sábado, 29 de setembro de 2012

OS APARATOS DO TEMPO, de Octavio Paz







Cada civilização é uma visão do tempo. Instituições, obras de arte, técnicas, filosofias, tudo o que fazemos ou sonhamos é um tecido do tempo. Ideia e sentimento do transcorrer, o tempo não é mera sucessão; para todos os povos é um processo que possui uma direção e aponta para um fim. O tempo tem um sentido. Melhor dito: o tempo é o sentido do existir, inclusive se afirmamos que este carece de sentido. As opostas atitudes dos hindus e cristãos ante a condição humana – karma e pecado original, moksha e redenção – se inscrevem em distintas visões do tempo. As duas atitudes são manifestações e consequências do suceder temporal; não somente passam no tempo e estão feitas de tempo, e sim que são efeitos de um fato que determina o tempo e a sua direção. O fato, no caso do cristianismo, ocorreu antes do começo do tempo: a falta de Adão e Eva foi cometida em um lugar até então imune a mudanças: o Paraíso. A história do gênero humano começa com a expulsão do Éden e nossa caída na história. No caso do hinduísmo (e do budismo) a causa não é anterior, e sim inerente ao próprio tempo. Para o cristianismo, o tempo é filho da falta original e por isto sua visão do tempo é negativa, ainda que não inteiramente: os homens, pelo sacrifício de Cristo, e graças ao exercício da sua liberdade, que é um dom de Deus, podem salvar-se. O tempo não só é condenação; é também uma prova. Para o hindu o tempo é mal em si mesmo. Melhor dito, por ser impermanente e cambiante, é ilusório. O tempo é maya; uma mentira em aparência prazerosa, porém que não é senão sofrimento, erro e ao final, morte que nos condena a renascer na horrível ficção de outra vida igualmente dolorosa e quimérica.


Para os cristãos e para os judeus, também para os muçulmanos, só houve uma criação. “A cosmografia clássica”, disse Louis Renau, “imagina um ovo de Brahma de onde brotam as séries de criações sucessivas” (La civilisation de l’Inde ancienne d’aprés les textes sanscrites, Paris, 1950). Não uma única criação, e sim muitas. Renau agrega: “A duração do universo, desde o começo até sua dissolução, é um dia de Brahma; uma infinidade de nascimentos o terá precedido e outras dissoluções o seguirão.” O universo dura o que dura o sonho de Brahma; ao despertar, o universo se desvanece porém volta a nascer logo que a divindade se põe a dormir de novo. Brahma está condenado a sonhar o mundo e nós. a ser o seu sonho. Conhecemos a duração destes sonhos recorrentes: 2190 milhões de anos terrestres. Em outras versões a duração destes sonhos é de 4.320 milhões de anos. Cada ciclo (kalpa) está composto por eras (yugas). Há quatro em cada kalpa e nós vivemos na quarta era, a final, deste ciclo: Kaliyuga. É a era do erro, a confusão de castas e a degradação da ordem cósmica e social. Seu fim se aproxima e perecerá pela dupla ação do fogo e água. Depois de um período de letargia cósmica, o universo recomeçará outro ciclo. Assim posto, o tempo se acaba, tem um fim: porém renasce e torna a percorrer o mesmo circulo; é um sem fim (Luis Gonzales Reiman, Tiempo cíclico y eras del mundo em La India, El Colegio de México, 1988). No budismo e no jainismo há ciclos e cifras semelhantes. Contrasta a enormidade destes ciclos com a duração que os cristãos atribuem ao mundo: uns poucos milhares de anos. Na cosmologia hindu, incluindo a budista e a jainita, também há, como em Giordano Bruno e nas hipóteses de muitos cientistas modernos, pluralidade de mundos habitados por criaturas inteligentes. Em cada um destes mundos há outros Budas e outros Mahaviras (Mahavira: fundador do jainismo). Os textos budistas nos dizem, inclusive, que um Buda futuro ensinará aos homens esquecidos o caminho reto para o nirvana. Conhecemos seu nome: Maitreya.



