quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O VERDADEIRO INÍCIO DA POESIA NACIONAL, NOS VERSOS SOMBRIOS DE CRUZ E SOUSA, de Massaud Moisés

 



A sociologia do gosto mostra como é sujeita a chuvas e trovoadas a cotação dos escritores na bolsa de valores literários. As circunstâncias históricas, as amizades, as modas, os adeptos da mesma ideologia política ou religiosa, o marketing pessoal, a propaganda editorial, a idiossincrasia dos críticos, etc., são algumas das razões que podem explicar o sucesso que os autores desfrutam em vida. Claro, se esquecermos de considerar a qualidade do seu produto, poderemos cair no extremo de achar que a sua notoriedade se deve exclusivamente a equívocos, compadrios e distorções de toda sorte. Mas o registro da história literária, quando feito com isenção e verdadeiro espírito crítico, não deixa dúvidas acerca das falsas glórias, porque construídas sobre fundamentos artificiais, quando não simplesmente pouco éticos. Como é o caso de Macpherson, poeta escocês do século 18, ao revelar Ossian, cujas baladas, exibindo um lirismo espontâneo e nostálgico, ganharam audiência internacional e o aplauso fervoroso dos críticos, até meados do século 19, chegando alguns deles a inserir o velho bardo galês no mesmo nicho de Homero e outros poetas antigos de naipe equivalente. Um dia, no entanto, descobriu-se que tudo não passara de monumental fraude: o "descobridor" dos poemas medievais era quem os havia composto.

Entretanto, o contrário também acontece, ou seja, que um escritor tenha caído no esquecimento por muito tempo até que um crítico de renome o ponha de novo em circulação, como é o caso de Gôngora, que conheceu o ostracismo por mais de dois séculos. Ou tenha sofrido a incompreensão dos contemporâneos e dos pósteros e somente em nossos dias voltasse a gozar do merecido respeito, como é o caso de Sousândrade, cuja obra poética, de acentos épicos incomuns, alterou a perspectiva que se tinha da nossa poesia romântica. Ou ainda, passado um século da sua morte, não tenha encontrado todo o reconhecimento do seu valor. É precisamente o caso de Cruz e Sousa, cujo centenário de falecimento transcorre no próximo dia 19. [*]

Creio que não existe, na história das nossas letras, um caso igual de injustiça. Razão por que a data serve à maravilha para se fazer um balanço, ou melhor, um ato de contrição. Por que um poeta da sua envergadura ainda sofre do preconceito que conheceu em vida? É evidente que não se trata mais de preconceito racial, mas de outro, não menos impiedoso. "Dante negro", como alguns amigos o nomeavam, enfrentou com as armas do talento a sociedade hostil em que lhe foi dado viver. Guiado pelo heroísmo dos fortes, não calou a sua voz, mas os detratores souberam como abafá-la, apesar de alguns críticos (como Nestor Vitor) terem brandido com entusiasmo o fio cortante da razão em seu favor. Não bastassem os obstáculos levantados pelo ambiente tacanho, ainda enfrentou a morte do pai postiço, em cujo solar os seus pais serviam, e a quem devia a esmerada educação e formação escolar, bem como a loucura da sua mulher, Gavita, a "Núbia", a "Monja Negra", musa inspiradora. Se o destino dos poetas do século 19 costumava ser atravessado por lances de sofrimento e dor, poucos se lhe comparam em tragédia.

Por uma dessas ironias nada raras, a grandeza da sua poesia foi reconhecida por um estrangeiro ilustre, que entre nós realizou boa parte da sua carreira intelectual: Roger Bastide. Num estudo memorável, colocou-o a par dos maiores simbolistas europeus, Mallarmé e Stephan George. E com justa razão. Mas nem isso teve força para lhe conceder o lugar merecido no panteão nacional. Outros se juntaram ao autor de A Poesia Afro-Brasileira, de 1943 (onde se encontram quatro ensaios admiráveis acerca de Cruz e Sousa), como é o caso de um outro europeu superiormente dotado, Otto Maria Carpeaux, que aqui aportou para escapar dos horrores da guerra de 1939 e aqui ficou até os seus últimos dias, enriquecendo a nossa cultura com o seu saber e o seu discernimento fora do comum. Forrado de leituras enciclopédicas, e situado numa sensata perspectiva crítica e histórica, afirmou certa vez que "a verdadeira poesia nacional começou com Cruz e Sousa e Alphonsus...". Complementava, assim, o juízo lisonjeiro de Roger Bastide, pondo ênfase na importância nacional do poeta.

Como se não bastassem tais testemunhos consagradores, Andrade Muricy, mestre em matéria de Simbolismo e fervoroso admirador e conhecedor da sua poesia, entregou-se à tarefa de lhe editar o espólio e lhe sublinhar a originalidade estética, calcada numa tensa e complexa problemática existencial. Nem mesmo o centenário do seu nascimento (em 24 de novembro de 1961), motivando a reedição da obra e a revisão da sua fortuna crítica, foi suficiente para o erguer ao patamar onde de fato se localiza. Será que o centenário de falecimento poderá despertar os leitores para a sua poesia, inscrita sem favor algum entre as mais inspiradas das nossas letras?

De talento poético despontado muito cedo, Cruz e Sousa rabiscou os primeiros versos à luz de Castro Alves, com o seu romantismo social voltado para a causa abolicionista, e ao apelo da poesia de circunstância. A um só tempo, mostrava-se permeável à "Escola Nova", o realismo em arte, fundado no positivismo e no culto à ciência, no qual se incluíam as teses parnasianas. Um tal ecletismo traía uma fase de transpiração, quando ainda não haviam eclodido os conflitos que lhe marcariam a existência e a poesia madura. O seu livro de estreia, Tropos e Fantasias, escrito de parceria com Virgílio Várzea, um dos seus diletos amigos, apareceu em 1885. Contendo poemas em prosa, revela os titubeios de uma sensibilidade indecisa acerca do caminho a escolher entre as alternativas oferecidas pelo quadro cultural. Mas o lirismo romântico já dava sinais de ceder o espaço à reação antipositivista europeia.

A sedução do jovem pelas novidades não surpreende, pois ainda vivia em Desterro (atual Florianópolis), onde nascera. Uma breve estada no Rio, em 1887, seguida de uma mudança definitiva em 1890, viria a dar outro rumo às suas inquietações. Conhece Nestor Vitor e outros escritores cariocas, que seriam de grande valia no seu amadurecimento como poeta, entra em contacto com a literatura nova, representada por Baudelaire, Poe, Maupassant, Théophile Gautier, Huysmans, Cesário Verde e outros, nos quais descortinava uma súbita e secreta afinidade. A vez de Gavita pouco tardará, fechando o círculo da sua ascensão estética e humana: conhece-a em 1892 e com ela se casa no ano seguinte.

Da recolha dos poemas que nesses anos vai compondo com requinte e zelo de vitralista, resultará Broquéis, publicado em 1893, que a crítica logo mais saudará como o evento que inaugurava a estética simbolista entre nós. O seu poema de abertura, Antífonas, constituía uma espécie de manifesto em verso da nova corrente, como evidencia já a primeira estrofe, de contagiante andamento musical: "Ó Formas alvas, brancas, Formas claras / de luares, de neves, de neblinas!... / Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... / Incensos dos turíbulos das aras...". Missal, coletânea de poemas em prosa, vindo a lume nesse mesmo ano, confirmava a inserção do poeta na vertente literária que mais se afinava com o seu temperamento e as suas angustiantes experiências numa sociedade preconceituosa. A vaguidade, o misticismo, o culto do símbolo, as transcendências, o esteticismo, a tendência ao isolamento, a solidão, enfim, tudo quanto caracterizava o Simbolismo eram-lhe recursos adequados à expressão do seu drama de "emparedado". Este vocábulo, empregado como título de um poema em prosa que seria reunido em Evocações, é o que melhor lhe define, como um autêntico ícone, o drama existencial e a luta para sobrenadar num meio social adverso. O que nos outros simbolistas, notadamente num dos modelos da sua geração, Antônio Nobre, era o refúgio na "torre de marfim", expressão de individualismo solipsista beirando a megalomania, nele é o drama de humilhado e ofendido, preso entre quatro paredes.

Não obstante, os estilemas parnasianos, que já nos Tropos e Fantasias estavam presentes, comparecem nesse manifesto simbolista. A apologia da forma é considerada artigo de fé, ainda que atenuada pela brancura, pela fluidez, pelo misticismo. Tal consórcio, ao fim de contas, já estava na origem das duas vertentes poéticas do tempo: o Parnasianismo e o Simbolismo tiveram como berço Le Parnasse Contemporain, antologia de poetas franceses, publicada entre 1866 e 1876. Distingue-os, porém, o fato de que os parnasianos, movidos pelo amor à impassibilidade de extração clássica, faziam da forma um alvo em si mesmo, enquanto os simbolistas a utilizavam como meio para atingir um fim, que por sua vez estava mais próximo da estética romântica.

Cruz e Sousa, como bom simbolista que era, nutrirá a esperança de romper o "emparedamento" formal, imposto pela cartilha parnasiana, cultivando o poema em prosa, assim como outros simbolistas exercitarão o verso livre, que seria prenúncio da vanguarda moderna em poesia. E como autor de poemas em prosa alcançará os mesmos níveis que atingiu nas composições em que praticou a forma regular com esmero de ourives. E quer nuns, quer noutras, mostrará uma versatilidade que se diria dum deslumbrado ante o arsenal de formas à sua disposição para exprimir as sensações, não raro contrastantes, e os conflitos íntimos que o atormentavam. Além dos corriqueiros expedientes formais, como a aliteração, é a musicalidade a característica mais impressiva, numa escala que começa em surdina, como se a voz sufocasse em angústia, e termina em notas sinfônicas, próprias de quem, ao liberar os demônios interiores, experimentava apaziguadora catarsis. Traduzia quem sabe o anseio de libertação pela arte, a compensação do seu drama de "emparedado" ante uma sociedade injusta, mas o que predomina, nessa virtuosidade sem fronteiras, é o amor à arte como supremo bem.

Por outro lado, a esse culto pelos paraísos estéticos se mescla uma sensualidade escaldante, inspirada por Gavita, e por isso mesmo repassada de espiritualismo místico. Carnal e Místico é o soneto em que se estampa com toda a força o liame entre a sedução da matéria e o visionarismo do Além. O terceto final parece dizê-lo numa síntese que lembra o clima de Antífonas: "Ó Formas vagas, nebulosidades! / Essência das eternas virgindades! / Ó intensas quimeras do Desejo...". Enleado numa floresta de símbolos, "correspondências" e alegorias, à procura da "beleza que não morre" (como diria Antero, seu igual em angústia transcendental), ainda não conseguira vazar em palavras, com clareza, seu drama íntimo.

É que, nesse tempo, celebrava ele o noivado místico com a musa inspiradora. Mas em vez de colher alegrias, ainda que sublimadas por um idealismo de raiz, assiste ao irromper de antigos recalques, veiculando emoções intensas de largo espectro, que calam fundo na sensibilidade do leitor. A sua poesia ganha, em consequência, um rosto arquetípico, que não só reflete a extensão dos seus conflitos, como também dá uma ideia da altura a que se elevava a sua inspiração. Nenhum contemporâneo entre nós o igualou, e raros o acompanharão daí por diante, nesse caldeamento de pulsões nascidas do "eu" revolto e do inconsciente coletivo.

