quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A PAIXÃO LÉSBICA DA IMPERATRIZ LEOPOLDINA, de Luiz Mott

 




O Brasil detém duas importantes marcas da presença do lesbianismo em nossa história: em Ilhéus, na principal praça da cidade de Grabriela Cravo e Canela, lá está uma bela estátua de Safo de Lesbos, considerada a "matriarca" do lesbianismo. É uma escultura em mármore branco, tamanho natural, obra italiana ou francesa, de autor desconhecido, provavelmente esculpida no final do século XIX. Não se tem notícia de outra cidade no mundo que tenha em sua praça principal, estátua da "fundadora do lesbianismo". 

A segunda marca da presença lésbica em nossa história remete-nos à figura de nossa Alteza Imperial, D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, Arquiduquesa de Áustria, Imperatriz do Brasil [...], (1797-1826). Sua aparência física e hábitos masculinizados, as muitas cartas que trocou com a inglesa Maria Graham, sugerem enfaticamente que Leopoldina também "gostava do roçadinho"... 

Não foi com a Imperatriz Leopoldina a primeira vez que o lesbianismo penetrou em palácios reais: a intrépida Rainha Cristina da Suécia (1626-1689) manteve comprometedora afeição e terna correspondência com sua dama de honra, Ebba Sparre e um clamoroso romance com uma freira romana, quando de seu exílio na Itália. 

A própria Maria Antonieta, a infeliz mulher o rei Luiz XVI, teve romances glamurosos com duas favoritas: Madame de Lamballe e Mademoiselle Jules de Polignac, conforme relatam seus biógrafos mais fidedignos. Das lésbicas reais, a menos afortunada foi Catarina Howard, uma das esposas de Henrique VIII, decapitada sob a acusação de trocar o amor do rei pelo carinho de outras mulheres. 

A nossa Imperatriz Leopoldina - hoje nome de estação de trem, escola de samba e de cidade mineira - era uma princesinha feia. Segundo seus biógrafos, nada tinha de bonita, sequer de agradável. Era a antítese do ideal que o fogoso Príncipe D. Pedro I acariciava. Em vez de uma mulher-fêmea, lhe impingiram uma universitária por esposa. Em vez de costureiros e professores de dança, a Habsburgo trouxe da Áustria duas missões de naturalistas. Melhor para o Brasil, pois herdamos maravilhosas descobertas e registros iconográficos feitos por esta equipe de pesquisadores. 

Eis como seu principal biógrafo, Pedro Calmon, a descreve: baixa, fornida de carnes, pele leitosa, faces rebentando de sangue, os cabelos de um loiro queimado, o nariz pequeno, os olhos severos, a boca diminuta e carnuda, as mãos papudas, numa inquietação viril a dialogar com seus naturalistas. Ao desembarcar no porto do Rio de Janeiro, assustou o noivo! 

De espírito varonil, era inclinada às ciências exatas. Usava curiosas vestes meio masculinas, abusava das bebidas alcoólicas. De longe parecia um homem, enganchada no ginete, ostentando uma virilidade grotesca. Amava a equitação, a caça, os exercícios desportivos, preferências pouco adequadas à fragilidade do seu sexo de princesinha criada aos sons dos minuetos de seus conterrâneos Mozart e Haydn. 

Tudo leva a crer que Maria Graham foi a principal paixão lésbica de Leopoldina, ou quando menos, a única até agora descoberta pelos historiadores: Maria era natural da Inglaterra, de família nobre, viúva de um explorador. Foi contratada como governanta da filha primogênita de Leopoldina, D. Maria da Glória. Sua permanência na Corte - no Palácio de S. Cristóvão, hoje Quinta da Boa Vista, não chegou a um mês, quando foi despedida pelo próprio Imperador - certamente enciumado com as intimidades entre estas duas europeias. A inglesinha era 12 anos mais jovem que a imperatriz austríaca. 

Nos 25 dias que dormiram sob o mesmo teto em Palácio, estas duas senhoras mantiveram estreita amizade: "a princípio a Imperatriz chamava-me ao seu apartamento, conta a Governanta Maria Graham em seu Diário, aproveitando-se da sesta que D. Pedro tirava após ao almoço. A familiaridade com que a Imperatriz me tratava, excitava violentos ciúmes entre as damas da corte " - daí ter preferido D. Leopoldina procurar sua amiga dileta em seu quarto, no andar superior. "Nossa conversinha sossegada durava até a Imperatriz ir-se preparar para o passeio da tarde com o Imperador..." 

Tão idílica felicidade durou pouco: um emaranhado de intrigas das cortesãs da Quinta da Boa Vista levaram o ciumento marido imperial a praticamente expulsar a inglesinha de Palácio. Maria teve de deixar a companhia de Leopoldina, a toque de caixas, não antes de as duas amigas ainda privarem de alguns momentos de intimidade: "chorando, conta Maria Graham, a Imperatriz usou suas pequenas e brancas mãos para embrulhar meus livros e roupas, ocupando-se de tudo o que podia. Foram muitas lágrimas derramadas dos dois lados na manhã da partida." 

Nos primeiros dias após esta cruel separação, por ordem escrita de demissão assinada pelo Imperador, Leopoldina enviou quase diariamente cartas a sua amiga e confidente, sempre tratando-a com expressões as mais amatórias: "Minha querida amiga", "Queridíssima amiga", "Minha delicadíssima e única amiga". Ao se despedir, a amazonas imperial novamente abre seu coração carente: "Vossa amiga afetuosa e dedicada", "Vossa muito afeiçoada amiga". 

Revela amiúde o quanto fora-lhe importante conviver com a jovem viúva inglesa: "Eis que não passa um momento sem que eu não lamente, vivamente, ter-me privado de vossa companhia e amável conversação, meu único recreio e verdadeiro consolo nas horas de melancolia. Crede-me, minha delicada e digna amiga, que sinto vivamente o sacrifício que impus no meu coração, que sabe apreciar as doçuras da amizade, separando-me de vós... Penso mil vezes em vós e nos deliciosos momentos que passei em vossa amável companhia..." 

Como terão sido estes momentos deliciosos e esta amável companhia? Puro amor platônico ou frissons e êxtases lesbianos? 

Deixando o Brasil, Maria Graham alimentou esperanças na infeliz Imperatriz, de que um dia ainda voltariam a ter aqueles deliciosos momentos que tanto marcaram suas vidas. Eis as palavras de Leopoldina: "Quantas vezes, com saudades, penso em nossas conversas diárias, persuadindo-me com a esperança de vos rever ainda na Europa, onde nenhuma pessoa do mundo será capaz de me forçar a deixar de vos ver diariamente e dizer, de viva voz, que sou, para toda a vida, vossa amiga afetuosa e dedicada..." 

E completa suas fantasias amorosas: "A primeira coisa que farei ao chegar a Londres será certamente procurar-vos, onde quer que estiverdes e agradecer-vos pessoalmente todas as provas de amizade que houvestes por bem me fornecer. Só as expansões no coração de uma verdadeira amiga podem promover a felicidade: nossa maneira de pensar é a mesma e a nossa amizade constante para sempre!" 

Oh! Que linda declaração de amor! Que maravilhosa afirmação de que apenas uma mulher pode entender e realizar profundamente outra mulher: "só as expansões no coração de uma verdadeira amiga podem promover a felicidade!" 

