quinta-feira, 29 de julho de 2021

HOMEM: MODO DE ABRIR, de Claudia Roquette-Pinto

 




Com os lábios e com a língua

e qualquer palavra que sirva

para a imagem a ser descascada:

uva túrgida,

autossuficiente,

súbita inclinando-se ao

verter do próprio sumo

se adequadamente envolta

pela boca

sábia que adivinha (conhece?)

a concentração de urgência e

doçura

dormindo, agora, ali.



(Margem de manobra)



(Ilustração: Konstantin Somov – Homme nu allongé)



segunda-feira, 26 de julho de 2021

COMO GARGÂNTUA NASCEU DUM JEITO MUITO ESTRANHO E COMO RECEBEU SEU NOME E COMO ELE BEBIA VINHO, de François Rabelais

 


Enquanto eles agradavelmente debatiam sobre beber, Gargamele começou a se sentir mal das partes baixas; então Grangousier se levantou da grama e a reconfortou honestamente, pensando que era o bebê a lhe fazer mal, e lhe disse que seria melhor que ela descansasse sob o salgueiro, pois em breve ela estaria bem e era conveniente ter nova coragem para a chegada iminente do pimpolho, e que apesar de a dor poder ser severa, ela logo acabaria, e que a alegria que se sucederia amenizaria toda a dor, de modo que nem memória dela restaria.

— Coragem de ovelha! — ele disse — Dê a luz a este menino, e logo faremos outro.

— Há! — ela disse — com que facilidade vocês homens falam! Bem, por Deus, vou me esforçar, porque você me pede. Mas suplico a Deus que lhe seja cortado!

— O quê? — disse Grandgousier.

— Há, ela disse, você é um bom homem! Você entendeu bem.

— Meu membro? — ele disse — Pelo sangue das cabras! Se bem lhe apetece, faça com que tragam uma faca.

— Há — ela disse — Deus me livre! Que Deus me perdoe! Não disse isto com sinceridade, e não faça nada do que digo. Mas eu terei trabalho o bastante por hoje, se Deus não me ajudar, por causa de seu membro e para agradá-lo.

— Coragem, coragem! — ele disse — não se preocupe e deixe que quatro bois façam o trabalho. Vou tomar mais uma bebida. Se lhe recair algum mal, você me terá por perto: dê um assovio que estarei com você.

Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a se lamentar e a chorar. Subitamente, de todos os cantos vieram as parteiras e, apalpando por debaixo, encontraram algumas saliências nojentas, e pensaram que era o bebê. Mas era o fiofó dela que havia lhe escapado, por causa do amolecimento do intestino — chamado de entranhas — porque havia comido muitas tripas [...].

Então, uma velha feia da companhia, que tinha a reputação de ser uma grande médica, vinda de Brisepaille, perto de Saint Genou, sessenta anos atrás, fez-lhe um constipante tão horrível que suas pregas se obstruíram e se fecharam tanto, que, até com os dentes, seria difícil abri-las, o que é algo horrível de se pensar: mesmo imitando o diabo, que na missa de Saint Martin, transcreveu o bate-papo de duas galesas, esticando o pergaminho com os dentes.

Por este inconveniente, soltaram-se os cotilédones de seu útero, através do qual a criança saltou pra cima e entrou na veia cava. Então, escalando o diafragma até os ombros (onde a veia se divide em duas), ela tomou o caminho da esquerda e saiu pela orelha esquerda.

Assim que nasceu, não chorou como as outras crianças: “Miez, miez", mas gritou em voz alta, "beber! beber! beber!", como se convidasse todo o mundo a beber. E o barulho era tão alto que podia ser ouvido ao mesmo tempo nos países de Beausse e Bibaroys.

Questiono-me se você não acredita totalmente neste estranho nascimento. Se não acredita, não me importo; mas um homem de bem, um homem de bom senso, acredita em tudo que lhe contam e em tudo que lhe chega por escrito. Isto é contra nossa lei, nossa fé, nossa razão, contra as Santas Escrituras? De minha parte, não encontro nada na Bíblia Sagrada que seja contra isto. Mas, se esta foi a vontade de Deus, você diria que ele não o fez? Ah, misericórdia, não emburreça jamais seu espírito com estes vãos pensamentos, pois eu lhe digo que nada é impossível para Deus e, se ele quisesse, todas as mulheres dariam à luz, doravante, pela orelha.

Não foi Baco engendrado desde a perna de Júpiter?

Não nasceu Roquetaillade do calcanhar de sua mãe?

Crocmoush da pantufa de sua babá?

Não nasceu Minerva do cérebro, através da orelha de Júpiter?

Adônis da casca de uma árvore de mirra?

Castor e Pólux duma casca de ovo que havia sido posto e chocado por Leda?

Mas você se espantaria e estupefaria mais se eu lhe expusesse aquele capítulo de Plínio, aquele no qual ele fala de nascimentos estranhos e contrários à natureza; ainda que eu não seja tão mentiroso quanto ele foi. Leia o sétimo livro de sua História Natural, cap. III, e não me perturbe mais a cabeça.

O bom homem Grangousier bebia e se regalava com os outros, escutou o horrível grito que seu filho deu ao entrar na luz do mundo, exigindo: “Beber! Beber! Beber!” Então disse: “Que garganta!” Ao ouvirem isto, os assistentes disseram que a criança deveria se chamar Gargântua, porque esta havia sido a primeira palavra dita pelo pai após o nascimento, em imitação ao exemplo dos antigos hebreus, com o qual ele concordou, e agradou bastante também à mãe. E, para acalmar a criança, eles lhe deram de beber em abundância, e a carregaram até à fonte e a batizaram, como é o costume dos bons cristãos.

E ordenaram que trouxessem dezessete mil, novecentas e treze vacas de Pautille e Brehemond para amamentá-la ordinariamente, porque era impossível encontrar amas suficientes no país, considerando a grande quantidade de leite necessária para alimentá-la; apesar de alguns médicos escotistas terem afirmado que sua mãe a amamentaria e que ela poderia tirar de suas mamas mil, quatrocentos e dois barris e nove canecas de leite por vez; o que não é provável, e esta proposição foi considerada mamariamente escandalosa e ofensiva a ouvidos pios, e com um toque de heresia.

Nestas circunstâncias, ele foi cuidado até um ano e dez meses; depois deste tempo, pelo conselho dos médicos, começaram a carregá-lo, e foi feita uma bela charrete de bois, inventada por Jean Denyau. Nela, levaram-no para passear e ele se alegrava muito; e o exibiam, pois ele tinha uma bela face e dezoito queixos. Quase nunca chorava, mas cagava a toda hora. Pois ele era incrivelmente fleumático de bunda, tanto por causa de sua compleição natural quanto pela disposição acidental que lhe adveio por tomar os vinhos setembrinos. Mas ele não bebia sem motivo; se acontecesse de ele estar amuado, nervoso, chateado, ou feliz, se ele tripudiasse, se reclamasse, se chorasse, traziam-lhe a bebida para restaurar-lhe o ânimo, e imediatamente ele se acalmava e se alegrava.

Uma de suas governantas me disse, jurando pela figa, que ele se acostumou tanto a isto, que o mero som de canecas e jarros faziam-no entrar em transe, como se desfrutasse das alegrias do paraíso. De modo que, considerando sua compleição divina, para alegrá-lo, de manhã, faziam ressoar copos com uma faca, ou garrafões com suas rolhas, ou as canecas com suas tampas, e aqueles sons o deixavam feliz, saltitante, e ele se debatia no berço, balançando a cabeça, monocordiando os dedos e baritonando com o cu.



(Gargântua; tradução de Henry Alfred Bugalho)



(Ilustração: Gustave Doré - Gargantua)


sexta-feira, 23 de julho de 2021

FRAGMENTOS / FRAGMENTOS, de Pablo de Rokha

 



Poetastros de Chile y abrómicos de Europa;

arrojad la cachimba, el rabel y la pluma

y oíd: yo quiero hablaros humildemente ahora;

vosotros habéis dicho las palabras más hondas

y sin embargo hay cosas que no se han dicho nunca.