A desesperação, que agora se anuncia com todo o seu poder, será a nota predominante na fase seguinte, assinalada pelos poemas que integrarão Faróis e Evocações. O ano era de 1896. E a motivação do poeta vinha da morte do pai postiço e a demência de Gavita. Caído de um céu nirvânico para a realidade mais dura, substitui a reverência estética pela confissão dum sentimento trágico da vida. A revolta, até então esboçada, agora prevalece. E se antes o seu instrumento parecia se afinar pelos acordes dum Verlaine, agora descobre em Baudelaire o seu parceiro ideal. Tudo fala em dor, tristeza, ironia, morte, rebeldia, tédio, desesperança, satanismo, regiões infernais, decomposições funéreas, "vala comum de corpos que apodrecem,/esverdeada gangrena". O firmamento se lhe afigura pontilhado de "luas de nevroses amarelas", enquanto na terra observa os "vermes, abutres a corroer pedaços/da carne deletéria", num "carnaval infernal da Sepultura".

Tudo culmina na angústia de "emparedado", como se o poeta vertesse em palavras sombrias a mesma tortura interior que Van Gogh representou nas pinceladas nervosas do seu ensolarado impressionismo. Construirá, efetivamente, o seu poema-testamento: "Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d'África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!" Será demais vislumbrar neste cenário baudelairiano o impacto das crenças cientificistas que sustentavam o Realismo e o Naturalismo, como também a fonte precursora da poesia de Augusto dos Anjos?

Cruz e Sousa não chegou a ver a publicação de Evocações, saída pouco depois da sua morte, por tuberculose, em 19 de março de 1898. Quanto a Faróis, viria a público em 1900, graças ao empenho de Nestor Vitor, a quem se deve igualmente a organização de Últimos Sonetos, publicado em 1900, assim como a primeira recolha das suas obras-primas em matéria de soneto, testemunha o ingresso do poeta numa fase em que a revolta, amparando-se na caridade cristã, dá lugar à resignação. O "cárcere das almas" significa, agora, o anseio pelo "etéreo Espaço da Pureza", pela abertura das "portas do Mistério"; é o desejo de Infinito que norteia o poeta, finalmente entregue ao seu destino de visionário, a invocar a "essência das essências delicadas", convicto de que "ó mundo, (...) és o exílio dos exílios", de que "nessa Amplidão das Amplidões austeras / chora o Sonho profundo das Esferas, / que nas azuis Melancolias morre...".

Alcançava, em suma, o ideal simbolista preconizado em Antífonas. A palavra poética, despida de esteticismo, logra ser puro símbolo: significante e significado se fundem num corpo só, plasmando numa forma única um sentimento único, que se dispersaria, porque fugaz erupção do inconsciente, se outro vocábulo o registrasse. Ou seja, os múltiplos sentidos implícitos na sensação requeriam uma expressão correspondente, que era preciso inventar ou encontrar. Daí o símbolo.

E como tal, não surpreende que os vocábulos para designar o branco lhe brotassem da pena com a frequência de um motivo condutor. Alguns críticos interpretaram erroneamente essa obsessão como sinal do seu complexo de cor, esquecidos de que o branco e cognatos recorrem também nos poemas de outras figuras do Simbolismo, como se pode ver na obra de Alphonsus de Guimaraens. E ninguém diria que o motivo básico, neste poeta, era o mesmo. Impulsionada pelo atrito com o meio, a poesia de Cruz e Sousa usou a cor branca como sinônimo de pureza, virgindade, transcendência, etc., enfim, tudo aquilo que a sua geração considerou digno de se constituir em símbolo de perfeição. Na verdade, em vez de caracterizar o seu drama de poeta negro numa sociedade escravagista, as nuvens brancas, a "lua de linho", as "alvuras castas", etc., apontavam para o fundo religioso do seu drama existencial. Sonho Branco intitula-se, sintomaticamente, um poema de Broquéis. Nisto, diga-se de passagem, avizinhava-se do autor de Ismália, com a diferença de que este era um crente em agonia, enquanto Cruz e Sousa somente atingiu a paz sonhada depois de cruzar os ventos de tragédia que lhe assolaram a breve existência.

Para finalizar, nada melhor do que, à semelhança de Andrade Muricy na introdução à Obra Completa (1961) de Cruz e Sousa, remontar ao estudo em que Roger Bastide lhe interpreta a poesia como uma das mais refinadas da sua geração. Diz ele, fazendo um balanço acima de qualquer suspeita: "Mallarmé continua contemplativo, ao passo que o que domina em Cruz e Sousa é a viagem e a subida, é o dinamismo do arremesso, e isso porque ele era brasileiro, do país da saudade, e de origem africana, de uma raça essencialmente sentimental." E acrescenta: "O chefe da escola francesa, por apuro supremo, chegará à palavra que dá a conhecer uma ausência, enquanto o processo de Cruz e Sousa será o da cristalização. A cristalização é purificação e solificação na transparência, podendo assim guardar na sua branca geometria alguma coisa da pureza das Formas eternas, da Essência das coisas." Daí uma "poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante". É preciso dizer mais alguma coisa?



(Ilustração: Casa onde nasceu Cruz e Sousa, autor não identificado)

Nota:

Cruz e Sousa faleceu em 19 de março de 1898, portanto o artigo é anterior a 19 de março de 1998. (Nota do blog)

domingo, 25 de setembro de 2022

LA SINCÈRE / A SINCERA, de Marceline Desbordes-Valmore

 




Veux-tu l’acheter ?

Mon cœur est à vendre.

Veux-tu l’acheter,

Sans nous disputer ?



Dieu l’a fait d’aimant;

Tu le feras tendre ;

Dieu l’a fait d’aimant

Pour un seul amant !



Moi, j’en fais le prix ;

Veux-tu le connaître ?

Moi, j’en fais le prix ;

N’en sois pas surpris.



As-tu tout le tien ?

Donne ! et sois mon maître.

As-tu tout le tien,

Pour payer le mien?



S’il n’est plus à toi,

Je n’ai qu’une envie ;

S’il n’est plus à toi,

Tout est dit pour moi.



Le mien glissera,

Fermé dans la vie;

Le mien glissera,

Et Dieu seul l’aura!



Car, pour nos amours,

La vie est rapide;

Car, pour nos amours,

Elle a peu de jours.



L’âme doit courir

Comme une eau limpide;

L’âme doit courir,

Aimer ! et mourir.



Tradução de Sandra Stroparo & Caetano W. Galindo:



Você quer comprar?

Coração à venda.

Você quer comprar,

Sem ter que brigar?



Deus o fez de aço;

E você que o renda;

Deus o fez de aço

Para um só abraço!



Eu decido o preço;

Você quer saber?

Eu decido o preço;

Não fique surpreso.



Você tem o seu?

Dê! ganhe meu ser.

Você tem o seu,

Pra pagar o meu?



Se seu não é mais,

Só tenho um desejo;

Se seu não é mais,

Pra mim não há paz.



O meu seguirá,

Cerrado sem pejo;

O meu seguirá,

E Deus o terá!



Pois para a paixão,

A vida é tão rara;

Pois para a paixão,

Não há duração.



A alma só corre

Como a água clara;


A alma só corre,

Só ama! e morre.





(Les Pleurs, 1833).



(Ilustração: Edvard Munch - femme-en-pleurs -1907-1909)

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

GILKA MACHADO, A MALDITA, de Maria Lúcia dal Farra

            

 


Nelson Rodrigues se dizia leitor assíduo de Gilka Machado, e acrescentava que ela o havia influenciado. [1] Embora a frase fique um tanto ameaçada pela paixão do “Anjo Pornográfico” por Eros Volúsia (filha da poetisa, notável bailarina), os versos de Gilka condizem de fato com a temperatura transgressiva e com certa marginalidade, típicas da obra do dramaturgo brasileiro. [2]

A poetisa, que deslumbrara e desorientara a crítica a partir de Cristais partidos (sua ruidosa estreia em 1915), fora muito pobre: sujara sempre as mãos para ganhar a vida e trazia os estigmas do trabalho. Desde moça, era diarista da Estrada de Ferro Central do Brasil e, da morte do marido (1924) até a formação dos filhos, seria cozinheira da pensão com que sobreviveu no Rio de Janeiro, para “não morrer de fome” – segundo ela mesma nos informa. [3] Seus poemas foram escritos “à beira do fogão”, onde preparava refeições para os fregueses, dentre os quais dois eméritos intelectuais: Andrade Muricy e Tasso da Silveira, fundadores da revista Festa em 1927, na qual Gilka passaria a publicar.

Se, durante a sua vida, ela foi agraciada com o aceno de ser uma das maiores senão a “maior poetisa brasileira”, [4] tudo não passara de prêmio de consolação ou, no dizer de Wilson Martins, de “tentativa psicanalítica de reduzir-lhe a importância”, [5] de neutralizá-la. Osório Duque Estrada vem a público em 1937, para defender a reputação da amiga e para esclarecer que seu nome glorioso angariara rancor e despeito dos “pequeninos, venenosos e malevolentes rivais”. Sendo odiada e invejada por alguns desses, foi afrontada “covardemente com as mais repugnantes e mais nojentas maldades”. [6] Eis aqui alguns de seus versos para que se tenha ideia da especulação que em torno dela se nutria, visto que neste nosso país, em trânsito da República para o Estado Novo, nem todos “os brasileiros estavam preparados para lê-los, sem extrapolações falazes”. [7] Eis o soneto:

 

Beijas-me tanto, de uma tal maneira,

boca do meu Amor, linda assassina,

que não sei definir, por mais que o queira,

teu beijo que entontece e que alucina!

 

Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,

e todo o senso aos lábios meus se inclina:

morre-me a boca, presa da tonteira

do teu carinho feito de morfina.

 

Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,

e de ti mesmo sofro a imensa falta,

no vasto voo de um delíquio infindo…

 

Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,

e toda me suponho uma árvore alta,

cantando aos céus, de passarinhos cheia… [8]

 

O poema, emblemático da postura pioneira de Gilka, enuncia, como se vê, a rendição da fala diante do prazer que, aliás, vai se multiplicando até convertê-la em puro princípio de vida: em árvore cantante. A mulher abdica do dizer (dizendo isso) para usufruir o gozo – legenda que talvez sugira o quanto Gilka foi, pela inteligência nacional, simultaneamente apreciada, criticada, vilipendiada e ridicularizada. A Academia Brasileira de Letras lhe outorga em 1979, um ano antes da sua morte com 87 anos, o prêmio Machado de Assis pela publicação da Poesia Completa. No entanto, o que se coroava ali era um silêncio, uma desistência. Porque, a bem dizer, essa poesia já se completara há mais de quarenta anos, quando, depois de muito dialogar na intimidade de seus versos com seus detratores, Gilka abandonara o ofício, se suicidando em vida.

