segunda-feira, 12 de março de 2018

NO CAMPO, À LUZ DO LUAR, de Françoise Parturier











Georges partiu para Londres. 

Poder telefonar a Maria no fim da tarde para lhe dizer “Maria, não irei jantar, cuide bem dos meninos e faça-os ir cedo para a cama”, permitiu-me medir a alegria que se sente quando dispomos de nós próprios, sem comentários, sem explicações e sem que o nosso prazer incomode outrem; nada é tão perigoso como provar as delícias de um bem que perdemos. Eu até já me esquecera do repouso que é a liberdade. 

Adorei esse jantar em casa de Antoine. Tínhamos deixado as janelas abertas e o holofote da Torre Eifel lançava o seu longo raio de luz por todo o céu. Falávamos baixo, porque a noite descia, porque estávamos felizes, um pouco comovidos por estarmos juntos, à hora em que geralmente estávamos separados. 

- Sabe, Claire, que é um verdadeiro luxo poder falar-lhe sem ser pelo telefone? 

Antoine preparara o jantar clássico dos amorosos: o foie-gras, o champagne, os primeiros morangos da temporada... Falávamos das nossas vidas um pouco ao acaso, com aquela alegria admirável de nascermos de novo, livres desta vez, diante de um novo público, pois um dos encantos dos novos amores é permitir sempre a renovação do personagem. A felicidade de rir ao mesmo tempo. – A seriedade é a felicidade dos imbecis – dizia Antoine. 

- Recear a ironia é recear a razão – dizia eu. Além do mais, a felicidade de nos provarmos a nós próprios o nosso espírito aproximava-nos tanto como as carícias, a tal ponto que chegávamos, como todos os amantes felizes, a lamentar o resto da humanidade, “os outros”, com o mero pretexto de que não tomavam parte nos nossos prazeres. 

Nada há de mais cansativo do que agradar, mas por outro lado nada é mais excitante do que consegui-lo. Separei-me dele muito tarde, no meio da noite, morta de cansaço e deliciada. Deitei-me logo sem sequer tirar a maquilagem, muito mais apaixonada por Antoine do que jamais o estivera e percebi então como são perigosas as volúpias da inteligência. 

Quando ele me telefonou no dia seguinte, às dez horas da manhã, disse-lhe quão agradável fora a nossa noite e quanto eu amava a sua inteligência... 

- Oh! Sabe uma coisa – disse-me ele como resposta – se eu não cumprisse bem as minhas obrigações, os meus pequenos trabalhos, você não me consideraria tão inteligente, acredite-me! 

Fiquei sem voz. 

- Pensa que sou um safado?... 

- Não, não... estou apenas meditando. 

- Bem, já estou vendo que, para remediar o mal, terei de lhe fazer a corte muito seriamente... Tarass Bulba e Troika... Quer que eu a vá buscar esta noite por volta das oito e meia? 

- Combinado... às oito e meia. 


♣ 


- Não janto em casa esta noite, Maria. Cuide bem das crianças. 

- Está bem, Madame... Ah! Já me esquecia de dizer que a Senhora Lavergne telefonou ontem à noite e pediu que Madame lhe telefonasse... 

- Obrigada, Maria... nada mais? 

- Não, Madame... aparentemente nada mais. 

Achei que o “aparentemente” era muito “mundano” e decidi que a vida era cômica... 

Só os meus filhos – um milagre! – é que ainda não estavam zangados comigo. 

Levei-os aos Campos Elísios, à Bolsa de Selos, onde Jean-Jacques queria comprar raridades de Zanzibar e do Niassa, enquanto Michèle fazia todo o possível para que eu lhe comprasse um montão de doces. Passamos uma tarde muito agradável. Eu estava bem disposta e os pequenos pareciam dois cachorrinhos saltando à minha volta. 

Pensei nisto tudo no cabeleireiro, onde terminei a tarde, pois tive um desejo louco, de súbito, tanto de me repousar como de agradar a Antoine. 

Telefonei-lhe para dizer que estava um pouco atrasada e que não me viesse buscar antes das nove horas.; Decidi assistir ao jantar das crianças. 

Ficaram tão contentes e Maria tão aliviada que cheguei a pensar que eu era um verdadeiro monstro. 

