sexta-feira, 30 de março de 2018

CONTO DE VERÃO Nº2: BANDEIRA BRANCA, de Luis Fernando Veríssimo






Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval. 

Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas. 

Só no terceiro Carnaval se falaram. 

— Como é teu nome? 

— Janice. E o teu? — Píndaro. 

— O quê?! 

— Píndaro. 

— Que nome! 

Ele de legionário romano, ela de índia americana. 


*** 

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia. 

— Ah. 

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo. 

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu: 

— Me dá alguma coisa. 

— O quê? 

— Qualquer coisa. 

— O leque. 

O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão. 


*** 

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera? 

— Você vomitou a alma — disse a mãe. 

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela. 

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida. 

— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo. 

Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval. 

— E aquela bailarina espanhola? 

— Nem me fala. E o toureiro? 

— Aposentado. 

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. 

Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro. 


*** 

Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara... 

— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci — mentiu ele. 

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu... 



(Histórias brasileiras de verão) 



(Ilustração: Cynthia McLean - Trinidad Carnival)



terça-feira, 27 de março de 2018

NOTURNO DE CHOPIN, de Pedro Nava




    



Eu fico todo bestificado olhando a lua

enquanto as mãos brasileiras de você

fazem fandango no Chopin



Tem uma voz gritando lá na rua:

Amendoim torrado

tá cabano tá no fim...

Coitado do Chopin! Tá acabando tá no fim...



Amor: a lua tá doce lá fora

o vento tá doce bulindo nas bananeiras

tá doce esse aroma das noites mineiras:

cheiro de gigilim manga-rosa jasmim.



Os olhos de você, amor...



O Chopin derretido tá maxixe

meloso

gostoso

(os olhos de você, amor...)

correndo que nem caldo

na calma da noite belo horizonte.


(Pasta 72: Arquivo de Mário de Andrade. Instituto de Estudos Brasileiros - IEB/USP)




(Ilustração: lua cheira em BH - Léo Fontes) 





sábado, 24 de março de 2018

PLEBISCITO, de Arthur Azevedo











A cena passa-se em 1890. 

A família está toda reunida na sala de jantar. 

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. 

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. 

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. 

Silêncio 

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 

— Papai, que é plebiscito? 

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. 

O pequeno insiste: 

— Papai? 

Pausa: 

— Papai? 

Dona Bernardina intervém: 

— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal. 

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 

— Que é? que desejam vocês? 

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. 

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? 

— Se soubesse, não perguntava. 

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 

— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! 

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. 

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! 

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... 

— A senhora o que quer é enfezar-me! 

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber! 

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. 

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira! 

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças! 

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. 

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 

— Mas se eu sei! 

— Pois se sabe, diga! 

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! 

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. 

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... 

A menina toma a palavra: 

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! 

— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito! 

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes. 

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito! 

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 

— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. 

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. 

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço. 

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... 

A mulher e os filhos aproximam-se dele. 

O homem continua num tom profundamente dogmático: 

— Plebiscito... 

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição. 

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios. 

— Ah! — suspiram todos, aliviados. 

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!... 





(Contos fora da moda





(Ilustração: Debora Arango - 1907-2005 - plebescito)





quinta-feira, 22 de março de 2018

GRAMMAR / GRAMÁTICA, de Tony Hoagland


  



Maxine, back from a weekend with her boyfriend,

smiles like a big cat and says

that she's a conjugated verb.

She's been doing the direct object

with a second person pronoun named Phil,

and when she walks into the room,

everybody turns:



some kind of light is coming from her head.

Even the geraniums look curious,

and the bees, if they were here, would buzz

suspiciously around her hair, looking

for the door in her corona.

We're all attracted to the perfume

of fermenting joy,



we've all tried to start a fire,

and one day maybe it will blaze up on its own.

In the meantime, she is the one today among us

most able to bear the idea of her own beauty,

and when we see it, we do what is natural:

we take our burned hands

out of our pockets,

and clap.



Tradução de Maria Rezende:


Maxine, na volta de um fim-de-semana com seu namorado,

sorri feito um gato grande e diz

que é um verbo conjugado.

Ela está fazendo o objeto direto

com um pronome da segunda pessoa chamado Phil,

e quando ela entra

todo mundo se vira:



tem uma espécie de luz saindo da sua cabeça.