Olhando-a partir daqui, vejo que os ataques desferidos contra a sua prática poética mais se adensam na altura da publicação de Meu glorioso pecado, em 1928. Nesse volume, ela assumia com orgulho, e desde o título, as pechas culturais do feminino que vinha exaltando em poemas sensuais sobre o interdito, tanto em Estados d’alma (1917) quanto em Mulher nua (1922). De maneira que é a partir de então que passam a frequentar a cena pública certos preconceitos desembainhados contra ela: a sua carência de educação formal, a sua origem familiar e a cor da sua pele. E o pior: muitas vezes esses ataques se originavam de fogo amigo, como se, para perdoar a vocação de Gilka para o impronunciável fosse preciso assacar intangíveis razões. Ao mesmo tempo, os editores abusam dela. É verdade que seus volumes se esgotam: mas apenas porque todo mundo tem curiosidade de conhecer o “livro imoral” – como ela mesma sublinha em entrevista. No entanto, para vender mais, e sem o seu aval, os editores publicam edições apressadas, com profusão de erros tipográficos, com omissão de versos e, além de tudo, com arbitrariedades chocantes: trocam o inefável título Meu glorioso pecado por um anódino “Poemas”, talvez com o interesse de angariar também um outro público-leitor, além daquele afoito a fantasias sexuais, há muito assegurado. Denunciando a impunidade de “barbaridades assim”, Nestor Vitor insiste que “seria irrisório um autor, sem dinheiro, questionar judicialmente a propósito”. E concluía reparando como, nessa atual fase da carreira de Gilka, a tratavam de forma tão “displicente”. [9]

Outro crítico (que não se identifica, mas que busca defendê-la da acusação de pouca leitura e de pífia formação intelectual) comenta que Gilka é “limitada, por circunstâncias diversas, a uma cultura quase exclusivamente intuitiva” e que, portanto, não tem podido contar com “os recursos maravilhosos de um conhecimento claro da poesia universal”. Todavia (era necessário compreender) nunca fora seu fito a “construção magnífica”, mas antes o “direito de sentir e de pensar como os impulsos íntimos lhe ordenam”. [10] Ora, nesse contexto tacanho, o argumento cai como mosca no mel. Eram justos os “impulsos íntimos”, a “sensualidade exaltada”, a “embriaguez dos sentidos”, a “vertigem sensual” que semeavam na sua poesia essa suspeição moral. “Bacante dos trópicos”, é como Agripino Grieco a chamara; “tempestades de carne” é como Humberto de Campos denominara seus versos; “bailado voluptuoso”, é como Emílio Moura cunhara sua obra. [11] Ainda assim, faz espécie que seja por tal viés que as cogitações acerca dos frenesis poéticos de Gilka deságuem na sua ancestralidade familiar e na sua tez.

O argumento de que a poetisa era uma “artista nata e impetuosa” [12] entra aqui como consequência de Gilka ser proveniente de uma família de artistas, músicos, poetas e atores, enfim, de gente boêmia. De maneira que (como mexerica o ferino Lindolfo Gomes para o não menos fofoqueiro Humberto de Campos) ela padeceria “da tara da família”, muito embora fosse menos “vítima” do “sangue familiar” que do marido. Este a obrigaria a escrever “aqueles versos escandalosos”, só para tirar disso [sic] “proveito de empregos e de relações”. [13] Ajunte-se a estas ferinas suposições um depoimento não menos empenhado de Afrânio Peixoto a Humberto de Campos, datado de 1930, e ver-se-á do que é capaz a maledicência – contanto que apoie o preconceito.

Todo compungido e tocado pela miséria e pela sujeira da escura “alfurja” [14] onde residia Gilka na Rua da Misericórdia, Afrânio revela ao amigo que Gilka não é “aquela moça branca e vistosa” que se mostra “nos retratos”, mas sim aquela “mulatinha escura, de chinelos, num vestido caseiro” que lhe aparecera então à porta. [15] Só à luz desta citação pode-se entender por que Gilka, na dita entrevista, se refere a Humberto de Campos com tanto rancor, asseverando que se tratava de um inimigo, de um difamador. E a opinião a seguir, que é da lavra dele, possui a bondade de insinuar, para além da mordacidade contumaz, aquilo que Humberto de Campos (e, por que não a intelectualidade brasileira da altura?) entende por “maldito” – acepção divulgada por Verlaine a partir de 1883. Eis o seu veredicto sobre Gilka:

Leal com a sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia externar em versos, impunemente no Brasil, como Lucie Delarue-Mardrus, Marceline Desbordes-Valmore ou a condessa de Noialles, todo o ardor da sua mentalidade de crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas, cheirando a pecado, toda a gente supôs que estas subiam dos subterrâneos de um temperamento quando elas, na realidade, provinham do alto das nuvens de uma bizarra imaginação. Sátiros que andavam soltos acenderam subitamente as narinas, aspirando o ar, com os dentes à mostra. Ignoravam eles, na sua materialidade, que há um vale profundo entre o pensamento e o sentimento, e que o reflexo do temperamento é este, e não aquele. [16]

A citação é dúbia e matreira. O crítico parece tomar o partido da poetisa contra os subdesenvolvidos sátiros da nossa republiqueta de banana, quando, na verdade, se compraz em explicitar o preconceito pela “mentalidade de crioula”, fortalecido pelo “pecado” e associado aos “subterrâneos de um temperamento”. Repare-se também que Campos divide Gilka em duas, dilacerando-a: de um lado, ela é o tal temperamento ardoroso e o sentimento; de outro, a bizarra imaginação e o pensamento – cisão que, aliás, já vem percorrendo toda a fortuna crítica de Gilka, como se verá. No entanto, as poetisas citadas se encontram a salvo, fora do seu alcance e suspeita, e ali se localizam para contrastar com o sub-reptício primitivismo intuitivo de Gilka. Elas não são brasileiras – escrevem em francês (e imediatamente, aqui, a mítica geográfica entra em ação). Assim, embora externem em versos suas “mentalidades” femininas (e, certamente Lucie Delarue-Mardrus lhe fizesse espécie), ficam impunes, fora da sua jurisdição, visto que só Gilka, dentre elas, é “crioula”. Dentre as três estrangeiras, já se sabe, há uma “maldita”: a loura Marceline Debordes-Valmore.

Ingressa em 1888 na coletânea de Verlaine, Marceline é a única mulher a figurar dentre os seis “malditos”, por “son obscuritée aparente et aussi absolue”. [17] Ao contrário do que se passa com Gilka, Marceline é estimada por seu crítico, que a leu via Rimbaud. Segundo saberemos mais tarde, Rimbaud se apropriara, em 1872, de um dos versos do poema “C’est moi”, escrito em 1825 por Marceline, e que era assim: “Prends-y garde, ô ma vie absente!”. [18] Tal frase, transcrita pela sua pena, vai fazer todo o sentido na poética rimbaldiana, a ponto de ser tomada, dentre outras, como simbólica própria. Reformulada por Rimbaud, ela ficará convertida em “la vraie vie est absente”. [19]

Marceline Desborde-Valmore, além de ter vivido num hemisfério diverso do de Gilka, também existiu num outro registro temporal; os contextos histórico-literários de ambas são muito diferenciados. A francesa vem do classicismo e percorre o romantismo francês, enquanto Gilka sai do parnasianismo e penetra no simbolismo-decadentismo, naquela zona difusa do pré-modernismo brasileiro. Marceline morreu quase quarenta anos antes do nascimento de Gilka, que veio ao mundo em 1893 e o deixou em 1980, com 87 anos. Marceline nasceu ainda no século XVIII, em 1786, e faleceu na primeira metade do XIX, em 1856, com 73 anos. Tão distantes as duas poetisas e, no entanto, com tantos pontos de contato biográficos!

Marceline vem, como Gilka, de uma família de artistas e vai trilhar a carreira de atriz, cantora e dançarina de teatro para se sustentar. Sua história pessoal é igualmente coalhada, do início ao fim, de misérias, sacrifícios, de trabalhos domésticos à beira do fogão, de costuras e da dura disciplina de copista dos papéis dramatúrgicos; vida madrasta repleta de desgraças e perdas, que lhe valeu o epíteto final (fornecido por Lucien Descaves) de a Notre-Dame-des-Pleurs. Marceline levou uma existência errante, de Douai a Guadalupe, ao Havre, a Lille, a Paris, a Bruxelas, a Milão, a inúmeras cidadezinhas da província francesa. Só na Paris dos seus derradeiros tempos, mudou-se catorze vezes de morada, vitimada pela carência de recursos, muito embora socorrida por pensões governamentais, insuficientes, no entanto, para arcar com a família e o desemprego final do marido, Prosper Valmore, que também era ator. Como Gilka, Marceline não brilha pela cultura e menos ainda pelo conhecimento aprofundado do ofício poético, posto que quase não leu e que teve apenas uma formação mediana. Era autodidata e sua ortografia se manteve sempre abaixo da média:

je ne suis pas plus instruite que les arbres qui se dressent et se penchent sans savoir pourquoi [20]

diz ela. Marceline também sofreu, como Gilka, o descaso dos editores, ela que, segundo consta, também teria negligenciado sua obra. [21] Como Gilka, Marceline escreveu sobre os filhos e se dedicou, com rebeldia, a denunciar os maus tratos e injustiças sofridos pelos humildes e desvalidos. Em “Dans la Rue par un jour funèbre de Lyon”, a “mulher”, personagem do poema, reclama:

 

Nous n’avons plus d’argent pour enterrer nos morts.

Le prêtre est là, marquant le prix des funérailles ;

Et les corps étendus, troués par les mitrailles,

Attendent un linceul, une croix, un remords. [22]

 

A desconfiança que paira sobre os versos de Gilka e que atinge a sua biografia – paira igualmente sobre a vida de Marceline, mas não sobre seus versos. No caso desta, devido a um episódio de sedução que redundou em desprezo imposto pelo amante, na existência e na morte prematura do filho dessa união. Todavia, desconfianças sobre a continuidade desse relacionamento clandestino depois do casamento de Marceline com Valmore, acabaram dando trela a várias especulações. O bisbilhoteiro de plantão é agora Sainte-Beuve, que não mediu esforços para tentar decifrar o enigma do “Olivier” que comparece nos versos de Marceline. O crítico francês, que também pretendeu casar-se com uma das filhas da poetisa, suspeita que o sedutor da mãe tivesse sido o poeta Henri de Latouche, o conhecido “Loup de la Vallée”, com quem o casal Valmore manteve amizade durante vinte anos. Há, inclusive, uma deplorável versão de ruptura entre o casal e Latouche, que envolve a pretensão do Lobo de seduzir a filha de Marceline – de quem (se supõe) seria… o próprio pai.

Mas se entro nessas minudências biográficas mesquinhas e nessas suposições picantes, é simplesmente porque, no caso de Marceline, há uma expandida crença de que sua vida é sua poesia, de que toda a sua história pessoal de vicissitudes e sofrimentos pode ser lida, capítulo a capítulo, na sua poesia, que não passaria, afinal, de um documento inestimável sobre ela. Por isso referem tanto a espontaneidade da sua obra quanto a franqueza e a honestidade de sua pessoa, que jamais se censura, correndo até um risco quase perigoso. Compreende-se, nessa linhagem interpretativa, que o ritmo e a melodia ímpar de seus versos advenham, então, do abandono da sua carreira musical, visto que, deixando o canto, entregar-se-ia Marceline ao domínio da palavra escrita. Stefan Zweig, um de seus biógrafos, afirma que “é

sem exemplo, na literatura universal, esse delicioso milagre de uma sinceridade sem reservas, graças à qual, com a ajuda de pequenas canções, linha por linha, pode-se retraçar um destino feminino, edificar toda uma biografia sobre as poesias, sem que se encontre ali uma mentira ou uma hipocrisia”. De maneira que não há intervalo entre o que ela sente e o que ela escreve, e a sua poética, como o quer Jeanine Moulin, encerra “uma poesia do imediato, toda vibrante ainda do transe que a fez brotar”; daí a propalada “autenticidade” da obra da poetisa francesa.