Si pudiera fundir el universo entero

y fabricar con él una olla estupenda,

os pondría a cocer un siglo a fuego lento

bajo el sol encendido, como un terrón de fuego,

sobre el incendio del corazón de la tierra.



***



"Por qué cantáis, oh! brutos, a las carretas torpes,

a los amores fáciles, a las casitas viejas,

a las nenas de barrio, a los frailes, al hombre

pacato, mentecato, jorobado y deforme

y no cantáis la vida multiforme y compleja?



EI mundo se transforma, trabaja, piensa y ríe

en la máquina actual, infinita y divina,

en la dudad moderna, que es trágica y no es triste,

en el ilimitado Zaratustra de Nietzsche

y no en vuestros minúsculos gritos de sabandijas.



Oh! multitud de escritorzuelos rufianes!

¿ Con que vuestro lenguaje sobado y resobado,

con que vuestras versainas fofas y equidistantes

y con que vuestras actitudes miserables

son algo?. ja! ja! Ja! .. No me mostréis el rabo!



***



Porque vosotros no cantáis al automóvil,

que evoluciona, haciéndonos temblar con su bocina,

ni el empuje violento de las nuevas cosmópolis,

ni a las grúas, que son más bonitas que Adonis,

oh! borregos de Júpiter, oh! vagas señoritas;



y donde hay un motor encendido y gigante;

y donde hay una fábrica estupenda y gloriosa,

y donde hay un palacio de cemento y de sangre

o una gran muchedumbre de huelguistas con

hambre, vosotros veis a una princesita que llora.



***

Hacer arte es hacer lenguaje, amados míos,

lenguaje extraño, trunco, espantoso, deforme,

dinámico, flexible y claro como un río

para aquellos que tienen la luz puesta en sí mismos,

la realidad de un cerro y el talento de un hombre.





Hacer arte es hacer que el devenir eterno,

el correr infinito del tiempo y del espacio,

se queden para siempre clavados al momento

en que el hombre cogió a la vida, en un lienzo,

en un poema trágico, o en un trozo de mármol.



***

Malditos en la vida, malditos en la muerte!

Esta sátira inmunda, que yo mismo desprecio,

caiga sobre vosotros y quede en vuestras sienes

como la gran corona del escarnio eminente

con que os azoto el rostro y os escupo los sesos.



Y si algún día, tristes, con esa gran tristeza

del que se sabe inútil como materia bruta,

lloráis con lagrimeos miserables de bestias,

y cuando un día muertos,—si también os muriérais,—

­caigáis como pedazos de estiércol al tumba.



Mi carcajada enorme estará con vosotros,

tal como un moscardón sonando en los oídos,

y me tendréis presente clavándoos los ojos,

azotándoos el alma con un mirar recóndito

hasta el fin de la tierra y hasta el fin de los siglos!



Tradução de Antonio Miranda:





Poetastros de Chile e abrômicos [1] de Europa;

Lançai o cachimbo, o rabel [2] e a pluma

e ouvi: eu quero falar-vos humildemente agora;

vós haveis dito as palavras mais profundas

e sem embargo há coisas que nunca foram ditas.



Se eu pudesse fundir o universo inteiro

e fabricar com ele um cozido fantástico,

os poria a ferver um século em fogo lento

sob o céu aceso, com um torrão de fogo,

no incêndio do coração da terra.



* * *



Por que cantais, oh! Brutos, às carroças toscas,

aos amores fáceis, às casinhas velhas,

às meninas de subúrbio, aos frades, ao homem

pacato, mentecapto, corcovado e deforme

e não cantais a vida multiforme e complexa?



O mundo se transforma, trabalha, pensa e ri

na máquina atual, infinita e divina,

na cidade moderna, que é trágica e não é triste,

no ilimitado Zaratustra de Nietzsche

e não em vossos minúsculos gritos de sevandijas.



Oh! Multidão de escritorzinhos rufiães!

Por acaso vossa linguagem sovada,

acaso vossas atitudes miseráveis

são alguma coisa? ha! ha! ha! Não mostreis o rabo!



* * *

Por que vós não cantais o automóvel,

que evolui, fazendo-nos tremer com sua buzina,

nem o impulso violento das novas cosmópolis,

nem os guindastes, bem mais belos que Adônis,

oh! boçais de Júpiter, oh! ociosas senhoritas;



e onde há um motor ligado e gigante;

e onde há uma fábrica fantástica e gloriosa,

e onde há um palácio de cimento e de sangue

ou uma grande multidão de grevistas com fome,

vós vedes uma princesinha que chora.



* * *



Produzir arte é produzir linguagem, meus queridos,

linguagem estranha, truncada, tremenda, disforme,

dinâmica, flexível e clara como um rio

para aqueles que têm a luz posta em si mesmos,

a realidade de um outeiro e o talento de um homem.



Fazer arte é fazer que o sobrevir eterno,

o correr infinito do tempo e do espaço,

restem para sempre pregados ao momento

em que o homem plasmou a vida, em um quadro,

em um poema trágico, ou em um bloco de mármore.



***



Malditos em vida, malditos na morte!

Esta sátira imunda, que até eu desprezo,

caia sobre vós outros e reste em vossas frontes

como a grande coroa de escárnio eminente

com que vos açoito no rosto e vos cuspo nos miolos.



E se algum dia, tristes, com essa grande tristeza

do que se sabe inútil como matéria bruta,

chorais com lágrimas miseráveis de bestas,

e quando mortos algum dia, —pois também morrereis, —

­ caiais como pedaços de estrume na tumba.



Minha gargalhada enorme irá com vós outros,

tal como um moscardo zunindo nos ouvidos,

e tereis presente cravando-vos nos olhos,

açoitando-vos a alma com um mirar recôndito

até o fim das terras e até o fim dos tempos!



(Sátira; 1918).



Notas do tradutor:

[1] palavra não dicionarizada.

[2] duplo sentido, tanto para designar um instrumento musical antigo quanto para referir-se a traseiro, nádega



(Ilustração: Raoul Hausmann - Tatlin at Home – 1920)



terça-feira, 20 de julho de 2021

OS QUE NÃO CHEIRAM A MEDO, de Gustavo Melo Czekster



Sempre que me falam de arte ou de literatura contemporânea, eu digo que não me considero contemporâneo, pois não tenho “cheiro de medo”. Quase todos me olham com incompreensão. Melhor dizendo: todos me olham com incompreensão. Na realidade, estou brincando com uma pequena história contada pelo Juan Gelman e relatada pelo Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”:

“A arte e o tempo

Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim, que esse poeta, esse pastor e essa mulher, esses são seus contemporâneos.”


Irrito-me com o “cheiro de medo” que sinto sair dos livros, das pinturas, das fotos, do politicamente correto. Irrito-me também com o escândalo fácil, com a polêmica estéril, com a vacuidade mental. Alguns anos atrás, assistindo ao ensaio de uma peça de teatro, depois da vigésima vez que a atriz principal sugeriu tirar a própria roupa para “escandalizar a plateia”, eu propus que, ao invés de tirar, ela acrescentasse roupas – isso sim seria revolucionário. Não faz muito, ao comentar o texto de um autor contemporâneo, afirmei ter sentido o fedor do medo na hora em que ele hesitou antes que o seu personagem principal abusasse da filha (era a solução lógica, e colocar um Deus ex-machina para policiar a narrativa foi uma solução covarde). Esses daí não são meus contemporâneos.

Em compensação, às vezes encontro contemporâneos que viveram em outras épocas, e com eles sinto não somente respeito, mas também identificação. Não nas suas temáticas, e sim no espírito de se arrojarem sem medo contra as fileiras do correto, do óbvio, do clichê, do pensamento amedrontado.

Nos últimos tempos, é absoluto o meu fascínio por Octave Tassaert (1800-1874). Assim como no poema de Fernando Pessoa, ele foi aquele que perdeu todas as lutas em que entrou. A começar, na sua carreira de pintor. Mesmo com um trabalho consistente e sério, os temas sociais ou eróticos que escolhia para as suas obras faziam com que os críticos mantivessem silêncio sobre elas, fingindo que não existiam. Nunca ganhou um prêmio sequer.