De sua parte, a inglesinha Maria Graham também não poupava palavras de amor para sua protetora, a quem dizia ser "a mais amável das mulheres". Em uma carta enviada de Londres, dizia: "Minha augusta e bem-amada amiga: a distância que me separa de V. Majestade não poderá jamais alterar a viva amizade que me inspirou vossa condescendente bondade e doçura. Ninguém no mundo pode amar, estimar e respeitar mais V. M. do que a amiga fiel e afetuosa e serva dedicada." 

Amar, estimar e respeitar são sentimentos tão profundos, e quando elevados à condição máxima - "ninguém no mundo pode amar, estimar e respeitar mais Vossa Majestade!" - constituem a suprema declaração de amor de uma mulher por outra jamais registrada na história antiga do Brasil! 

A figura de Maria Graham também sugere que se tratava de mulher forte, pouco convencional em matéria de gênero. Dizem seus contemporâneos que era extremamente sóbria, vestindo-se sem vaidades. 

Diferentemente das mulheres de seu tempo, confessa em seu diário que nunca gostou de dançar nem de usar joias. Corajosa, viveu por vários meses numa chácara isolada no morro das Laranjeiras, nos arrabaldes do Rio de Janeiro, onde certa feita, empunhando uma machadinha, enfrentou um assaltante que tentava entrar pela janela de seu quarto. Mulher de cabelo na venta, essa viúva britânica! Em seu diário, em outubro de l821, escrevia: "Não vi hoje uma só mulher toleravelmente bela pela cidade do Rio de Janeiro..." 

Às vésperas da Independência, fez questão de se encontrar com a mulher-soldado, Maria Quitéria - o principal travesti mulher-homem de nossa história - que de tão masculinizada, havia se alistado no exército libertador, com o nome falso de Soldado Medeiros, sem que ninguém jamais desconfiasse que não era homem de verdade. 

Em seu diário, Maria Graham anotou detalhe curioso - Maria Quitéria costumava fumar um charuto após a refeição - hábito tipicamente masculino e que devia chocar muito mais antigamente do que em nossos dias. Por coincidência do destino, três mulheres fortes vivendo na cidade maravilhosa na mesma época: Leopoldina, Quitéria e Maria Graham. Mulheres pouco convencionais em questão de afeto, vaidade e feminilidade... 

Poucos anos após a afetuosa convivência com a inglesinha Maria Graham e a troca destas cartas tão cheias de amor e paixão, morre a infeliz Leopoldina, sem ter realizado seu maior sonho: rever sua querida amiga. Se chegaram de fato a manter intimidades lésbicas, até agora a documentação é desconhecida. Porém, "onde tem fumaça, tem fogo!" 



(Crônicas de um gay assumido, 2003) 



(Ilustração: Domenico Failutti - Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos) 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

CÉREBRO, de Ruy Proença

 





se caminho pela trilha

das ilhas

nos arquipélagos



se minha vida

é povoada de

sereias

polifemos



se desço ao

sulfuroso banho

ou à seção

de degolados

no quinto subsolo



se jogo a rede

sobre as estrelas

e depois

as devoro



se as garras

dos pterodátilos

durante a noite

rasgam

carnavalizam

minhas sinapses



se

estimulada

pelo fole

de meus pulmões

a extrusão

de meus neurônios

se assemelha

à ira dos vulcões



se minhas unhas

de amianto

escarificam

a chama o algodão

do último

e mais violento

amor



cérebro que só serviu

para me prever

depois de morto



(Ilustração: Luciano Garbati - 2008 - Medusa segurando a cabeça de Perseu)



sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O CORPO DOS CONDENADOS, de Michel Foucault

 

 



Damiens fora condenado, em 2 de março de 1757, a «fazer confissão pública [amende honorable] diante da porta principal da Igreja de Paris», aonde devia ser levado e conduzido numa «carroça, nu, em camisa, segurando uma tocha de cera acesa com um peso de duas libras»; em seguida, «na dita carroça, na praça de Grève, e num cadafalso que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, a sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com enxofre a arder, e nas partes em que será atenazado serão deitados chumbo derretido, azeite a ferver, piche em fogo, cera e enxofre derretidos, e depois o seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e os seus membros e corpo consumidos no fogo, reduzidos a cinzas, que serão lançadas ao vento»(1). 

«Finalmente, foi esquartejado», relata a Gazette d’Amsterdam(2). Esta última operação foi muito longa, pois os cavalos utilizados não estavam habituados à tração; de maneira que, em vez de quatro, foi necessário usar seis; e como se isto não bastasse, para desmembrarem as coxas do desgraçado, tiveram de lhe cortar os nervos e de lhe rasgar as articulações… 

«Diz-se que, apesar de ter sido sempre um grande praguejador, não proferiu qualquer blasfémia; apenas as dores excessivas o faziam soltar gritos horríveis e, muitas vezes, repetia: Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, ajuda-me. Os espetadores ficaram muito edificados com a solicitude do cura de São Paulo, que, apesar da idade avançada, não perdia um momento para consolar o paciente.» 

E o polícia Bouton relata: «Atearam o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão só ficou um pouco queimada. Em seguida, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, pegou em tenazes de aço preparadas para o efeito, com cerca de um pé e meio de comprimento, e atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, e passou então às duas partes do músculo do braço direito; depois atenazou-lhe os mamilos. Embora forte e robusto, este executor teve muita dificuldade para arrancar os bocados de carne, que ele tirava com as tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e aquilo que arrancava formava em cada parte uma ferida do tamanho de um escudo de seis libras. 

«Após estes suplícios com a tenaz, Damiens, que gritava muito, mas sem praguejar, levantou a cabeça e olhou-se; o mesmo carrasco, com uma colher de ferro, tirou do caldeirão uma droga fervente, que derramou profusamente sobre cada ferida. Em seguida, ataram com cordas menores as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes depois atrelados a cada membro ao longo das coxas, pernas e braços. 

«O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se várias vezes do paciente para lhe perguntar se tinha alguma coisa a dizer. Disse que não; a cada tormento, gritava como vemos representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor.” Apesar de todos estes sofrimentos, levantava de vez em quando a cabeça e olhava-se corajosamente. As cordas muito apertadas pelos homens que puxavam as pontas provocavam-lhe dores inexprimíveis. O senhor Le Breton voltou a aproximar-se dele e perguntou-lhe se queria dizer alguma coisa; disse que não. Vários confessores aproximaram-se e falaram-lhe demoradamente; beijava resignado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e continuava a dizer: “Perdão, Senhor.” 

«Os cavalos deram uma arrancada, cada um deles puxando um membro a direito, cada qual segurado por um carrasco. Um quarto de hora depois, a mesma cerimónia e, por fim, depois de várias tentativas, foram obrigados a puxar os cavalos da seguinte forma: os do braço direito a cabeça, os das coxas rodando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas articulações. Estes puxões foram repetidos várias vezes sem sucesso. Ele levantava a cabeça e olhava-se. Foram obrigados a juntar dois cavalos, frente aos que estavam atrelados às coxas, o que totalizava seis cavalos. Nem assim. 