Marceline parece de fato cooperar para tanto. Lendo-a, a gente se sente tentado a montar os vários quebra-cabeças que seus poemas vão desenhando ao longo de cada livro, graças ao clima de meias-palavras, segredos, mistérios e enigmas semeados, que funcionam como eficaz chamariz para o leitor vir a conferir o próximo desenrolar. De uma feita é o desafio de compor o nome verdadeiro do amante por meio do seu próprio; de outra, dele são fornecidos alguns índices, idade, viagens, fortuna poética; e assim por diante, num desfile de ingredientes pitorescos, sedutores e dramáticos, que atraem o leitor, como se ele se encontrasse diante de… um folhetim lírico – o que talvez explique simultaneamente a sua popularidade e a obscureza que atrai Verlaine:

 

Ma soeur, il est parti! ma soeur, il m’abandonne!

Je sais qu’il m’abandonne, et j’attends, et je meurs,

Je meurs. Embrasse-moi, pleure pour moi… pardonne (…)

Mais retiens tes sanglots. Il m’appelle, il me touche,

Son souffle en me cherchant vient d’effleurer ma bouche.

 

Se os três primeiros versos ilustram as cenas teatralmente românticas que apontei, os dois últimos expõem o cerne da afirmação de Humberto de Campos a propósito da legitimidade cultural em se “externar em versos”.

Mas, com Marceline, acontece o contrário de Gilka. Pintada por Goya, fotografada por Nadar, críticos e escritores de renome são seus fãs: Rilke, Balzac, Victor Hugo, Lamartine, Baudelaire, Sainte-Beuve, Vigny, Samain, Anatole France, Alexandre Dumas, e até mesmo o misógeno Barbey d’Aurevilly, sem falar em Rimbaud e em Verlaine. Tais apreciações tão unânimes esconderiam talvez algum travo da “complacência” masculina diante de uma mulher escritora tão modesta, ingênua e infortunada? Stefan Zweig conclui com uma asserção que pode botar lenha na fogueira. Segundo ele, Marceline “reconhece que a mulher, apenas pelo sofrimento e não pela alegria, desempenha seu papel na grande comunidade humana”.

Por seu turno, a interpretação de Verlaine não fica longe das versões mecanicistas de que a obra é vida e vice-versa. É verdade que ele puxa a questão para o nível formal, comentando que não há em Marceline nada de ênfase, de afetação ou de má-fé, e que seu grande mérito teria sido o de ter empregado com maior fortuna os ritmos desusados, sobretudo o de onze pés. Todavia, ele a apresenta por meio de transcrição de trechos de poemas, como num álbum biográfico: a mãe, a filha, a moça, a inquieta e sincera cristã, a jovem romântica, a grande amiga, a mulher de paixão mais casta e discreta, a mulher terna e altiva – conjunto de poemas que extrai dele vivas lágrimas. Também a aproxima de Évarist de Parny – como se sabe, autor de Poèsies erotiques, de Elégies, de Chanson Madécasse. Verlaine a vê como um “casto Parny” – o que é, aliás, um notável paradoxo. E postula: com George Sand (com quem não simpatiza), Marceline Desbordes-Valmore “é a única mulher de gênio e de talento deste século, e de todos os séculos, em companhia de Safo, talvez, e de Santa Teresa.”

Se, entretanto, Marceline não parece incomodar ninguém com o seu choro e os seus gritos de dor, conformando-se com o lugar que lhe foi oferecido socialmente como feminino, o que se vê em Gilka é bem o contrário. A maioria de seus comentadores atenta para o dado bizarro que patenteia sua obra (e de que ela seria a pioneira no Brasil): a “inversão de papéis” de gênero. Agripino Grieco se dá conta de que ela se apressa a dizer aos homens, como poetisa, “certas coisas que devia esperar que eles lhe dissessem primeiro.” [23] Medeiros e Albuquerque, refletindo que é muito “embaraçosa” a posição das mulheres, sobretudo quando se põem a cantar o amor, repara que Gilka tem coragem de “confessar certas inclinações que, em geral, as poetisas escondem”. Esse privilégio, que ela se arroga para si, de aludir ao sentimento amoroso descendo às “minúcias descritivas”, seria própria dos homens que, aliás, se comprazem com tais delícias. E conclui ele: “Até hoje pelo menos não se tem permitido” às mulheres fazerem o mesmo: é “impróprio o elogio do corpo masculino pela mulher, pois parece coisa brutal, luxuriosa, cínica”. [24]

Mas, para tentar explicar tal “inversão” sem constranger ainda mais a vitimada poetisa, aparece com propriedade a assacada cisão interna, aliás, uma vênia estratégica. Bem na contramão do que ocorre com Marceline, se olharmos para a fortuna crítica de Gilka, concluiremos que ela se empenhou em assegurar que a vida pessoal da poetisa não tem vínculo algum com a sua poesia. Assim, a mulher que comparece nos seus poemas não é aquela que os produz. Esta última, a crer ainda em Humberto de Campos, era “a mais virtuosa das mulheres” e “a mais abnegada das mães”. [25]

Agrippino Grieco também não faz diferente. Para ele é premente o ditame de advertir aos leitores de Gilka que as atitudes da poetisa pertencem apenas à esfera do “domínio da arte”, o que significa que são, em verdade, mui diversas daquelas que Gilka, a autora, desempenhava na sua “vida”, real, que ele qualifica, então, como “modesta e altiva”. [26] E é notável como Gilka, sempre em interlocução interna com a sua crítica, tematiza essa mesma divisão – mas enquanto prerrogativa feminina.

Num soneto de Meu glorioso pecado, Gilka expõe a sua existência de permeio, exibindo uma vida que se desenvolve num entrelugar de si mesma. Esse eu, assim apertado, e que floresce apenas num intervalo, se manifesta com a inconveniência de uma tara, como uma existência fantasmática. Todavia, tal mulher espremida, apertada dentro da outra, é aquela que a seu lado se debate na cena sexual, protagonizando o outro lado do feminino, pois que nesse ato que se chocam, face a face (e em litígio), a mulher de carne e a mulher de espírito. Eis o soneto:

 

A que buscas em mim, que vive em meio

de nós, e nos unindo nos separa,

não sei bem aonde vai, de onde me veio,

trago-a no sangue assim como uma tara.

 

Dou-te a carne que sou… mas teu anseio

fora possuí-la – a espiritual, a rara,

essa que tem o olhar ao mundo alheio,

essa que tão somente astros encara.

 

Por que não sou como as demais mulheres?

Sinto que, me possuindo, em mim preferes

aquela que é o meu íntimo avantesma…

 

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,

dessa rival que os dias me acompanha,

para ruína gloriosa de mim mesma!

 

Focando este poema, parece-me, ao fim e ao cabo, que aquela frase de Marceline, surrupiada por Rimbaud, não era sintomática apenas da modernidade desse poeta maldito. Pleiteiam-na, no contexto das relações entre vida e obra (afinal sempre à mercê da conveniência dos entornos), tanto Marceline Desbordes-Valmore quanto Gilka Machado, posto que nessa equação feminina alguma vida fica sempre ausente.

  

NOTAS

1. Cf. CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Em 1932, Nelson pede a mão de Eros à Gilka, que a recusa.

2. Eros é a pesquisadora e a criadora da chamada dança brasileira, extraordinária bailarina de formação clássica que interpretou, em registro mestiço, desde Zequinha de Abreu a Villa- Lobos. Primeira mulher latina a ser capa da Life americana (em 1941), fora para ela que Carmen Miranda pedira licença para adotar sua definitiva coreografia de bahiana hollywoodiana.

3. Declaração de Gilka na entrevista à Nádia Batella Gotlib e a Ilma Ribeiro, em final de 1979, e transcrita em GOTLIB, Nádia B. “Gilka Machado: a mulher e a poesia”. Mulher & Literatura. 5º. Seminário Nacional Mulher e Literatura (org. Constância Lima Duarte). Natal: UFRGN, Ed. Universitária, 1996, pp. 17-30.

4. De fato, em 1933, a revista O Malho do Rio de Janeiro, realizou um plebiscito, e Gilka foi eleita a “maior poetisa brasileira”.

5. Cf. MARTINS, Wilson – História da inteligência brasileira, vol. VI (1915-1933). São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 32-38.

6. Cit. por BRITO, Cândida. Antologia feminina. Rio de Janeiro: Edição de “A Dona de Casa”, 1937, 3ª. ed. , p.18. | ESTRADA, Osório Duque – (1937)

7. CF. CAMPOS, Humberto. Crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, 2ª. série, 1ª. ed., pp. 314-315.

8. Uso a edição de Gilka Machado. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda, 1992, apres. de Eros Volúsia Machado. A partir daqui cito as páginas em seguida à transcrição do poema.

9. Cf. “Gilka Machado”. O Globo. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1928. É Nestor Vitor quem nos fornece tais informações sobre o procedimento da Livraria Azevedo/Erbas de Almeida & Cia Editores do Rio de Janeiro.

10. Informação prestada pela revista carioca Terra do sol. Revista de Arte e Pensamento, n. 7, de julho de 1924, por meio de um comentário não assinado acerca das “Mulheres poetas do Brasil”. Trata-se de um texto publicado em 1924 na revista carioca Sol Poente.

11. MOURA, Emílio. “Poetisas (do “Esfinges” ao “Nunca mais”)”. Revista Terra de Sol, agosto de 1924, nº.8 (vol. 3), pp. 197.

12. Cit. por GÓES, Fernando. “Gilka da Costa Melo Machado”. Panorama da Poesia Brasileira (O Pré-Modernismo). Vol. V. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1960, pp. 165-175.

13. O verrino comentário citado por Humberto de Campos, no seu Diário Secreto .Vol.II (Rio de Janeiro:José Olympio Ed., 1954, p.63), teria ocorrido em 4 de junho de 1919, a propósito da publicação de Estados de alma.

14. O leitor estranhará o termo, para o qual há estas acepções: pátio interno descoberto, destinado a ventilar e iluminar os aposentos de uma casa; rua estreita, ou qualquer área, onde se atirava o despejo das casas; monte de detritos, de objetos velhos ou gastos, sem préstimo; monturo; lugar freqüentado por gente desclassificada; antro. Dentre todas podemos eleger aquela escolhida por Afrânio Peixoto.

15. Afrânio teria lhe revelado tais fatos em 18 de agosto de 1930. Cf. Diário Secreto, Opus Cit.p. 50.

16. CAMPOS, Humberto. Crítica. Opus Cit. p. 400. Os negritos são meus.

17. Uso ambas as edições: VERLAINE, Paul – Les poètes maudits. Paris/Genève: Ressources, 1979 e Los poetas malditos. Buenos Aires: Editorial GLEM, 1942 (traduzido a partir da edição de 1888, por M. Bacarisse). A citação pertence à ed. de 1942, p. 59.

18. Élégies et poésies nouvelles, Paris, Ladvocat, 1825. Cf. OEuvres poétiques de Marceline Desbordes-Valmore.Grenoble: Presses Universitaires, t. I, 1973, p. 111-112. ed. de Marc Bertrand.

19. Cf. Bivort Olivier, « Les « vies absentes » de Rimbaud et de Marceline Desbordes-Valmore”, Revue d'histoire littéraire de la France, 2001/4 Vol. 101, p. 1269-1273.

20. Cit por ZWEIG, Stefan. Marceline Desbordes-Valmore. Paris: Éditions de la Nouvelles Revue Critique, 1945, p. 51.

21. O parecer é de Jeanine Moulin, em Marceline Desbordes-Vamore (une étude par Jeanine Moulin, inédits, oeuvres choisies, bibliographie, fac-similé, portraits, documents. Paris: Seguers Éditeur, 1955, p. 10). Ela reclama por edições recentes, pois que nada mais foi editado até aquela altura. Não esquecer, entretanto, que Marceline é a primeira mulher a fazer parte da “Galerie Seghers”.