A ideia de sucessivas criações cósmicas e a concomitância de idades ou eras do mundo aparece em muitos povos. Foi uma crença dos índios americanos; os antigos mexicanos diziam que o número de criações, que eles chamavam sóis, eram cinco. A última, a quinta, é a atual: sol do movimento. Estas crenças também figuram em outros povos do Oriente, Ásia Menor e do Mediterrâneo. Dela compartilharam vários filósofos: Pitágoras, Empédocles, Platão, os estoicos. Outras semelhanças entre os hindus e os greco-romanos: o mundo sublunar é imperfeito e defeituoso porque se modifica sem cessar. A troca reflete uma carência; o ser incompleto, o homem, aspira à plenitude do ser, sempre idêntico a si mesmo. A troca, a incessante mutação que são o tempo e o mundo, aspira à identidade imutável do ser. Para os gregos e para os hindus o movimento era dificilmente compreensível, salvo como tentativa para alcançar a imutabilidade do ser, que está para além do tempo. Daí que Heráclito concebia o mundo não como progressão feita pela luta dos contrários – segundo supõe a moderna interpretação, errônea na minha avaliação -, e sim como um ritmo composto por sucessivas e repetidas rupturas seguidas de reconciliações: a unidade se divide em duas metades que se odeiam, se amam e terminam por reunir-se para tornar a se separar, e assim até o final dos séculos. Não afinidades eleitas, e sim regidas por uma fatalidade: cada afirmação engendra sua negação que, por sua vez, se nega em outra afirmação. Heráclito ignorou o progresso; também Platão e Aristóteles. Por isto os últimos veem no círculo a imagem da perfeição: o ponto de seu começo é também o do fim. O círculo está feito à semelhança do eterno movimento dos corpos celestes. O movimento tem sede de imobilidade, o tempo de imutabilidade.



A complexidade da cosmogonia hindu, e a enorme duração dos ciclos, se parecem com a lógica que rege os pesadelos. Ao final, essas cosmogonias se dissolvem; abrimos os olhos e nos damos conta de que estivemos entre fantasmas. O sonho de Brahma, o que chamamos realidade é uma quimera, um pesadelo. Despertar é descobrir a irrealidade deste mundo. A característica negativa do tempo não é decorrente de ser consequência de um pecado original, e sim pelo contrario: o pecado ou falta original do homem é ser um filho do tempo. Porque o tempo é mal? Por ser impermanente, ilusório, irreal. O tempo carece de substância: é sonho, é mentira, maya. Esta palavra é traduzida como ilusão. Porém tem que se acrescentar que a ilusão que é o mundo é uma criação divina. Um Upanishad diz: ”Deves saber que a Natureza (prakriti) é ilusão (maya) e que o Senhor é o ilusionista (mayin).” No Bhagavad Gita, para explicar a Arjuna seus nascimentos, Krishna disse: “Ainda que não tenha nascido, e meu ser seja imortal, encarnei em um ser mortal (neste mundo) por meio do meu poder (maya).” Aqui maya é poder. Porém, acrescenta Krishna em outra passagem, “aqueles que buscam refúgio em mim ultrapassam este poder divino (maya)”. Assim, maya é ilusão e igualmente poder criador de aparências. A realidade verdadeira, a única, não é uma criação nem uma aparência: é o Ser imutável e incriado. É a vacuidade para o budista. Maya é tempo, porém não no sentido ocidental que o vê como um processo dinâmico, sim como vã repetição de uma falsa realidade, uma aparência. Tudo o que muda adoece de realidade; o real é o que permanece: o ser absoluto (Brahma). O homem é impermanente como o cosmo, porém na sua profundidade está o ser (atman), idêntico ao ser universal. Ambos estão além do tempo, fora do acontecer. O Ser não pensa, nem sente, nem muda: é. Por sua vez, o budismo negou o ser e viu o ego como um conjunto de elementos sem substancia, que a meditação deve desagregar e depois dissolver. Hinduísmo e budismo são uma critica radical ao tempo.



Para o hinduísmo o tempo não tem sentido, ou melhor, não tem outro que o de se extinguir no pleno ser, como o diz Krishna a Arjuna. Esta concepção do tempo explica a ausência de consciência histórica entre os hindus. A Índia tem tido grandes poetas, filósofos, arquitetos, pintores, porém nenhum historiador. Entre os diversos meios pelos quais os hindus negam o tempo, há dois particularmente impressionantes: a negação metafísica e a social. A primeira impediu o nascimento deste gênero literário, cientifico e filosófico que chamamos historia; o segundo, a instituição das castas, imobilizou a sociedade.