Até os gerânios parecem curiosos,

e as abelhas, se estivessem aqui, zuniriam

de forma suspeita em volta do seu cabelo, procurando

a porta pra sua coroa

Somos todos atraídos pelo perfume

da alegria fermentando,



todos tentamos começar um fogo

e um dia talvez ele queime por si só.

Por hora, ela é hoje aquela de nós

mais capaz de suportar a ideia da sua própria beleza,

e quando a gente a vê, faz o que é natural:

tira nossas mãos queimadas

dos bolsos,

e aplaude.



(Donkey Gospel)



(Ilustração: Georgy Kurasov) 



domingo, 18 de março de 2018

UM TELEFONE QUE DEU O QUE FALAR, de Renato Vivacqua








Carnaval de 1917, Rio de Janeiro. Surge com enorme sucesso o samba Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, vulgo Donga. Um fato até então inédito acontece: os clubes carnavalescos, que nunca tocavam a mesma música em seus desfiles, entraram na Avenida Central tocando o Pelo Telefone. Naquela época samba era uma espécie de festa com dança. Dizia-se hoje vou dar um samba lá em casa. A partir do Pelo Telefone é que ficou conhecido como gênero musical. Hoje, mais de 60 anos após o seu lançamento, é considerada a mais discutida e polemizada de nossas músicas. 

As dúvidas começam com a data de sua feitura. É de 1916 ou 1917? Alguns estudiosos citam 1917, baseados no sucesso que alcançou no Carnaval desse ano. Donga afirma que foi composto em 1916 e isso é confirmado pelo registro da parte de piano que fez na Biblioteca Nacional, em 16 de dezembro de 1916. 

Outra discussão é se foi com o Pelo Telefone que pela primeira vez a palavra samba apareceu na etiqueta de um disco(1). Pesquisadores encontraram edições de A Cabocla de Caxangá com a designação de samba, anteriores a 1917. Outros afirmam que o primeiro samba perpetuado em disco chamava-se Em Casa da Baiana, admitindo sua aparição em 1911. Ary Vasconcelos informa que em 1914 foi gravada A Viola está Magoada, onde consta o batismo de samba. Guimarães Martins, biógrafo de Catulo, diz que A Viola está Magoada, de autoria deste, foi composta em 1912. Donga é incisivo, declarando que registrou o Pelo Telefone com plena consciência de que era a primeira vez que aparecia um disco com a palavra samba. Em 1972, o assunto volta à baila quando o folclorista gaúcho Paixão Côrtes encontrou o catálogo de uma antiga gravadora gaúcha, que teria funcionado entre 1913 e 1914, onde nove músicas estão designadas de samba. 

O cearense Nirez manifesta-se dizendo ter em sua coleção particular discos da Odeon, com numeração anterior ao Pelo Telefone. Em 1974, Maurício Quadrio ganha vários discos da Casa Edison. Três deles continham o repertório da revista musical Avança e um trazia em sua etiqueta: Um Samba na Penha. 

Polemizou-se também a respeito de quem realizou a primeira gravação. Para Lúcio Rangel, a primeira foi da Banda Odeon, seguida de Baiano, cantor muito popular na época e histórico também, pois gravou o primeiro disco nacional. Ary Vasconcelos tem a mesma opinião, assim como Sérgio Cabral. Aí vem o Donga e embaralha tudo, a primazia à gravação do Baiano. 

A autoria foi também muito contestada. No carnaval de 1917, o samba foi às ruas com letra atribuída ao jornalista Mauro de Almeida, apelidado de Peru dos Pés frios. O primeiro verso era cantado de duas maneiras: 


O chefe da folia 

Pelo telefone 

Manda-me avisar 

Que com alegria 

Não se questione 

Para se brincar. 


Ou: 


O Chefe da Polícia 

Pelo telefone 

Manda-me avisar 

Que na Carioca 

Tem uma roleta 

Para se jogar. 


Donga, em depoimento no Museu da Imagem e do Som, diz que a letra original é O Chefe da Folia… e explica: O Chefe da Polícia… foi uma paródia feita pelos jornalistas de A Noite. Em entrevista a Sérgio Cabral e Ary Vasconcelos, porém, se contradiz afirmando que é O Chefe da Polícia… a letra inicial, mudada para O Chefe da folia… para evitar complicações com as autoridades. 