«Por fim, o executor Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia forma nem esperança de sucesso, e disse-lhe que fosse perguntar às autoridades se queriam que o mandasse cortar aos pedaços. Quando voltou da cidade, o senhor Le Breton ordenou que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos recusaram e um dos que estavam atrelados às coxas caiu no chão. Tendo regressado, os confessores falaram-lhe de novo. Ele dizia-lhes (ouvi-o): “Beijem-me, Senhores.” O senhor cura de São Paulo não ousou, mas o senhor de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-lhe a testa. Os carrascos reuniram-se e Damiens dizia-lhes para não praguejarem, que cumprissem a sua missão, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de São Paulo que rezasse por ele na primeira missa. 

«Após duas ou três tentativas, o executor Samson e aquele que o havia atenazado tiraram cada qual uma faca do bolso e cortaram as coxas do tronco do corpo; os quatro cavalos, com toda a força, arrancaram depois as duas coxas: primeiro a do lado direito e depois a outra; em seguida, fizeram o mesmo aos braços, na zona dos ombros e axilas e nas quatro partes; foi necessário cortar as carnes quase até ao osso; puxando com toda a força, os cavalos arrancaram primeiro o braço direito e depois o outro. 

«Depois de retiradas estas quatro partes, os confessores acercaram-se dele para lhe falarem; mas o carrasco disse-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se estivesse a falar. Um dos carrascos chegou até a dizer-me, pouco depois, que quando agarraram no tronco do corpo para o atirarem à fogueira, ele ainda estava vivo. Depois de terem sido libertados das cordas dos cavalos, os quatro membros foram atirados para uma fogueira, preparada no recinto em frente do cadafalso; em seguida, o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos, e atearam fogo à palha misturada com a lenha. 

«… Cumprindo a sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de ser consumido às dez e meia da noite. Os bocados de carne e o tronco levaram cerca de quatro horas a queimar. Os oficiais, entre os quais eu me encontrava, bem como o meu filho, com arqueiros formados em destacamento, permaneceram no local até perto das onze horas. 

«Há quem queira respostas sobre o facto de, no dia seguinte, um cão se ter deitado no local onde se fizera a fogueira; apesar de enxotado várias vezes, o cão voltava sempre. Mas não é difícil de compreender que esse animal achasse esse local mais quente do que outros.»(3) 

Três quartos de século depois, eis o regulamento redigido por Léon Faucher «para a Casa dos Jovens detidos em Paris»(4): 

Art. 17. O dia dos detidos começará às seis horas da manhã no inverno e às cinco horas no verão. O trabalho durará nove horas por dia em todas as estações. Duas horas por dia serão dedicadas ao ensino. O trabalho e a jornada terminarão às nove horas no inverno e às oito horas no verão. 

Art. 18. Levantar. Ao primeiro rufar do tambor, os detidos devem levantar-se e vestir-se em silêncio, enquanto o vigilante abre as portas das celas. Ao segundo rufar, devem estar de pé e fazer a cama. Ao terceiro, põem-se em fila para irem à capela, onde se faz a oração da manhã. Há um intervalo de cinco minutos entre cada rufar. 

Art. 19. A oração é feita pelo capelão e segue-se uma leitura moral ou religiosa. Este exercício não deve durar mais do que meia hora. 

Art. 20. Trabalho. Às 05h45 no verão e às 06h45 no inverno, os detidos descem para o pátio, onde devem lavar as mãos e a cara, e receber uma primeira distribuição de pão. Logo depois, formam-se por oficinas e dirigem-se para o trabalho, que deve começar às 06h00 no verão e às 07h00 no inverno. 

Art. 21. Almoço. Às 10h00, os detidos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório; vão lavar as mãos nos seus pátios e formar-se por divisões. Depois do almoço, recreio até às 10h40. 

Art. 22. Escola. Às 10h40, ao rufar do tambor, os detidos formam filas e entram na escola por divisões. A aula dura duas horas, dedicadas alternadamente à leitura, à escrita, ao desenho linear e ao cálculo. 

Art. 23. Às 12h40, os detidos deixam a escola por divisões e dirigem-se aos seus pátios para o recreio. Às 12h55, ao rufar do tambor, voltam a formar-se por oficinas. 

Art. 24. Às 13h00, os detidos devem estar nas oficinas: o trabalho dura até às 16h00. 

Art. 25. Às 16h00, os detidos deixam as oficinas e vão para os pátios, onde lavam as mãos e se formam por divisões para entrarem no refeitório. 

Art. 26. O jantar e o recreio que se segue duram até às 17h00: neste momento, os detidos voltam para as oficinas. 

Art. 27. Às 19h00 no verão e às 20h00 no inverno, termina o tempo de trabalho; é feita uma última distribuição de pão nas oficinas. Uma leitura de um quarto de hora, que tem por objeto algumas noções instrutivas ou alguma questão comovente, é feita por um detido ou por um vigilante, seguida da oração da noite. 

Art. 28. Às 19h30 no verão e às 20h30 no inverno, os detidos devem encontrar-se nas celas, depois da lavagem das mãos e da inspeção às roupas feita nos pátios; ao primeiro rufar de tambor, devem despir-se e, ao segundo, deitar-se na cama. As portas das celas são fechadas e os vigilantes fazem a ronda pelos corredores para garantir a ordem e o silêncio. 



Vimos aqui um suplício e um emprego do tempo. Não sancionam os mesmos crimes nem punem o mesmo género de delinquentes. Mas cada um deles define bem um certo estilo penal. Estão separados por menos de um século. É a época em que foi reorganizada, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes «escândalos» para a justiça tradicional, época de inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos «modernos»: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, é uma era nova. 

Entre tantas mudanças, destaco uma: o desaparecimento dos suplícios. Atualmente, tende-se um pouco a negligenciá-la; é possível que, no seu tempo, tenha dado lugar a demasiadas declamações; talvez tenha sido demasiado facilmente associada a uma «humanização» que não carecia de análise. De qualquer modo, qual a sua importância se a compararmos com as grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, regras unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda a parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e a tendência, que não para de se acentuar desde o século XIX, para modular os castigos em conformidade com os indivíduos culpados? Castigos menos imediatamente físicos, uma certa moderação na arte de fazer sofrer, um jogo de dores mais subtis, mais despojados do seu fausto visível; será que isto merece uma atenção particular, não sendo, certamente, mais do que o efeito de reformas mais profundas? Contudo, a verdade é que, em poucas décadas, desapareceu o corpo supliciado esquartejado, amputado, simbolicamente marcado no rosto ou nos ombros, exposto vivo ou morto, apresentado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal. 



Notas: 

(1) Pièces originales et procédures du procès fait à Robert-François Damiens, 1757, t. III, pp. 372-374. 

(2) Gazette d’Amsterdam, 1 de abril de 1757. 

(3) Citado em A. L. Zevaes, Damiens le régicide, 1937, pp. 201-214. 

(4) L. Faucher, De la reforme des prisons, 1838, pp. 274-282. 