O contraste com os muçulmanos é notável. Também com os chineses, para os quais a perfeição está no passado. Confúcio diz:”Não invento, transmito. Creio na antiguidade e a amo.” A civilização é uma ordem que não é diferente da ordem natural e cósmica: é um ritmo. A barbárie é a transgressão das regras da natureza, a confusão do princípio celeste com o terrestre, a mistura dos cinco elementos e dos quatro pontos do horizonte: ruptura do ritmo cósmico. A barbárie não está antes da historia, e sim fora dela. O alvorecer da civilização, a mítica idade feliz do Imperador Amarelo, é também seu meio-dia, seu momento mais alto. O apogeu está no amanhecer; o começo é a perfeição e por isto é o arquétipo por excelência. A Antiguidade é perfeita porque é o estado de harmonia entre o mundo natural e o social. Daí a importância dos cinco livros clássicos, são a fonte do saber político e o fundamento da arte de governar. A política é uma parte da teoria da correspondência universal; a música, a poesia, a dança, os ritos são política porque são ritmo; a imitação dos antigos é a via do sábio e do governante virtuoso. A heterodoxia taoísta não crê nos clássicos nem na civilização e na virtude, na acepção que davam a estas palavras Confúcio e seus discípulos, porém concordavam com eles em ver a natureza como um modelo: a sabedoria é consonante com o ritmo natural, saber não é conhecimento, e sim afinação da alma. O sentido do tempo está no passado, a Antiguidade é o sol que ilumina nossas obras, julga nossos atos guia nossos passos.



Entre os mulçumanos a história é bem mais crônica e não uma meditação sobre o tempo. Não obstante, Ibn Khaldun divide as sociedades humanas em dois grupos: culturas primitivas e civilizações. As primeiras, nômades ou sedentárias, não conhecem propriamente a história: ligadas à terra ou errantes no deserto, vivem sempre o mesmo tempo. As civilizações nascem, alcançam o apogeu, declinam e desaparecem: sobre suas pedras voltam a andar as cabras. As civilizações são organismos individuais, cada uma com suas características próprias, porém todas sujeitas à lei do nascimento e morte. Contêm, sem duvida, um elemento intemporal: a religião. A verdadeira perfeição não está no tempo e sim nas religiões, sobretudo na última, o islã, que é a revelação definitiva.



O tempo cristão não é cíclico e sim retilíneo. Teve um princípio, Adão, Eva, e a caída; um ponto intermediário: a Redenção e o sacrifício de Cristo; um período final: o nosso. O tempo cristão rompe o tempo circular do paganismo. Para Platão e Aristóteles o movimento perfeito é o circular; a imagem das revoluções dos corpos celestes é racional e eterno. O movimento retilíneo  é acidentado e finito; é contingente: não se move por si mesmo e sim graças à impulsão de um agente externo. O cristianismo inverte os sentidos; o tempo retilíneo, o humano, é o que importa porque é o da nossa salvação ou condenação. Não é um movimento eterno nem indefinido; tem um fim, no duplo sentido da palavra: término e finalidade. Pelo primeiro, é definitivo; pelo segundo, possui um sentido; e por ambos é um tempo decisivo. O cristianismo introduz a decisão, a liberdade: seu tempo significa redenção ou perdição. Seu valor não reside no passado, ainda que a caída seja a causa do tempo e da história, e sim no presente: agora mesmo me salvo ou me condeno. Este valor agora também se refere a um futuro também definido: a hora final, seja a da nossa morte individual ou a do juízo Universal. O cristianismo coincide com as outras religiões em conceber a perfeição para além do tempo, porém, este mais além, não está nem no passado nem fora do tempo e sim em um futuro preciso, definido: o fim do tempo. Este fim é o começo de algo que já não é o tempo, algo que não podemos nomear, ainda que por vezes o chamemos de eternidade.



A ideia moderna do tempo se fundamenta na do cristianismo. Também para nós o tempo é uma sucessão linear, história - não sagrada e sim profana. A conversão do tempo religioso em tempo profano teve como imediata consequência transformá-lo: cessou de ser finito e definido para ser infinito e indefinido. O tempo moderno é um permanente mais adiante, um futuro sempre não alcançado e irrealizável. Esse futuro é indefinível posto que não tem fim nem finalidade: sua essência consiste em ser um futuro intocável. À medida que o futuro se distancia, o passado se distancia: também é intocável. Sem dúvida, podemos explorá-lo e calcular com certa precisão a antiguidade da espécie humana, e ainda da terra e do sistema solar. Por outro lado o futuro é e será incalculável. Talvez logremos saber de onde viemos, porém não é fácil que saibamos para onde vamos. Disparado para adiante, flecha em linha reta, nosso tempo não tem mais sentido que o de ser um perpétuo movimento cada vez mais perto -cada vez mais longe- da futura perfeição. A ideia que nos atiça é maravilhosa e insensata: o futuro é progresso.



