer; o começo é a perfeição e por isto é o arquétipo por excelência. A Antiguidade é perfeita porque é o estado de harmonia entre o mundo natural e o social. Daí a importância dos cinco livros clássicos, são a fonte do saber político e o fundamento da arte de governar. A política é uma parte da teoria da correspondência universal; a música, a poesia, a dança, os ritos são política porque são ritmo; a imitação dos antigos é a via do sábio e do governante virtuoso. A heterodoxia taoísta não crê nos clássicos nem na civilização e na virtude, na acepção que davam a estas palavras Confúcio e seus discípulos, porém concordavam com eles em ver a natureza como um modelo: a sabedoria é consonante com o ritmo natural, saber não é conhecimento, e sim afinação da alma. O sentido do tempo está no passado, a Antiguidade é o sol que ilumina nossas obras, julga nossos atos guia nossos passos.



Entre os mulçumanos a história é bem mais crônica e não uma meditação sobre o tempo. Não obstante, Ibn Khaldun divide as sociedades humanas em dois grupos: culturas primitivas e civilizações. As primeiras, nômades ou sedentárias, não conhecem propriamente a história: ligadas à terra ou errantes no deserto, vivem sempre o mesmo tempo. As civilizações nascem, alcançam o apogeu, declinam e desaparecem: sobre suas pedras voltam a andar as cabras. As civilizações são organismos individuais, cada uma com suas características próprias, porém todas sujeitas à lei do nascimento e morte. Contêm, sem duvida, um elemento intemporal: a religião. A verdadeira perfeição não está no tempo e sim nas religiões, sobretudo na última, o islã, que é a revelação definitiva.



O tempo cristão não é cíclico e sim retilíneo. Teve um princípio, Adão, Eva, e a caída; um ponto intermediário: a Redenção e o sacrifício de Cristo; um período final: o nosso. O tempo cristão rompe o tempo circular do paganismo. Para Platão e Aristóteles o movimento perfeito é o circular; a imagem das revoluções dos corpos celestes é racional e eterno. O movimento retilíneo  é acidentado e finito; é contingente: não se move por si mesmo e sim graças à impulsão de um agente externo. O cristianismo inverte os sentidos; o tempo retilíneo, o humano, é o que importa porque é o da nossa salvação ou condenação. Não é um movimento eterno nem indefinido; tem um fim, no duplo sentido da palavra: término e finalidade. Pelo primeiro, é definitivo; pelo segundo, possui um sentido; e por ambos é um tempo decisivo. O cristianismo introduz a decisão, a liberdade: seu tempo significa redenção ou perdição. Seu valor não reside no passado, ainda que a caída seja a causa do tempo e da história, e sim no presente: agora mesmo me salvo ou me condeno. Este valor agora também se refere a um futuro também definido: a hora final, seja a da nossa morte individual ou a do juízo Universal. O cristianismo coincide com as outras religiões em conceber a perfeição para além do tempo, porém, este mais além, não está nem no passado nem fora do tempo e sim em um futuro preciso, definido: o fim do tempo. Este fim é o começo de algo que já não é o tempo, algo que não podemos nomear, ainda que por vezes o chamemos de eternidade.



A ideia moderna do tempo se fundamenta na do cristianismo. Também para nós o tempo é uma sucessão linear, história - não sagrada e sim profana. A conversão do tempo religioso em tempo profano teve como imediata consequência transformá-lo: cessou de ser finito e definido para ser infinito e indefinido. O tempo moderno é um permanente mais adiante, um futuro sempre não alcançado e irrealizável. Esse futuro é indefinível posto que não tem fim nem finalidade: sua essência consiste em ser um futuro intocável. À medida que o futuro se distancia, o passado se distancia: também é intocável. Sem dúvida, podemos explorá-lo e calcular com certa precisão a antiguidade da espécie humana, e ainda da terra e do sistema solar. Por outro lado o futuro é e será incalculável. Talvez logremos saber de onde viemos, porém não é fácil que saibamos para onde vamos. Disparado para adiante, flecha em linha reta, nosso tempo não tem mais sentido que o de ser um perpétuo movimento cada vez mais perto -cada vez mais longe- da futura perfeição. A ideia que nos atiça é maravilhosa e insensata: o futuro é progresso.