(Vigiar e punir; tradução de Pedro Elói Duarte) 



(Ilustração: the pillory at Charing Cross - London-1809)



quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

UNION LIBRE / A UNIÃO LIVRE, de André Breton

 

 





Ma femme à la chevelure de feu de bois

Aux pensées d’éclairs de chaleur

A la taille de sablier

Ma femme à la taille de loutre entre les dents du tigre

Ma femme à la bouche de cocarde et de bouquet d’étoiles de

dernière grandeur

Aux dents d’empreintes de souris blanche sur la terre blanche

A la langue d’ambre et de verre frottés

Ma femme à la langue d’hostie poignardée

A la langue de poupée qui ouvre et ferme les yeux

A la langue de pierre incroyable

Ma femme aux cils de bâtons d’écriture d’enfant

Aux sourcils de bord de nid d’hirondelle

Ma femme aux tempes d’ardoise de toit de serre

Et de buée aux vitres

Ma femme aux épaules de champagne

Et de fontaine à têtes de dauphins sous la glace

Ma femme aux poignets d’allumettes

Ma femme aux doigts de hasard et d’as de coeur

Aux doigts de foin coupé

Ma femme aux aisselles de martre et de fênes

De nuit de la Saint-Jean

De troène et de nid de scalares

Aux bras d’écume de mer et d’écluse

Et de mélange du blé et du moulin

Ma femme aux jambes de fusée

Aux mouvements d’horlogerie et de désespoir

Ma femme aux mollets de moelle de sureau

Ma femme aux pieds d’initiales

Aux pieds de trousseaux de clés aux pieds de calfats qui boivent

Ma femme au cou d’orge imperlé

Ma femme à la gorge de Val d’or

De rendez-vous dans le lit même du torrent

Aux seins de nuit

Ma femme aux seins de taupinière marine

Ma femme aux seins de creuset du rubis

Aux seins de spectre de la rose sous la rosée

Ma femme au ventre de dépliement d’éventail des jours

Au ventre de griffe géante

Ma femme au dos d’oiseau qui fuit vertical

Au dos de vif-argent

Au dos de lumière

A la nuque de pierre roulée et de craie mouillée

Et de chute d’un verre dans lequel on vient de boire

Ma femme aux hanches de nacelle

Aux hanches de lustre et de pennes de flèche

Et de tiges de plumes de paon blanc

De balance insensible

Ma femme aux fesses de grès et d’amiante

Ma femme aux fesses de dos de cygne

Ma femme aux fesses de printemps

Au sexe de glaïeul

Ma femme au sexe de placer et d’ornithorynque

Ma femme au sexe d’algue et de bonbons anciens

Ma femme au sexe de miroir

Ma femme aux yeux pleins de larmes

Aux yeux de panoplie violette et d’aiguille aimantée

Ma femme aux yeux de savane

Ma femme aux yeux d’eau pour boire en prison

Ma femme aux yeux de bois toujours sous la hache

Aux yeux de niveau d’eau de niveau d’air de terre et de feu.



Tradução de Claudio Willer:




Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha

Com pensamentos de relâmpagos de calor

Com a cintura de ampulheta

Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre

Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza

Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca

Com a língua de âmbar e vidro friccionado

Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada

Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos

Com a língua de pedra inacreditável

Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças

Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha

Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa

E de vapor nos vidros

Minha mulher com ombros de champanhe

E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo

Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo

Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas

Com dedos de feno ceifado

Minha mulher com as axilas de marta e faia

De noite de São João

De ligustro e de ninho de carás

Com braços de espuma de mar e de eclusa

E mistura do trigo e do moinho

Minha mulher com pernas de foguete

Com movimentos de relojoaria e desespero

Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro

Minha mulher com pés de iniciais

Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem

Minha mulher com pescoço de cevada perolada

Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro

De encontro no próprio leito da correnteza

Com os seios de noite

Minha mulher com os seios de toupeira marinha

Minha mulher com os seios de crisol de rubis

Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho

Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias

Com ventre de garra gigante

Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical

Com dorso de mercúrio

Com dorso de luz

Com a nuca de pedra rolada e giz molhado

E queda de um copo do qual se acaba de beber

Minha mulher com os quadris de escaler

Com os quadris de lustre e penas de flecha

E de caule de plumas de pavão branco

De balança insensível

Minha mulher com nádegas de arenito e amianto

Minha mulher com nádegas de dorso de cisne

Minha mulher com nádegas de primavera

Com sexo de lírio roxo

Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco

Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos

Minha mulher com o sexo de espelho

Minha mulher com olhos cheios de lágrimas

Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada

Minha mulher com olhos de savana

Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão

Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado

Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.




Tradução de Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan:




Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha

Com pensamentos de relâmpagos de calor

De talhe de ampulheta

Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre

Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza

Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca

Com língua de âmbar e de vidro em atritos

Minha mulher com língua de hóstia apunhalada

Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos

Com a língua de inacreditável pedra

Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças

Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha

Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa

E de vapor nos vidros

Minha mulher com espáduas de champanhe

E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo

Minha mulher com pulsos de fósforos

Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas

De dedos de feno ceifado

Minha mulher com axilas de marta e de faia

De noite de São João

De ligustro e de ninho de carás

Com braços de espuma de mar e de eclusa

E de mistura do trigo e do moinho

Minha mulher com pernas de foguete

Com movimentos de relojoaria e de desespero

Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro

Minha mulher com pés de iniciais

Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem

Minha mulher com pescoço de cevada perolada

Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro

De encontro no leito mesmo da torrente

Com seios de noite

Minha mulher com seios de toupeira marinha

Minha mulher com seios de crisol de rubis

Com seios de espectro da rosa sob o orvalho

Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias

Com ventre de garra gigante

Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical

Com dorso de mercúrio

Com dorso de luz

Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado

E de queda de um copo do qual se acaba de beber

Minha mulher com ancas de chalupa

Com ancas de lustre e de penas de flecha

E de caule de plumas de pavão branco

De balança insensível

Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto

Minha mulher com nádegas de dorso de cisne

Minha mulher com nádegas de primavera

Com sexo de gladíolo

Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco

Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos

Minha mulher com sexo de espelho

Minha mulher com olhos cheios de lágrimas

Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada

Minha mulher com olhos de savana

Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão

Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado

Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.



(Clair de terre)



(Ilustração: Catherine Abel)




sábado, 19 de dezembro de 2020

CONTRIBUIÇÃO DO OURO DO BRASIL PARA O PROGRESSO DA INGLATERRA, de Eduardo Galeano

 



O ouro começara a fluir no preciso momento em que Portugal assinava com a Inglaterra o Tratado de Methuen, em 1703. Tal tratado foi a coroação de uma longa série de privilégios conseguidos pelos comerciantes britânicos em Portugal. Em troca de algumas vantagens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal abria seu próprio mercado e o de suas colônias às manufaturas britânicas. Por causa do desnível do desenvolvimento industrial já então existente, a medida implicava para as manufaturas locais uma condenação à ruína. Não era com vinho que seriam pagos os tecidos ingleses, mas com ouro, o ouro do Brasil, e pelo caminho restariam paralíticos os teares de Portugal. Portugal não se limitou a matar no ovo sua própria indústria: de passagem, aniquilou também os germens de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, criminalizou a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, ordenou que fossem incendiados os teares e as fiações do Brasil. 