Como não conseguia se sustentar com as pinturas, Tassaert assumiu a profissão de ilustrador para os periódicos franceses. Passou anos comendo o pão que o diabo amassou, mas nunca deixou de pintar, esperando o reconhecimento do público e da crítica. Ao invés de mudar, esperou o mundo mudar. E não é que aconteceu? Os críticos do Salão de Arte do ano de 1855 saudaram as suas obras, reconhecendo valor estético nelas. Alexandre Dumas Filho comprou alguns dos quadros. Tassaert tornou-se 0 símbolo de uma nova época e de uma nova visão artística.

Longe de ficar satisfeito com essa conquista, Tassaert entrou em depressão. Passara muito tempo esperando o reconhecimento, e ele chegava somente agora, no final da sua vida, depois de muitas provações, necessidades e sofrimento. Agora que era inútil, pois ele estava quase cego.

Em 1863, o pintor vendeu todos os seus quadros para um marchand, livrando-se deles. Estava adoentado e com a vista muito fraca, e não podia mais pintar, motivo pelo qual se tornou um alcoólatra. Existem alguns relatos de pessoas que viram o pintor se arrastando pelas ruas, a sombra pálida de um artista. Em 1865 começou a escrever poesia, mas suas obras acabaram se perdendo com o tempo.

Estava praticamente cego e pobre quando, em 1874, cerrou-se no seu quarto e cometeu suicídio, asfixiando-se com dióxido de carbono.

Nos anos seguintes, Gauguin e Van Gogh manifestaram a sua admiração por Tassaert. Van Gogh, em carta enviada para Theo em janeiro de 1886, disse que Tassaert pintava de maneira “maravilhosamente audaciosa”, com uma “perfeita representação do corpo feminino”, cujas mulheres ostentavam semblantes “com expressões apaixonadas”.

Octave Tassaert tornou-se famoso pelos seus quadros que demonstravam a voluptuosidade da vida e a própria paixão. A obra mais representativa é “A mulher amaldiçoada”, uma ode à liberdade feminina e ao prazer sem limites:

Mesmo fazendo uma arte depreciada pela crítica, Octave Tassaert passou anos insistindo na mesma tecla até que viu seus esforços reconhecidos. Ele esperou o mundo entrar na sua verdade, não tentou se ajustar ao discurso artístico dos demais da sua época. Infelizmente não tinha mais vontade de lutar e de aproveitar os louros da glória, então acabou se deprimindo. Perdeu a visão e a vida, mas nunca perdeu a sua arte de vista – nunca deixou de ser honesto e sincero consigo mesmo. Nunca sentiu medo. Nunca precisou fazer concessões para ser aceito.

É isso o que desejo dizer quando sinto o “cheiro do medo” nos meus contemporâneos, e não me identifico com eles. Não sei qual o momento em que todos passaram não a suscitar opiniões alheias, mas a temê-las. Buscar o conforto comodista ao invés de manifestar uma visão de mundo. Torna-se cada vez mais importante a frase de Frank Miller em “Demolidor – o homem sem medo”: “um homem sem esperança é um homem sem medo”. Então, deixai a esperança de felicidade, ó vós que desejais ser contemporâneos.






(Ilustração: Nicolas François Octave Tassaert - La Femme Damnée)

sábado, 17 de julho de 2021

NOTURNO, de Bruno Tolentino

 



Não sou o que te quer. Sou o que desce

a ti, veia por veia, e se derrama

à cata de si mesmo e do que é chama

e em cinza se reúne e se arrefece.



Anoitece contigo. E me anoitece

o lume do que é findo e me reclama.

Abro as mãos no obscuro, toco a trama

que lacuna a lacuna amor se tece.



Repousa em ti o espanto que em mim dói,

noturno. E te revolvo. E estás pousada,

pomba de pura sombra que me rói.



E mordo o teu silêncio corrosivo,

chupo o que flui, amor, sei que estou vivo

e sou teu salto em mim suspenso em nada.



(Ilustração: Luis Ricardo Falero)




quarta-feira, 14 de julho de 2021

CARNÊ DE BAILE, de Roberto Bolaño

 



