sexta-feira, 9 de março de 2018

PAISAGEM II, de Horácio Costa








Sentado nesta bergère de courvin

sinto o poema chegar com ainda

menos urgência do que parece

condensarem-se as nuvens sobre a paisagem

que se descortina deste hospital

debruçado sobre a mais insípida

autopista ou avenida de fundo de vale

- que cada cidade tenha as suas

características é mais do que natural

e Dubai e Oslo só se encontram

por terem topônimos bissílabos-

e tais artérias são o próprio desta

na qual por bem nasci e na qual

se me for dado imprimir sobre

o meu devir bizarro a vontade

minha, hei de morrer e talvez

em algum espaço medical como este

e sempre na observação de plúmbeas

vastas nuvens, que obrigam recordar

a proximidade da serra e sua

exsudação e abaixo o sujo mar

per elas responsável, pai

esquecidiço e insolidário quem

nos filia a cada estação e quem

nos manda carícias sob forma de

sazonais monções.

Mudo

de posição como em Apipucos

Freyre o faria em outra bergère

mas não diviso sequer mentalmente

nenhum engenho de nome Noruega

na noite que se acende e sim

apenas o estertor de uma cidade

nem libertina nem libertária

nem escarrapachada em indolentes redes

mas que no supino anonimato garante

o quociente de cada habitante seu

à liberdade de escolha, dentro

dos limites xadrezes entre prédios

e vales e parcos parques e não mais.

Que

não se confunda tal simples solaz

ao exercício contumaz da fantasia:

aqui não cortam os ares de Batman

a capa nem Quasímodo horrendo

se esconde em nossa Sé e nem Rachel

Watson ou Esmeralda belas apeiam-se

dos incessantes vagões na Liberdade.

Há dias sinto emergir este poema

e serão tais nuvens baixas quem

o traz e de onde aportará que não

da sensação experimentada dia a dia

do perviver este espaço dia com dia

no fluxo de um rio ao inverso?

A hibridez do texto corresponde-lhe

e a mim, e ao desejo de plasmar-me

nele e nela e repetir e repetir

que a cidade que tudo isto origina

será o meu espelho colinado

e meus nervos e meu sangue

estas luzes que diviso mental e real-

mente, agora que a sobrevôo não

em rés búdico, que bem o quisera,

mas para começar a terminar

este registro que inda tarda.

As raízes do fícus, gigantescas,

entre as pistas da auto-bahn

esperam quem nelas se aninhe

e ao pé da copa frondosíssima,

como Buda, se ilumine; as encostas

lá embaixo, sulcadas entre bairros

de espigões, talvez possam sugerir

semi-aconcáguas aos do montanhismo

entusiastas, que por aqui transitem

e aos médicos, o vislumbre da

distante cúpula da Catedral, cujos

bronzes estão cobertos por cinábrio,

o bimbalar mouco de sinos em toque

fúnebre, que lhes imprima o significado

da vida de cada um de seus pacientes:

velhos imigrantes portugueses, mães

nordestinas deixadas por seus machos,

nisseis que se expressam por sorrisos

e o significado da minha vida em

particular, quase um gondoleiro âgé

neste Rialto em pane, vestido

com esta improvável camiseta

listrada de azul e branco e por hora

sentado a escrever este poema

nesta bergère de courvin

impessoalíssima e com os seus olhos

rasos d’água, como deve ser, enquanto

reflito sobre São Paulo e sua gente

neste pavilhão de funcionalidade

hospitalar, edificado num barranco

íngreme não: cânion sobre uma artéria

aberta no fundo de um vale coberto

por nuvens nuvens nuvens.




(Ilustração: Edward Hopper)







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