O fato que dá origem à versão O Chefe da Polícia… é de 1913, quando repórteres de A Noite colocaram uma roleta no Largo da Carioca, para com isso mostrar que o Chefe de Polícia fazia vista grossa à jogatina. Antes de J. Efegê descobrir a data certa da peça dos jornalistas, todos os historiadores diziam ter o fato se dado em fins de 1916. Fica a dúvida se esse verso do Pelo Telefone não era anterior ao lançamento do samba. 

Os pesquisadores são unânimes na citação de Mauro de Almeida como autor da letra. Donga conta que o autor do primeiro verso é um tal Didi da Gracinda. O Jornal do Brasil de 4 de fevereiro de 1917 publicava uma nota do Grêmio Fala Gente comunicando que seria cantado na Avenida Rio Branco O verdadeiro tango Pelo Telefone e citava os autores: João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário, sendo delicado ao bom e lembrado amigo Mauro. Donga defende-se dizendo que as músicas eram diferentes. Almirante acusa Donga de omitir o nome de Mauro na parceria, dizendo ter este se apropriado do samba enganando parceiros. É incisivo: Donga não é autor do primeiro samba gravado. No máximo, segundo a história, é um dos parceiros. E acrescentava que o samba havia sido elaborado por uma equipe da qual participara inclusive Sinhô. Donga responde que Almirante nunca quis esclarecer a autoria do samba, mas apenas acusá-lo de apropriação indébita. Declarou peremptoriamente que a letra é de Mauro de Almeida. A omissão do nome de Mauro na gravação da Casa Edison não pode ser atribuída a mim. Em fevereiro de 1917 saía publicada uma paródia alfinetando Donga: 


Pelo telefone 

A minha boa gente 

Mandou-me avisar 

Que o meu bom arranjo 

Era oferecido 

Para se cantar 

Ai, ai, ai, leva a mão à consciência, meu bem 

Ai, ai, ai por que tanta presença, meu bem 

Ó que caradura dizer na roda 

Que o arranjo é teu 

É do bom Hilário e da Velha Ciata 

Que o bom Sinhô escreveu 

Tomara que tu apanhes 

Pra não tornar a fazer isso 

Escrever o que é dos outros 

Sem olhar o compromisso. 


O cronista Vagalume, no seu livro Na Roda do Samba, diz que a letra é um arranjo de Mauro de Almeida, a música também é um arranjo de Donga e o resto: foi pescado na casa da tia Ciata. Recentemente, Flávio Silva, num trabalho sherloqueano, encontra em jornais da época considerações de Mauro sobre o assunto. Num dos artigos ele revela que não é o autor, mas tão só o arreglador. Algumas daquelas estrofes já andaram por aí no canto popular, arreglei-as para que pudessem ser cantadas com a música que me fora oferecida. Em sua coluna de 24/1/17 respondendo a outro cronista que o citara como autor da letra comenta: devo dizer-te, meu caro Arlequim, como protesto em benefício da verdade, que os versos do samba carnavalesco Pelo Telefone não são originais, ou melhor, são mas não meus. Tirei-os de trovas populares… Isso que foi dito acima corrobora a feliz observação de Tinhorão, que disse ser o samba uma verdadeira colcha de retalhos, com nuanças de batuques, estribilhos do folclore baiano e maxixe carioca. 

Agora voltemos à letra. Além da primeira estrofe, já citada, que possui duas versões, ainda havia uma versalhada: 


I – O Chefe da Polícia ou O chefe da folia… 


II – Ai, ai, ai é deixar mágoas pra trás 

Ó rapaz 

Ai, ai, ai fica triste se és capaz e verás. 


III – Tomara que tu apanhes 

Pra não tornar a fazer isso 

Tirar amores dos outros 

Depois fazer teu feitiço. 


IV – Ai se a rolinha, sinhô, sinhô 

Se embaraçou, sinhô, sinhô 

É que a avezinha 

Nunca sambou, sinhô, sinhô 

Porque este samba, sinhô, sinhô 

De arrepiar 

Põe perna bamba 

Mas faz gozar. 


V – O Peru me disse 

Se o Morcego visse 

Não fazer tolice 

Eu então saísse 

Dessa esquisitice 

De disse e não disse. 

De disse e não disse. 


VI – Ai, ai, ai está o canto ideal 

Triunfal 

Ai, ai, ai viva o nosso Carnaval 

Sem rival. 