22. Cit. na antologia de MOULIN, Jeanine. Opus Cit, pp. 187-188.

23. GRIECO, Agripino. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro: José Olymío, 1947, 3ª. ed., p. 93

24. ALBUQUERQUE, Medeiros e. Páginas de crítica. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro Maurillo, 1920, p. 67.

25. CAMPOS, Humberto de – Crítica. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W.M. Jackson, 1945, 2ª ed., p. 400.

26. GRIECO, Agrippino – “As poetisas do Segundo Império”. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1947, 3ª ed. rev., p. 93.

 

(Ilustração: Gilka Machado – desenho em lápis de cera de Amaury Menezes, neto da escritora).

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

SONNET XVI / SONETO XVI, de Fernando Pessoa

 





We never joy enjoy to that full point

Regret doth wish joy had enjoyed been.

Nor have the strength regret to disappoint

Recaling not past joy's thought, but its mien.

Yet joy was joy when it enjoyed was

And after-enjoyed when as joy recalled,

I t must have been joy ere its joy did pass

And, recalled, joy still, since its being-past galled.

Alas! All this is useless, for joy's in

Enjoying, not in thinking of enjoying.

Its mere thought-mirroring gainst itself doth sin,

By mere reflecting solid life destroying.

Yet the more thought we take to thought to prove

It must not think, doth further from joy move.



Tradução de Adolfo Casais Monteiro e de Jorge de Sena:



Jamais o gozo goza àquele ponto extremo

Que a saudade requer gozado fosse o gozo,

Nem ela tem poder que fruste o recordar

Não do passado gozo a ideia, mas a imagem

Mas por ter sido gozo quando foi gozado

E ainda post-gozado como tal lembrado,

Gozo teve que ser antes de ser passado

E gozo ao recordar, pois ser passado dói.

Ai ! De que val' tudo isto, já que o gozo está

Não em pensar o gozo mas em só gozá-lo.

Seu refletir-se em ideia contra el' próprio peca

Pois de só refletir destrói a vida solida.

Mas quanto mais pensamos em pensar provar

Não se dever pensar, do gozo mais fugimos.



(35 Sonnets)

(Ilustração: Francesco Hayez, ultimo bacio di Romeo e Giulietta)

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

PORTUGAL, de válter hugo mãe (*)

 




nós fizemos tudo pela igreja porque as convenções, à época, eram muito mais rígidas do que aquilo que a frescura da nossa juventude nos permitia almejar, ainda nos marcavam as heranças castradoras de uma educação com idas à missa, mas, sobretudo, uma dificuldade em contar com o que os outros esperariam da nossa conduta, de todo o modo, a laura descobriu rapidamente aquele gozo universal das noivas, aparecendo de branco e deslumbrante entre folhos e camadas de tecidos como um bolo feliz, dando o braço ao pai e percorrendo o caminho até ao altar no sorriso mais fascinado de todos, e depois dissemos que sim e assinámos tudo com alguma aceleração, pedimos encarecidamente uma cerimónia breve que condissesse com a urgência de nos unirmos e nos pertencermos, o padre viu a coisa pelo lado romântico e abençoou-nos entusiasmado com a nossa alegria, de seguida, ficámos com a família e uns poucos amigos a gastar o dia em cumprimentos e risos, comezainas e telefonias ligadas para saber como ia o futebol do domingo, estávamos em mil novecentos e cinquenta.

ainda hoje ouço os velhos comentarem que o paizinho fez tudo para que o benfica personificasse a glória da nação, era como ter um exército do desporto, uma selecção, pois, que fora constituída e adoptada por coração depois do erro que fora esperar do sporting tal coisa, o regime orgulhava-se do plantei com as importações africanas, quando ainda a europa não percebera vantagem em ir buscar negros para reforço das suas equipas, e todas as pessoas passaram a ser benfiquistas encurralados, o que significava que eram benfiquistas porque a oposição já não era nenhuma e todos queriam adorar campeões, e era ver o entusiasmo do ditador com o futebol dos encarnados, um futebol do eusébio, todo nosso, maravilhosa pantera do caraças a correr para o mérito dos portugueses, eu, que sempre fui portista, gostava do eusébio como era impossível não gostar, gostava dele em grande e estava, claro que pelo coração, do lado do paizinho e isso propunha atenuar consideravelmente as minhas desconfianças, nem sempre lúcidas, acerca do regime, porque ficava o porto para uma paixão local, e o benfica para o esplendor nacional, como pareciam ser equilibradas e correctas assim as coisas, mas em mil novecentos e cinquenta as coisas não estavam ainda tão definidas, é isso que tento dizer, o certo e o errado eram difíceis de discernir, pois o benfica ainda não se fizera o glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente, não sabíamos nada. havíamos passado ao lado da guerra e parecia que a vida se protegia no país das quinas, igual a termos uns muros nas fronteiras, um peito viril erguido contra malandros estrangeiros, e foi assim que nos casámos, cheios de vivacidade e entrega ao futuro num país que se punha de orgulhos e valentias. quando as crianças daquele tempo estudavam lá lá ri lá lá ela ele eles elas alto altar altura lusitos lusitas viva salazar viva salazar, toda a gente achava que se estudava assim por bem, e rezava-se na escola para que deus e a nossa senhora e aquele séquito de santinhos e santinhas pairassem sobre a cabeça de uma cidadania temente e tão bem comportada, assim se aguentava a pobreza com uma paciência endurecida, porque éramos todos muito robustos, na verdade.

que povo robusto o nosso, a atravessar aquele deserto de liberdade que nunca mais acabava mas que também não saberíamos ainda contestar, havia uma decência, com um tanto de massacre, sem dúvida, mas uma decência que criava um porreirismo fiável que incutia em todos um respeito inegável pelo colectivo, porque estávamos comprometidos em sociedade, por todos os lados cercados pela ideia de sacrifício, pela crença de que o sacrifício nos levaria à candura e de que a pureza era possível. íamos ser todos dignos da cabeça aos pés. tínhamos ainda palavra de honra, que coisa tão estranha essa da palavra de honra, chegar a um lugar, dizer com ar grave que tal promessa era por nossa honra, e todos estremeciam, porque se manifestava o mais sagrado que se podia ser. ninguém duvidava de tal verdade nem menos gozava.

viva salazar viva salazar maria imaculada mês de maio mês dos lírios e das rosas mês de maria coração de maria, dai-nos o vosso amor santa maria.

eu e a laura começámos por pensar que nada nos faria mal. que a custo nos tornaríamos úteis na máquina social e estaríamos abrigados num tecto onde os nossos filhos nascessem com os nossos nomes portugueses e orgulhosos, começámos por achar que até da igreja adviria uma benignidade tranquila e natural, por isso nos acercávamos mais da vida religiosa e tentávamos acreditar que aquela especulação das almas e o improvável do invisível serviria para nos levar a uma melhor humanidade, onde se erradicassem erros profundos que resultavam em atrocidades inaceitáveis, eu e a laura assistíamos às missas de domingo, muito esperançados na ideia de que começar uma vida a dois seria melhor assim, com as bênçãos sagradas, e aqueles crentes todos em nosso redor, com cara de quem nos ajudaria por ofício de fé, com ar de quem gostava de nós e se preocuparia com as nossas misérias, e nós gostávamos deles.

aprendi tudo ao contrário depois, ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito, um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos, esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua minissaia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças, o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas, eu aprendi que aqueles crentes se esfolavam uns aos outros de tanto preconceito e estigmatização. e aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo, atirados para o fundo de um quarto sem qualquer ajuda, e eu ainda fui pedir ao padre que nos fizesse chegar a um hospital, que fosse rápido, porque as águas tinham rompido e a laura não se mexia, não temos carros neste bairro, dizia-lhe eu, é um bairro pobre, ninguém tem dessas máquinas, mas, como está, não há parteira que lhe pegue, está a sangrar, padre, a laura está a sangrar do nosso filho, e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus e queria com isso afirmar que correria bem. era para que eu não me preocupasse, e depois foi lá ele com duas velhas e não se pensou em nenhum carro, o nosso filho já estava no colo da laura e ela estava sem sentidos, afastada pela dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.

não foi culpa do padre, nem da igreja e nem de deus. foi só o triste acaso de sermos miseráveis num país de miséria que não esperava de nós mais do que o brio e o sacrifício mudo. havíamos sacrificado o nosso primeiro filho, e saído com duas moedas no bolso que pagariam quatro ou cinco sopas e nos deixariam para o resto do mês à deriva da sorte, começaram os outros a benzer-se e a rezar e levaram-me para uma cadeira onde me estenderam o crucifixo que tínhamos sobre a cómoda, e esperaram que deus, ou o peter pan, entrasse na minha vida com explicações perfeitas sobre o que sucedera, esperaram que a vida se prezasse ainda, feita de dor e aprendizagem, feita de dor e esperança, feita de dor e coragem, feita de dor e cidadania, feita de dor e futuro, feita de dor e deus e salazar.

naquele dia o mais importante de tudo era salvar a laura. à revelia do catolicismo, eu preferia abdicar de um filho que não conhecera para continuar partilhando a minha vida e crescendo como indivíduo ao lado da mulher que trazia definição a todas as incompletudes do meu ser e as colmatava, eu queria mesmo a laura muitos pontos acima daquele filho que se perdia para sempre, e nisso tive sorte, pousei aterrorizado o crucifixo na cómoda novamente e aproximei-me do mulherio que debicava a minha esposa, quis saber se a mantinham viva, se já lhe haviam desligado o cordão para que se autonomizasse à morte e ficasse inteira do lado imenso da vida. e assim foi. a laura levaria umas horas a recuperar os sentidos e a vislumbrar o meu sorriso triste mas inequívoco, ganháramos nós. nós dois. o lugar já amadurecido do amor. o lugar em exercício, e ela chorou e aceitou, como eu, que nos faríamos mais fortes e cortaríamos caminho pelo tempo fora com garras mais afiadas, que nada do que nos haviam dito nos preparara para aquela tragédia, e nada do que nos diriam haveria de voltar a iludir os nossos intentos, os nossos gestos.

durante muito tempo, portugal foi um país cujas crianças nasceram em frança, tantas, caramba, e eu pensava, já ali por mil novecentos e sessenta e dois, que em frança estaríamos a salvo, escapando da fome e do jugo de um trabalho sem retribuição suficiente para um raio de sol por dia. mas os nossos sonhos de frança nunca iriam a lado algum, não sabíamos quem nos traficaria em segurança e, honestamente, não tínhamos suborno que se visse e, pior ainda, não havia coragem para entrar matos adentro e a laura acabara de engravidar novamente. não podíamos ir a salto para frança, como não podíamos correr risco algum de que aquela nova criança padecesse também, quando a laura pariu, torturada de expectativas, a nossa elisa nasceu na felicidade e na frustração, podias ser francesa, elisa. podias ter sido francesa, embora nos dê um orgulho tão grande a resistência que te permitiu ser portuguesa e, assim, herdar portugal. portugal é teu, minha filha, é teu, mesmo assim difícil de compreender.



(*) À publicação desta obra, o autor ainda só usava letras minúsculas, inclusive em seu nome. Contrariamo-lo no título do texto, por padrão do blog.



(a máquina de fazer espanhóis)



(Ilustração: Paula Rego)


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

GATOS E ATOS, de Bartolomeu Correia de Melo

 




Para quem, nos felinos, aprecia,

a beleza, o carisma, o fino trato,

um simples gato pode ser poesia…

Chegando devagarinho,

gato leva o silêncio

ao canto do passarinho.

O amor indiscreto

dos gatos de rua

ofende a pureza da lua?

Na mesa posta,

o gato se lambe

porque se gosta.