Inglaterra e Holanda, campeãs do contrabando do ouro e de escravos, que amealharam grandes fortunas no tráfico ilegal de carne negra, por meios ilícitos apossaram-se, segundo se estima, de mais da metade do metal que correspondia ao imposto do “quinto real” que, no Brasil, era recebido pela coroa portuguesa. Mas a Inglaterra não recorria somente ao comércio proibido para canalizar o ouro brasileiro na direção de Londres. As vias legais também lhe pertenciam. O auge do ouro, que implicou o fluxo de grandes contingentes populacionais portugueses para Minas Gerais, estimulou fortemente a demanda colonial de produtos industriais e, ao mesmo tempo, proporcionou os meios de pagá-los. Do mesmo modo que a prata de Potosí rebotava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais apenas transitava em Portugal. A metrópole se transformou em simples intermediária. Em 1755, o marquês do Pombal, primeiro-ministro português, tentou a ressurreição de uma política protecionista, mas já era tarde: denunciou que os ingleses tinham conquistado Portugal sem os inconvenientes de uma conquista, que abasteciam duas terças partes de suas necessidades e que os agentes britânicos eram donos da totalidade do comércio português. Portugal não produzia praticamente nada, e tão fictícia era a riqueza do ouro que até os escravos negros que trabalhavam nas minas da colônia eram vestidos pelos ingleses[1]. 

Celso Furtado fez notar[2] que a Inglaterra, seguindo uma política clarividente em matéria de desenvolvimento industrial, utilizou o ouro do Brasil para pagar importações essenciais que fazia em outros países, e assim pôde concentrar seus investimentos no setor manufatureiro. Rápidas e eficazes inovações tecnológicas puderam ser aplicadas graças a essa gentileza histórica de Portugal. O centro financeiro da Europa se deslocou de Amsterdam para Londres. Segundo fontes britânicas, as entradas de ouro brasileiro em Londres alcançavam 50 mil libras semanais em alguns períodos. Sem esta tremenda acumulação de reservas metálicas, a Inglaterra, posteriormente, não teria conseguido enfrentar Napoleão. 

No solo brasileiro nada restou do impulso dinâmico do ouro, exceto as igrejas e as obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não estivessem esgotados os diamantes, o país estava prostrado. A receita per capita dos 3 milhões de brasileiros, segundo cálculos de Celso Furtado e nos termos do atual poder aquisitivo, não superava os 50 dólares anuais, e este era o nível mais baixo de todo o período colonial. Minas Gerais caiu verticalmente num abismo de decadência e ruína. Incrivelmente, um autor brasileiro agradece o favor e sustenta que o capital inglês que saiu de Minas Gerais “serviu à imensa rede bancária que propiciou o comércio entre as nações e tornou possível levantar o nível de vida dos povos capazes de progresso”[3]. Condenados inflexivelmente à pobreza, em função do progresso alheio, os povos mineiros “incapazes” se isolaram e tiveram de se resignar em arrancar seus alimentos das pobres terras já despojadas de metais e pedras preciosas. A agricultura de subsistência ocupou o lugar da economia mineira[4]. Em nossos dias, os campos de Minas Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, impertérritos bastiões do atraso. A venda de trabalhadores mineiros às fazendas de outros estados é quase tão frequente quanto o tráfico de escravos de que os nordestinos padecem. Há pouco tempo, Franklin de Oliveira percorreu Minas Gerais. Encontrou casas de pau a pique, pequenos povoados sem água e sem luz, prostitutas com uma idade média de 13 anos na estrada que vai ao vale do Jequitinhonha, loucos e famélicos à margem dos caminhos. É o que ele conta em seu recente livro, A tragédia da renovação brasileira. Henri Gorceix disse, com razão, que Minas Gerais tinha um coração de ouro num peito de ferro[5], mas a exploração de seu famoso quadrilátero ferrífero, em nossos dias, corre por conta da Hanna Mining Co. e da Bethlehem Steel, associadas para tal fim: as jazidas foram entregues em 1964, ao cabo de uma sinistra história. Em mãos estrangeiras, o ferro não deixará nada além do que deixou o ouro. 

Apenas a explosão do talento restou como lembrança da vertigem do ouro, isto para não mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal tampouco pôde resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O convento de Mafra, orgulho de D. João V, levantou Portugal da decadência artística: em seus carrilhões de 37 sinos, em seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, ainda cintila o ouro de Minas Gerais. As igrejas de Minas foram grandemente saqueadas e são raros os objetos sacros, de tamanho portável, que nelas perduram, mas para sempre vão remanescer, alçadas sobre as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os retábulos, as tribunas, as figuras humanas que desenhou, talhou ou esculpiu Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, o genial filho de uma escrava e de um artesão. Já agonizava o século XVIII quando o Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjunto de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chamava Os profetas, mas já não havia nenhuma glória para profetizar. Toda a pompa e toda a alegria tinham desaparecido e não havia lugar para nenhuma esperança. O testemunho final, grandioso como um enterro para aquela fugaz civilização do ouro nascida para morrer, foi legado aos séculos seguintes pelo artista mais talentoso de toda a história do Brasil. O Aleijadinho, desfigurado e mutilado pela lepra, realizou sua obra-prima amarrando o cinzel e o martelo às mãos sem dedos, e a cada madrugada seguia para sua oficina arrastando-se de joelhos. 

A lenda assegura que na igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, em Minas Gerais, os mineiros mortos ainda celebram missa nas frias noites de chuva. Quando o sacerdote se volta no altar-mor, erguendo as mãos para o céu, veem-se os ossos de seu rosto. 


Notas:

[1]. MANCHESTER, Allan K. British Preeminence in Brazil: Its Rise and Fall. Chapel Hill, North Carolina, 1933. 

[2]. FURTADO, op. cit. 

[3]. LIMA JUNIOR, op. cit. O autor sente uma grande alegria pela “expansão do imperialismo colonizador, que os ignorantes de hoje, movidos por seus mestres moscovitas, qualificam de crime”. 

[4]. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo, 1962. 

[5]. RUAS, Eponina. Ouro Preto. Sua história, seus templos e monumentos. Rio de Janeiro, 1950. 



(As veias abertas da América Latina; tradução de Sérgio Faraco) 



(Ilustração:  Thomas Ender - Vila Rica - século XVIII)



quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO, de António Nobre

 




1



............................................ Só!



Ai do Lusíada, coitado,

Que vem de tão longe, coberto de pó.

Que não ama, nem é amado,

Lúgubre Outono, no mês de Abril!

Que triste foi o seu fado!

Antes fosse pra soldado,

Antes fosse pró Brasil...



Menino e moço, tive uma Torre de leite,

Torre sem par!

Oliveiras que davam azeite,

Searas que davam linho de fiar,

Moinhos de velas, como latinas,

Que São Lourenço fazia andar...

Formosas cabras, ainda pequeninas,

E loiras vacas de maternas ancas

Que me davam o leite de manhã,

Lindo rebanho de ovelhas brancas;

Meus bibes eram de sua lã.



António era o pastor desse rebanho:

Com elas ia para os Montes, a pastar,

E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,

E o pasto delas era o meu jantar...

E a serra a toalha, o covilhete e a sala.

Passava a noite, passava o dia

Naquela doce companhia.

Eram minhas Irmãs e todas puras

E só lhes minguava a fala

Pra serem perfeitas criaturas...

E quando na Igreja das Alvas Saudades

Que era da minha Torre a freguesia

Batiam as Trindades,

Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,

Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...»

