terça-feira, 20 de agosto de 2013

A CURIOSA METAMORFOSE POP DO SENHOR PLÁCIDO, de Zulmira Ribeiro Tavares







Na loja de eletrodomésticos onde é o gerente, o Sr. Plácido ouviu soar o relógio. O amigo do Sr. Plácido, entendido em arte, disse a ele:

- A Bienal fecha domingo. Você já foi?

O Sr. Plácido avisou em casa:

- A Bienal fecha domingo. Vou hoje lá; aproveito que tenho a tarde livre.

A senhora do Sr. Plácido respondeu-lhe:

- Morreu o Tancredo Carvalho. O enterro é às cinco da tarde. Não atrase.

"O Tancredo!"

"A sua idade!"- E do quê?

- "Enfisema pulmonar" - disse a senhora do Sr. Plácido.

O Sr. Plácido ficou muito impressionado.

- Lembre-se também do "recipiente" - ajuntou ainda a senhora do Sr. Plácido. 

- Compre logo para não esquecer.

- O "recipiente"!?

- Para o exame amanhã. Compre de plástico que é mais leve e barato.

"O penico!"

- Não desista - disse o amigo entendido em arte. - Vá assim mesmo. Dá tempo.

- Mas estou tão por fora de tudo! - lamentou-se o Sr. Plácido. Pensou: "Onde será que o encontro? e de plástico?"

- Escute - disse-lhe o amigo - não se preocupe. Isso é que é o bom. Chegar à Bienal inocente.

- Como assim? - estranhou o Sr. Plácido.

- Veja tudo com olhos de criança.

- Quando eu era criança - disse o Sr. Plácido - detestava museus.

- Mas a Bienal é outra coisa!

O amigo do Sr. Plácido ficou calado por muito tempo.

O Sr. Plácido percebeu que cometera uma gafe séria.

Esperou.

Por fim o amigo do Sr. Plácido disse, pacientemente:

- Não procure na Bienal a eternidade dos museus e dos mármores. Busque o "provisório", o "precário", o "perecível".

- Como? - disse o Sr. Plácido; e começou a transpirar um pouco. Pensou no Tancredo. "Teria alguma relação com a arte, o enfisema?"

- Arte é vida! - disse o amigo entendido em arte.

Bom, o Tancredo estava morto.

- A arte - ajuntou o amigo - e a vida, não estão mais separadas por um abismo; a arte cá, limpinha, asséptica, quadrada; a vida lá, turbulenta, suja, não senhor, são uma coisa só. Os limites entre a arte e a não-arte foram borrados.

O Sr. Plácido indagou timidamente:

- Mas então para quê?

- Para que o quê?

- A arte; ou a vida, tanto faz; digo, para que duas coisas se são uma só?

O amigo se calou por muito tempo.

O Sr. Plácido estava tranquilo. "Fui inteligente, sem dúvida."

- Veja - disse por fim o amigo entendido em arte; pacientemente: - O que tem você aí na loja, diante dos olhos?

O Sr. Plácido enumerou:

- Geladeiras, máquinas de lavar roupa, rádios, televisores, ventiladores.

- É suficiente. E lá fora na rua?

O Sr. Plácido enumerou:

- Gente, automóveis, prédios.

- Sinais de trânsito, - ajudou o amigo - anúncios, cartazes, vitrinas. Você não 

mencionou o principal.

- É - aquiesceu o Sr. Plácido.

- Tudo isso você sabe como se chama? - perguntou o amigo do Sr. Plácido. (Referia-se ao principal.)

O Sr. Plácido permaneceu calado.

- "Folclore Urbano"! E aqui dentro, na loja os eletrodomésticos, bem, esses eu os denominaria assim, mais por minha conta, "Vegetação Urbana"! O Sr. Plácido permaneceu calado.

- Tudo isso está na Bienal, entende? Noutro contexto a coisa salta aos olhos! 

- Que coisa? - estranhou o Sr. Plácido.

- A vida - respondeu o amigo.

O Sr. Plácido ficou muito impressionado.

- Veja ainda - apontou o amigo entendido em arte - o que é isso? E isso? e aquilo? e aquele outro? - e mostrou com o dedo os desenhos feitos no lado interno da porta do lavatório.

- Todo o dia mando apagar e todo o dia voltam - disse o Sr. Plácido. - Gostaria de saber quem os faz. Não são maus.

- Estão na Bienal! - ajuntou triunfante o amigo.

- Como?

- Noutro contexto. Bem, mas não quero me adiantar muito. Vá. Vá inocente. Espere. Volte.

- Estou atrasado já - disse o Sr. Plácido.

- Não seja passivo, entendeu?

O Sr. Plácido pensou na porta do lavatório e ficou vermelho. Talvez a morte do Tancredo o estivesse impedindo de pensar com clareza.

- Atue! Co-autoria. Mexa em tudo o que for para mexer! Participe. Adeus.


***


- É para criança ou adulto? - perguntou o vendedor.

O Sr. Plácido teve pejo.

- Para criança - respondeu. Imediatamente pensou: "Não vou caber".

- Que cor prefere?

- Rosa - disse o Sr. Plácido para não deixar mesmo nenhuma pista. - O senhor 
tem caixa?