A expansão europeia transformou o ritmo das sociedades orientais; quebrou a forma do tempo e o sentido da sucessão. Foi algo mais que uma invasão. Esses povos já haviam sofrido outras dominações e sabiam o que é o jugo do estranho, porém a presença europeia lhes pareceu uma dissonância. Certos espíritos tentaram adivinhar um propósito por trás dessa agitação frenética e dessa vontade tendenciosa para um futuro indefinido. Ao descobrir em que consistia esta ideia, se escandalizaram: pensar que o tempo é progresso sem fim, mais que uma mística paradoxal, lhes pareceu uma aberração. À turvação se mesclou o assombro: por irracional que fosse esta concepção, como não ver que graças a ela os europeus faziam prodígios? A reprovação com a qual as elites hindus e muçulmanas viram o materialismo dos europeus se transformou rapidamente em admiração. Reconheceram que, se não eram mais sábios que eles, os ingleses eram mais poderosos. Seu saber não conduzia nem à contemplação da divindade nem à liberação; sua ciência era ação: a natureza lhes obedecia e em suas cidades o poder dos fortes e os ricos pesavam menos. Era a velha magia, agora ao alcance de todo aquele que conhecesse a fórmula do encantamento.



A ciência e a técnica, o poder do homem sobre o mundo material e a liberdade que nos dá este poder: este é o segredo da fascinação que o Ocidente exerceu sobre as elites do Velho Oriente. Foi uma verdadeira vertigem: o tempo pesou menos, os homens não eram escravos nem das revoluções dos astros nem da lei kármica. Agora podia assumir a forma que nossa vontade e nosso saber determinassem. O mundo se tornou maleável. A aparição do tempo moderno resultou numa inversão dos valores tradicionais, o mesmo na Europa e Ásia: ruptura do tempo circular pagão, destruição do absoluto intemporal hindu, descrédito do passado chinês, fim da eternidade cristã. Dispersão e multiplicação da perfeição: sua moradia é o futuro e o futuro está em todas as partes e em nenhuma, ao alcance da mão e sempre mais além. O progresso deixou de ser uma ideia e se converteu em uma fé. Mudou o mundo e as almas. Não nos redime de nossa contingencia; o exalta como uma aventura que sem cessar recomeça: o homem já não é a criatura do tempo e sim seu criador.



Artimanhas do tempo: no momento em que a idolatria da mudança, a crença no progresso como uma lei histórica e a proeminência do futuro triunfam em todo o mundo, essas ideias começam a se desmoronar. Duas guerras mundiais e a instauração de tiranias totalitárias fazem vacilar a nossa fé no progresso; a civilização tecnológica tem demonstrado que possui imensos poderes de destruição, o mesmo sobre o ambiente natural, cultural e espiritual. Rios envenenados, bosques transformados em desertos, cidades contaminadas, almas desabitadas. A civilização da abundância é também a da fome na África e em outros locais. A derrota do nazismo e do comunismo tem deixado intacto e a descoberto todos os males das sociedades democráticas liberais, dominadas pelo demônio do lucro. A famosa frase de Marx sobre a religião como ópio do povo pode aplicar-se agora, com maior razão, à televisão, que acabará por anestesiar o gênero humano, apequenado em uma beatitude idiota. O futuro tem deixado de ser uma promessa radiante e se transformado em uma interrogação sombria.



Para Ghandi, as civilizações iam e voltavam; o único que ficava em pé era o dharma: a verdade do humilde sem outra espada que a não-violência. De certo modo não lhe faltava razão: a história é a grande construtora de ruínas. Ele opunha às invenções daninhas do ocidente sua fé em uma sociedade composta por pequenas aldeias de agricultores e artesãos. A história mesmo, em sua forma mais cega e brutal, o tem desmentido: a explosão demográfica tem feito em cacos o sonho das aldeias felizes. Cada aldeia é um foco de miséria e desdita. Não insistirei no que todos sabemos, ainda que a maioria não de um modo muito claro: nossa ideia de tempo tem se despedaçado e suas milagrosas invenções nos queimam as mãos e as mentes. Talvez o remédio esteja em colocar no centro da tríade temporal, entre o passado que se distancia e o futuro ao qual nunca chegaremos, o presente. A realidade concreta de cada dia. Acredito que a reforma da nossa civilização deverá começar com uma reflexão sobre o tempo. Há de se fundar uma nova política enraizada no presente. Porém este é outro tema, do qual já tratei em outros livros. Estas páginas começaram com uma tentativa em responder a interrogação que me fiz na Índia. Agora terminam com uma pergunta que nos engloba a todos: em que tempo vivemos?





(Tradução de Mozart Bezerra Alves Filho)


(Vislumbres de la India)


(Ilustração: Salvador Dalí - tempo)




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