VII – Se quem tira amor dos outros 

Por Deus fosse castigado 

O mundo estava vazio 

E o inferno habitado. 


VIII – Queres ou não, sinhô 

Vir pro cordão, sinhô, sinhô 

Vir pro cordão sinhô, sinhô 

É ser folião, sinhô, sinhô 

De coração 

Porque este samba, sinhô, sinhô 

De arrepiar… etc. 


IX – Quem for bom de gosto 

Mostre-se disposto 

Não procure encosto 

Tenha o riso posto 

Nada de desgosto. 


X – Ai, ai, ai toca o samba 

Com calor 

Meu amor 

Ai, ai, ai pois quem dança 

Não tem dor nem calor. 


O estribilho Ai se a rolinha… é pernambucano, segundo Vagalume. A letra acima é a que Baiano esgoela no disco. Com o passar do tempo vira uma verdadeira casa-da-mãe-joana, com todo mundo mexendo, uns tirando, outros implantando palavras. O segundo verso, Claribalte Passos publica invertido: 


Ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás 

Bota as mágoas para trás… 


O quarto verso aparece também modificado: 


Olha a rolinha, sinhô, sinhô 

Se embaraçou 

Caiu no laço 

Do nosso amor. 


Edgar de Alencar restringe o samba a oito partes. Mário Reis, na gravação que fez para os festejos do IV centenário do Rio, canta quatro partes numa tremenda salada. A primeira ficou assim: 


O Chefe da Polícia 

Pelo Telefone 

Mandou-me avisar 

Que com alegria 

Não se questione 

Para se brincar. 


No quarto verso, cheio de puritanismo, trocou o malicioso me faz gozar por um castíssimo me faz CHORAR. Almirante canta o verso ai, ai se a rolinha em disco de um jeito e publica em seu livro de outra forma. Na partitura original, impressa pelo Instituto de Artes Gráficas do Rio, não constam a nona e a décima estrofes. Como podem observar, é uma tremenda barafunda. Eu, que não pretendo atiçar o fogo, faço minhas as palavras de Ary Vasconcelos quando reivindica para o Pelo Telefone o título de primeiro samba de sucesso, independendo a época de sua feitura. 



Notas 

(1) Quando este livro já se encontrava no nascedouro gráfico foi lançado pela Funarte a “Discografia brasileira 78 rpm”, notável trabalho de quatro infatigáveis pesquisadores: Jairo Severiano, Grácio Barbalho, Alcino Santos e Nirez. 

Uma das revelações não poderia deixar de ser mencionada: a palavra samba, sem dúvida alguma, apareceu pela primeira vez na face de um disco em 1909 e não 1904 como anteriormente foi anunciado e a música era “Um samba na Penha”, cantado por Pepa Delgado, lançado pela Casa Edison. Agora persiste a dúvida, se a peça é de 1904, porque a gravação só foi feita em 1909? 




(Ilustração: na foto, da esquerda para a direita Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana, Ismael Silva, Alfredinho do Flautim) 















quinta-feira, 15 de março de 2018

РОДИНА / PÁTRIA, de Marina Tsatayeva







О, неподатливый язык!

Чего бы попросту — мужик,

Пойми, певал и до меня:

«Россия, родина моя!»



Но и с калужского холма

Мне открывалася она —

Даль, тридевятая земля!

Чужбина, родина моя!



Даль, прирожденная, как боль,

Настолько родина и столь —

Рок, что повсюду, через всю

Даль — всю ее с собой несу!



Даль, отдалившая мне близь,

Даль, говорящая: «Вернись

Домой!»

……………..Со всех — до горних звезд —

Меня снимающая мест!



Недаром, голубей воды,

Я далью обдавала лбы.



Ты! Сей руки своей лишусь,—

Хоть двух! Губами подпишусь

На плахе: распрь моих земля —

Гордыня, родина моя!



Tradução de André Nogueira:


Oh, meu implacável idioma!

Como ouvisse simplesmente uma campônia,

Uma rústica canção que murmurinha:

– Rússia, pátria minha!



No horizonte, atrás da cordilheira,

Pátria minha – e estrangeira! –

Ela mostrou-se para mim:

Terra distante, lá dos últimos confins!



Distância, minha sôfrega doença,

A tal ponto é minha pátria de nascença

Que carrego, aonde for, essa distância –

Minha parte que está fora do alcance.



