quarta-feira, 5 de setembro de 2012
O PIANISTA MASCARADO, de Eliane Torralba
A música ecoava nos corredores. Estava longe de ser dessas notas banais que um pianista procura transpor da partitura para as teclas do piano. A música que flutuava no ar era bem diferente de tudo o que já havia sido tocado por algum aluno daquela Academia. Entrava pelos ouvidos e afluía ao coração antes de chegar ao cérebro. Variava como os sentimentos de um ser humano. Ora forte e tonitruante como o trovão, ora fina e melancólica como a chuva que cai.
Embalados pela música, professores, alunos, funcionários passavam frente à sala usando desculpas de toda espécie. Os funcionários alegavam ter se esquecido de limpar alguma coisa, os professores pretextando que queriam ir ao bebedeouro (o único, por sorte, ficava naquele piso) e os alunos diziam ter esquecido seus pertences, ou esquecido de dizer qualquer coisa a um professor, ou mesmo que queriam desentorpecer as pernas subindo os vários lances de escada. As desculpas eram variadas e às vezes um bocado fantasiosas. Tudo isso para escutar o pianista mascarado.
Os numerosos espectadores que ouviam a música não faziam ideia da aparência de seu autor. “É, decerto, algum ancião erudito, veterano da música, que hospedamos no estabelecimento”, afirmavam alguns, seguros de si. O pianista desconhecido, porém, não tocava Bach, nem Mozart, nem Beethoven, nem Chopin... nenhuma das obras famosas da cultura geral.
Os passantes quase nunca se atreviam a girar a maçaneta da porta, por medo de perturbar o pianista velado. Os mais curiosos tentavam, só para constatar que a porta estava trancada. E paravam aí. Não insistiam. Era inútil bater à porta. Por que tentar desmascarar um músico se só o que importa é a sua melodia?
Num canto do seu quarto, com o volume aberto no colo, Alire espiava as páginas do livro através dos óculos redondos. Faltavam muitos elementos essenciais nas páginas que ela virava sem qualquer animosidade. Os homens que escreviam livros desse tipo (somente homens, de fato) não tinham um pingo de imaginação. Só o que faziam era pensar em suas próprias vidas e transpô-las para o papel, como um pianista transpõe as notas de uma partitura para as teclas do piano. O livro que ela tinha em mãos, o livro que seu pai considerava uma “obra” para ela não passava de um mísero diário íntimo, por acaso vendido no mundo inteiro.
Cansada, Alire fechou secamente o livro e se jogou sobre a cama. Seus olhos estavam fitos no alto, mas seu olhar ia muito além do teto mofado que encimava seu quarto. Os dedos da moça puseram-se a correr pela cama de forma ritmada. O que nela era habitual.
Seus pensamentos afluíram ao colégio que ela deixara poucas horas antes. Dirigiram-se para um ponto preciso. “No programa deste mês, vamos estudar um romance autobiográfico contemporâneo. Que com certeza irá agradar uma pessoa desta classe.” Fora a professora de francês quem alegremente fizera o anúncio. Era uma senhora de idade, de nariz tão curvo quanto suas costas. Pronunciara a última frase endereçando a Alire um sorrisinho de esguelha. Pelo sorriso, Alire soube de imediato a que se referia a bruxa da sua professora. Teve então tempo de fechar os olhos e se preparar para o pior. Seus dedos corriam pela mesa, movidos pelo medo e nervosismo. Quando abriu os olhos, abaixou-os, sem inclinar a cabeça. Ali estava ele. Sobre a mesa. O último livro que ela escolheria para estudar em aula.
De ora em diante, sua vida no colégio seria transtornada para sempre. Alire não se atreveu a olhar para os colegas, mas as risadinhas indicavam que já tinham lido o nome que constava na capa. “Vocês vão ler esse livro durante as férias. Na volta às aulas, vão descobrir a que ponto o nosso caro Georges Duvaleau é o mestre da autobiografia. Para mim, é o escritor desta última década.” A professora dissera isso com um entusiasmo que chegava a doer em Alire.
E ei-la agora deitada em sua cama com o livro nas mãos, obrigada a lê-lo no tempo livre. Obrigada por seu pai. A moça aproximou o livro do rosto e se atreveu, mais uma vez, a ler a capa: Vida em Cartas de Georges Duvaleau. Duvaleau... Queria riscar aquele nome com seu marcador e substituí-lo por outro. Era tudo o que mais queria. Como seria a sua vida se seu pai não fosse quem era?
Ela o vira inclinado frente ao computador, digitando freneticamente no teclado. Noites inteiras dedicadas aos seus escritos haviam cavado olheiras sob seus olhos. Dias inteiros comendo pouco o tinham emagrecido. Os dias todos passados a escrever aquele livro tinham-no transformado numa criatura que não se importava com ninguém, nem sequer com a própria filha. Antigamente também era assim. Ele ficava daquele mesmo jeito ao escrever artigos jornalísticos. A ideia de que seu pai só escrevia falsidades sobre sua própria vida tomava conta da mente de Alire. Se era mesmo a realidade o que ele escrevia esse tempo todo naquelas páginas, quem se atreveria a lê-las?