A expansão europeia transformou o ritmo das sociedades orientais; quebrou a forma do tempo e o sentido da sucessão. Foi algo mais que uma invasão. Esses povos já haviam sofrido outras dominações e sabiam o que é o jugo do estranho, porém a presença europeia lhes pareceu uma dissonância. Certos espíritos tentaram adivinhar um propósito por trás dessa agitação frenética e dessa vontade tendenciosa para um futuro indefinido. Ao descobrir em que consistia esta ideia, se escandalizaram: pensar que o tempo é progresso sem fim, mais que uma mística paradoxal, lhes pareceu uma aberração. À turvação se mesclou o assombro: por irracional que fosse esta concepção, como não ver que graças a ela os europeus faziam prodígios? A reprovação com a qual as elites hindus e muçulmanas viram o materialismo dos europeus se transformou rapidamente em admiração. Reconheceram que, se não eram mais sábios que eles, os ingleses eram mais poderosos. Seu saber não conduzia nem à contemplação da divindade nem à liberação; sua ciência era ação: a natureza lhes obedecia e em suas cidades o poder dos fortes e os ricos pesavam menos. Era a velha magia, agora ao alcance de todo aquele que conhecesse a fórmula do encantamento.



A ciência e a técnica, o poder do homem sobre o mundo material e a liberdade que nos dá este poder: este é o segredo da fascinação que o Ocidente exerceu sobre as elites do Velho Oriente. Foi uma verdadeira vertigem: o tempo pesou menos, os homens não eram escravos nem das revoluções dos astros nem da lei kármica. Agora podia assumir a forma que nossa vontade e nosso saber determinassem. O mundo se tornou maleável. A aparição do tempo moderno resultou numa inversão dos valores tradicionais, o mesmo na Europa e Ásia: ruptura do tempo circular pagão, destruição do absoluto intemporal hindu, descrédito do passado chinês, fim da eternidade cristã. Dispersão e multiplicação da perfeição: sua moradia é o futuro e o futuro está em todas as partes e em nenhuma, ao alcance da mão e sempre mais além. O progresso deixou de ser uma ideia e se converteu em uma fé. Mudou o mundo e as almas. Não nos redime de nossa contingencia; o exalta como uma aventura que sem cessar recomeça: o homem já não é a criatura do tempo e sim seu criador.



Artimanhas do tempo: no momento em que a idolatria da mudança, a crença no progresso como uma lei histórica e a proeminência do futuro triunfam em todo o mundo, essas ideias começam a se desmoronar. Duas guerras mundiais e a instauração de tiranias totalitárias fazem vacilar a nossa fé no progresso; a civilização tecnológica tem demonstrado que possui imensos poderes de destruição, o mesmo sobre o ambiente natural, cultural e espiritual. Rios envenenados, bosques transformados em desertos, cidades contaminadas, almas desabitadas. A civilização da abundância é também a da fome na África e em outros locais. A derrota do nazismo e do comunismo tem deixado intacto e a descoberto todos os males das sociedades democráticas liberais, dominadas pelo demônio do lucro. A famosa frase de Marx sobre a religião como ópio do povo pode aplicar-se agora, com maior razão, à televisão, que acabará por anestesiar o gênero humano, apequenado em uma beatitude idiota. O futuro tem deixado de ser uma promessa radiante e se transformado em uma interrogação sombria.



Para Ghandi, as civilizações iam e voltavam; o único que ficava em pé era o dharma: a verdade do humilde sem outra espada que a não-violência. De certo modo não lhe faltava razão: a história é a grande construtora de ruínas. Ele opunha às invenções daninhas do ocidente sua fé em uma sociedade composta por pequenas aldeias de agricultores e artesãos. A história mesmo, em sua forma mais cega e brutal, o tem desmentido: a explosão demográfica tem feito em cacos o sonho das aldeias felizes. Cada aldeia é um foco de miséria e desdita. Não insistirei no que todos sabemos, ainda que a maioria não de um modo muito claro: nossa ideia de tempo tem se despedaçado e suas milagrosas invenções nos queimam as mãos e as mentes. Talvez o remédio esteja em colocar no centro da tríade temporal, entre o passado que se distancia e o futuro ao qual nunca chegaremos, o presente. A realidade concreta de cada dia. Acredito que a reforma da nossa civilização deverá começar com uma reflexão sobre o tempo. Há de se fundar uma nova política enraizada no presente. Porém este é outro tema, do qual já tratei em outros livros. Estas páginas começaram com uma tentativa em responder a interrogação que me fiz na Índia. Agora terminam com uma pergunta que nos engloba a todos: em que tempo vivemos?