Distância, que se afasta e não me solta,

Distância, que me diz: “Rápido volta

Para casa!

…………….. No horizonte estrela branca

Que de todos os lugares me arranca!



Do suor da caminhada só me resta

Inundar a vastidão da minha testa.



Tu, hei de perder-me nos teus braços!

Com os lábios selarei, ao pé do cadafalso:

Pátria minha – prometida! –

Onde se encontra a perdição da minha vida.




(Ilustração: Oksana PAVLOVA - Heart of Russia)




segunda-feira, 12 de março de 2018

NO CAMPO, À LUZ DO LUAR, de Françoise Parturier











Georges partiu para Londres. 

Poder telefonar a Maria no fim da tarde para lhe dizer “Maria, não irei jantar, cuide bem dos meninos e faça-os ir cedo para a cama”, permitiu-me medir a alegria que se sente quando dispomos de nós próprios, sem comentários, sem explicações e sem que o nosso prazer incomode outrem; nada é tão perigoso como provar as delícias de um bem que perdemos. Eu até já me esquecera do repouso que é a liberdade. 

Adorei esse jantar em casa de Antoine. Tínhamos deixado as janelas abertas e o holofote da Torre Eifel lançava o seu longo raio de luz por todo o céu. Falávamos baixo, porque a noite descia, porque estávamos felizes, um pouco comovidos por estarmos juntos, à hora em que geralmente estávamos separados. 

- Sabe, Claire, que é um verdadeiro luxo poder falar-lhe sem ser pelo telefone? 

Antoine preparara o jantar clássico dos amorosos: o foie-gras, o champagne, os primeiros morangos da temporada... Falávamos das nossas vidas um pouco ao acaso, com aquela alegria admirável de nascermos de novo, livres desta vez, diante de um novo público, pois um dos encantos dos novos amores é permitir sempre a renovação do personagem. A felicidade de rir ao mesmo tempo. – A seriedade é a felicidade dos imbecis – dizia Antoine. 

- Recear a ironia é recear a razão – dizia eu. Além do mais, a felicidade de nos provarmos a nós próprios o nosso espírito aproximava-nos tanto como as carícias, a tal ponto que chegávamos, como todos os amantes felizes, a lamentar o resto da humanidade, “os outros”, com o mero pretexto de que não tomavam parte nos nossos prazeres. 

Nada há de mais cansativo do que agradar, mas por outro lado nada é mais excitante do que consegui-lo. Separei-me dele muito tarde, no meio da noite, morta de cansaço e deliciada. Deitei-me logo sem sequer tirar a maquilagem, muito mais apaixonada por Antoine do que jamais o estivera e percebi então como são perigosas as volúpias da inteligência. 

Quando ele me telefonou no dia seguinte, às dez horas da manhã, disse-lhe quão agradável fora a nossa noite e quanto eu amava a sua inteligência... 

- Oh! Sabe uma coisa – disse-me ele como resposta – se eu não cumprisse bem as minhas obrigações, os meus pequenos trabalhos, você não me consideraria tão inteligente, acredite-me! 

Fiquei sem voz. 

- Pensa que sou um safado?... 

- Não, não... estou apenas meditando. 

- Bem, já estou vendo que, para remediar o mal, terei de lhe fazer a corte muito seriamente... Tarass Bulba e Troika... Quer que eu a vá buscar esta noite por volta das oito e meia? 

- Combinado... às oito e meia. 


♣ 


- Não janto em casa esta noite, Maria. Cuide bem das crianças. 

- Está bem, Madame... Ah! Já me esquecia de dizer que a Senhora Lavergne telefonou ontem à noite e pediu que Madame lhe telefonasse... 

- Obrigada, Maria... nada mais? 

- Não, Madame... aparentemente nada mais. 

Achei que o “aparentemente” era muito “mundano” e decidi que a vida era cômica... 

Só os meus filhos – um milagre! – é que ainda não estavam zangados comigo. 

Levei-os aos Campos Elísios, à Bolsa de Selos, onde Jean-Jacques queria comprar raridades de Zanzibar e do Niassa, enquanto Michèle fazia todo o possível para que eu lhe comprasse um montão de doces. Passamos uma tarde muito agradável. Eu estava bem disposta e os pequenos pareciam dois cachorrinhos saltando à minha volta. 