- Como você está bonita, mamãe! – exclamou Michèle. 

Beijei-a com ternura. 

- Promete que me virá dar um grande beijo esta noite, quando voltar? 

- Claro que prometo, minha querida. 

Quanto a Jean-Jacques, eu contara demasiado depressa com a sua inocência, pois já estava amuado. 

- Vai sair outra vez? 

Fingi que nada vi, que nada ouvi. Mas, quando a porta se fechou atrás de mim, depois de deixar do outro lado o que de mais precioso eu tinha no mundo, tive um sentimento de alívio, de libertação... 

- Como Madame está bela – disse-me Antoine. 

Pedi-lhe um cigarro e recostei-me no assento de couro preto do Mercedes. 

- Como se está bem neste carro... 

Antoine sorriu e, sem responder, ligou o rádio. 

- Devo dizer-lhe que o carro não é meu. 

- Bem sei, Antoine, mas não importa... eu – sabe? também não sou minha... 

- Quer dizer que não é minha, não é isso? 

- Não, Antoine. Quis dizer exatamente o que disse... 

- Mas, minha boa amiga, estamos sendo muito aborrecidos, honestos, sinceros, puros, leais e, naturalmente, lastimáveis... 

Antoine parou o carro à beira da estrada e beijou-me, tentando excitar-me. Impedi-o. 

Quando nos pusemos de novo a caminho, Antoine sorria. 

- Pensando bem – exclamou ele –, o carro funciona... a mulher também... não me posso queixar, pois não?! Ou deverei queixar-me de que tanto você como esta Mercedes são muito belas? 

Apoiou sobre o acelerador. 

- Vou leva-la a um bistrô – informou-me Antoine – onde não se arriscará a encontrar nenhum dos seus conhecidos. É o que se chama um local de “má fama”. Não tem medo, pois não? 

Perto de Conflans-Saint-Honorine, um pouco para além do porto, nas brumas do luar, uma grande jangada amarrada ao cais misturava suas luzes com as ondas suaves do canal e a sua música com a do vento soprando entre as árvores. 

- É ali – indicou Antoine. 

Vários carros parados em frente da péniche revelavam que aquele local tão afastado não era totalmente desconhecido. 

A jangada-restaurante estava muito na moda, com a suas velas, cadeiras de ferro, guardanapos de papel, criados disfarçados de marinheiros e toda a fantochada dos locais dúbios, com percentagem habitual de invertidos, de depravados e de mirones. 

Tinham reservado uma mesa para Antoine, que foi logo cumprimentar a proprietária, Madame Jean, uma mulher corpulenta vestida de capitão, que o chamou sucessivamente de “meu velho”, “meu belo”, “meu bom pedaço”... Antoine apresentou-me. A boa senhora deu um estalo com a língua e piscou o olho. “E eu que pensava que você só gostava de ouras, meu belo!” E, dizendo isto, a Senhora Jean deu-lhe uma boa palmada nas costas; entre homens, claro!, não havia segredos... 

- Será esse o seu Troika? – perguntei a Antoine. 

- Silêncio... já verá – disse-me ele. – Uma vez cumpridos os ritos, estaremos muito confortavelmente, garanto-lhe que não nos voltarão a incomodar... De reto, gosto muito desse tipo de mulheres, devo-lhes muito... 

- Você, Antoine? 

- Sabe uma coisa, minha querida? Essas mulheres conhecem as mulheres melhor do que ninguém... 

- E então está tem-lhe sido útil?... 

- Venha dançar – disse-me ele, rindo. 

Do outro lado do barco, diante de um juke-box niquelado, havia uma pista reservada à dança; duas mulheres muito novas, muito magras, dançavam juntas com um ar aborrecido e cansado. 

- Figuração? – perguntei a Antoine. 

- Que ideia. É a moda, hoje em dia... aquele ar desinteressado. 

- Eu não falava do ar com que estão dançando... 

- Não lhe posso responder, mas creio que, aqui, seremos quem fará escândalo. Somos tão heterossexuais, minha querida... Paciência, tenha coragem... 

Antoine dançava com grande agilidade e, o que é raro, obedecendo ao ritmo da música. Comentei que ele não era muito alto, o que explicaria talvez que eu me sentisse sempre tão bem nos seus braços, tanto horizontal como verticalmente. Dançamos sem falar até que nos anunciaram que o nosso jantar estava pronto. 