(Tradução de Mozart Bezerra Alves Filho)


(Vislumbres de la India)


(Ilustração: Salvador Dalí - tempo)




quarta-feira, 26 de setembro de 2012

SEXUALIDADE, de Cristiane Neder









Eu sou heterossexual
sou roxo.
Eu sou homossexual
sou cor de rosa.
Eu sou bissexual
sou violeta néon.
Eu sou trissexual
abro meu leque na mão.
Eu sou quadrissexual
sou amarelo–limão.
Eu sou quinssexual
sou laranja–dourado.
Eu sou seis vezes
a cor do pecado.
Vou mudando de cor
até chegar no estado puro dos tons.
Sou branco virgem
na tonalidade assexuada.




(Ilustração: Aaron Coberly)


domingo, 23 de setembro de 2012

O MEU CARNAVAL, de Lima Barreto





– Mas foste mesmo recrutado?

– Fui; e comi fogo que não foi graça.

– Como foi a história?

– Aproximava-se o carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde

trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do Largo do Rio Comprido.  Ao chegar à oficina, na Rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas d’água de um prédio novo.” Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua tranversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados – era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito... Enfim, era um verdadeiro jagodes, um “Judas”.

– Que é que eles te disseram?

– O cabo veio direito a mim e perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que você vai?” Disse-lhe; mas a feroz autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à presença do senhor capitão Lulu.” “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse comigo, esse paisano ia já.” E fez menção de desembainhar um enorme sabre de cavalaria que tinha à cinta.

– Mas que soldados eram estes?

– Não estás vendo logo? Eram guardas nacionais.

– Percebo. Foste?

– Fui. Que remédio?

– Que te fizeram?



– Vou contar-te tintim por tintim. Levaram-me a presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o seria intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você é um reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa servir a sua pátria.” Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso ser desertor?” O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa, mas perguntou-me: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde é que você mora.” Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina.” Isto pareceu-lhe contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por fim, falou-me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo qualificado neste batalhão – 01.723.436. regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar de reiteradas intimações, você não se tem apresentado. Está preso disciplinarmente por oito dias.” Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, a tremer. “Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!”

– Puseram-te na cadeia?

– Não. Revistaram-me, tiraram-me as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo, na presença do marcial Lulu. Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do regimento.” Após o que, levaram-me para um outro compartimento, onde me fizeram despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia, a única blusa que me chegava, tinha as divisas de cabo. Não quiseram arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me pusessem em serviço árduo.

– Qual foi?

– Meteram-me uma enxada na mão e fizeram-me capinar a chácara durante 
quase oito dias, passando fome.

– Como?

– A comida era café ralo e pão duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito mal feito, no qual encontrar uma pastilha de carne seca era uma raridade de fazer alegria até chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do carnaval, descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz vestindo em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e esperei as ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor que capturei.” O comandante recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” O capitão Lulu respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do carnaval.” O coronel ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!” À tarde, no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar e aconselhou-me: “Você me parece boa pessoa, disciplinada. Procede muito bem. ‘A submissão é a base do aperfeiçoamento’, disse Victor Hugo. Se sou oficial, se cheguei à posição em que estou, devo, não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus superiores. Você veio, acompanhou-me; porte-se bem que não terá de arrepender-se.”

– O que era esse tipo, além de guarda nacional?

– Era servente do Senado.

– Que magnata!

– Não te rias. À hora marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco 
mil-réis, para despesas; mas não os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade de Lulu, a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao Largo do Rio Comprido, saltei para tomar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de espanto, me disse: “Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’ !” “Por quê?” “Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito isto, quando fui preso imediatamente por um polícia que me levou à delegacia onde não me quiseram ouvir e me meteram no xadrez até quarta-feira de cinzas. Está em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu carnaval, naquele ano.