E ela agora tinha que ler aquilo. Um tijolão repleto de mentiras. Já não podia recuar, e de qualquer forma seria obrigada a ler, mais dia menos dia. Seu pai a obrigaria.
Depois de colocar bruscamente “a obra” sobre o criado-mudo, Alire levantou-se e saiu do quarto. No corredor, deu de cara com o pai, que exibia um sorriso imenso, ou melhor, um pseudossorriso. Georges Duvaleau estava longe de ser um homem inclinado a sorrir. Nas raras vezes em que o fazia, o sorriso que ostentava não era, de modo algum, sincero. Apenas um ricto. Alire conhecia o pai de cor e salteado. Quando seus lábios se esticavam naquele ricto, ele estava para anunciar uma boa notícia. Boa notícia do ponto de vista dele.
Como Alire previa (dedos correndo pelos quadris), ele falou sobre o livro. Estava a par de que fora incluído no programa. Como não estaria? Era amicíssimo do diretor da escola e da bruxa velha da professora de francês. O que seu pai estava dizendo? Não sabia, pois o ignorou de imediato, tal como ele próprio costumava fazer com ela. Estava, decerto, repetindo a ladainha de sempre: que pusera todo o seu empenho naquele livro, que ele tinha de ser lido, que sem esse livro eles estariam no olho da rua...
Com a garganta apertada, ela passou pelo pai sem dirigir-lhe uma palavra. Estava cheia. Seu pai nunca falava com ela e, nas raras vezes em que o fazia, a conversa girava em torno da tal Vida em Cartas de Georges Duvaleau.
O olhar da moça parou num canto vazio da sala. Lembrou-se do piano acústico que antigamente ficava ali. Lembrou-se das marteladas que o pai lhe dera, das notas vibrando feito gritos de aflição e das palavras rancorosas que ele berrava: “A música não vai te levar a nada nessa vida, Alire Duvaleau! Esqueça essa arte e fique com a melhor de todas! A literatura!”
Ignorando a voz que a obrigava a dar meia-volta, Alire transpôs a porta da rua e lançou-se para fora da decrepitude que era a sua casa. Atravessou as ruas, andou pelas calçadas, rumando para o endereço em que se encontrava seu único consolo, seu confidente.
Alire viu-se defronte ao prédio. Um prédio antigo que datava da Revolução Francesa. Na porta havia um letreiro pendurado, com uma inscrição em relevo: Academia da quinta arte. Escola de música. Mas a moça não costumava entrar por essa porta principal, que estava fechada àquela hora. Só Alire conhecia uma passagem que dava justamente na sala aonde queria ir.
Era uma sala imensa, naquele momento escura, mas em geral bem aclarada pela luz do sol que se engolfava pela janela. De dia, os raios do sol, filtrados pelas cortinas, produziam ondulantes clarões vermelhos. À noite, era a vez de a lua cuidar da iluminação. Quando estava no zênite, sua doce luz fantasmática aclarava um único ponto da sala. Aclarava o único elemento presente naquele espaço: um grande piano de cauda.
Ao entrar, Alire teve o cuidado de trancar a porta e então se sentou confortavelmente no banco ao pé do imenso piano. Seus dedos puseram-se a correr pelas teclas do instrumento, e logo ecoaram notas impregnadas de sua raiva pelo pai e sua tristeza pela vida que poderia ter tido. Poucas notas apenas flutuaram no ar, notas que se encerraram num ruído ensurdecedor produzido pela quantidade de teclas pressionadas de uma vez. Cansada, Alire desabou sobre o teclado e adormeceu em seguida.
No dia seguinte, Alire acordou com sons de passos e vozes: alunos e professores acabavam de chegar para as primeiras aulas de música do dia. Interrompida pelo sono no dia anterior, a moça não terminara de confiar suas mágoas e lamentos ao seu melhor amigo. Seus dedos se repuseram a correr pelas teclas do instrumento. Não havia partitura alguma diante dos seus olhos.
Era desnecessário. Contava com a única partitura de que precisava: seu coração e sua alma. As notas que flutuavam no ar vinham impregnadas da mesma raiva e tristeza do dia anterior, mas mescladas com um toque de melancolia e nostalgia. Deviam-se às lembranças de sua mãe, falecida na sua meninice. Lembrava dela sentada ao piano acústico que já não existia.
Calaram-se, nos corredores, as vozes e os sons de passos. Todos interrompiam suas atividades e prestavam atenção na música da pianista, para eles desconhecida.
Alire tocava piano com o mesmo objetivo de seu pai escrevendo sua biografia: confiar sua vida a alguém de confiança. Mas, ao contrário do pai, o que ela confiava ao seu melhor amigo era sincero, sem nenhuma mentira. E, principalmente, ninguém era obrigado a ler e compreender. Os passantes escutavam aquela música sem saber que ela representava a vida de uma garota insatisfeita com a vida que levava. O que os enfeitiçava era tão somente a melodia pura que o instrumento emanava. Escutavam sem tentar entender.
Por que tentar desmascarar um músico, se só o que importa é a sua melodia?
(Piauí; tradução: Dorothée de
Bruchard)
(Ilustração: Almeida Júnior -
descanso do modelo)
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