Um pulo de gato,

gracioso e exato,

qual verso no ar…

Tapeando a rosa,

o gato antegoza

ciúmes do beija-flor…

O rabo do gato no muro

descreve uma interrogação

que insulta o cachorro no chão.

No rastro do rato,

o gato, sem bulha,

mergulha no mato.

Os olhos do gato preto,

repiscam no negrume,

namorando o vagalume.

Gato gaiato,

bola de pelo,

rola o novelo.

A gata dengosa no cio,

olhando o telhado vazio,

parece gemer sete vidas.

Resta vaga magia

quando o gato afia

as unhas no tapete.

A tarde se fica,

enquanto o gato

dorme na bica.

Na poça de rua,

um gato bebendo

o brilho da lua

Do gato, restou o ronronado;

mas do canário, coitado,

apenas as penas.

No contrazul da janela,

qual nuvem no contravento,

gato branco passa lento…

Um gato vadio

miando no frio:

assim me sinto.

Olhar de gato,

mesmo com sono,

ainda decifra o dono.

Na rua antiga, cena de aquarela,

em cores triviais de tarde morna;

a madorna dum gato na janela.

O olhar da gata persa

conta uma estória inversa

das mil e uma noites.

Um gato pardo de andar

esguio e desafio

no olhar de esfinge.

Por causa dum gato,

sem dono nem sono,

perdi meu sapato.




(Ilustração: Charles van den Eycken - l'heure du jeu)

sábado, 10 de setembro de 2022

MINHA ESTAÇÃO DE MAR, de Domingos Pellegrini Jr.

 


Quando eu tinha 10 anos, o ano tinha mais de quatro estações, e todas elas ficavam nas minhas mãos. A estação dos piões deixava um anel caloso no fura-bolo, onde a fieira apertava, e um furo na unha do dedão, onde o prego do pião girava até esquentar. A estação das búricas marcava o nó do dedão, com um calo grosso, rachado igual terra seca. Logo começava a estação das rolimãs, e as rachaduras desse calo enchiam de graxa, ficavam ali entupidas até a estação das mangas. Então crescia na mão o limo das mangueiras, uma placa visguenta. Depois, a mão fedia: na estação dos papagaios eu vivia com alho no bolso; era só esfregar no dedo e segurar linha de papagaio alheio, dali a pouco despencava com a linha roída. Na estação do "bafo" a mão criava calos nas bordas, e acabava com cheiro de pena queimada, de tanta cuspida pra grudar as figurinhas. Depois a estação do "bete", a das tampinhas, a dos saquinhos de areia, todas lavrando cortes, calos e cheiros nas mãos, além do calo que uma caneta deixa no pai-de-todos quando tem que copiar, na escola, duzentas vezes uma frase.

Naquele tempo a escola era a única prisão que eu conhecia. Mas o pai comprou um carro e, depois do passeio inaugural com minha mão avisando de todas as placas e esquinas, ele anunciou na janta:

— Este ano vamos tirar um mês na praia.

Eu conhecia o mar como uma lagoa grande, distante e sem graça nas figurinhas, onde aparecia às vezes verde e às vezes azul. Agora íamos conhecer o mar em pessoa, ia começar uma nova estação onde entravam todos — o pai, a mãe,Alice, eu e a Linalva, nossa empregada que já vira o mar de passagem quando viera do Norte. A estação do mar me encheu a cabeça. O pai começou a falar de ondas que rebentavam e a gente mergulhava dentro. Eu não conseguia imaginar mas comecei a achar ótimo. A mãe ia tirando a mesa e, a cada vez que vinha da cozinha, lembrava os perigos do mar e dava conselhos. Sim, o mar devia ser uma coisa ótima. E o pai avisou, bicando a xícara quente de café: partida dali a três dias, todo mundo que se preparasse.

Não me preparei, mas me acordaram no dia marcado, às cinco da madrugada, com tudo preparado para mim. Nem tive tempo de perguntar por que levantar tão cedo se íamos passear; a mãe e o pai distribuíam ordens. Eu devia levantar logo e me lavar, escovar os dentes e trazer a escova. Devia comer pão com manteiga, café com leite, um ovo cozido e uma banana, mesmo que não tivesse fome. Ninguém ia ficar parando na estrada pra eu comer. E ninguém ia ficar parando antes de Ibiporã pra eu urinar, então fui urinar e quase durmo de novo na privada. Mas ninguém ia ficar esperando a vida inteira, bateram na porta, batiam portas de armários, fechavam malas, enchiam sacolas. Coma logo isso que seu pai já levou as malas. Cadê a bolsa, alguém viu a bolsa? Você tem certeza de que esse carro aguenta? Desliga esse rádio, moleque, rádio de carro só com o motor funcionando. Enfia esta blusa que ainda é madrugada; não quero saber, enfia logo. Não vamos esquecer de desligar a luz. Não seria melhor fechar também o registro da água? Vai pro teu lugar, moleque, lá atrás, sim senhor. Tira o pé do banco, não abre o vidro que dá dor de ouvido.

E assim partimos para o mar.

Dormi e acordei com o sol, as pernas querendo esticar e uma zoeira no ouvido. Alice acordou logo e brigamos nem lembro por quê, então ela passou para o banco da frente, junto da mãe, e eu fiquei sem ter o que fazer. Passavam os mais compridos canaviais e cafezais do mundo, comecei a empurrar os bancos da frente com os pés, mas não podia. Comecei a tirar fiapos do cochinil, mas não podia. Examinei o cinzeiro por dentro e por fora várias vezes, comi ovos cozidos e chupei laranjas, descascadas pela Linalva porque eu podia me cortar com a faca. Quando lembrei do rádio, a mãe falou logo que não suportava rádio em viagem, e o pai avisou que não ia parar pra erguer a antena, de modo que chupei mais umas laranjas e descobri que o tapete de borracha podia virar um megafone, mas não podia; de modo que descasquei mais um ovo com todo cuidado pra não triscar a clara e comi só a gema. Descobri tudo que não se pode fazer num carro. Ler chapas, por exemplo.

Quando li a chapa do primeiro carro na frente, a mãe aproveitou pra testar minha visão em comparação com a da Alice. Depois de umas duas ou três chapas, achou que eu e a Alice enxergávamos a mesma coisa na mesma distância, e que devíamos ter puxado os olhos do pai dela, que já estava caduco sem nunca usar óculos. Continuei a ler as placas em voz alta, repetindo a mesma placa enquanto o pai não podava o carro da frente, até que falou que aquilo já tinha enchido e sugeriu que eu lesse uma vez cada placa, e só. Não passou muito tempo e aquilo também encheu todo mundo, mas a Linalva sugeriu que eu podia ler as placas mentalmente quantas vezes quisesse. Mas isso logo me encheu.

Quando descobri que só podia ficar ali sentado, também descobri que estava na segunda prisão da vida, com a mãe no lugar da professora apontando as paisagens e outras coisas bonitas que o mundo tem mas ninguém para pra ver direito. O pai só foi parar quando a Alice realmente se irmanou comigo pela primeira vez na vida. Ficamos os dois com uma coceira que a mãe logo identificou como formiga na bunda ou foguinho no rabo.

Esticamos as pernas, urinamos e tomamos guaraná num bar de posto de gasolina, o pai botou gasolina e voltamos à prisão. Demônios devem rondar os postos de gasolina, porque naquela viagem a mãe garantia que eu sempre ficava com o demônio no corpo depois que parávamos num posto.

Quando a situação ficou infernal dentro do carro tive que reconhecer: realmente o pai pararia para dar um jeito em mim se eu continuasse encapetado. De maneira que resolvi comer mais um ovo, mas não podia porque estava chegando a hora do almoço. Laranjas ainda podia, até que o pai ficou cheio de abrir o vidro pra eu jogar fora os bagaços e as sementes, e a mãe falou que eu não tinha tampa, parecia um buraco sem fundo e acabaram-se as laranjas. Quando comecei a estalar a boca, o pai falou que a mãe devia fazer alguma coisa porque aquilo era a coisa mais irritante do mundo, e ela falou que estalando a boca pelo menos eu ficava quieto com o rosto, aí ele falou, que ela sempre estava de acordo com qualquer coisa quando era pra contrariar uma opinião dele, aí ela falou, ele falou, de repente estavam discutindo os hábitos e defeitos um do outro, e depois não falaram mais até a hora de escolher onde almoçar. A mãe achava que devíamos entrar numa cidade, mas o pai achava que um restaurante de beira de estrada seria ótimo. Ela falou em higiene, perigo de uma intoxicação e talheres sujos, e ele falou de preço e distância, gasolina e tempo perdido, e ela mandou que ele parasse onde quisesse e fizesse o que quisesse porque ela já tinha mesmo perdido o gosto de viajar e — aliás — nem sabia mesmo porque tinha vindo naquela viagem e — quer saber duma coisa? — por ela, podiam voltar dali mesmo. Aí o pai também falou — quer saber duma coisa você também? — e fez meia volta. Eu senti que nunca ia ver o mar.

O motor foi rodando enfezado naquele silêncio, cada vez mais enfezado, até que o pai teve que brecar numa curva e o carro dançou pra lá e pra cá. A mãe não abriu a boca mas todo mundo ficou ouvindo o silêncio dela, tão pesado que o carro começou a andar devagar, tão devagar que dava agonia. Até que o pai parou num posto de gasolina com churrascaria. Como o posto era do outro lado da estrada, ele teve que fazer outra meia-volta, de jeito que ficamos de novo na direção do mar. O pai freou o carro e falou: essa mulher não vê que onde tem muito carro parado é porque a comida é boa, mas eu sei o que ela está querendo. Mas na verdade só tinha o nosso carro parado ali, fora uns trinta caminhões, e a mãe falou com uma cara que o pai chama de cara de mártir: descem vocês, meus filhos, vai com eles, Linalva, hoje vocês vão comer comida de motorista de caminhão. Aí o pai falou: isso, meus filhos, vamos que decerto o pai de vocês vai envenenar vocês. A Linalva saiu com a gente e a mãe falou: cuidado, Linalva, olha bem essas carnes e não deixa eles nem chegarem perto de maionese, fruta só lavada e água só mineral.

Comi carne com maionese com o pai olhando agradecido, mas quando pedi um gole de cerveja ele não deixou. A Linalva, depois que encheu o prato de ossos, começou a apertar as mãos e suspirar de agonia, até que o pai falou pra ela levar uma coxa de frango, um pão e um copo de leite pra mãe lá no carro. E completou que não existia comida que a mãe mais gostava do que coxa com pão e leite. Falei que nunca tinha visto a mãe comer coxa com pão e leite, e ele respondeu que foi antes deles casarem, e que ela ia lembrar. Realmente a mãe lembrou, porque o copo voltou vazio e, quando voltamos pro carro, ela não estava mais com uma cara tão perto da morte. E, como o carro já estava na direção do mar, o pai tocou em frente e passamos pela mesma paisagem até o ponto de onde tínhamos voltado.

A mãe perguntou ao pai se ele tinha bebido, ele disse que só uma cervejinha, aí começaram a falar de novo das paisagens, o pai perguntou se o frango estava bom, a mãe disse que sim e eu aproveitei pra elogiar a maionese. Aí a mãe azedou, virou a cabeça e ficou olhando a paisagem, passamos um túnel e ela continuou olhando a paisagem dentro do túnel. Depois avisou que não ia mexer uma palha se a gente ficasse com o intestino solto, e que eu podia cagar até as tripas que ela não ia nem se incomodar.