(Careta, Rio, 8-1-1921)



(Ilustração: Di Cavalcanti - carnaval)




quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A LOUCA, de Eliana Iglesias









A louca que se instalou em mim

não é de superfície

e sim das profundas

A louca é por assim dizer

alguém que

as senhoras desviam o olhar,

nas ruas ninguém quer cruzar

e a moral rotula como: “imunda”

A louca que se instalou em mim

não é débil

tampouco passageira

nem gentil, ou bicho, ou gente

Louca sim

Louca, simplesmente

Nenhum parentesco

com normal ou regrado

Quem sabe a encarnação de algum degenerado?

Ou o próprio demônio por mim revisitado?

Essa louca que resiste em mim

tal soldado fedorento na trincheira

a cada madrugada insone

toma-me em fúria

sem trégua

e por inteira

Tão louca, pois que insiste em mim

e que se prega feito parasita

a esta camisola de cetim

Essa mesma louca

que em noites de lua redonda

encharca-me a pele de sexo

e o sexo de gozo

me fazendo hedionda

por matar o que não devo

e que me deixa dividida

alguém que anseia ficar

tendo na boca já o gosto da partida

A louca que habita em mim

não aceita negativas

ou prerrogativas

É senhora absoluta do prazer imediato

Faz-me surda ao que é sensato

e ainda imperiosa

dita-me vozes

como se em mim houvesse, não apenas um

mas, mil algozes

A louca que ora me acompanha

sempre que pode

crava suas garras em minhas entranhas

e as domina como faz o vento

ao deixar a rebentação encapelada

E como esta, me revolto

me bato, me lanço, perfuro, me solto

para depois retomar a mim modificada

Essa louca que me tira do sério

que puxa as cordas da minha vontade

que faz a boca dizer impropérios

e que nunca me leva à saciedade

Essa louca lasciva que explode e... pronto!

Em meio às sombras, exposta ao sol

que não tem hora para aparecer

nem rumo certo a percorrer

Louca desperta, posto que é louca

Louca liberta, posto que é louca

Justamente, a louca

que me faz viver






(Ilustração: Emil Nolde)



sexta-feira, 14 de setembro de 2012

DANCING WITH PAUL DURCAN / DANÇANDO COM PAUL DURCAN, de Nuala Ní Chonchuír








I saw Paul Durcan in The Winding Stair,

fingering a book of love sonnets.

‘Paul,’ I said, ‘your poetry is filthy with longing.’

He said, ‘Would you like to dance?’

So breast to chest we turned a Durcanesque

polka of long poems and harem-scarem

happenings around the bookstacks.

And, oh, the heft of him.

‘I won’t be falling in love with you,’ I said,

‘That’s OK,’ Paul murmured, ‘love’s not

looking for me at the moment. We’ve fallen out.’

Our bodies collided into man-woman as we swung,

our clothes and skin sewn into each other,

our legs a kicking chorus of dance, dance, dance

Paul spun me down the winding stairs

up across the bow of the Ha’penny Bridge,

and, spinning together, all our pages flew



Tradução de Eduardo Miranda:



Eu vi Paul Durcan no Escada Sinuosa (*)

folheando um livro de sonetos de amor.

'Paul', eu disse, 'sua poesia é deliciosamente suja.'

Ele disse, 'Você gostaria de dançar?'

Então tetas com peito, tornamos uma polca

Durcanesca de poemas longos e além-harém

rolamos pelas pilhas de livros.

E, oh, que corpo.

'Eu não vou me apaixonar por você', eu disse,

'Tudo bem', Paul murmurou, 'o amor não está

me procurando no momento. Estamos entendidos.'

Nossos corpos se chocaram naquele vai-e-vem,

de homem e mulher, nossa pele costurada uma na outra,

nossas pernas numa dança sensual, dançam, dançam,

Paul girou-me por sinuosas escadas abaixo,

por entre o arco da Ponte Ha'penny,

e, girando juntos, todas nossas páginas voaram.




(*) The Winding Stair, restaurante-livraria em Dublin, Irlanda


(The Juno Charm , nova coletânea de poemas de Nuala Ní Chonchuír, Salmon Poetry, Knockeven, Cliffs of Moher, Co. Clare, Irlanda)


(Ilustração: The Winding Stair 2 - foto da internet, sem crédito)



terça-feira, 11 de setembro de 2012

A SENHORA DO SÉTIMO ANDAR , de Milton Hatoum








Numa manhã de setembro do ano passado, eu estava no jardim do térreo e olhava um pássaro azul que planava no ar de fuligem. De repente uma voz aguda me despertou: 


"O que você está olhando? Não se vê nada, as nuvens passam e se dissolvem como a vida".