1. Minha mãe lia Neruda para nós em Quilpué, em Cauquenes, em Los Angeles. 2. Um único livro: Veinte poemas de amor y una canción desesperada, Editorial Losada, Buenos Aires, 1961. Na capa, um desenho de Neruda e um aviso de que aquela era a edição comemorativa de um milhão de exemplares. Em 1961 tinham sido vendidos um milhão de exemplares dos Veinte poemas ou se tratava da totalidade da obra publicada de Neruda? Temo que a primeira, embora ambas as possibilidades sejam inquietantes, e já inexistentes. 3. Na segunda página do livro está escrito o nome da minha mãe, María Victoria Ávalos Flores. Uma observação talvez superficial, contra todos os indícios, me faz concluir que não foi ela que escreveu seu nome ali. Também não é a letra do meu pai, nem de ninguém que conheço. De quem então? Depois de observar cuidadosamente essa assinatura apagada pelos anos tenho de admitir, se bem que com reservas, que é da minha mãe. 4. Em 1961, 1962, minha mãe tinha menos anos do que tenho agora, não chegava aos trinta e cinco, e trabalhava num hospital. Era jovem e animada. 5. Os Veinte poemas, meus Veinte poemas, percorreram um longo caminho. Primeiro por diversas cidadezinhas do sul do Chile, depois por várias casas do México, DF, depois por três cidades da Espanha. 6. O livro, claro, não era meu. Primeiro foi da minha mãe. Ela o deu de presente para minha irmã e, quando minha irmã se foi de Gerona para o México, deu-o para mim. Entre os livros que minha irmã me deixou meus favoritos eram os de ficção científica e a obra completa, até então, de Manuel Puig, que eu próprio tinha lhe dado e que então reli. 7. Neruda já não me agradava. Muito menos os Veinte poemas de amor! 8. Em 1968, minha família foi morar no México, DF. Dois anos depois, em 1970, conheci Alejandro Jodorowski, que para mim encarnava o artista de prestígio. Fui encontrá-lo na saída de um teatro (ele dirigia uma versão de Zaratustra, com Isela Vega), disse-lhe que gostaria que me ensinasse a dirigir filmes e desde então me converti num assíduo visitante da sua casa. Creio que não fui bom aluno. Jodorowski me perguntou quanto eu gastava com cigarros por semana. Disse-lhe que bastante, pois fumei desde sempre como um caminhoneiro. Jodorowski me disse que parasse de fumar e que investisse o dinheiro num curso de meditação zen com Ejo Takata. Está bem, falei. Durante alguns dias estive com Ejo Takata, mas na terceira sessão decidi que aquilo não era para mim. 9. Abandonei Ejo Takata em plena sessão de meditação zen. Quando quis sair da fila, o japonês se arrojou sobre mim brandindo um bastão de madeira, o mesmo com que batia nos alunos que assim pediam. Quer dizer, Ejo oferecia o bastão, os alunos diziam sim ou não e, caso a resposta fosse afirmativa, Ejo lhes desfechava umas cacetadas que troavam no espaço em penumbra impregnado de incenso. 10. A mim, porém, não ofereceu a possibilidade de recusar seus golpes. Seu ataque foi fulminante e estrondoso. Eu estava ao lado de uma moça, perto da porta, e Ejo estava no fundo da sala. Supus que ele tivesse fechado os olhos e que não ia me ouvir quando eu fosse embora. Mas o desgraçado do japonês me ouviu e se arrojou sobre mim gritando o equivalente zen a banzai. 11. Meu pai foi campeão amador de boxe na categoria dos pesos pesados. Seu reinado invicto se circunscreveu ao sul do Chile. Jamais gostei de boxear, mas aprendi quando criança; sempre houve um par de luvas de boxe em casa, no Chile ou no México. 12. Quando o mestre Ejo Takata se arrojou gritando sobre mim provavelmente não pretendia me machucar, tampouco esperava que eu me defendesse automaticamente. As pancadas do seu bastão geralmente serviam para desentorpecer os nervos enrijecidos dos seus discípulos. Mas eu não estava com os nervos enrijecidos, só queria cair fora dali de uma vez por todas. 13. Se acha que está sendo atacado, você se defende, essa é uma lei natural, sobretudo aos dezessete anos, sobretudo no DF. Ejo Takata era nerudiano na ingenuidade. 14. Segundo Jodorowski, ele é que havia introduzido Ejo Takata no México. Por um período Takata procurava drogados pelas selvas de Oaxaca, a maioria americanos, que não tinham conseguido voltar de uma viagem alucinógena. 15. Aliás, a experiência com Takata não me fez parar de fumar. 16. Uma das coisas de Jodorowski de que eu gostava era que falava dos intelectuais chilenos (geralmente contra) e me incluía entre eles. Isso me proporcionava grande confiança, embora, é claro, eu não tivesse a menor intenção de ser como aqueles intelectuais. 17. Uma tarde, não sei por quê, demos de falar da poesia chilena. Ele disse que o maior era Nicanor Parra. Ato contínuo, pôs-se a recitar um poema de Nicanor, depois outro, depois finalmente outro. Jodorowski recitava bem, mas os poemas não me impressionaram. Eu era, naquele tempo, um jovem hipersensível, além de ridículo e muito orgulhoso, e afirmei que o melhor poeta do Chile, sem dúvida nenhuma, era Pablo Neruda. Os outros, acrescentei, são uns anões. A discussão deve ter durado meia hora. Jodorowski esgrimiu argumentos de Gurdjieff, Krishnamurti e madame Blavatski, depois falou de Kierkegaard e Wittgenstein, depois de Topor, Arrabal e dele mesmo. Lembro-me que disse que Nicanor, de passagem para algum lugar, tinha se hospedado na sua casa. Nessa afirmação entrevi um orgulho pueril que desde então nunca deixei de perceber na maioria dos escritores. 18. Num dos seus escritos, Bataille diz que as lágrimas são a última forma de comunicação. Eu me pus a chorar, mas não de maneira normal e formal, isto é, deixando as lágrimas escorrerem suavemente pelas faces, mas de maneira selvagem, aos borbotões, mais ou menos como chora Alice no País das Maravilhas, inundando-o todo. 19. Quando saí da casa de Jodorowski, soube que nunca mais ia voltar lá e isso me doeu tanto quanto as suas palavras e continuei chorando pela rua. Também soube, mas isso de forma mais obscura, que não voltaria a ter um mestre tão simpático, um ladrão de luvas brancas, o vigarista perfeito. 20. No entanto, o que mais estranhei em minha atitude foi a defesa meio miserável e pouco argumentada, mas defesa afinal de contas, que fiz de Pablo Neruda, de quem só havia lido os Veinte poemas de amor (que na época me pareciam involuntariamente humorísticos) e o Crepusculário, cujo poema “Farewell” encarnava o cúmulo do cúmulo da breguice, mas ao qual sou inquebrantavelmente fiel. 21. Em 1971, li Vallejo, Huidobro, Martín Adán, Borges, Oquendo de Amat, Pablo de Rokha, Gilberto Owen, López Velarde, Oliverio Girondo. Li inclusive Nicanor Parra. Li inclusive Pablo Neruda! 22. Os poetas mexicanos de então que eram meus amigos e com quem eu compartilhava a boêmia e as leituras se dividiam basicamente entre vallejianos e nerudianos. Eu era parriano no vazio, sem a menor dúvida. 23. Mas é preciso matar os pais, o poeta é um órfão nato. 24. Em 1973 voltei ao Chile numa longa viagem por terra e mar que se prolongou ao arbítrio da hospitalidade. Conheci revolucionários de diversos matizes. O turbilhão de fogo em que a América Central não tardaria a se ver envolvida já se espreitava nos olhos dos meus amigos, que falavam da morte como quem conta um filme. 25. Cheguei ao Chile em agosto de 1973. Queria participar da construção do socialismo. O primeiro livro de poemas que comprei foi Obra gruesa, de Parra. O segundo, Artefactos, também de Parra. 26. Tinha menos de um mês para desfrutar da construção do socialismo. Claro, eu então não sabia disso. Era parriano na ingenuidade. 27. Fui a uma exposição e vi vários poetas chilenos, incrível. 28. No dia 11 de setembro apresentei-me como voluntário na única célula ativa do bairro em que vivia. O chefe era um operário comunista, gorducho e perplexo, mas disposto a lutar. Sua mulher parecia mais valente que ele. Todos nós nos amontoamos na pequena sala de assoalho de madeira. Enquanto o chefe da célula falava, atentei para os livros que ele tinha no aparador. Eram poucos, a maioria romances de caubói, como os que meu pai lia. 29. O dia 11 de setembro foi para mim, além de um espetáculo sangrento, um espetáculo humorístico. 30. Vigiei uma rua vazia. Esqueci minha senha. Meus companheiros tinham quinze anos, ou eram aposentados ou desempregados. 31. Quando Neruda morreu, eu já estava em Mulchén, com meus tios e minhas tias, com meus primos. Em novembro, durante viagem de Los Angeles a Concepción, me detiveram numa barreira na estrada e me prenderam. Fui o único que eles tiraram do ônibus. Pensei que iam me matar ali mesmo. Do calabouço ouvi a conversa entre o chefe do destacamento, um carabineiro mocinho com cara de filho-da-puta (um filho-da-puta remexendo-se dentro de um saco de farinha), e seus chefes em Concepción. Dizia que tinha capturado um terrorista mexicano. Depois se retratou e disse: terrorista estrangeiro. Mencionou meu sotaque, meus dólares, a marca da minha camisa e da minha calça. 32. Meus bisavós, os Flores e os Grana, tentaram em vão domar a Araucanía (apesar de não terem sido capazes nem de domar a si próprios), de modo que é provável que fossem nerudianos no excesso; meu avô Roberto Ávalos Martí foi coronel e serviu em vários lugares do sul até uma aposentadoria precoce e obscura, o que me faz pensar que foi nerudiano no branco e no azul; meus avós paternos chegaram da Galiza e da Catalunha, deixaram suas vidas na província de Bio-Bio e foram nerudianos na paisagem e na laboriosa lentidão. 33. Por alguns dias estive preso em Concepción, depois me soltaram. Não me torturaram, como eu temia, nem sequer me roubaram. Mas também não me deram nada para comer nem para me cobrir de noite, de modo que precisei contar com a boa vontade dos presos que compartilhavam sua comida comigo. De madrugada ouvia como torturavam outros presos, sem poder dormir, sem nada para ler, salvo uma revista em inglês que alguém havia esquecido ali e na qual a única coisa interessante era um artigo sobre uma casa que em outros tempos pertencera ao poeta Dylan Thomas. 34. Tiraram-me daquela sinuca dois detetives, ex-colegas meus do Colégio Masculino de Los Angeles, e meu amigo Fernando Fernández, que tinha um ano mais do que eu, vinte e um, mas cujo sangue-frio era sem dúvida equiparável à imagem ideal do inglês que os chilenos, desesperada e inutilmente, tentaram ter de si mesmos. 35. Em março de 1974 saí do Chile. Nunca mais voltei. 36. Foram corajosos os chilenos da minha geração? Sim, foram corajosos. 37. No México, me contaram a história de uma moça do MIR, que torturaram introduzindo ratos vivos na sua vagina. Essa moça conseguiu se exilar e chegou ao DF. Vivia lá, mas cada dia ficava mais triste e um dia morreu de tanta tristeza. Foi o que me contaram. Não a conheci pessoalmente. 38. Não é uma história extraordinária. Sabemos de camponesas guatemaltecas submetidas a humilhações inomináveis. O incrível nessa história é a sua ubiquidade. Em Paris me contaram que uma vez chegou lá uma chilena que haviam torturado da mesma maneira. Essa chilena também era do MIR, tinha a mesma idade que a chilena do México e havia morrido, como aquela, de tristeza. 39. Tempos depois soube da história de uma chilena de Estocolmo, jovem e militante do MIR ou ex-militante do MIR, torturada em novembro de 1973 com o sistema dos ratos e que havia morrido, para assombro dos médicos que cuidavam dela, de tristeza, de morbus melancholicus. 40. Pode-se morrer de tristeza? Sim, pode-se morrer de tristeza, pode-se morrer de fome (mas é doloroso), pode-se morrer até de spleen. 41. Essa chilena desconhecida, reincidente na tortura e na morte, era a mesma ou se tratava de três mulheres diferentes, embora correligionárias e de uma beleza similar? Segundo um amigo meu, era a mesma mulher que, como no poema “Massa”, de Vallejo, ao morrer se multiplica sem por isso deixar de morrer. (Na realidade, no poema de Vallejo o morto não se multiplica, quem se multiplica são os suplicantes, os que não querem que morra.) 42. Houve uma vez uma poeta belga chamada Sophie Podolski. Nasceu em 1953 e suicidou-se em 1974. Só publicou um livro, chamado Le Pays où tout est permis (Montfaucon Research Center, 1972, 280 páginas fac-similares). 43. Germain Nouveau (1852-1920), que foi amigo de Rimbaud, passou os últimos anos da vida como vagabundo e mendigo. Fazia-se chamar de Humilis (em 1910 publicou Les poemes d’Humilis) e vivia na porta das igrejas. 44. Tudo é possível. Isso todo poeta deveria saber. 45. Uma vez me perguntaram quais eram os jovens poetas chilenos de que eu gostava. Talvez não tenham empregado a palavra jovens mas atuais. Respondi que gostava de Rodrigo Lira, embora este já não possa ser atual (mas sim jovem, mais jovem do que todos nós), uma vez que está morto. 46. Pares de baile da jovem poesia chilena: os nerudianos na geometria com os huidobrianos na crueldade, os mistralianos no humor com os rokhianos na humildade, os parrianos no osso com os lihneanos no olho. 47. Confesso: não posso ler o livro de memórias de Neruda sem me sentir mal, péssimo. Que acúmulo de contradições. Que esforços para ocultar e embelezar o que tem o rosto desfigurado. Que falta de generosidade e que pouco senso de humor. 48. Houve uma época, felizmente já passada da minha vida, em que via Adolf Hitler no corredor de casa. Hitler não fazia nada mais do que andar para lá e para cá no corredor e, quando passava pela porta aberta do meu quarto, nem sequer olhava para mim. A princípio eu pensava que era (que mais poderia ser?) o demônio e que a minha loucura era irreversível. 49. Quinze dias depois Hitler se esfumou e pensei que o próximo a aparecer seria Stalin. Mas Stalin não apareceu. 50. Foi Neruda quem se instalou no meu corredor. Não quinze dias, como Hitler, mas três, tempo consideravelmente mais curto, sinal de que a depressão minguava. 51. Em contrapartida, Neruda fazia barulho (Hitler era silencioso como um pedaço de gelo à deriva), se queixava, murmurava palavras incompreensíveis, suas mãos se encompridavam, seus pulmões sorviam o ar do corredor (daquele frio corredor europeu) com fruição, seus gestos de dor e seus modos de mendigo da primeira noite mudaram de tal modo que no fim o fantasma parecia recomposto, outro, um poeta cortesão, digno e solene. 52. A terceira e última noite, ao passar diante da minha porta, parou e olhou para mim (Hitler nunca havia olhado) e, o que é mais extraordinário, tentou falar, não conseguiu, gesticulou sua impotência e, finalmente, antes de desaparecer com as primeiras luzes do dia, sorriu para mim (como me dizendo que toda comunicação é impossível mas que se deve tentá-la). 53. Conheci faz tempo uns irmãos argentinos que morreram tentando fazer a revolução em distintos países da América Latina. Os dois mais velhos se traíram um ao outro e, de passagem, traíram o menor. Este não cometeu nenhuma traição e morreu, dizem, chamando os dois, se bem que o mais provável é que tenha morrido em silêncio. 54. Os filhos do leão espanhol, dizia Rubén Darío, um otimista nato. Os filhos de Walt Whitman, de José Martí, de Violeta Parra: esfolados, esquecidos, em fossas comuns, no fundo do mar, seus ossos misturados num destino troiano que espanta os sobreviventes. 55. Penso neles estes dias em que os veteranos das Brigadas Internacionais visitam a Espanha, velhinhos que descem dos ônibus com o punho erguido. Foram quarenta mil e hoje voltam à Espanha trezentos e cinquenta ou algo assim. 56. Penso em Beltrán Morales, penso em Rodrigo Lira, penso em Mario Santiago, penso em Reinaldo Arenas. Penso nos poetas mortos no potro de tortura, nos mortos de aids, de overdose, em todos os que acreditaram no paraíso latino-americano e morreram no inferno latino-americano. Penso naquelas obras que talvez permitam à esquerda sair do fosso da vergonha e da inoperância. 57. Penso em nossas vãs cabeças pontiagudas e na morte abominável de Isaac Babel. 58. Quando for mais velho, quero ser nerudiano na sinergia. 59. Perguntas para antes de dormir. Por que Neruda não gostava de Kafka? Por que Neruda não gostava de Rilke? Por que Neruda não gostava de De Rokha? 60. Gostava de Barbusse? Tudo faz pensar que sim. E de Cholokhov. E de Alberti. E de Octavio Paz. Estranha companhia para viajar pelo purgatório. 61. Mas também gostava de Éluard, que escrevia poemas de amor. 62. Se Neruda tivesse sido cocainômano, heroinômano, se houvesse sido morto por um estilhaço na Madri sitiada de 36, se houvesse sido amante de Lorca e se tivesse se suicidado depois da morte deste, outra seria a história. Se Neruda fosse o desconhecido que no fundo de fato é! 63. No porão do que chamamos “Obra de Neruda” espreita Ugolino, disposto a devorar seus filhos? 64. Sem nenhum remorso! Inocentemente! Só porque tem fome e nenhum desejo de morrer! 65. Não teve filhos, mas o povo gostava dele. 66. Como à Cruz, devemos voltar a Neruda com os joelhos ensanguentados, os pulmões perfurados, os olhos cheios de lágrimas? 67. Quando nossos nomes não significarem mais nada, seu nome continuará brilhando, continuará pairando sobre uma literatura imaginária chamada literatura chilena. 68. Todos os poetas, então, viverão em comunidades artísticas chamadas cárceres ou manicômios. 69. Nossa casa imaginária, nossa casa comum.