Pensei nisto tudo no cabeleireiro, onde terminei a tarde, pois tive um desejo louco, de súbito, tanto de me repousar como de agradar a Antoine. 

Telefonei-lhe para dizer que estava um pouco atrasada e que não me viesse buscar antes das nove horas.; Decidi assistir ao jantar das crianças. 

Ficaram tão contentes e Maria tão aliviada que cheguei a pensar que eu era um verdadeiro monstro. 

- Como você está bonita, mamãe! – exclamou Michèle. 

Beijei-a com ternura. 

- Promete que me virá dar um grande beijo esta noite, quando voltar? 

- Claro que prometo, minha querida. 

Quanto a Jean-Jacques, eu contara demasiado depressa com a sua inocência, pois já estava amuado. 

- Vai sair outra vez? 

Fingi que nada vi, que nada ouvi. Mas, quando a porta se fechou atrás de mim, depois de deixar do outro lado o que de mais precioso eu tinha no mundo, tive um sentimento de alívio, de libertação... 

- Como Madame está bela – disse-me Antoine. 

Pedi-lhe um cigarro e recostei-me no assento de couro preto do Mercedes. 

- Como se está bem neste carro... 

Antoine sorriu e, sem responder, ligou o rádio. 

- Devo dizer-lhe que o carro não é meu. 

- Bem sei, Antoine, mas não importa... eu – sabe? também não sou minha... 

- Quer dizer que não é minha, não é isso? 

- Não, Antoine. Quis dizer exatamente o que disse... 

- Mas, minha boa amiga, estamos sendo muito aborrecidos, honestos, sinceros, puros, leais e, naturalmente, lastimáveis... 

Antoine parou o carro à beira da estrada e beijou-me, tentando excitar-me. Impedi-o. 

Quando nos pusemos de novo a caminho, Antoine sorria. 

- Pensando bem – exclamou ele –, o carro funciona... a mulher também... não me posso queixar, pois não?! Ou deverei queixar-me de que tanto você como esta Mercedes são muito belas? 

Apoiou sobre o acelerador. 

- Vou leva-la a um bistrô – informou-me Antoine – onde não se arriscará a encontrar nenhum dos seus conhecidos. É o que se chama um local de “má fama”. Não tem medo, pois não? 

Perto de Conflans-Saint-Honorine, um pouco para além do porto, nas brumas do luar, uma grande jangada amarrada ao cais misturava suas luzes com as ondas suaves do canal e a sua música com a do vento soprando entre as árvores. 

- É ali – indicou Antoine. 

Vários carros parados em frente da péniche revelavam que aquele local tão afastado não era totalmente desconhecido. 

A jangada-restaurante estava muito na moda, com a suas velas, cadeiras de ferro, guardanapos de papel, criados disfarçados de marinheiros e toda a fantochada dos locais dúbios, com percentagem habitual de invertidos, de depravados e de mirones. 

Tinham reservado uma mesa para Antoine, que foi logo cumprimentar a proprietária, Madame Jean, uma mulher corpulenta vestida de capitão, que o chamou sucessivamente de “meu velho”, “meu belo”, “meu bom pedaço”... Antoine apresentou-me. A boa senhora deu um estalo com a língua e piscou o olho. “E eu que pensava que você só gostava de ouras, meu belo!” E, dizendo isto, a Senhora Jean deu-lhe uma boa palmada nas costas; entre homens, claro!, não havia segredos... 

- Será esse o seu Troika? – perguntei a Antoine. 

- Silêncio... já verá – disse-me ele. – Uma vez cumpridos os ritos, estaremos muito confortavelmente, garanto-lhe que não nos voltarão a incomodar... De reto, gosto muito desse tipo de mulheres, devo-lhes muito... 

- Você, Antoine? 

- Sabe uma coisa, minha querida? Essas mulheres conhecem as mulheres melhor do que ninguém... 

- E então está tem-lhe sido útil?... 

- Venha dançar – disse-me ele, rindo. 

Do outro lado do barco, diante de um juke-box niquelado, havia uma pista reservada à dança; duas mulheres muito novas, muito magras, dançavam juntas com um ar aborrecido e cansado. 

- Figuração? – perguntei a Antoine. 

- Que ideia. É a moda, hoje em dia... aquele ar desinteressado. 

- Eu não falava do ar com que estão dançando... 