Era uma moradora de um apartamento do sétimo andar. Achei o comentário impertinente e um tanto poético. Não lhe perguntei nada sobre poesia, mas as nuvens e suas formas mutáveis me aproximaram de dona Valéria, uma senhora de uns 90 e poucos anos. Foi uma aproximação lenta, que se estreitou em janeiro deste ano, quando ela me convidou para conversar em seu apartamento.
Toquei a campainha às 6 horas em ponto. A sala, iluminada, fora diminuída por uma biblioteca fantástica e livros empilhados por toda parte. Perguntou se eu queria chá, café, suco, uísque ou cerveja.

Suco, eu disse.

Para meu deleite, trouxe um copo com suco de manga; e, para minha surpresa, pegou uma garrafa de uísque e um copo sem gelo. As mãos tremiam, mas não a voz:

"Os jovens já não bebem mais", ela disse, com uma ironia que me fez sorrir.

Pôs dois dedos de uísque no copo, tomou um gole e disse que tinha namorado muito, numa época em que a maioria das moças namorava para casar. Aos 36 anos, quando suas amigas já tinham filhos adolescentes, ela se casou com um juiz e passou a lua de mel em Dublin.

"Um juiz digno, um homem honesto", frisou. "Ainda bem que meu marido não está aqui para ver tantas coisas ultrajantes. Bom, se ele estivesse, teria 106 anos, e com essa idade um ser humano não se surpreende com nada, nem mesmo com a morte."

Como não teve filhos, dona Valéria passou uma parte da vida ajudando o marido. Lia autos de processos e também literatura. Leu tantos processos sobre todo tipo de delito que chegou a uma conclusão pessimista. Disse, sem amargura: "O ser humano, meu filho, não vale uma casca de cebola". 

Ela e o marido tinham conhecido Cyro dos Anjos em Brasília, quando a nova capital era um símbolo de esperança e otimismo. Aproveitei a menção do escritor mineiro e disse que havia conhecido seu filho.

"Eu também conheci esse menino", ela disse, me olhando com ar triste. "Vocês eram amigos?"

"Estudamos na mesma escola em Brasília", eu disse.

"Tão jovem", ela murmurou. "Como é possível?"

Bebeu mais um gole, e ficamos calados. Observei a sala, os livros, um quadro de Portinari e o assento de palhinha esburacado de uma marquesa; no chão, duas luminárias velhas e retorcidas. Uma claridade vinha da copa. O acesso ao corredor escurecia mais que o céu.

"Ainda leio antes de dormir. E bebo um pouco quando converso, mas não gosto de falar de coisas tristes."

Uma manhã de fevereiro, antes do meio-dia, eu a vi com duas amigas, as três sentadas à mesa de um bar, tomando cerveja. Minha vizinha era a única que falava; as outras ouviam com atenção, de vez em quando riam. Fingi que esperava alguém e ouvi trechos do monólogo. Dona Valéria falou de sua juventude em São Pedro, de namoros e bailes, de viagens de trem a Piracicaba, de duas bordadeiras italianas, as mais famosas de sua cidade natal. Tomou um gole com tanta avidez que esvaziou o copo. Depois disse: "Vocês se lembram do Enzo, aquele rapaz de Campinas? Foi ele... Foi com ele... Na sede da fazenda. Não ia acontecer nada, e de repente aconteceu tudo. Ouvi badaladas de um sino, mas não tinha igreja por perto".

As duas amigas gargalharam e o garçom, voyeur profissional, apenas sorriu.
Sei que ela gostava de poesia porque, numa conversa antes da Páscoa, mencionou poemas de Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos, e me mostrou um livro de Yeats, com uma dedicatória a um parente do marido dela. Folheei o livro, edição de 1933. Disse que seu marido, brasileiro de origem irlandesa, recitava poemas desse "irlandês genial". Pôs uma fita cassete num gravador e ouvimos a voz cavernosa do finado James em noites do passado. Fiquei emocionado com essa voz, que parecia mastigar os sons de cada palavra. A viúva bebia uísque e sorria, sem tirar os olhos do gravador. Um dos poemas era The Winding Stair, título do livro.

