quinta-feira, 29 de agosto de 2013

GORDO E CARECA, de Valter Hugo Mãe












para rosa maria weber e alberto bresciani




onde vais, valter hugo mãe, tão sem ter
com quem, tão precipitado no vazio do
caminho à procura de quê

porque não ficas em casa, resignadamente só,
a ver como a vida se gasta sem culpa nem glória

é um rapaz estranho, valter hugo mãe, aí metido
num amor nenhum que te magoa e esperas ter
lugar no mundo, com tanto que o mundo tem de
distraído

devias morrer no dia dezoito de março de
mil novecentos e noventa e seis, como dizes que
vai acontecer, para que se acabe essa
imprecisa sentença que é a vida

volta a fechar a porta, não há nada para ti lá fora
e está frio, tens reumatismo, dói-te a cabeça, estás
gordo e careca, não faz sentido sequer que
tentes chegar às luzes esbatidas da marginal, ainda
que seja só ao lado menos percorrido pelos banhistas

volta a fechar a porta e talvez durmas, está um
agradável silêncio no prédio, tenho a certeza de que
reparaste nisso





(Ilustração: Francis Bacon - John - 1985)








segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O ARQUIVO, de Victor Giudice





No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. João era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor. Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial. Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento. Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança. Agora, João acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu. João preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

- Seu João. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

João baixou a cabeça em sinal de modéstia.

- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, João gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, João não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio. Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada.

Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.

A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo. O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

- Seu João. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários. O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

- Mas seu João, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

João afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento. João transformou-se num arquivo de metal.




(Ilustração: De Chirico - muebles em el valle)






sexta-feira, 23 de agosto de 2013

AS TUAS DORES, de Armando Guebuza








                  As tuas dores
                   mais as minhas dores
                   vão estrangular a opressão

                   Os teus olhos
                   mais os meus olhos
                   vão falando da revolta

                   A tua cicatriz
                   mais a minha cicatriz
                   vão lembrando o chicote

                   As minha mãos
                   mais as tuas mãos
                   vão pegando em armas

                   A minha força
                   mais a tua força
                   vão vencer o imperialismo

                   O meu sangue
                   mais o teu sangue
                   vão regar a Vitória.



(Revista Hora de Poesía,  n. 19-20; poesia moçambicana)


(Ilustração: Njuguna - dancing children)



terça-feira, 20 de agosto de 2013

A CURIOSA METAMORFOSE POP DO SENHOR PLÁCIDO, de Zulmira Ribeiro Tavares







Na loja de eletrodomésticos onde é o gerente, o Sr. Plácido ouviu soar o relógio. O amigo do Sr. Plácido, entendido em arte, disse a ele:

- A Bienal fecha domingo. Você já foi?

O Sr. Plácido avisou em casa:

- A Bienal fecha domingo. Vou hoje lá; aproveito que tenho a tarde livre.

A senhora do Sr. Plácido respondeu-lhe:

- Morreu o Tancredo Carvalho. O enterro é às cinco da tarde. Não atrase.

"O Tancredo!"

"A sua idade!"- E do quê?

- "Enfisema pulmonar" - disse a senhora do Sr. Plácido.

O Sr. Plácido ficou muito impressionado.

- Lembre-se também do "recipiente" - ajuntou ainda a senhora do Sr. Plácido. 

- Compre logo para não esquecer.

- O "recipiente"!?

- Para o exame amanhã. Compre de plástico que é mais leve e barato.

"O penico!"

- Não desista - disse o amigo entendido em arte. - Vá assim mesmo. Dá tempo.

- Mas estou tão por fora de tudo! - lamentou-se o Sr. Plácido. Pensou: "Onde será que o encontro? e de plástico?"

- Escute - disse-lhe o amigo - não se preocupe. Isso é que é o bom. Chegar à Bienal inocente.

- Como assim? - estranhou o Sr. Plácido.

- Veja tudo com olhos de criança.

- Quando eu era criança - disse o Sr. Plácido - detestava museus.

- Mas a Bienal é outra coisa!

O amigo do Sr. Plácido ficou calado por muito tempo.

O Sr. Plácido percebeu que cometera uma gafe séria.

Esperou.

Por fim o amigo do Sr. Plácido disse, pacientemente:

- Não procure na Bienal a eternidade dos museus e dos mármores. Busque o "provisório", o "precário", o "perecível".

- Como? - disse o Sr. Plácido; e começou a transpirar um pouco. Pensou no Tancredo. "Teria alguma relação com a arte, o enfisema?"

- Arte é vida! - disse o amigo entendido em arte.