E as doces ovelhinhas imitavam-me.



Menino e moço, tive uma Torre de leite,

Torre sem par!

Oliveiras que davam azeite...

Um dia, os castelos caíram do Ar!



As oliveiras secaram,

Morreram as vacas, perdi as ovelhas,

Saíram-me os Ladrões, só me deixaram

As velas do moinho... mas rotas e velhas!



Que triste fado!

Antes fosse aleijadinho,

Antes doido, antes cego...



Ai do Lusíada, coitado!



Veio da terra, mailo seu moinho:

Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,

Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,.

É negra a sua farinha!

Orai por ele! tende pena!

Pobre Moleiro da Saudade...



Ó minha

Terra encantada, cheia de sol,

O campanário, ó Luas-Cheias,

Lavadeira que lava o lençol,

Ermidas, sinos das aldeias,

Ó ceifeira que segas cantando

Ó moleiro das estradas,

Carros de bois, chiando...

Flores dos campos, beiços de fadas,

Poentes de Julho, poentes minerais,

Ó choupos, ó luar, bregas de Verão!



Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?



Ó padeirinhas a amassar o pão,

Velhinhas na roca de fiar,

Cabelo todo em caracóis!

Pescadores a pescar

Com a linha cheia de anzóis!

Zumbidos das vespas ferrões das abelhas,

Ó bandeiras! Ó sol! foguetes Ó toirada!

Ó boi negro entre as capas vermelhas!

Ó pregões de água fresca e limonada!

Ó romaria do Senhor do Viandante!

Procissões com música e anjinhos!

Srs. Abades de Amarante,

Com três ninhadas de sobrinhos!



Onde estais? onde estais?



Ó minha capa de estudante, às ventanias!

Cidade triste agasalhada entre choupais!

Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!

Ó Cabo do Mundo! Moreia da Maia!

Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!

Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...

Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,

Amortalhado em perrexil e trepadeiras,

Onde se enroscam como esposos e lagartas!

Sr. Governador a podar as roseiras!

Ó bruxa do Padre, que botas as cartas!

Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!

Que é feito de vós?

Faláveis aos barcos que nadavam, lá fora,

Pelo porta-voz...

Arrabalde! marítimo da França,

Conta-me a história da Fermosa Magalona,

E do Senhor de Calais,

Mais o naufrágio do vapor Perseverança,

Cujos cadáveres ainda vejo à tona...

Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras,

Para os vapores a fazer sinais,

Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,

Dicionário magnífico de Cores!

Alvas espumas, espumando a frágua,

Ou rebentando à noite, como flores!

Ondas do mar! Serras da Estrela de água,

Cheias de brigues como pinhais...

Morenos mareantes, trigueiros pastores!



Onde estais? onde estais?



Convento de águas do Mar, ó verde Convento,

Cuja Abadessa secular é a Lua

E cujo Padre-capelão é o Vento...

Água salgada desses verdes poços,

Que nenhum balde, por maior, escua!

Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos,

Que o sul, às vezes, arrola à praia -

Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos

Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,

Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!

Noiva cadáver ainda com véu...

Ossadas ainda com os mesmos fatos!

Cabeça roxa ainda de chapéu!

Pés de defunto que ainda traz sapatos!

Boquinha linda que já não canta...

Bocas abertas que ainda soltam ais...

Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!

Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)

Ó defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!



Onde estais? onde estais?



Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,

Única flor, nessa vivalma de areias!

Na cal, meu nome ainda lá deve estar,

À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!

Ó altar da Senhora, coberto de luzes!

Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...

Ó Santana, ao luar, cheia de cruzes!

Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!

Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!

Engenheiros, medindo a estrada com a fita...

Água fresquinha da Amorosa!

Rebolos pela praia! Ó praia da Memória!

Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado,

Atracou, diz a História,

No dia... não estou lembrado;

Ó capelinha do Senhor da Areia,

Onde o senhor apareceu a uma velhinha...

Algas! farrapos do vestido da Sereia!

Lanchas da Póvoa, que ides à sardinha,

Poveiros, que ides para as vinte braças.

Sol-pôr, entre pinhais...

Capelas onde o sol faz morte, nas vidraças!



Onde estais?



2



Georges! anda ver meu país de Marinheiros,

O meu país das naus, de esquadras e de frotas!



Oh as lanchas dos poveiros

A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!

Que estranho é!

Fincam o remo na água, até que o remo torça,

À espera de maré,

Que não tarda aí, avista-se lá fora!

E quando a onda vem, fincando-a com toda a força,

Clamam todas à urra: «Agora! agora! agora!»

E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo

(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)

Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!

Içam a vela, quando já têm mar:

Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,

Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,

Rosário de velas, que o vento desfia,

A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:



Senhora Nagonia!



Olha acolá!

Que linda vai com seu erro de ortografia...

Quem me dera ir lá!



Senhora Daguarda!



(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)

Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda

O caçador!



Senhora d'ajuda!

Ora pro nobis!

Caluda!

Semos probes!



Senhor dos ramos

Istrela do mar!

Cá bamos!



Parecem Nossa Senhora, a andar.



Senhora da Luz!



Parece o Farol...

Maim de Jesus!



É tal e qual ela, se lhe dá o sol!



Senhor dos Passos!

Sinhora da Ora!



Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços

Parecem ermidas caiadas por fora...



Senhor dos Navegantes!

Senhor de Matosinhos!



Os mestres ainda são os mesmos dantes -

Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,

A mailos quatro filhinhos,

Vasco da Gama, que andam a ensaiar...



Senhora dos aflitos!

Mártir São Sebastião!

Ouvi os nossos gritos!

Deus nos leve pela mão!

Bamos em paz!



Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!

Ide em paz!



Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,

O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,

E das vagas, aos ritmos cadenciados,

As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,

«As armas e os varões assinalados...»



Lá sai a derradeira!

Ainda agarra as que vão na dianteira...

Como ela corre! com que força o Vento a impele:



Bamos com Deus!



Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele

Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!



3



Georges! anda ver meu país de romarias

E procissões!

Olha estas mocas, olha estas Marias!

Caramba! dá-lhes beliscões!

Os corpos delas, vê! são ourivesarias,

Gula e luxúria dos Manéis!

Têm orelhas grossas arrecadas,

Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,

Ao pescoço serpentes de cordões,

E sobre os seios entre cruzes, como espadas,

Além dos seus, mais trinta corações!

Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito,

Toca a bailar!

Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.

Que hão-de gostar!

Tira o chapéu, silêncio!

Passa a procissão



Estralejam foguetes e morteiros.

Lá vem o Pálio e pegam ao cordão

Honestos e morenos cavalheiros.

Altos, tão altos e enfeitados, os andores,

Parecem Torres de David, na amplidão!



Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!

Olha o Mordomo à frente, o Sr. Conde.

Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,

Olhos leais fitos no vago... não sei onde!

Os anjinhos!

Vêm a suar:

Infantes de três anos, coitadinhos!

Mãos invisíveis levam-nos de rastros

Que eles mal sabem andar.



Esta que passa é a Noite cheia de astros!

(Assim estava, em certo dia, na Judeia!

Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)

E aquela é a Lua-Cheia!

Seus doces olhos fazem luar...

Essa, acolá, leva na mão os Dados,

Mas perde tudo se vai jogar.