O pai lembrou que eu tinha misturado laranja e ovo na barriga a manhã inteira, comparou que maionese é mistura de ovos com limão e portanto quase a mesma coisa, portanto eu já estava cheio de maionese antes mesmo de almoçar.Mas a mãe não falou mais nada até que começou a chover.

O diabo, como disse a Linalva, é que a maionese começou a fazer efeito justamente quando o pai mandou fechar todos os vidros por causa da chuva. A primeira vez em que o cheiro ficou preso junto com a gente no carro, o pai perguntou quem foi, a mãe perguntou pra Alice se tinha sido ela, depois pra mim, e concluiu logo que tinha sido eu, embora eu lembrasse que a Linalva também tinha misturado ovos com laranja. De modo que ficou sendo eu mesmo e no começo foi até engraçado, o pai disse que eu parecia usina de cana, que mastiga o doce mas deixa o ar azedo, e a Linalva completou que lá no Norte uma comida que empesteia muito os intestinos é mistura de carne de bode com uma frutinha que ela não lembrava o nome.

Na segunda vez o pai falou que a usina estava a todo vapor, a Alice riu e ficou olhando mecanismos e mistérios na minha barriga, e a mãe falou pro pai que, do jeito que ele falava, eu podia até acabar achando que aquilo era uma coisa muito bonita. Na terceira vez o pai não fez mais graça nenhuma e deu a caixa de fósforos pra mãe acender um. Na quarta vez o pai falou que agora já chegava e que eu parasse de gracinha porque não tinha graça nenhuma, mas aí a mãe falou que aquilo era uma coisa natural e ele não podia forçar o menino a segurar. Discutiram um pouco os intestinos e a natureza, a minha sem-vergonhice ou o mal que faz a maionese de restaurante. O pai começou a falar que a maionese de restaurante ainda nem me tinha chegado no intestino, mas teve que pedir pra mãe acender outro fósforo. Depois falou que tanto fósforo e tudo mais estava esquentando o ar e embaçando os vidros demais, abriu um pouco a janela mas a mãe lembrou que estava chovendo e era melhor sufocar do que arriscar um resfriado. Quando acabou a caixa de fósforo o pai falou que, por ele, eu podia até pegar pneumonia, abriu o vidro um minuto e fechou porque molhava até o ombro dele mesmo, e continuamos assim, a mãe dizendo que aquele cheiro dava vontade de vomitar o almoço e o pai abrindo e fechando o vidro de vez em quando.

Em São Paulo a maionese parou de fazer efeito, estava anoitecendo e a Alice resmungava o tempo todo no colo da mãe, até que ela passou a ser uma menina cheia de nove-horas e eu menino quieto que devia ser imitado. Acontece que eu estava com sono ou qualquer coisa desse tipo, já nem tinha mais vontade de que o pai parasse ou de que os postos de gasolina tivessem confeitaria. Não sentia fome nem sede, tinha vontade de afundar mas, quando afundava a cabeça no colo da Linalva, dava vontade de levantar — até que acabei ficando de novo um moleque encapetado, a mãe falando que aquele carro estava um inferno e que ela não ia aguentar mais meia hora.

Quando apareceram as luzes o pai falou — Eh São Paulo que não pára de crescer!… — e a mãe perguntou se ele ia saber dirigir na cidade. Ele falou que não precisava andar muito pra achar um hotelzinho mais ou menos, e conhecia a entrada como a palma da mão. A mãe lembrou que ele não ia a São Paulo desde solteiro, e que ninguém ia dormir em nenhum muquifo… Aí o pai falou bem compreensivo e devagar que a gente não precisava gastar um dinheirão pagando hotel de primeira pra dormir uma noite só, e a mãe falou que ninguém dorme mais de uma noite cada vez. Aí ele falou que numa noite de hotel em São Paulo a gente ia gastar mais que uma semana de aluguel de uma casa na praia. A Linalva começou a falar — vocês podem me deixar numa pensão mais barata e amanhã… — mas a mãe mandou calar a boca que de hotel quem entendia ela. O pai quis perder a paciência mas já estava numa rua com mais carro do que eu tinha visto na vida inteira. Começaram a buzinar e a mãe falou que estavam buzinando pra nós, a Alice perguntou como é que sabiam que a gente ia chegar e o pai mandou todo mundo calar a boca porque tinha que se concentrar. A primeira placa de hotel que apareceu fui eu quem leu primeiro e dizia Hotel Paraíso, mas a mãe achou que não enganava ninguém só pelo jeito do prédio. Buzinaram pra nós e o pai continuou, mas aí já não sabia se contornava um tal de viaduto ou se ia em frente, de maneira que acabou virando antes do tal viaduto e acabamos numas ruas escuras onde disseram que hotel, do jeito que a mãe queria, o mais perto era do lado do tal viaduto. Quando o pai conseguiu achar de novo uma rua movimentada, buzinaram pra nós e ele perguntou se aqueles filhos da puta não podiam parar um minuto.A mãe falou que ele é que devia parar duma vez e perguntar pra um guarda. Discutir m isso uma meia hora com o carro andando mas, quando o pai parou e ela abriu a janela e botou a cara pra fora, o guarda apitou e mandou tocar em frente, tocar em frente, passamos de novo em frente o Hotel Paraíso e o pai xingou a mãe, São Paulo, os ônibus e o lazarento do espelho retrovisor que entortava toda hora.

Quando passamos pela terceira vez pelo Hotel Paraíso o pai falou — quer saber duma coisa? — e enfiou o carro no estacionamento. Depois, na portaria, o homem falou que dois quartos, do jeito que minha mãe queria, não tinha, mas desocupavam no outro dia de manhã. Ela perguntou mas que hotel é este que não tem nem pia nos quartos, mas meu pai falou que servia sem pia mesmo e o homem disse que pra qualquer coisa o banheiro era no fim do corredor e muito asseado. O homem subiu com a gente e a mãe reclamando da escada e dizendo que já estava sentindo o cheiro nojento do banheiro. Aí o homem abriu uma porta e ela falou que o cheiro de mofo do quarto só faltava derrubar a gente, meu pai falou para o homem desculpar que ela era assim mesmo. Aí ela empurrou a gente pra dentro e fechou a porta, dali a pouco o pai e a Linalva entraram com as malas, o pai abriu a janela e ficou olhando pra fora e ouvindo as buzinas e a mãe, abrindo as malas e reclamando que ela não era vaca pra ser "assim mesmo".

O pai saiu e trouxe pastéis, empadinhas com azeitonas dentro, quibe e um leite que vinha em saquinhos de papel. A mãe falou que pelo menos uma coisa ele tinha acertado porque assim não precisava usar nenhum copo imundo de hotel, lavou um saquinho na pia, enxugou com uma das toalhas que a gente tinha levado, rasgou a ponta do saquinho e me deu, e aquilo foi a grande coisa que conheci naquele dia de viagem.

Depois de vazios eu e a Alice quisemos guardar nossos saquinhos,mas a mãe falou que só serviam pra chamar baratas de noite. Quando o pai sentou na cama com um jornal que falava do Palmeiras, a mãe falou que ele tinha que mandar o homem trazer logo o tal berço pra Alice, e tinha que buscar um travesseiro pra mim no quarto da Linalva. O pai saiu parecendo que ia explodir ou então murchar até virar um rato no chão, e a mãe ficou reclamando da falta de cabides.

Quando o berço já estava no nosso quarto e a Linalva no quarto dela, eu e a Alice de pijama já deitando, a mãe falou pro pai fechar a janela que ia entrar pernilongo. Ele disse que se ela quisesse morrer abafada ele ia dormir em outro quarto, mas acabou fechando a janela e dizendo que ia sair. Ela falou que ele podia voltar bem tarde e ele falou que ia era pra um lugar onde mulher sabe tratar um homem, ela disse que ele podia ficar lá pra sempre e ele saiu batendo a porta.

Ela acendeu um abajur no criado-mudo e falou que aquilo parecia quarto não sei do quê, tinha até abajur cor-de-rosa. Eu perguntei quarto do quê, ela disse que eu devia era ficar quieto e dormir que a Alice já estava no segundo sono.

No dia seguinte buzinaram não sei pra quem e eu acordei. A mãe estava sentada na cama de casal com um mata-mosquito na mão, tão igual ao de casa que fui ver e era ele mesmo com as marcas que eu tinha feito pra cada mosquito que matei numa tarde de castigo na despensa.

Quando entramos no carro o pai e a mãe ainda discutiam a questão dos pernilongos, ele dizendo que de luz acesa não dormia e ela que não dormia com pernilongo no ouvido. Ele dizendo que, agora, se você pensa que vamos encontrar casa pra alugar com ar-condicionado, pode tirar o cavalo da chuva. E ela respondendo que é só você não ficar abrindo janela que não entra pernilongo. E ele dizendo que esse negócio de pernilongo você pegou de uns tempos pra cá, porque na viagem de casamento, por exemplo, sempre dormi de janela aberta e nunca ouvi reclamação. E ela respondendo que acontece que naquele tempo era besta feito Jó, teve dia de amanhecer com o corpo empipocado de coceira, o braço em carne viva de tanto coçar. E ele dizendo que, se fosse assim, esse povo da roça já tinha morrido de pernilongo, borrachudo, mutuca, muriçoca. E ela respondendo que, bom, eu nunca vivi na roça nem tenho o couro grosso da sua família.

De modo que começaram a discutir os hábitos e os defeitos das famílias de cada um, as sogras e os cunhados e cunhadas, e aproveitei pra tirar fiapos do cochinil até abrir uma clareira do tamanho de um palmo. A Alice também começou a esfiapar lá na frente e a mãe disse que não podia, mas a Alice disse que podia porque eu também estava esfiapando atrás. Aí o pai e a mãe pararam de discutir pra examinar os estragos e concordaram que eu era mesmo um capeta e que, no fim de contas, era eu que infernizava a vida de todo mundo. Falei que não infernizava a vida de ninguém, que eu só queria viajar na frente e não deixavam, e que a Alice ia sempre no melhor lugar, e acabei convencendo todo mundo que aquele era meu dia de ir na frente.

Quando a Alice parou de chorar no banco de trás, fui descobrindo que ali na frente havia tanta coisa a fazer como lá atrás, e que todos os botões do painel eram perigosos, não podiam ser puxados nem apertados nem tocados e eu devia esquecer aqueles botões para o resto da vida, de modo que abri o porta-luvas e a mãe quase se enfiou lá dentro como se o carro tivesse brecado de repente, tirou de lá um revólver e começou a abrir depressa a janela, o pai foi brecando e encostou o carro, ela jogou o revólver na ribanceira e falou que ele não abrisse a boca, que ele nem pensasse em abrir a boca, e eu aproveitei pra enfiar a mão no porta-luvas antes que ela pegasse a chave e fechasse.

O pai abriu a boca quando o carro já estava rodando de novo: o revólver tinha custado não sei quantos cruzeiros não sei quantos anos atrás, e agora ele queria ver se aparecesse um ladrão na casa da praia. A mãe falou que era preferível entregar tudo pra um ladrão do que arriscar uma criança dessas com uma arma na mão, e começou a contar pra Linalva como tinha morrido um menino perto da casa dela quando era solteira, com um tiro na boca brincando com um revólver. Depois que ela acabou de contar o caso, perguntou o que eu tinha na boca e falei que era uma bala. A Alice falou que também queria bala e o pai garantiu que não tinha comprado bala pra ninguém no bar onde a gente tinha tomado café. Aí a mãe me abriu a boca na marra e tirou a bala, e foram discutindo se uma bala tem ou não tem perigo de explodir na boca de uma criança, e eu comecei a dizer que era muito bonito viajar no banco da frente porque assim a Alice não ia perceber como era muito melhor no banco de trás.