Bom, o Tancredo estava morto.

- A arte - ajuntou o amigo - e a vida, não estão mais separadas por um abismo; a arte cá, limpinha, asséptica, quadrada; a vida lá, turbulenta, suja, não senhor, são uma coisa só. Os limites entre a arte e a não-arte foram borrados.

O Sr. Plácido indagou timidamente:

- Mas então para quê?

- Para que o quê?

- A arte; ou a vida, tanto faz; digo, para que duas coisas se são uma só?

O amigo se calou por muito tempo.

O Sr. Plácido estava tranquilo. "Fui inteligente, sem dúvida."

- Veja - disse por fim o amigo entendido em arte; pacientemente: - O que tem você aí na loja, diante dos olhos?

O Sr. Plácido enumerou:

- Geladeiras, máquinas de lavar roupa, rádios, televisores, ventiladores.

- É suficiente. E lá fora na rua?

O Sr. Plácido enumerou:

- Gente, automóveis, prédios.

- Sinais de trânsito, - ajudou o amigo - anúncios, cartazes, vitrinas. Você não 

mencionou o principal.

- É - aquiesceu o Sr. Plácido.

- Tudo isso você sabe como se chama? - perguntou o amigo do Sr. Plácido. (Referia-se ao principal.)

O Sr. Plácido permaneceu calado.

- "Folclore Urbano"! E aqui dentro, na loja os eletrodomésticos, bem, esses eu os denominaria assim, mais por minha conta, "Vegetação Urbana"! O Sr. Plácido permaneceu calado.

- Tudo isso está na Bienal, entende? Noutro contexto a coisa salta aos olhos! 

- Que coisa? - estranhou o Sr. Plácido.

- A vida - respondeu o amigo.

O Sr. Plácido ficou muito impressionado.

- Veja ainda - apontou o amigo entendido em arte - o que é isso? E isso? e aquilo? e aquele outro? - e mostrou com o dedo os desenhos feitos no lado interno da porta do lavatório.

- Todo o dia mando apagar e todo o dia voltam - disse o Sr. Plácido. - Gostaria de saber quem os faz. Não são maus.

- Estão na Bienal! - ajuntou triunfante o amigo.

- Como?

- Noutro contexto. Bem, mas não quero me adiantar muito. Vá. Vá inocente. Espere. Volte.

- Estou atrasado já - disse o Sr. Plácido.

- Não seja passivo, entendeu?

O Sr. Plácido pensou na porta do lavatório e ficou vermelho. Talvez a morte do Tancredo o estivesse impedindo de pensar com clareza.

- Atue! Co-autoria. Mexa em tudo o que for para mexer! Participe. Adeus.


***


- É para criança ou adulto? - perguntou o vendedor.

O Sr. Plácido teve pejo.

- Para criança - respondeu. Imediatamente pensou: "Não vou caber".

- Que cor prefere?

- Rosa - disse o Sr. Plácido para não deixar mesmo nenhuma pista. - O senhor 
tem caixa?

- Não - disse o vendedor. - Mas embrulhamos de maneira que a forma, o sentido do objeto, entende, desapareça completamente. Ninguém vai saber.

- Obrigado - disse o Sr. Plácido. - É que devo ir ainda à Bienal e a um enterro antes de voltar para casa.



***


- Caro Plácido! Na Bienal e com um penico na mão!

- Ele jurou que o significado desapareceria.

- Nunca, meu caro Plácido. Os significados deslocam-se, transformam-se, mas não perecem.

- Você é um acadêmico - disse o Sr. Plácido. Busca a "eternidade dos "mármores". Claro que perecem.

Sentiu que dominava o assunto. Contudo era preciso não saber demais. Manter um certo grau de inocência.

- E para onde vai você com esse significado pela mão, ainda que mal pergunte? 

- Daqui para um enterro. Você poderia me ajudar? Como faço com isso?

- Pegue ali dois catálogos do pavilhão americano que são os mais graúdos. Ponha o negócio no meio.

- Escorrega.

- Meu caro Plácido! Não se vence sem luta. Não se substituem significados na maciota. Faça assim.

- Agora não posso mexer.

- Como?

- Participar. O braço ficou preso. Não quero ser passivo.



***


- Caro Plácido! Que faz você em um enterro com catálogos do pavilhão americano?

- Nada. Qualquer coisa que eu fizer, o penico aparece.

- Que delicioso non-sense meu caro Plácido! Que delicioso non-sense! Esteve na Bienal?

- É.

- Gostou? Acha que arte é denúncia?