E esta que passa, toda de arminhos,

(Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)

Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,

Criança em flor que ainda não os tem.

E que bonita vai a Esponja de Fel!

Mas ela sabe, a inocentinha,

Nas suas mãos, a Esponja deita mel:

Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira.

Lá vem a Lança! A bainha

Traz ainda o sangue da Sexta-Feira...

Passa o último, o Sudário!

O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...

Oh que vermelho extraordinário!

Parece o sol-pôr...



Que pena faz vê-lo passar em Portugal!

Ai que feridas! e não cheiram mal...



E a procissão passa. Preia-mar de povo!

Maré-cheia do Oceano Atlântico!

O bom povinho de fato novo,

Nas violas de arame soluça, romântico,

Fadinhos chorosos da su'alma beata.



Trazem imagens da Função nos seus chapéus.



Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,

O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,

Como a velha cabeça aureolada de Deus!



Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.

Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.



Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!

Pão-de-ló de Margaride!

Aguinha fresca de Moirama!

Vinho verde a escorrer da vide!



À porta dum casal um tísico na cama,

Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,

E uma netinha com um ramo de loireiro

Enxota as moscas do moribundo.



Dança de roda moças o coveiro.

Clama um ceguinho:

«Não há maior desgraça nesta vida,

que ser ceguinho!»

Outro moreno, mostra uma perna partida!

Mas fede tanto, coitadinho...

Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»

E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,

Labareda de cancros em fogueira,

Que o sol atiça e que a gangrena apaga,

Ó Georges, vê! que excepcional cravina...



Que lindos cravos para pôr na botoeira!



Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!

Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!

Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!

Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos!

Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,

Talvez lá dentro com perfeitos corações:

Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,

Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,

Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas

Das suas obrigações!»

Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!

E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...



Qu'é dos Pintores do meu país estranho,

Onde estão eles que não me vêm pintar?




(Paris, 1891-1892)


(Ilustração: Amadeo de Souza Cardoso - procissão de Copus Christi)



domingo, 13 de dezembro de 2020

OLHOS MORTOS DE SONO, de Anton Tchekhov

 




É noite. A babá Varka, de uns treze anos, embala o berço da criança e vai ronronando, quase imperceptivelmente: 

Báiu-báiuchki-baiú, 

Vou cantar-te uma canção... 

Arde, em frente da imagem, um candeeiro verde. Estende-se, através do quarto, de um canto a outro, uma corda com cueiros e um enorme par de calças negras. O candeeiro projeta no teto uma grande mancha verde, enquanto os cueiros e as calças lançam sombras compridas sobre o fogão, sobre o berço e sobre Varka... Quando a luz começa a bruxulear, a mancha e as sombras animam-se e põem-se em movimento, como tangidas pelo vento. Falta ar. Cheira a sopa de repolho e couro de botas. 

A criança chora. Seu pranto há muito já se tornou rouco e cansado, mas continua gritando e não se sabe quando vai parar. Mas Varka está com sono. Seus olhos grudam, a cabeça pende, dói-lhe o pescoço. Não consegue mover as pálpebras, nem os lábios, e tem a impressão de que seu rosto secou e lenhificou-se, que a cabeça ficou pequena como uma cabeça de alfinete. 

— Báiu-báiuchki-báiu, — ronrona — vou fazer-te um mingauzinho... 

Um grilo ruída no fogão. Atrás da porta, no quarto vizinho, roncam o patrão e o aprendiz Afanássi... O berço range, como se fora um lamento, Varka vai ronronando — e tudo isto funde-se num canto soturno, acalentador, que é tão doce ouvir, quando se vai para a cama. Agora, porém, esse canto apenas irrita e constrange, porque traz um entorpecimento, e dormir é impossível. Se isso, Deus não o permita acontecer, os patrões vão moê-la de pancada. 

Bruxuleia o candeeiro. A mancha verde e as sombras põem-se em movimento, entram pelos olhos entrecerrados, imóveis, de Varka, confundem-se, em seu cérebro meio adormecido, em imagens nebulosas. Ela vê nuvens escuras, que se perseguem pelo céu, gritando como aquela criança. Mas eis que soprou o vento, sumiram as nuvens, e Varka vê uma estrada larga de macadame, coberta de lama quase líquida. Sobre aquela estrada, carroças deslocam-se devagar em fila, arrastam-se homens de alforje ao ombro e perpassam sombras estranhas. De ambos os lados, vê-se uma floresta, através do nevoeiro gélido. De repente, os homens de alforje e as sombras caem por terra, na lama semilíquida. "Para que isso?", pergunta Varka. "Dormir, dormir!", respondem-lhe. E eles adormecem profunda e docemente. Pegas e corvos estão pousados sobre os fios telegráficos, gritam como a criança e procuram acordar os homens. 

— Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção... — ronrona Varka e já se vê em certa isbá escura, abafada. 

Revolve-se no chão o seu falecido pai, Iefim Stiepanov. Ela não o vê, mas ouve como rola de dor e geme. Como diz o doente, a hérnia "tomou conta dele". A dor é tão forte que ele não pode, agora, dizer palavra e somente sorve o ar e bate os dentes como se bate num tambor: 

— Bu-bu-bu... 

Mãe Pielaguéia correu à casa senhorial, para avisar os patrões de que Iefim estava morrendo. Já saiu há muito e está demorando demais. Varka fica deitada sobre o fogão, sem dormir, prestando atenção àquele "bu-bu-bu". Mas, eis que se ouve um carro chegar à isbá. Os patrões enviaram para ver o doente um médico jovem, hóspede deles. O médico entra na isbá. Não se consegue vê-lo no escuro, mas ouve-se como tosse e faz barulho com a fechadura. 

— Acendam a luz — diz ele. 

— Bu-bu-bu... — responde Iefim. 

Pielaguéia corre para o fogão, à procura dos fósforos. Depois de um minuto de silêncio, o médico encontra um no bolso e o acende. 

— Nesse instante, paizinho, nesse mesmo instante — diz Pielaguéia e corre para fora, um pouco depois, e volta com um toco de vela. 

Iefim está com as faces coradas, brilham-lhe os olhos, e o olhar parece estranhamente penetrante, como se pudesse ver através do médico e das paredes. 

— E então? O que foi que você inventou? — pergunta-lhe o médico, inclinando-se sobre ele. — O quê! Faz muito tempo que tem isso? 

— Como? Chegou a hora da morte, Vossa Nobreza... Vou deixar o mundo dos vivos... 

— Chega de bobagem... Vamos curá-lo! 

— Seja como quiser, Vossa Nobreza, agradecemos humildemente, mas a gente compreende... Se já chegou a hora da morte, que se vai fazer? 

O médico passa um quarto de hora lidando com Iefim, depois se levanta e diz: 

— Não posso fazer mais nada... Você deve ir para o hospital, eles vão te operar lá. Vá agora mesmo... Se, falta! Já é um pouco tarde, no hospital estão todos dormindo, mas não faz mal, vou dar a você um bilhetinho. Está ouvindo? 

— Mas, como é que ele pode ir, paizinho?— diz Pielaguéia. — Não temos cavalo. 

— Não faz mal, falarei com os patrões, eles vão emprestar um. 