(Putas assassinas; tradução de Eduardo Brandão)


(Ilustração: Leonid Afremov)


domingo, 11 de julho de 2021

ARTE POÉTICA, de Walmir Ayala

 




Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.

Poemas que não envelhecessem.

Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,

jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.

Eu queria a estação permanente dos fatos,

aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos

em reflexos cíclicos

de uma realidade essência.

Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,

pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.



Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,

eu sei que, como todas as civilizações,

a nossa tem um fim,

e já durou demais.

Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,

adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.

Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.

Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária

duração,

esta idade virtual com pés de efêmero tato.

Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver

à sua legítima história,

mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam

a vida.



Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,

quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração

oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.



Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.





(Estado de Choque; a poesia de Walmir Ayala)



(Ilustração:  Auguste Toulmouche – Vanity)




quinta-feira, 8 de julho de 2021

O AQUÉM, de Eduardo Galeano

 





Estimado senhor Futuro,

de minha maior consideração:

Escrevo-lhe esta carta para pedir-lhe um favor. V. Sa. haverá de desculpar o incômodo.

Não, não se assuste, não é que eu queira conhecê-lo. V. Sa. há de ser um senhor muito ocupado, nem imagino quanta gente pretenderá ter esse gosto; mas eu não. Quando uma cigana me toma da mão, saio em disparada antes que ela possa cometer essa crueldade.

E no entanto, misterioso senhor, V. Sa. é a promessa que nossos passos perseguem, querendo sentido e destino. E é este mundo, este mundo e não outro mundo, o lugar onde V. Sa. nos espera. A mim e aos muitos que não cremos em deuses que prometem outras vidas nos longínquos hotéis do Além.