- Procuro manter a inocência.

- Ah!

- O olhar das crianças, sabe, esta estória toda. 

- Seja mais explícito, meu caro Plácido. Exemplifique.

- Não posso, já disse. Se lhe passar o catálogo, o penico vai junto.

- E ele insiste! Simplesmente delicioso! Britânico o humor! Nunca o supus!

"De enfisema pulmonar e na minha idade".



***




- Cor rosa e tamanho infantil! Mas Plácido! Onde tem você a cabeça?

- Se o problema é o traseiro, que interessa a você a cabeça?

- O teu amigo entendido em arte subverte a ordem das coisas! Você, por você, nunca me daria uma resposta dessas!

"De fato o equilíbrio é precário. Há um descompasso grande demais entre as duas partes: a minha e a outra. Mas quem busca a estabilidade dos 'mármores e museus'? A 'paz dos túmulos' é para quem já se foi. Estive na Bienal. E isso não se apaga numa vida."

- Vou fechar a porta. Concentre-se e relaxe.

"Esta mulher não diz mais coisa com coisa! Como é possível? Se me concentro não relaxo. Se relaxo, caio. É preciso ficar alerta. Algo deve cair, bem sei. Porém não eu; de mim. Devo, muito ao contrário, para que tal se dê, procurar manter-me a todo o custo."

- Mas que faz você balançando o corpo de lá para cá? São fezes para exame, homem, isto é Ciência com C maiúsculo, não se trata de uma brincadeira. Veja se se concentra. Disso pode depender a sua vida, pense no Tancredo.

"Não consigo acertar, não consigo acertar; foi tolice, foi tolice, não há nenhuma correspondência. A Timidez Vencida em 12 Lições. Se fosse verdade não teria feito o que fiz. Fui longe demais, reconheço. De um lado, rosa e tamanho infantil, de outro, eu no ramo dos eletrodomésticos. E com a idade do Tancredo. A idade do Tancredo. Um abismo; nenhum contato. Mas... não, não é verdade; ainda que mal, ... deu, coube. Os limites foram borrados. Uma coisa só. Uma coisa só." 

Pela primeira vez em sua vida o Sr. Plácido se observa. Agora, nesse momento. Inclinado para a frente, despido da cintura para baixo, as pernas finas e cabeludas ligeiramente abertas, as nádegas imensas e brancas apoiadas na pequena e leve circunferência rosa. Tem ele a impressão de ser este o único apoio para o seu corpo, que os seus pés mal tocam o chão; paira. Dois pares de aspas, como frágeis mãos, colhem-no por baixo, delicadamente, pelas nádegas e guardam-no consigo. Novos limites? 

Não pode evitar. Exatamente como descreve o catálogo. Está no catálogo. Colhido pelas aspas como dentro de uma cápsula, aguarda a revelação; uma revelação de ponta-cabeça; mas que, se vier, fugirá imediatamente a este estado de graça pois que de pronto será encaminhada ao laboratório para exame. Arte e ciência. Arte e não-arte! Os limites depostos, outra vez? As respostas acham-se retidas dentro da cápsula com o Sr. Plácido. O sinal da revelação ainda é apenas o roxo na sua fisionomia congesta. 

O sinal é esforço, mas esforço suspenso, sem quase apoio, roxo, roxosolferino. A suspensão é auréola: o plástico rosa, frio e leve. Um precário estado de graça iluminado pelos antípodas: roxo violento, rosa tênue. Duas cores, ou uma: dois tons, ou um puro perfeito objeto 

Pop.



(Ilustração: Marcel Duchamp - urinol)






sábado, 17 de agosto de 2013

POBRE VELHA MÚSICA, de Fernando Pessoa






Pobre velha música!
Não sei porque agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.



(Ilustração: Lluís Ribas)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

MANUAL DE INSTRUÇÕES, de Julio Cortázar






A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza das casas em frente, do sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro HOTEL DE BELGIQUE.