Depois veio a Páscoa. Passei cinco dias fora de São Paulo e, quando voltei, encontrei na soleira da porta do meu apartamento um envelope com o livro de Yeats, que dona Valéria me mostrara. Subi pela escada os dois andares que nos separavam. A porta do 702 estava aberta. Dei uma olhada na sala: não havia livros nas estantes. Dois homens de macacão azul enrolavam a marquesa com uma capa de feltro.

Até hoje o apartamento está vazio.




(OESP/27 de abril de 2012)


(Ilustração: Alfred Stevens - La Madaleine)

sábado, 8 de setembro de 2012

HAIKAIS, de Paulo Franchetti








Demorou este ano,
Mas de repente, em toda a parte --
Primavera!



***


A velha ponte --
No pó ajuntado entre as tábuas,
Brota o capim.



***


Às dez da manhã
O cheiro de eucalipto
Atravessa a estrada


***


Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo --
Estou ficando velho.



***


Manhã de frio --
Com o agasalho, visto
Saudades de minha mãe.



***


Porque não sabemos o nome
Tenho de exclamar apenas:
"Quantas flores amarelas!"



***


Ao sol da manhã,
Imóvel como se dormisse,
A coruja no fio.



***


Essa velha música -
Como ela soa bem
Sob esse sol de inverno.



***


Borboletas amarelas
Sobre flores amarelas
Numa tarde fria.



***



Quando abro os olhos
Parecem muito mais verdes
As folhas das árvores.






(Ilustração: Van Gogh - girassóis)


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O PIANISTA MASCARADO, de Eliane Torralba







A música ecoava nos corredores. Estava longe de ser dessas notas banais que um pianista procura transpor da partitura para as teclas do piano. A música que flutuava no ar era bem diferente de tudo o que já havia sido tocado por algum aluno daquela Academia. Entrava pelos ouvidos e afluía ao coração antes de chegar ao cérebro. Variava como os sentimentos de um ser humano. Ora forte e tonitruante como o trovão, ora fina e melancólica como a chuva que cai.

Embalados pela música, professores, alunos, funcionários passavam frente à sala usando desculpas de toda espécie. Os funcionários alegavam ter se esquecido de limpar alguma coisa, os professores pretextando que queriam ir ao bebedeouro (o único, por sorte, ficava naquele piso) e os alunos diziam ter esquecido seus pertences, ou esquecido de dizer qualquer coisa a um professor, ou mesmo que queriam desentorpecer as pernas subindo os vários lances de escada. As desculpas eram variadas e às vezes um bocado fantasiosas. Tudo isso para escutar o pianista mascarado.

Os numerosos espectadores que ouviam a música não faziam ideia da aparência de seu autor. “É, decerto, algum ancião erudito, veterano da música, que hospedamos no estabelecimento”, afirmavam alguns, seguros de si. O pianista desconhecido, porém, não tocava Bach, nem Mozart, nem Beethoven, nem Chopin... nenhuma das obras famosas da cultura geral.

Os passantes quase nunca se atreviam a girar a maçaneta da porta, por medo de perturbar o pianista velado. Os mais curiosos tentavam, só para constatar que a porta estava trancada. E paravam aí. Não insistiam. Era inútil bater à porta. Por que tentar desmascarar um músico se só o que importa é a sua melodia?

Num canto do seu quarto, com o volume aberto no colo, Alire espiava as páginas do livro através dos óculos redondos. Faltavam muitos elementos essenciais nas páginas que ela virava sem qualquer animosidade. Os homens que escreviam livros desse tipo (somente homens, de fato) não tinham um pingo de imaginação. Só o que faziam era pensar em suas próprias vidas e transpô-las para o papel, como um pianista transpõe as notas de uma partitura para as teclas do piano. O livro que ela tinha em mãos, o livro que seu pai considerava uma “obra” para ela não passava de um mísero diário íntimo, por acaso vendido no mundo inteiro.

Cansada, Alire fechou secamente o livro e se jogou sobre a cama. Seus olhos estavam fitos no alto, mas seu olhar ia muito além do teto mofado que encimava seu quarto. Os dedos da moça puseram-se a correr pela cama de forma ritmada. O que nela era habitual.