- Não - disse o vendedor. - Mas embrulhamos de maneira que a forma, o sentido do objeto, entende, desapareça completamente. Ninguém vai saber.

- Obrigado - disse o Sr. Plácido. - É que devo ir ainda à Bienal e a um enterro antes de voltar para casa.



***


- Caro Plácido! Na Bienal e com um penico na mão!

- Ele jurou que o significado desapareceria.

- Nunca, meu caro Plácido. Os significados deslocam-se, transformam-se, mas não perecem.

- Você é um acadêmico - disse o Sr. Plácido. Busca a "eternidade dos "mármores". Claro que perecem.

Sentiu que dominava o assunto. Contudo era preciso não saber demais. Manter um certo grau de inocência.

- E para onde vai você com esse significado pela mão, ainda que mal pergunte? 

- Daqui para um enterro. Você poderia me ajudar? Como faço com isso?

- Pegue ali dois catálogos do pavilhão americano que são os mais graúdos. Ponha o negócio no meio.

- Escorrega.

- Meu caro Plácido! Não se vence sem luta. Não se substituem significados na maciota. Faça assim.

- Agora não posso mexer.

- Como?

- Participar. O braço ficou preso. Não quero ser passivo.



***


- Caro Plácido! Que faz você em um enterro com catálogos do pavilhão americano?

- Nada. Qualquer coisa que eu fizer, o penico aparece.

- Que delicioso non-sense meu caro Plácido! Que delicioso non-sense! Esteve na Bienal?

- É.

- Gostou? Acha que arte é denúncia?

- Procuro manter a inocência.

- Ah!

- O olhar das crianças, sabe, esta estória toda. 

- Seja mais explícito, meu caro Plácido. Exemplifique.

- Não posso, já disse. Se lhe passar o catálogo, o penico vai junto.

- E ele insiste! Simplesmente delicioso! Britânico o humor! Nunca o supus!

"De enfisema pulmonar e na minha idade".



***




- Cor rosa e tamanho infantil! Mas Plácido! Onde tem você a cabeça?

- Se o problema é o traseiro, que interessa a você a cabeça?

- O teu amigo entendido em arte subverte a ordem das coisas! Você, por você, nunca me daria uma resposta dessas!

"De fato o equilíbrio é precário. Há um descompasso grande demais entre as duas partes: a minha e a outra. Mas quem busca a estabilidade dos 'mármores e museus'? A 'paz dos túmulos' é para quem já se foi. Estive na Bienal. E isso não se apaga numa vida."

- Vou fechar a porta. Concentre-se e relaxe.

"Esta mulher não diz mais coisa com coisa! Como é possível? Se me concentro não relaxo. Se relaxo, caio. É preciso ficar alerta. Algo deve cair, bem sei. Porém não eu; de mim. Devo, muito ao contrário, para que tal se dê, procurar manter-me a todo o custo."

- Mas que faz você balançando o corpo de lá para cá? São fezes para exame, homem, isto é Ciência com C maiúsculo, não se trata de uma brincadeira. Veja se se concentra. Disso pode depender a sua vida, pense no Tancredo.

"Não consigo acertar, não consigo acertar; foi tolice, foi tolice, não há nenhuma correspondência. A Timidez Vencida em 12 Lições. Se fosse verdade não teria feito o que fiz. Fui longe demais, reconheço. De um lado, rosa e tamanho infantil, de outro, eu no ramo dos eletrodomésticos. E com a idade do Tancredo. A idade do Tancredo. Um abismo; nenhum contato. Mas... não, não é verdade; ainda que mal, ... deu, coube. Os limites foram borrados. Uma coisa só. Uma coisa só." 

Pela primeira vez em sua vida o Sr. Plácido se observa. Agora, nesse momento. Inclinado para a frente, despido da cintura para baixo, as pernas finas e cabeludas ligeiramente abertas, as nádegas imensas e brancas apoiadas na pequena e leve circunferência rosa. Tem ele a impressão de ser este o único apoio para o seu corpo, que os seus pés mal tocam o chão; paira. Dois pares de aspas, como frágeis mãos, colhem-no por baixo, delicadamente, pelas nádegas e guardam-no consigo. Novos limites? 

Não pode evitar. Exatamente como descreve o catálogo. Está no catálogo. Colhido pelas aspas como dentro de uma cápsula, aguarda a revelação; uma revelação de ponta-cabeça; mas que, se vier, fugirá imediatamente a este estado de graça pois que de pronto será encaminhada ao laboratório para exame. Arte e ciência. Arte e não-arte! Os limites depostos, outra vez? As respostas acham-se retidas dentro da cápsula com o Sr. Plácido. O sinal da revelação ainda é apenas o roxo na sua fisionomia congesta. 

O sinal é esforço, mas esforço suspenso, sem quase apoio, roxo, roxosolferino. A suspensão é auréola: o plástico rosa, frio e leve. Um precário estado de graça iluminado pelos antípodas: roxo violento, rosa tênue. Duas cores, ou uma: dois tons, ou um puro perfeito objeto 

Pop.



(Ilustração: Marcel Duchamp - urinol)






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