Enfiar a cabeça como um touro apático contra a massa transparente em cujo centro bebemos café com leite e abrimos o jornal para saber o que aconteceu em qualquer dos cantos do tijolo de cristal. Resistir a que o ato delicado de girar a maçaneta, esse ato pelo qual tudo poderia se transformar, possa cumprir-se com a fria eficácia de um reflexo cotidiano. Até logo, querida. Passe bem. Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latejar metálico, sua advertência suspeita. Como custa negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lambe até dar-lhe uma suavidade satisfatória. Quanto mais simples é aceitar a fácil solicitação da colher, usá-la para mexer o café. E não é mau que as coisas nos encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da mesa comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, por que haveria de ser mau? Mas como um touro triste é preciso baixar a cabeça, do centro do tijolo de cristal empurrar para fora, em direção ao outro tão perto de nós, inacessível como o toureiro tão perto do touro. Castigar os olhos fitando isso que anda no céu e aceita astuciosamente seu nome de nuvem, sua resposta catalogada na memória. Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua esperança, esse macaco que se coça em cima de uma mesa e treme de frio. Quebre a cabeça desse macaco, corra do centro em direção à parede e abra caminho. Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar de cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar em cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal. E se, de repente, uma traça parar pertinho de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olhe-a, eu estou olhando, estou apalpando seu coração pequenino, e ouço-o: essa traça ressoa na pasta de cristal congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e assomar á escada, saberei que lá em baixo começa a rua; não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta de tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.


Instruções para Chorar


Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um choro que não penetre no escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajeitada e paralela. O choro médio ou comum consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em que a gente se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, e se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas e nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca. Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza, usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão esfregando a manga do casaco na cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.


Instruções para Cantar


Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um tato de dedos, uma sombra de cavalo. Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca e por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.


Instruções-Exemplos sobre a Forma de Sentir Medo


Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desembocar nessa página ao soarem as três da tarde, morre.

Na Praça de Quirinal, em Roma, há um lugar conhecido pelos iniciados até o século XIX e do qual, em noites de lua cheia, veem-se mexer lentamente as estátuas dos Dióscoros que lutam com seus cavalos empinados.

Em Amalfi, no fim da zona costeira, há um dique que penetra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão latir para além do último farol.

Um senhor está pondo pasta nos dentes na escova. De repente, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher feita de coral ou talvez de miolo de pão pintado.Ao abrir o armário para apanhar uma camisa, cai um antigo calendário que se desmancha, se desfolha, cobre a roupa branca com milhares de sujas traças de papel.

Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.

O médico acaba de nos examinar e nos tranquiliza. Sua voz grave e cordial precede os remédios, cuja receita ele escreve agora sentado à mesa. De vez em quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada demais e daqui a uma semana estaremos passando bem. Nos refestelamos no sofá, felizes, e olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias de mulher.



Instruções para Matar Formigas em Roma



As formigas vão comer Roma, já se disse. Elas andam entre as lajes; loba, que fio de pedras preciosas secciona sua garganta? Por algum lado saem as águas das fontes, as lousas vivas, os trêmulos camafeus que no meio da noite criticam a história, as dinastias e as comemorações. Seria preciso achar o coração que faz latejar as fontes para preveni-lo das formigas e organizar nesta cidade de sangue intumescido, de cornucópias eriçadas como mãos de cegos, um rito de salvação para que o futuro lixe os dentes nos montes, se arraste manso e sem força, totalmente sem formigas.

Primeiro procuraremos a orientação das fontes, o que é fácil porque nos mapas coloridos, nas plantas monumentais, as fontes também têm abastecedores e cascatas de cor azul-celeste; só que é preciso procurá-las muito e envolvê-las num recinto de lápis azul, não vermelho, pois um bom mapa de Roma é vermelho como Roma. Por cima do vermelho de Roma o lápis azul marcará um recinto roxo em torno de cada fonte, e agora temos certeza de que as pegamos todas e conhecemos a folhagem das águas. Mais difícil, mais obscuro e sigiloso é o mister de perfurar a pedra opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, compreender à força de paciência a cifra de cada fonte, montar nas noites de lua penetrante uma guarda apaixonada junto aos vasos imperiais, até que de tanto sussurro verde, de tanto borbulhar de flores, comecem a nascer os caminhos, as confluências, as outras ruas, as esquinas. E sem dormir segui-las com varas de avelã em forma de forquilha, de triângulo, com duas varinhas em cada mão, com uma só agarrada entre os dedos fracos, mas tudo isso é invisível à polícia e à população amavelmente temerosa, andar pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, correr aos gritos pelo Pincio, aterrorizar com uma aparição imóvel como um balão de fogo a ordem da Piazza della Esedra, e assim extrair dos surdos metais do solo a nomenclatura dos rios subterrâneos. E não pedir ajuda a ninguém, nunca.