Seus pensamentos afluíram ao colégio que ela deixara poucas horas antes. Dirigiram-se para um ponto preciso. “No programa deste mês, vamos estudar um romance autobiográfico contemporâneo. Que com certeza irá agradar uma pessoa desta classe.” Fora a professora de francês quem alegremente fizera o anúncio. Era uma senhora de idade, de nariz tão curvo quanto suas costas. Pronunciara a última frase endereçando a Alire um sorrisinho de esguelha. Pelo sorriso, Alire soube de imediato a que se referia a bruxa da sua professora. Teve então tempo de fechar os olhos e se preparar para o pior. Seus dedos corriam pela mesa, movidos pelo medo e nervosismo. Quando abriu os olhos, abaixou-os, sem inclinar a cabeça. Ali estava ele. Sobre a mesa. O último livro que ela escolheria para estudar em aula.

De ora em diante, sua vida no colégio seria transtornada para sempre. Alire não se atreveu a olhar para os colegas, mas as risadinhas indicavam que já tinham lido o nome que constava na capa. “Vocês vão ler esse livro durante as férias. Na volta às aulas, vão descobrir a que ponto o nosso caro Georges Duvaleau é o mestre da autobiografia. Para mim, é o escritor desta última década.” A professora dissera isso com um entusiasmo que chegava a doer em Alire.

E ei-la agora deitada em sua cama com o livro nas mãos, obrigada a lê-lo no tempo livre. Obrigada por seu pai. A moça aproximou o livro do rosto e se atreveu, mais uma vez, a ler a capa: Vida em Cartas de Georges Duvaleau. Duvaleau... Queria riscar aquele nome com seu marcador e substituí-lo por outro. Era tudo o que mais queria. Como seria a sua vida se seu pai não fosse quem era?

Ela o vira inclinado frente ao computador, digitando freneticamente no teclado. Noites inteiras dedicadas aos seus escritos haviam cavado olheiras sob seus olhos. Dias inteiros comendo pouco o tinham emagrecido. Os dias todos passados a escrever aquele livro tinham-no transformado numa criatura que não se importava com ninguém, nem sequer com a própria filha. Antigamente também era assim. Ele ficava daquele mesmo jeito ao escrever artigos jornalísticos. A ideia de que seu pai só escrevia falsidades sobre sua própria vida tomava conta da mente de Alire. Se era mesmo a realidade o que ele escrevia esse tempo todo naquelas páginas, quem se atreveria a lê-las?

E ela agora tinha que ler aquilo. Um tijolão repleto de mentiras. Já não podia recuar, e de qualquer forma seria obrigada a ler, mais dia menos dia. Seu pai a obrigaria.

Depois de colocar bruscamente “a obra” sobre o criado-mudo, Alire levantou-se e saiu do quarto. No corredor, deu de cara com o pai, que exibia um sorriso imenso, ou melhor, um pseudossorriso. Georges Duvaleau estava longe de ser um homem inclinado a sorrir. Nas raras vezes em que o fazia, o sorriso que ostentava não era, de modo algum, sincero. Apenas um ricto. Alire conhecia o pai de cor e salteado. Quando seus lábios se esticavam naquele ricto, ele estava para anunciar uma boa notícia. Boa notícia do ponto de vista dele.

Como Alire previa (dedos correndo pelos quadris), ele falou sobre o livro. Estava a par de que fora incluído no programa. Como não estaria? Era amicíssimo do diretor da escola e da bruxa velha da professora de francês. O que seu pai estava dizendo? Não sabia, pois o ignorou de imediato, tal como ele próprio costumava fazer com ela. Estava, decerto, repetindo a ladainha de sempre: que pusera todo o seu empenho naquele livro, que ele tinha de ser lido, que sem esse livro eles estariam no olho da rua...

Com a garganta apertada, ela passou pelo pai sem dirigir-lhe uma palavra. Estava cheia. Seu pai nunca falava com ela e, nas raras vezes em que o fazia, a conversa girava em torno da tal Vida em Cartas de Georges Duvaleau.