Aí está o problema, senhor Futuro. Estamos ficando sem mundo. Os violentos o chutam como se fosse uma pelota. Brincam com ele os senhores da guerra, como se fosse uma granada de mão; e os vorazes o espremem, como se fosse um limão. A continuar assim, temo eu, mais cedo do que tarde o mundo poderá ser tão só uma pedra morta girando no espaço, sem terra, sem água, sem ar e sem alma.

É disso que se trata, senhor Futuro. Eu peço, nós pedimos, que não se deixe despejar. Para estar, para ser, necessitamos que V. Sa. siga estando, que V. Sa. siga sendo. Que V. Sa. nos ajude a defender sua casa, que é a casa do tempo.

Faça por nós essa gauchada, por favor. Por nós e pelos outros: os outros que virão depois, se tivermos um depois.

Saúda V. Sa. atentamente,

Um terrestre.



(O teatro do bem e do mal; tradução Eric Nepomuceno)



(Ilustração: Andrew Judd 1958 - Canadian painter)


segunda-feira, 5 de julho de 2021

O CERCADO, de Ana Paula Ribeiro Tavares






De que cor era o meu cinto de missangas, mãe

feito pelas tuas mãos

e fios do teu cabelo

cortado na lua cheia

guardado do cacimbo

no cesto trançado das coisas da avó



Onde está a panela do provérbio, mãe

a das três pernas

e asa partida

que me deste antes das chuvas grandes

no dia do noivado



De que cor era a minha voz, mãe

quando anunciava a manhã junto à cascata

e descia devagarinho pelos dias



Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe

se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera

p'ra lá do cercado



(Dizes-me coisas amargas como os frutos)



(Ilustração: Àsìkò - Duality of Purpose - 2017 - Metallic print)

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A CARTA DE CAMINHA: HISTÓRIA OU FICÇÃO?, de Maria de Lourdes Netto Simões

 


1. Introdução

Podemos dizer que a Carta (2) do escrivão Pêro Vaz de Caminha é ficção? O que Caminha relata é fruto do seu imaginário (3);ou ele conta fatos verídicos sobre o "achamento" do Brasil? O que é verídico e o que é fingimento num texto? Nós (leitores) podemos mesmo identificar o que é real e o que é imaginado? E isto tem importância em si, ou depende da nossa intenção de leitura? Um leitor que toma a carta de Caminha somente pensando na sua notícia enquanto missiva fruirá a carta da mesma forma daquele outro leitor que busca nela identificações históricas, ou mesmo daquele que se deleita com a perspectiva de uma realidade brasileira vista por olhos estrangeiros?

Aí reside o ponto que quero ressaltar e que, no final das contas, resulta numa discussão sobre gênero e sobre um entendimento da literatura enquanto processo de comunicação que se concretiza na interação entre autor e leitor, por procedimentos de produção textual do autor e procedimentos de compreensão do leitor. Ou seja, um processo intersubjectivo que tem como base um texto, e neste caso, a Carta.

Se a linguagem literária para o próximo milênio requer rapidez, leveza, visibilidade, multiplicidade, exatidão e consistência, como quer Italo Calvino (4), ele certamente faz essa afirmação contextualizado neste momento onde a velocidade e os recursos visuais são palavras de ordem nos processos comunicacionais. O leitor atual, inserido em tal contexto, tem postura que reclama formas de comunicação mais rápida e de maneira mais leve e eficaz. Mas onde está inserida essa questão se aqui tratamos de um texto escrito no século XVI?

Lendo o texto de uma perspectiva comunicacional, não somente o seu autor é levado em conta mas, também, o seu leitor. A proposta é a de não subordinar a condição ficcional de um texto a padrões pré-estabelecidos, quando considerado o processo comunicacional para concretização do sentido. Por isso mesmo, passa pela intenção leitora considerar (ou não) um texto como literário.

Como é óbvio, ao reler um texto de uma época tão anterior, o leitor desse final de milênio o lê contextualizado neste momento em que vive. Ao retomar a história, o leitor redimensiona essa mesma história ao enriquecê-la com a sua leitura, segundo a sua perspectiva. Se o passado passa a ser um futuro que começa, se a história se faz no seu acontecer na possibilidade de novos problemas e novas contribuições para ela, como quer a visão da nova história (5), então, leituras da Carta certidão de nascimento do Brasil, 500 anos depois, certamente trarão novas contribuições para a História, devido às reflexões que necessariamente provocarão sobre o assunto.

Mas alguém que não conhece a História do Brasil poderia pensar no relato como uma produção do imaginário? Dependendo da intenção do leitor, poderá a carta ser lida de uma perspectiva histórica ou de uma perspectiva literária? Segundo a ótica de leitora brasileira, contextualizada às portas do século XXI e geograficamente situada na biosfera do descobrimento, vejo a Carta do escrivão Caminha como história e como ficção. Por esses raciocínios, penso que é possível lê-la como um texto literário e, dessa perspectiva, ressaltarei pontos sinalizados no texto que alicerçam a minha postura de leitora e, consequentemente, o meu argumento. Nestas considerações, não interessa emitir juízos de valor sobre o texto, mas tão somente interpretar o seu sentido. Entendo o processo literário com base na interação e na minha intenção de leitura voltada para os aspectos do texto considerados literários.

Para a discussão que aqui proponho, focarei dois pontos. Um primeiro diz respeito aos procedimentos da produção textual e resulta nas estratégias discursivas do texto e, neste caso, relacionadas ao posicionamento do narrador da Carta. Um segundo, diretamente ligado às questões da linguagem e à expectativa do leitor para o processo da comunicação que, de certa forma, pretende justificar o interesse que desperta, hoje, a leitura da Carta.

1. Procedimentos de produção textual

Quanto aos procedimentos da produção textual, inicialmente um movimento no processo da comunicação se faz quando Caminha, enquanto autor da missiva, assume posturas diferentes quando produz o texto e se faz narrador (6). Nesse caso, fica evidente a condição do narrador em duas visões consideradas como do ver e do parecer (ter impressão de), para utilizar as expressões da própria Carta. A primeira, ligada ao relato, parte do vivenciado, que funciona como referente (7) da história. A segunda, que insinua a ideologia do branco europeu, fundamenta-se nas impressões sobre o vivenciado ou o ouvido. Essas perspectivas que sustentam as questões do imaginário formuladoras do sentido textual, induzem a pensar num sujeito do enunciado (o narrador) e num sujeito da enunciação (o produtor).

Obviamente e já foi dito, o autor da Carta é Pêro Vaz de Caminha, o escrivão da nau capitânia, comandada por Pedro Álvares Cabral, que num dia do ano de 1500 partiu da Torre de Belém, de Lisboa. O posicionamento do narrador ocorre por relatos sobre o que é constatado por Caminha ou impressões sobre o que, por ele, é visto. São relatos do acontecer e das ações dos portugueses e dos indígenas; e são impressões e descrições sobre a nova terra (sua flora, sua fauna, a aparência e os costumes dos seus habitantes), dirigidos a el-rei D. Manuel, o venturoso. O missivista define espaço (terra nova) e tempo: "terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril" (p. 6). A depender da intenção da leitura e das vivências do leitor, esse espaço e esse tempo podem ser vistos como ficcionais (8). Se admitirmos que a história e a ficção têm denominadores comuns (9), entenderemos as razões que induzem a compreender estar na intenção da leitura a decisão de considerar se um texto é história ou ficção.

Mas esse autor, enquanto produtor textual, conta coisas somente vistas e vivenciadas por ele? Se o relato é somente do homem português, temos uma única perspectiva do acontecimento: a do branco. Nesse caso, podemos garantir a sua fidedignidade? A estrutura da carta demonstra um posicionamento produtor que dá margem ao leitor fazer interpretações de níveis de veracidade (10) do fato contado? A perspectiva será mesmo e sempre a de Caminha? Para uma reflexão sobre a questão posta, cabem algumas considerações sobre o enunciado (a carta) e a enunciação (ato da escrita) no que se refere ao sujeito que constrói um discurso (efeito de sentido).