Depois se irá percebendo como nessa mão de mármore esfolado as veias correm em harmonia, por prazer de águas, por artifício de jogo, até se aproximar pouco a pouco, confluir, enlaçar-se, transformar-se em artérias, derramar-se duras na praça central onde palpitam o tambor de vidro liquido, a raiz das copas pálidas, o cavalo profundo. E logo saberemos onde está, em que fundo de abóbadas calcárias, entre miúdos esqueletos de lêmures, bate seu tempo o coração da água. Será difícil saber, mas se saberá. Então mataremos as formigas que cobiçam as fontes, calcinaremos as galerias que esses mineiros horríveis tecem para aproximar-se da vida secreta de Roma. Mataremos as formigas só em chegar antes à fonte central. E partiremos num trem noturno, fugindo a tubarões vingadores, sentindo-nos obscuramente felizes, misturados a soldados e freiras.


Instruções para Subir uma Escada


Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão.

Cada um desses degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.

As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo pé e o pé.) Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o momento da descida.


Preâmbulo às Instruções para dar Corda no Relógio


Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.



Instruções para dar Corda no Relógio



Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. 

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não correm, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.



(Tradução de Glória Rodrigues)



(Ilustração: Dalí)




domingo, 11 de agosto de 2013

ANTI-DELAÇÃO, de Vasco Cabral









A noite veio,

disfarçada em dia,

e ofereceu-me a luz,

diáfana como a Aurora.




Mas eu disse que não.




Depois veio a serpente

disfarçada em virgem

e ofereceu-me os seios e os braços nus.




Mas eu disse que não.




Por fim veio Pilatos,

disfarçado em Cristo,

e numa voz humana e doce

disse: "se quiseres eu dou-te o paraíso

mas conta a tua historia..."




Mas eu disse que não,

que não, não, não!




E continuei um Homem!

E eles continuaram

os abutres do medo e do silêncio.





(Vidas Lusófonas - site; poeta de Guiné-Bissau)




(Ilustração: Ron English - apples and oranges)





quinta-feira, 8 de agosto de 2013

PORCALOCA, de Carlo Manzoni






"Desculpe, foi o senhor que telefonou para que eu viesse amputar a sua perna?"

"Eu? O que é isso? Nem sonhando!"

"Mas o senhor se chama Dante del Torro, não é? Faz meia-hora, um fulano me telefonou para que viesse alguém que lhe cortasse uma perna."

"Eu não telefonei. Deve ser outro Dante del Torro."

"Não, não... O endereço que me deram foi este. E neste endereço só há um Dante del Torro, que é o senhor. Um parente seu deve ter telefonado."

"Impossível. Hortênsia, por acaso você telefonou para que viessem cortar a minha perna?"

"Eu, não. Telefonei para o mercadinho pedindo que mandasse marmelada."

"Aí está, viu? Se o senhor tiver um doce de marmelada..."

"Como posso ter um doce de marmelada? Eu trouxe uma serra, pois quem me telefonou me pediu que trouxesse a serra, uma vez que na casa não existia uma serra."

"Engana-se. Eu tenho uma serra."

"Mas é evidente que a sua não deve servir para cortar uma perna."

"Como não? É igual a sua."

"Mas se é igual a minha, por que me levaram ao incômodo de trazer outra serra?"

"Ó Dante, deixa de discussão, homem de Deus. Deixa logo cortar esta maldita perna, mande-o embora e acabe logo com isso."

"Desculpa, Hortênsia, mas por que haverei eu de mandar cortar a minha perna
quando não fui eu que telefonei? Tenho ou não tenho razão?"

"O senhor tem razão. Mas o que é que eu faço agora? Alguém telefona, eu compro uma serra nova, gasto meu dinheiro, venho até aqui e acabo perdendo o meu dia a troco de nada. O senhor também deve me compreender..."

"Bem, com boa vontade sempre se pode encontrar uma maneira de se chegar a um acordo. Tampouco ele, coitado, tem culpa. Escuta, Dante, você devia de algum modo concordar com ele. Por que não deixa que ele ampute um dedo seu?"

"Êpa! Péra lá!, minha senhora: um dedo não é o suficiente!"

"Antes isso de que nada. Compreenda: é apenas para agradá-lo, porque eu poderia mandá-lo embora de mãos abanando, mesmo porque não fui eu quem o chamou."

"Bem, nesse caso, dois dedos."

"Ou um ou nada."

"Está bem, como quiser. Mas nesse caso, precisa que seja um polegar."

"Vá lá, vá lá... Que seja o polegar, já que me coloca nesta posição, está bem? E que seja esta a última vez, ouviu? Da próxima vez me telefone de volta para confirmar a chamada... Se o senhor não fosse um cara tão simpático... Pode... Ai!... porc... ahhh... vá aos poucos, isso, aos pouquinhos... Uuuuh!"



(Ilustração: Dino Valls)