- Não lhe posso responder, mas creio que, aqui, seremos quem fará escândalo. Somos tão heterossexuais, minha querida... Paciência, tenha coragem... 

Antoine dançava com grande agilidade e, o que é raro, obedecendo ao ritmo da música. Comentei que ele não era muito alto, o que explicaria talvez que eu me sentisse sempre tão bem nos seus braços, tanto horizontal como verticalmente. Dançamos sem falar até que nos anunciaram que o nosso jantar estava pronto. 

Apesar do barulho, do fumo, do vaivém, senti-me muito repousada. Aqueles ritmos adormeciam o espírito e a dança sempre agiu em mim como um estupefaciente. 

- Você tinha razão, Antoine, gosto imenso deste local... já me sinto melhor. 

- É o cheiro do vício, minha querida amiga, para certos espíritos... 

O jantar foi encantador – uma fritura e vinho rosé – joelhos contra joelhos, olhos nos olhos, bebendo muito, comendo pouco. 

- Então, meus queridos, como vai esse pequeno rosé? 

- Você agradou a Madame Jean – disse-me Antoine. 

O coração humano é imprevisível, pois senti um verdadeiro prazer com a ideia de agradar àquela horrível mulher. 

Voltamos à pista de dança. Havia mais gente dançando, agora. Grupos de moças, grupos de homens. Tal como Antoine dissera, causamos sensação. 

- Geralmente não chegam a este ponto – murmurou ele –, lamento muito. 

- Mas estou imensamente divertida, Antoine. Não conhecia este gênero de lugar... Vem aqui muitas vezes? 

- Antigamente, sim... Gosto de falar com essas moças invertidas, já sei que isso passou de moda, mas gosto de variar a minha vida... 

- E os rapazes? 

- Não, minha querida, nada disso... o meu lado pederasta contenta-se perfeitamente com as mulheres um pouco viris. 

- Quererá dizer, com isso, que então elas é que são pederastas? 

- Exatamente. É maravilhoso conversar com uma mulher inteligente... 

Antoine beijou-me. 

- Mas então, e eu, Antoine, sou uma aberração? 

- Não, meu anjo, você... é uma festa... 

E acrescentou em voz baixa: 

- Uma festa deliciosa. 

- Espero que não me vá dizer que já foi para a cama com Madame Jean?... 

- Você deve estar louca! Que horror! De vez em quando, peço-lhe certos conselhos, receitas, assistir a demonstrações... Ela está sempre cercada por moças muito interessantes, sabe? 

- Demonstrações? 

- Por que não? 

- Mas você é um monstro de depravação, Antoine. 

- Claro que sou, minha doce amiga... mas juro-lhe que nunca me entreguei aos trabalhos práticos senão com senhoras da melhor sociedade... Essas são, de resto, as melhores mestras e devo confessar que, nesse aspecto, sempre me surpreenderam... 

Eu estava descobrindo, com uma mistura de horror e de fascinação, que o meu amante podia, quando desejava, transformar-se num verdadeiro safado, num depravado e num cínico obsceno. 

Em resumo, eu sonhava... 

Antoine apertou-me contra o seu corpo e, enchendo-me de carícias, continuava dançando em volta da pista. 

- Não acha que está muito calor? – perguntou. 

Já estou habituada a tomar essas perguntas como verdadeiras ordens e, assim, decidi que seria agradável ir dar uma volta lá fora. 

- Saia primeiro e espere-me junto do carro – disse Antoine. – Já vou ter consigo, não tenha medo. 

Encontrei-me de novo ao ar livre com um verdadeiro alívio e, como nos romances de amor, “bebi sofregamente a noite”. A lua, no zênite, apagava as sombras, os grilos vibravam, as rãs acompanhavam o ritmo como instrumentos de uma orquestra desafinada, uma coruja, de tempos a tempos, juntava-se àquela curiosa música fluvial. 

Antoine não tardou a vir ao meu encontro. Deu-me o braço e encaminhou-me lentamente para uma casa baixa que ficava a pouca distância. 

- É a casa de Madame Jean. Olhe – disse-me ele – não perdi meu tempo. 

Abrindo a mão, mostrou-me uma chave. 

Eu ficara completamente espantada, mas tentei escondê-lo. 

O quarto, forrado a cretone, tinha um aspecto do quarto de uma donzela distinta, com uma cama estreita, estantes de livros. 