O médico sai, apaga-se a vela e escuta-se novamente: "bu-bu-bu..."Depois de meia hora, ouve-se chegar à isbá uma telega pequena, enviada pelos patrões, Iefim apronta-se e vai... 

Mas, eis que chega uma clara, luminosa manhã. Pielaguéia foi ao hospital para se informar sobre Iefim. Uma criança chora e Varka ouve alguém cantar, com a sua voz: 

— Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção... 

Volta Pielaguéia, persigna-se e murmura: 

— De noite, eles o operaram e. de manhãzinha, entregou a alma a Deus... Que esteja em paz, lá no céu... Dizem que o levamos para lá muito tarde... 

Varka vai para o mato e chora lá. Mas, eis que alguém lhe bateu na nuca, com tanta força que sua testa choca-se contra uma bétula. E ergue os olhos e vê. Diante de si, o patrão sapateiro. 

— Que está fazendo, porca? A criança chora e você está dormindo. 

Puxa-lhe a orelha com força. Ela sacode a cabeça e torna a balançar o berço e a ronronar sua canção. A mancha verde e as sombras das calças e dos cueiros balançam-se, piscam-lhe e, pouco depois, dominam-lhe novamente o cérebro. Vê mais uma vez a estrada de macadame, coberta de lama semilíquida. Os homens de alforje às costas e as sombras estão estirados e dormem profundamente. Vendo-os, Varka sente uma vontade louca de dormir, dormir com toda a alma; mãe Pielaguéia, porém, caminha a seu lado, apressando-a. Vão à cidade pedir emprego. 

— Uma esmolinha, pelo amor de Deus! — implora a mãe aos transeuntes. — Por caridade, meus bons senhores! 

— Me dá a criança! – responde-lhe uma voz conhecida. — Me dá a criança! — repete a mesma voz, mas agora já abruptamente, com rancor. — Está dormindo, animal? 

Varka levanta-se de um salto e, olhando em redor, compreende o que sucedeu: não hás mais estrada, nem Pielaguéia, nem gente, mas, no meio do quarto, está a patroa, que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa gorda, de ombros largos, alimenta e acalma a criança, Varka olha-a de pé, esperando que acabe. Além das janelas, o ar já está se tornando azul, empalidecem as sombras e a mancha verde no teto. Não demora a manhã. 

— Toma! — diz a patroa, abotoando a camisola sobre o peito. — Está chorando. Deve ser mau-olhado. 

Varka apanha a criança, deita-a no berço e recomeça a embalá-la. A mancha verde e as sombras desaparecem pouco a pouco e já não há ninguém que se esgueire para dentro de sua cabeça e enevoe-lhe o cérebro. Mas não passou o sono, um sono terrível! Varka deita a cabeça na beirada do berço e balança-se com todo o corpo, a fim de dominar este sono, mas, apesar de tudo, seus olhos estão grudados e pesa-lhe a cabeça. 

— Varka, vai acender o fogão! — ressoa a voz do patrão, atrás da porta. 

Quer dizer que já é tempo de se levantar e começar o trabalho. Varka deixa o berço e corre a buscar lenha no depósito. Está contente. Quando se anda ou corre, não se tem tanto sono. Traz lenha, acende o fogão e sente voltar a si o rosto lenhificado e aclararem-se as idéias. 

— Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa. 

Varka pica a lenha em gravetos, mas apenas tem tempo de acendê-los e enfiá-los no samovar, já se ouve nova ordem: 

— Varka, limpa as galochas do patrão! 

Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa em como seria bom enfiar a cabeça numa galocha grande e funda e cochilar um pouco... De repente, a galocha cresce, fica inchada, enche todo o quarto. Varka deixa cair a escova, mas, no mesmo instante, sacode a cabeça, arregala os olhos, procura fazer com que os objetos não cresçam e não se movam em seus olhos. 

— Varka, vai lavar a escada lá fora, que até dá vergonha perante os fregueses. 

Varka lava a escada, arruma os quartos, depois acende outro fogão e corre à venda. Há muito serviço, não sobra um instante de lazer. 

Mas, não há nada tão difícil como ficar parada, diante da mesa da cozinha, e descascar batata. A cabeça tende a pender sobre a mesa, a batata parece saltitar-lhe nos olhos, a faca tomba-lhe da mão. Ao lado dela, vai andando de um lado para outro a patroa gorda e zangada, de mangas arregaçadas, e fala tão alto que sua voz reboa no ouvido. É outra tortura servir à mesa, um inferno lavar roupa, costurar. Há momentos em que se tem vontade de não ligar a coisa alguma, arremessar-se ao chão e dormir. 

Passa o dia. Vendo a escuridão chegar às janelas, Varka aperta com as mãos as têmporas, que tendem a lenhificar-se e sorri, sem saber por quê. A treva acaricia-lhe os olhos que grudam e promete-lhe um sono forte, para daqui a pouco. De noite, chegam visitas. 

— Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa. 

— O samovar é pequeno e, antes que as visitas se dêem por satisfeitas, torna-se necessário esquentá-lo umas cinco vezes. Depois do chá, Varka passa uma hora inteira, parada, olhando as visitas e esperando ordens. 

— Varka, corre para comprar três garrafas de cerveja! 

Levanta-se de um salto e procura correr o mais depressa possível, para enxotar o sono. 

— Varka, vai buscar vodca! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka, limpa os arenques! 

Mas, eis que as visitas se foram, finalmente. Apagam-se as luzes, os patrões vão dormir. 

— Varka, embala a criança! — ressoa a ordem derradeira. Um grilo trila no fogão. A mancha verde no teto e as sombras das calças e dos cueiros esgueiram-se novamente para os olhos entrecerrados de Varka, bruxuleiam e enevoam-lhe a cabeça. 

— Báiu.báiuchki-baiú — ronrona — vou cantar-te uma canção... 

Mas a criança grita, extenua-se de tanto berrar. Varka vê novamente o macadame lamacento, os homens de alforje às costas, Pielaguéia, pai Iefim. Compreende tudo, reconhece a todos, mas, através da modorra, somente não consegue compreender aquela força que lhe amarra pés e mãos, que a esmaga e impede-lhe a vida. Olha ao redor, procura aquela força, para se livrar dela, mas não a encontra. Por fim, extenuada, concentra todas as energias e todo o seu olhar, espia para cima, para a mancha verde que bruxuleia e, prestando atenção aos gritos, encontra o inimigo que a impede de viver. 

O inimigo é a criança. 

Ri. Acha estranho que, até então, não tenha compreendido uma coisa tão simples. A mancha verde, as sombras e o grilo parecem rir igualmente, surpreendidos. 

A idéia absurda toma conta de Varka. Ergue-se do tamborete e passeia pelo quarto, sem piscar, um sorriso largo no rosto. Está contente e excitada com a idéia de que, dentro de um instante, vai livrar-se da criança, que a deixa amarrada de pés e mãos... Matar a criança e, depois, dormir, dormir, dormir... 

Rindo, pestanejando e ameaçando a mancha verde com os dedos, Varka aproxima-se cautelosa do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de estrangulá-la, deita-se rapidamente no chão, ri de alegria porque já pode dormir e, um instante depois, dorme profundamente, como se estivesse morta... 





(A dama dos cachorrinhos e outros contos; tradução de Bóris Schnaiderman) 



(Ilustração: Peter Fendi)