O olhar da moça parou num canto vazio da sala. Lembrou-se do piano acústico que antigamente ficava ali. Lembrou-se das marteladas que o pai lhe dera, das notas vibrando feito gritos de aflição e das palavras rancorosas que ele berrava: “A música não vai te levar a nada nessa vida, Alire Duvaleau! Esqueça essa arte e fique com a melhor de todas! A literatura!”

Ignorando a voz que a obrigava a dar meia-volta, Alire transpôs a porta da rua e lançou-se para fora da decrepitude que era a sua casa. Atravessou as ruas, andou pelas calçadas, rumando para o endereço em que se encontrava seu único consolo, seu confidente.

Alire viu-se defronte ao prédio. Um prédio antigo que datava da Revolução Francesa. Na porta havia um letreiro pendurado, com uma inscrição em relevo: Academia da quinta arte. Escola de música. Mas a moça não costumava entrar por essa porta principal, que estava fechada àquela hora. Só Alire conhecia uma passagem que dava justamente na sala aonde queria ir.

Era uma sala imensa, naquele momento escura, mas em geral bem aclarada pela luz do sol que se engolfava pela janela. De dia, os raios do sol, filtrados pelas cortinas, produziam ondulantes clarões vermelhos. À noite, era a vez de a lua cuidar da iluminação. Quando estava no zênite, sua doce luz fantasmática aclarava um único ponto da sala. Aclarava o único elemento presente naquele espaço: um grande piano de cauda.

Ao entrar, Alire teve o cuidado de trancar a porta e então se sentou confortavelmente no banco ao pé do imenso piano. Seus dedos puseram-se a correr pelas teclas do instrumento, e logo ecoaram notas impregnadas de sua raiva pelo pai e sua tristeza pela vida que poderia ter tido. Poucas notas apenas flutuaram no ar, notas que se encerraram num ruído ensurdecedor produzido pela quantidade de teclas pressionadas de uma vez. Cansada, Alire desabou sobre o teclado e adormeceu em seguida.

No dia seguinte, Alire acordou com sons de passos e vozes: alunos e professores acabavam de chegar para as primeiras aulas de música do dia. Interrompida pelo sono no dia anterior, a moça não terminara de confiar suas mágoas e lamentos ao seu melhor amigo. Seus dedos se repuseram a correr pelas teclas do instrumento. Não havia partitura alguma diante dos seus olhos.

Era desnecessário. Contava com a única partitura de que precisava: seu coração e sua alma. As notas que flutuavam no ar vinham impregnadas da mesma raiva e tristeza do dia anterior, mas mescladas com um toque de melancolia e nostalgia. Deviam-se às lembranças de sua mãe, falecida na sua meninice. Lembrava dela sentada ao piano acústico que já não existia.

Calaram-se, nos corredores, as vozes e os sons de passos. Todos interrompiam suas atividades e prestavam atenção na música da pianista, para eles desconhecida.

Alire tocava piano com o mesmo objetivo de seu pai escrevendo sua biografia: confiar sua vida a alguém de confiança. Mas, ao contrário do pai, o que ela confiava ao seu melhor amigo era sincero, sem nenhuma mentira. E, principalmente, ninguém era obrigado a ler e compreender. Os passantes escutavam aquela música sem saber que ela representava a vida de uma garota insatisfeita com a vida que levava. O que os enfeitiçava era tão somente a melodia pura que o instrumento emanava. Escutavam sem tentar entender.

Por que tentar desmascarar um músico, se só o que importa é a sua melodia?



(Piauí; tradução: Dorothée de Bruchard)


(Ilustração: Almeida Júnior - descanso do modelo)



domingo, 2 de setembro de 2012

NO TRIBUNAL, de Carlos Nejar







Eu e o tribunal
 e sua fria mudez.
 O juiz no centro e no fim,
 o rosto girando em mim,
 farândola.
 Vim, com a escura coragem,
 de um réu antigo e selvagem.
 O que me prendeu,
 lutou comigo e venceu.
 Vacilava em me reter,
 mas eu que entregava,
 por saber que minha chaga
 estava exposta na lei.
 Giram as mãos
 e os pés atados. O juiz
 é um vulto que eu mesmo fiz
 com meus esboços. O juiz
 no centro, no fim,
 no tribunal onde vou,
 no tribunal donde vim.
 E  assim me condenei
 a permanecer aqui. 


(Ilustração:  Caravaggio - Davi e Golias)