Antoine apagou a luz, abriu as cortinas e os nossos amores só foram iluminados pelos raios da lua. 

Fiquei muito surpreendida, depois de sair daquele local e, sobretudo depois da conversa que tivéramos, de me encontrar nos braços de um jovem apaixonado, terno, quase casto, como que paralisado pelo desejo. Talvez tivesse bebido demasiado?... 

Em todo o caso, essas suas inibições, se é que eram inibições, não duraram muito, e Antoine depressa se entregou aos jogos mais variados, até ao momento em que, compreendendo que eu estava demasiado cansada para o acompanhar, se dedicou a me tornar feliz, apenas a mim, sem se preocupar com o seu próprio prazer. 

Adormeci – quanto tempo, não o saberei dizer – mas tive a surpresa de acordar no campo, ao luar, sob o olhar atento do meu amante que, encostado a um cotovelo, me espiava com ternura. 

Logo que me viu abrir os olhos, sorriu-me de uma forma encantadora, cobriu-me de beijos e foi compensado generosamente pela sua paciência e delicadeza. 

Impedi-o de dormir, quando foi a sua vez de sentir-se cansado. 

- Antoine, suplico-lhe, é horrível, já são quase quatro horas da manhã... tenho de regressar a Paris... Antoine! 

Vestiu-se, resmungando – mas depressa. A madrugada já lançava os seus tons pálidos sobre a paisagem. Ainda havia um outro carro perto do nosso, um T.T.X., e a música do juke-box acompanhava o primeiro canto dos pássaros. 

Another love, another spring. 

- Estão loucos – disse-me Antoine. 

O carro estava gelado. Antoine ligou o aquecimento. Encostei-me a ele. Antoine conduzia bem, mas muito devagar. 

- Não vejo o que quer que seja – disse ele. – Sinto-me quase cego de sono, é horrível. 

Cheguei a casa ao mesmo tempo que os primeiros madrugadores saíam para rua. 

- As nossas soirées são sempre diferentes – murmurou Antoine. – Em minha casa, conversamos muito, e depois vamos dormir na casa da boa Jean! Quando regressa esse marido? 

- Creio que amanhã à noite. Telefone-me antes do almoço... sim? Boa noite... 

- Claire? 

- Sim? 

- Oh! Nada... até amanhã, durma bem. 

O sol levantava-se. Eu deitei-me. 

Às sete e meia, as crianças acordaram-me para o desjejum. 

- Não me veio dar um beijo ontem à noite – queixou-se Michèle. 

- Vim, sim... mas a menina dormia. 

- Mas eu fiquei à espera tanto tempo... 

- Sejam bonzinhos – pedi-lhes. – Tomem o desjejum sem mim e não façam barulho. Dormi muito mal, esta noite... 

Às nove horas, fui acordada de novo, desta vez por Georges, que me telefonava de Londres para dizer que só regressaria amanhã à tarde. 

- Que tem você? – perguntou Georges. – Ouço-a tão mal. 

Com efeito, o fumo, a poeira, o álcool e o frio da madrugada haviam-me enrouquecido. 

- Estou um pouco rouca – respondi-lhe –, o tempo não tem estado grande coisa. 

Georges prometeu trazer-me um “remédio maravilhoso”. 

Quando Antoine telefonou, eu estava tão cansada que lhe disse que o meu marido acabara de chegar e que não lhe podia falar naquele momento... 

Maria deu-me um saco de água quente, uma xícara de chá, duas aspirinas. Decidi ficar todo o dia na cama. 

- Madame quer ver as flores que recebeu ontem à noite? 

Maria trouxe-me uma pequena corbeille de flores campestres. 

- Não trouxeram nenhum cartão? 

- Trouxeram, sim, Madame. Está ali sobre a lareira do seu quarto. Não o viu, Madame? 

- Obrigada, Maria... 

Abri o envelope: 

“Não ousando prever o futuro, ainda não sei se estas humildes flores servirão de desculpa para uma noite mal passada, ou se me permitirão, pelo contrário, dizer-lhe, minha querida amiga, quanto lhe agradeço a sua existência... Peço-lhe que decida você própria.” 

- Don Juan... – murmurei. 

As férias haviam terminado. 

Adormeci de novo. 





(O amante dos cinco dias; tradução de Fernando de Castro Ferro)




(Ilustração: Leonid Afremov - Moment of passion)