Entramos em Aparecida e o pai rodou até a mãe escolher um restaurante de cara boa. Mas acabou não servindo porque os copos estavam manchados e um guardanapo tinha uma mancha amarela que a mãe logo desconfiou. Voltamos para o carro e aproveitei pra passar pro banco de trás, a Alice sentou na frente e ficou procurando as vantagens que eu tinha falado. O pai deu a partida, tocou o carro mas a mãe achou que o restaurante do lado, ali mesmo, servia bem pra nós, então o pai tornou a estacionar no mesmo lugar, descemos e comemos uma comida intragável conforme o pai, muito limpinha e é isso que interessa conforme a mãe. Alice e eu aproveitamos pra descobrir que num restaurante a gente podia ler o cardápio e pedir o que quisesse, desde que fosse a mesma coisa que o pai e a mãe iam pedir depois. Descobri que camarão devia ser comida mais perigosa que maionese, e no entanto vinha do mar para onde a gente ia, e o mar me parecia uma coisa cada vez mais ótima.

Quando o pai pediu café, eu e a Alice pedimos pra ir numa praça que tinha em frente, Linalva ficou sem café pra ir cuidar da gente e, quando eu descobri dois moleques com um jogo de palitos que eu nunca tinha visto, o pai já entrou de novo no carro e começou a buzinar. Fomos entrando no carro e encostou um homem vendendo lembranças de Aparecida, tinha chaveiro de montes, binóculos de fotografia, santinho, crucifixo, terço, tudo pendurado num cabo de vassoura e a Alice escolheu um espelhinho que era santinho do outro lado. O pai falou que aquilo era bobagem mas a mãe falou que não ia contrariar um gosto sagrado da menina, eu falei que já tinha visto um daqueles espelhinhos mas com mulher pelada do outro lado. A mãe virou pro pai e perguntou o que ele preferia, uma filha iludida com bobagem de religião ou um filho depravado desde cedo. O pai falou que preferia um filho depravado e ficou rindo, aí a mãe falou que eu também devia escolher uma lembrança de Aparecida, e fui apontando e o homem desamarrando do pau e dizendo o preço, até que escolhi o mais caro, uma estátua de Nossa Senhora em porcelana opaca conforme o homem, de gesso vagabundo conforme o pai. Aí o homem falou que o que valia era a devoção, o pai respondeu que então não valia nada mesmo. A Alice falou que a avó tinha falado que o pai ia morrer sofrendo porque não tinha religião. O pai perguntou que vó, mãe dele ou da mãe, e virou pra mãe dizendo que só podia sair da mãe dela uma besteira daquelas.

E foi assim que voltamos pra estrada discutindo religião, até o pai falar que nunca mais deu peixe no rio onde pescaram a santa, aí a Linalva falou Deus me livre, credo em cruz, e o pai falou que a comida tinha dado azia nele e a Linalva garantiu que era castigo de Deus. A mãe não deixou o pai falar mais nada porque se falasse também tratasse de arranjar outra empregada, e continuamos estrada afora.

Alice teve enjoo e vomitou no colo da mãe, o pai teve que parar numa paisagem muito bonita de umas montanhas com um rio lá embaixo se entortando feito uma cobra. Tinha uma mina de água que saía das pedras e a mãe falou que ali, na natureza sem ninguém cuidar, nascia avenca e samambaia mais bonita que em estufa de rico. O pai falou que preferia ser rico e não ter avencas nem samambaias, mas um carro que nem um que passou e ia chegar muito antes da gente conforme o pai, ia acabar se matando numa curva conforme a mãe.

Alice melhorou tão depressa fora do carro, que quase despenca na ribanceira uma hora que a mãe descuidou, queria ver o que tinha lá embaixo. Aí o pai falou pra ela que lá embaixo tinha o mar, vamos lá ver o mar — e já foi entrando de novo no carro e continuamos estrada afora na direção do mar lá embaixo torto feito uma cobra.

O pai saía duma curva e entrava em outra naquelas montanhas, Alice vomitou no colo da Linalva e a mãe falou — agora vai assim mesmo —, e fomos com o vestido grudando na coxa da Linalva e um cheirinho azedo que o vento não carregava. Quando as montanhas acabaram, veio de novo a estrada de sempre, tão igual que até a mãe perguntou se a gente não estava voltando. O pai riu e falou que, se a gente não parasse mais nem uma vez, tal hora essas crianças vão conhecer o mar. Aí eu perguntei se ele tinha algum compromisso no mar, porque ele sempre falava em tal hora, hora tal sem falta, quando tinha algum compromisso com alguém. Ele falou que eu não entendia essas coisas, que em viagem a gente tem que fazer o tempo render, porque a menos de 80 por hora gasta muita gasolina, e eu empurrei o banco dele com o pé e fui descobrindo de novo tudo que não podia fazer dentro de um carro. Mas já não tinha graça e acabei dormindo com o diabo no corpo, conforme a mãe, e com os ossos meio doendo conforme eu mesmo.

Quando acordei o pai tinha acabado de parar o carro e estava conversando com um homem na frente duma casa, numa rua de areia com muitas latas vazias. A mãe olhou pra mim e falou: esse moleque está com alguma coisa. Me botou a mão na testa, me avisou que ficasse quieto que estava queimando de febre, ficou ensinando a Linalva a fazer chá de alho contra resfriado. A Linalva perguntou se eu não ia ver médico, a mãe falou que era um resfriado à toa, culpou o pai porque apanhei chuva da janela, disse que era só eu guardar em casa o dia seguinte e pronto. Perguntei se a gente não ia no mar, o pai veio vindo e enfiou a cabeça na janela, disse todo alegrão que o aluguel da casa era um absurdo mas a mãe achou que pelo menos tinha tela na janela contra pernilongos. De modo que a Linalva começou a descarregar as malas com o pai, a mãe foi botar roupa numa cama pra eu dormir e ninguém me dizia onde estava o mar. A mãe me enfiou um comprimido na boca, o pai disse que a mãe ainda ia viciar esse moleque com esses calmantes, dormi e acordei no outro dia com cheiro de café.

A Linalva estava na cozinha fazendo café igual em casa, até o bule era o mesmo e a garrafa térmica. Eu e a Alice passamos o dia no jardim e na rua, com a mãe ou a Linalva olhando da janela todo minuto. O pai montava e desmontava cama, arrumava descarga de privada, consertava tela de janela, a mãe arrumava as roupas no guarda-roupa, a Linalva emprestou uma vassoura da casa vizinha e um rodinho com pano de chão, e o pai desentupia pia, a mãe fez lista de compras e ele saiu pra comprar, mas foi sozinho porque disse que senão nem comprava as coisas nem cuidava de mim no supermercado, e a Linalva passou pano dentro dos armários e guarda-roupas, amontoou as baratas mortas num canto, e a mãe desinfetava tudo e reclamava como é que puderam deixar uma casa naquele estado, e só sei que no fim do dia a mãe falou que tinha trabalhado mais que numa mudança, e o pai falou que nem sabia porque tinha inventado aqueles dias na praia.

Alice e eu conhecemos todos os formigueiros da redondeza e perdemos muito tempo esperando sair da toca um bichinho, siri conforme a mãe, caranguejo conforme a Linalva e pituí conforme o pai. O bicho botava duas anteninhas pra fora do buraco, pareciam olhos saindo fora do corpo, via se eu e a Alice estávamos bem escondidos e então saía. A gente ia chegando perto, ele parava na areia, mexia as anteninhas e voltava pro buraco, sem pedra que conseguisse acertar o desgraçado no caminho.

Não vimos crianças, só umas de outra casa, que chegaram pro almoço e saíram depois, todo mundo de maiô, os homens com as costas vermelhas e as mulheres com o corpo inteiro melecado de creme, as crianças com bóias e pés-de-pato e máscaras.

No outro dia o pai pegou a gente logo cedo, viramos a esquina e lá na frente, no fim da rua, apareceu uma coisa azul. Fomos andando e a coisa foi mexendo e às vezes embranquecia, o pai falou olha as ondas. Quando a rua acabou e aquilo já era a maior água que eu já tinha visto, entramos numa areia onde era preciso cuidado pra não pisar nas anteninhas, todos andando fora dos buracos, tão grandes que a Alice achou que eles podiam perfeitamente ficar dentro dos buracos em vez de ficar saindo.

E de repente erguemos a cabeça na frente do mar, Alice desandou num choro que só parou no colo do pai. O coração batia junto com as ondas, não sei quanto tempo ficamos ali, o mundo estrondando, até que Alice foi acalmando e continuamos ali, o coração batendo junto com as ondas e um vento que parecia subir da água, molhado e cheiroso.

A mãe chegou e estendeu uma toalha na areia, começou a tirar coisas da sacola e encheu a toalha. A Linalva ficou esquisita de vestido e calça comprida por baixo, foi molhar os pés e eu fui junto, mas a mãe foi me buscar pra passar creme, o pai começou a me avisar dos perigos do mar, a mãe concordando e dizendo escuta teu pai, escuta bem o que o teu pai está dizendo.

Quatro dias depois eu tinha conhecido o mar. Tinha horário de entrar e de sair da água, horário de sol e horário de sombra, hora de passar creme e hora de tomar água, a fundura onde eu podia ir com a Linalva e a fundura até onde podia ir com o pai. A Alice descobriu um arroio cheio de conchinhas, mas a mãe desconfiou de onde devia vir aquela água e a Alice teve que acabar se conformando com as conchas quebradas da praia. Em casa não podia ficar tela aberta, de janela ou de porta, e à noite as casas afundavam na escuridão, a rua não tinha lâmpadas e a criançada não podia brincar fora de casa.

Um velho me mostrou como se pesca com linha, garrafa e anzol, mas levei um dia sem pegar nada, só um beliscão forte no fim da tarde. O velho falou que no dia seguinte eu decerto ia tirar peixe, mas de noite o pai falou:

— Uma semana de praia enjoa qualquer um.

A mãe deu a idéia de visitar uns parentes numa cidade perto, assim a viagem de volta não vai cansar tanto essas crianças, a gente sai cedo pra pegar o almoço e… O pai se entusiasmou e deu a ideia de passarmos também não sei onde, e começaram os dois a riscar a mesa com uma faca: a gente para aqui, dorme aqui, almoça aqui, dorme mais um dia aqui e visita fulano, depois para uns três dias na casa da tia fulana; e um ficava tirando a faca do outro pra riscar a mesa enquanto falavam, até que deixaram na madeira um mapa, parecia uma espinha de peixe. A mãe levantou e começou a dar ordens. Linalva pega aquilo, arruma isso, cadê a mala menor, e o pai saiu pra trocar o óleo do carro.

Na varanda a gente ouvia, no vento, as anteninhas roendo as costelas do mar, ondas estrondando no lombo de mar, espuma em cima e todos os peixes e mistérios lá embaixo. O vento continuava com um cheiro molhado e quente, tão forte que parecia que o mar rebentava logo depois da varanda, e meu peito foi inchando cheio de sal, siris e conchas, boias de cortiça, areia, até que desatei a chorar e o peito tornou a ficar pequeno depois.

No dia seguinte, às cinco horas da manhã, alguém começou a me sacudir. A mãe andava pela casa perguntando se ninguém estava esquecendo alguma coisa, e o pai já estava lá fora, esquentando o motor.

E a estação de mar acabou sendo a única que, nas mãos, não me deixou marca.




(Ilustração: Benedito Calixto de Jesus -Baía de São Vicente, 1905)