Na abertura da sua carta, Caminha, sabendo-se um narrador dentre muitos outros da frota, sabe também que uma mesma realidade pode ser vista e interpretada de diversas óticas: "Mesmo que o Capitão-mor desta vossa frota e também os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa Terra Nova [...] não deixarei também, de dar disso minha conta" (p. 6). A postura autoral expressada anuncia as possibilidades do narrador e o seu desejo quanto ao relato: "tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade". Na introdução, define o objetivo do seu relato, que se limitará à chegada à nova terra: "do caminho não darei aqui conta [...] o que hei de falar começo e digo" (idem). Diz da sua intenção de escrita – "não hei de por aqui mais que aquilo que vi e me pareceu, nem para aformosear, nem para afear"- que insinua, ainda, a estrutura do texto, entre relato e impressões. Tal posicionamento do narrador passa ao leitor a .idéia das perspectivas do relato em ver e parecer, ou seja, na escrita estruturada nos dois planos referidos ou seja do ver (o acontecendo) e do parece ser (impressão sobre o acontecendo).

No primeiro caso, os movimentos da marinhagem, os comandos do capitão-mor, as ações de embarque e desembarque, as tentativas de comunicação com os indígenas são afirmativas da perspectiva do ver, que referem a história. Nesse caso, os relatos são afirmativos, minuciosamente descritivos, informativos e objetivos: "Mandou armar naquele ilhéu um esperável e dentro dele um altar muito bem arranjado. E ali como todos nós fez dizer a missa" (p. 11).

Mas esse narrador Caminha que não narra somente pelo que diretamente vivenciou e viu, indiretamente relata de fatos vivenciados por outros tripulantes, realizando uma estratégia textual que possibilita correlações semânticas relacionadas ao narrador textual. Um exemplo é o de Nicolau Coelho: "O Capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio [...] quando o batel chegou à foz do rio estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que cobrisse suas vergonhas. [...] Não pôde ter deles fala nem entendimento que aproveitasse porque o mar quebrava na costa. Apenas lhe deu um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto" (p. 7). Agora, o narrador Caminha conta aquilo que Nicolau Coelho viu e relatou pois refere as ações de um terceiro. Outra vez, quando acompanha o mesmo Nicolau Coelho por ordens do Capitão, inclui-se na pessoa narrativa: "a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos então retos, direitos à praia" (f. 4). Ocorre, por essa estratégia, o processo de narrador dentro de outro narrador (11). Embora a perspectiva textual venha do personagem que narra em primeira pessoa, ocorrem, assim, narradores indiretos, que falam pela boca do escrivão. Dessa forma, ocorre multiplicidade nas vozes que se interpõem à voz de Caminha, fazendo com que o leitor "ouça", pela boca do escrivão, coisas ditas, comandos ou, mesmo, relatos de outros. É diferente a sua postura de narrador quando assume a primeira pessoa do plural, como participante da ação: "Na sexta-feira pela manhã [...] mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela e fomos ao longo da costa com os batéis e os esquifes amarrados pela popa, para norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde estivéssemos, para tomar água e lenha" (F2, grifo meu). Em outro momento diz: "mas nem me pareceu a mim que lhe tinham acatamento nem medo" (F. 17). Fica claro, no entanto, que a ação do escrivão é de observação, sem poder de decisão sobre os acontecimentos.

Numa segunda perspectiva, as sensações, o deslumbramento, as descrições parecem ser as de um estrangeiro extasiado com uma realidade nova em relação às suas vivências. As impressões, ligadas a sentimentos e crenças do escrivão Caminha, insinuam o imaginário do produtor do texto. Insinuam, ainda, uma possível intenção autoral e permitem que o leitor faça inferências de sentido: "Esta missa , segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção" (F. 16). Como poderia o narrador afirmar o sentimento dos indígenas? Evidencia-se a ideologia subjacente no processo da enunciação. Ligado às vivências, está ainda o conhecimento ou desconhecimento da cultura e costumes do povo, que a enunciação faz supor: "E alguns deles se meteram em almadias, duas ou três que aí tinham, as quais não são feitas como as que já vi. Somente são três traves atadas juntas" (F. 18). A nossa jangada era desconhecida dos portugueses.

Ainda, pela impressão que lhe causam os indígenas, o narrador descreve-os: "andam muito bem curados e muito limpos e nisso me parece, ainda mais, que são como aves, ou alimárias monteses [...] E isso me faz presumir que não têm casas nem moradas em que se acolham" [f. 19] Observemos que quando fala das suas impressões Caminha o faz em primeira pessoa do singular, mas quando relata fatos vivenciados juntamente com os outros o faz na primeira do plural: "Nós não vimos, até agora, ainda, nenhumas casas nem maneira delas" [idem] ou: "Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram, então, muitos [...] e estiveram afastados de nós" (f. 19).

Na perspectiva da impressão, além da interpretação segundo as vivências do narrador, está ainda a não certeza quanto ao relatado: "parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta [...] Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam, alguns deles, vinho e outros o não podiam beber. Mas parece-me que se lho avezarem que o beberão de boa vontade". A comunicação somente estabelecida pelas ações ou pelo que se interpreta justifica a reiteração do verbo parecer: "Parece-me gente de tanta inocência que se a gente os entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos [...] essa gente é boa e de boa simplicidade" (F. 21). O juízo de valor que emite Caminha em relação aos indígenas (aliás o único da carta) faz parte do nível das impressões, e é reiterado adiante: "a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior quanto a vergonha" (f. 23).

2. A linguagem comunicativa

A comunicação que esperamos em relação à Carta passa por leituras que procurarão a leveza, a rapidez, a visibilidade, a consistência, algumas das categorias sugeridas por Italo Calvino para a linguagem, face à expectativa do leitor deste final de milênio e às características destes tempos de velocidade. Haverá isto na Carta escrita no século XVI? Creio poder apontar alguns desses aspectos, afirmativos das exigências do leitor dessa nossa época para a linguagem.

Se considerarmos dotado de leveza o texto que expressa uma linguagem solta, graciosa, desembaraçada por oposição àquela pesada, cortante, fria, carregada (12), poderemos dizer que o discurso da Carta contém leveza. Há leveza nas descrições da flora e da fauna, na observação dos costumes, na surpresa e espanto do estrangeiro. Aspectos da escrita contribuem, também, para tal idéia, e exemplo disso são os recursos das rimas e dos trocadilhos como sugerem alguns trechos referentes à descrição do local descoberto: "Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem" (f. 23). Descrevendo os indígenas, o narrador usa de trocadilhos: "Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, tanto pelos corpos como pelas pernas, que, na verdade assim pareciam bem.[...] Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tingidas e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que não havia nisso nenhuma vergonha" (F.18)

A rapidez ocorre na agilidade textual, onde datas e espaços não significam retardamento do texto, onde não acontecem digressões e circunlóquios, onde o relato é direto, enxuto e de ações concatenadas: a chegada das naus/ o desembarque/ a primeira missa/ a descrição da terra/ o contato com os indígenas. As descrições sobre a terra e sobre os seus habitantes não imprimem lentidão ao texto, tal a agilidade da linguagem: "Esta terra [...] traz ao longo do mar, em alguma partes grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos, de ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa" (p.20). As imagens, visualizadas na descrição detalhada dos indígenas e no relato dos seus costumes, são nítidas e claras: "Seus cabelos são corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura e raspados até para cima das orelhas" (p. 8).

A visibilidade envolve os processos imaginativos do produtor textual e do leitor virtual (14). No caso do produtor no ato da escrita, a possível intencionalidade na ficcionalização do imaginário manifesta-se, como bem observa Wolfgang Iser, "nos campos de referência do texto" (1979, 390). A propósito disto, já Calvino questiona "de onde provêm as imagens que chovem na fantasia? (1988, 102). Se as imagens são provenientes do mundo, de outro texto, ou de algum mito (14), na Carta, essa característica da linguagem provém da terra Brasil e evidencia-se na plasticidade das descrições (claras e fortes) sobre a flora e a fauna ou sobre os indígenas: "eles traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam uns espelhos de borracha; e alguns deles traziam três daqueles bicos, da seguinte maneira: um no meio e dois nos lados; e andavam ainda outros quartejados de cores; assim: metade do corpo da própria cor; outra metade de tintura negra, de tom azulado; outros quartejados de xadrez"(...). Ao longo do texto, as imagens do mundo novo repetem-se ampliadas, vistas de ângulos variados, ressaltando de forma especial o colorido: "papagaios vermelhos muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores" (p. 15). A mais forte imagem, porém, está ligada à descrição dos habitantes da terra, à sua simplicidade, ao seu exotismo: "daquelas pinturas quartejados, outros de metade, outros de tanta feição como em panos de armar, e todos com os beiços furados e muitos com ossos neles e deles sem ossos" (p. 15).

A consistência ressalta as constituições de sentido (15) possíveis que fazem o leitor inferir sobre a cultura, os costumes, a ideologia subjacentes no texto. Se considero que a consistência resulta de determinados esquemas de ação que remetem o leitor, a cada leitura, para uma dimensão diversa do sentido, depreendo que um texto será tanto mais consistente quanto mais vazios ele apresentar (16). Nessa acepção, apresentará a Carta alguma consistência? Afora o relato do acontecer e da própria tomada de posse da terra determinante de uma primeira constituição de sentido, há uma outra, consubstancializada no confronto entre as culturas branca e indígena: "eles não lavram nem criam nem há aqui boi nem vaca, nem cabra, nem galinha nem nenhuma outra alimária que seja acostumada ao viver dos homens" (p. 18). Uma outra mais é possível se atentarmos para as diferenças dos costumes insinuados na explicitude dos costumes indígenas e na implicitude do dos brancos: "em cada casa se colhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda, a saber, muito inhame e outras sementes que na terra há" (p.15). Ainda a ideologia subjacente é determinante de mais uma constituição de sentido: "se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual, praza Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, essa gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar" (f.21). Dessa forma, para além do relato do achamento da Terra de Santa Cruz, processos associativos provocam deslocamentos de sentido para as questões culturais, religiosas e sociais.

Segundo o relato do escrivão, a comunicação entre portugueses e indígenas acontece por gestos e atitudes e não por palavras. É concretizada de acordo com as conveniências dos brancos e, dentre eles, Caminha inclui- se: "Viu, um deles, umas contas de rosário, brancas e acenou que lhas dessem; folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço; depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para terra e então para as contas e para o colar do Capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto entendíamos nós, por assim desejarmos; mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lho não havíamos de dar". Evidentemente o narrador Caminha somente poderia prever ou mesmo relatar as ações relativas aos seus compatriotas, por conhecimento das suas vivências.

Como observa Eco, "os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto" (1990, 17); entendendo assim. depreendo que a intenção da leitura dá o direcionamento de gênero de um texto. Se identificar a história ou a ficção num texto passa por um conhecimento do real por parte do leitor, não poderíamos dizer que o texto é histórico e é ficcional a depender da intenção da leitura? Dessa perspectiva, um leitor que não conheça a sua história, nem quaisquer referências sobre a Carta poderá considerar o texto do escrivão história ou ficção. Nesse caso, eu diria que a Carta de Pêro Vaz de Caminha além de certidão de nascimento do Brasil, como muitos historiadores afirmam, poderá, num tempo, ser considerada, também, o primeiro texto ficcional escrito sobre um imaginário calcado nas terras do Brasil.



NOTAS:

(1) Este texto integra o livro Caminhos da Ficção. Salvador: EPIGRAF, 1996, p. 61-76.

(2) Leitura realizada segundo a versão atualizada por Henrique Campos Simões, publicada nesta edição especial da Revista FESPI. A indicação dos trechos citados da Carta remetem à paginação desta referida edição.

(3) O imaginário é fluido e abstrato e efetiva-se no sentido; esse é ambíguo por excelência e "à diferença do imaginário, ele é dotado de forma e à diferença do real, é irreal" (Iser: 1979, 879).

(4) Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas,1988.

(5) Jacques Le Goff e Pierre Nora. Faire de L’Histoire. Paris, Gallimard, 1974.

(6) Vale observar a distinção entre autor, produtor e narrador: Falo de autor, somente quando preciso me referir àquele sujeito que vivenciou a história (o escrivão). Considero produtor aquele que tem uma posição a ser preenchida no texto, é somente ‘inferido’ pelo leitor (suj. da enunciação). Entendo como narrador aquele que, identificado ou não com o personagem, é o responsável pelo desenrolar da ação ficcional (suj. do enunciado).

(7) Referente é aqui entendido como alusão à realidade (Brooks: 1983, 74).

(8) Para ilustrar a justificativa, vale estabelecer analogias com outros relatos considerados ficcionais; por exemplo, quem garante que a narrativa de Daniel Defoe sobre Robson Crusoé não poderia ser verídica, a não ser pelo fato de o próprio autor a declarar ficcional?

(9) Ao discutir sobre as aproximações entre a história e a ficção, Linda Hutcheon considera como "denominadores comuns em termos de narrativa: a teleologia, a causalidade, a continuidade" (1987, 123)

(10) Tomo a palavra veracidade na acepção de verdade do fato acontecido, na hipótese de se ler o texto como história. Tomo-a como perspectiva ficcional ligada à verossimilhança, se a Carta for lida como texto literário.

(11) A esse respeito, Umberto Eco fala de texto e paratexto (1994, 26).

(12) Italo Calvino opõe leveza a peso, sem que tal oposição implique critério de valor; a propósito, afirma que: "não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso" (1988, 27)

(13) A visibilidade é aqui considerada como resultante de dois processos imaginativos, um relacionado com a "idéia de imaginação como participação na verdade do mundo" (Calvino,: 1988, 104), ligado à produção do texto; outro, que envolve as visões obtidas do texto pelo leitor.

(14) Simões, M.L.N. As Razões do Imaginário. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/ EDITUS, 1998.

(15) Entendidas como níveis de interpretação, relacionados com a "provável intenção do autor e as possíveis intenções dos leitores, uma vez que elas sugerem o sentido do texto que é concretizador do imaginário" (Simões: 1998, 24).

(16) Sobre vazios, diz W. Iser que eles "derivam da indeterminação do texto [e] não estão apenas no repertório, mas também nas estratégias" (1976, 106-8).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Calvino, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas, trad. de Ivo Barroso. São Paulo, Schwarcz, [1988] 1991.

Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação, José Colaço Barreiros, Lisboa, Difel, 1990.

Eco, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, trad.: Hildegard Feist, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1994.

Gumbrecht, Hans Ulrich. "Sobre os Interesses Cognitivos, Terminologia Básica e Métodos de uma Ciência da Literatura Fundada na Teoria da Ação", trad.de Heidrun Krieger e Luiz Costa Lima, revisão de Peter Naumann. in: Lima, Luiz Costa (ed.) A Literatura e o Leitor. Textos de Estética da Recepção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, [ 1977] 1979.

Le Goff, Jacques; Nora, Pierre (Dir.). Présentation, in: Faire de L'Histoire. Paris Gallimard. Vol. 1: Nouveau Problèmes, 1974.

Hutcheon, Linda. A Poética do Pós-Modernismo. Trad : Ricardo Cruz, Rio de Janeiro, Imago, 1988.

Iser, Wolfgang. El Acto de Leer. Teoría del Efecto Estético, trad. de J. A. Gimbernat; Manuel Barbeito. Madrid, Taurus, [1976] 1987.

Iser, Wolfgang. "Os Atos de Fingir ou O que é Fictício no Texto Ficcional", trad. de Heidrun Krieger Olinto e L. Costa Lima. in: Costa Lima (ed.) Teoria da Literatura em suas Fontes Vol. I, 2ed. rev. amp., Rio de Janeiro, Francisco Alves, [1979] 1983.

Simões, Henrique Campos (Atualização e Notas). "Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil", in: Revista FESPI - edição especial. Ilhéus, UESC, 1996

Simões, Maria de Lourdes Netto. As Razões do Imaginário. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/ EDITUS, 1998.



(Ilustração: Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo - Pero Vaz de Caminha lê para Pedro Álvares Cabral, para Frei Henrique de Coimbra e para o mestre João a carta que será enviada ao rei D Manuel I)