Apesar do barulho, do fumo, do vaivém, senti-me muito repousada. Aqueles ritmos adormeciam o espírito e a dança sempre agiu em mim como um estupefaciente. 

- Você tinha razão, Antoine, gosto imenso deste local... já me sinto melhor. 

- É o cheiro do vício, minha querida amiga, para certos espíritos... 

O jantar foi encantador – uma fritura e vinho rosé – joelhos contra joelhos, olhos nos olhos, bebendo muito, comendo pouco. 

- Então, meus queridos, como vai esse pequeno rosé? 

- Você agradou a Madame Jean – disse-me Antoine. 

O coração humano é imprevisível, pois senti um verdadeiro prazer com a ideia de agradar àquela horrível mulher. 

Voltamos à pista de dança. Havia mais gente dançando, agora. Grupos de moças, grupos de homens. Tal como Antoine dissera, causamos sensação. 

- Geralmente não chegam a este ponto – murmurou ele –, lamento muito. 

- Mas estou imensamente divertida, Antoine. Não conhecia este gênero de lugar... Vem aqui muitas vezes? 

- Antigamente, sim... Gosto de falar com essas moças invertidas, já sei que isso passou de moda, mas gosto de variar a minha vida... 

- E os rapazes? 

- Não, minha querida, nada disso... o meu lado pederasta contenta-se perfeitamente com as mulheres um pouco viris. 

- Quererá dizer, com isso, que então elas é que são pederastas? 

- Exatamente. É maravilhoso conversar com uma mulher inteligente... 

Antoine beijou-me. 

- Mas então, e eu, Antoine, sou uma aberração? 

- Não, meu anjo, você... é uma festa... 

E acrescentou em voz baixa: 

- Uma festa deliciosa. 

- Espero que não me vá dizer que já foi para a cama com Madame Jean?... 

- Você deve estar louca! Que horror! De vez em quando, peço-lhe certos conselhos, receitas, assistir a demonstrações... Ela está sempre cercada por moças muito interessantes, sabe? 

- Demonstrações? 

- Por que não? 

- Mas você é um monstro de depravação, Antoine. 

- Claro que sou, minha doce amiga... mas juro-lhe que nunca me entreguei aos trabalhos práticos senão com senhoras da melhor sociedade... Essas são, de resto, as melhores mestras e devo confessar que, nesse aspecto, sempre me surpreenderam... 

Eu estava descobrindo, com uma mistura de horror e de fascinação, que o meu amante podia, quando desejava, transformar-se num verdadeiro safado, num depravado e num cínico obsceno. 

Em resumo, eu sonhava... 

Antoine apertou-me contra o seu corpo e, enchendo-me de carícias, continuava dançando em volta da pista. 

- Não acha que está muito calor? – perguntou. 

Já estou habituada a tomar essas perguntas como verdadeiras ordens e, assim, decidi que seria agradável ir dar uma volta lá fora. 

- Saia primeiro e espere-me junto do carro – disse Antoine. – Já vou ter consigo, não tenha medo. 

Encontrei-me de novo ao ar livre com um verdadeiro alívio e, como nos romances de amor, “bebi sofregamente a noite”. A lua, no zênite, apagava as sombras, os grilos vibravam, as rãs acompanhavam o ritmo como instrumentos de uma orquestra desafinada, uma coruja, de tempos a tempos, juntava-se àquela curiosa música fluvial. 

Antoine não tardou a vir ao meu encontro. Deu-me o braço e encaminhou-me lentamente para uma casa baixa que ficava a pouca distância. 

- É a casa de Madame Jean. Olhe – disse-me ele – não perdi meu tempo. 

Abrindo a mão, mostrou-me uma chave. 

Eu ficara completamente espantada, mas tentei escondê-lo. 

O quarto, forrado a cretone, tinha um aspecto do quarto de uma donzela distinta, com uma cama estreita, estantes de livros. 

Antoine apagou a luz, abriu as cortinas e os nossos amores só foram iluminados pelos raios da lua. 

Fiquei muito surpreendida, depois de sair daquele local e, sobretudo depois da conversa que tivéramos, de me encontrar nos braços de um jovem apaixonado, terno, quase casto, como que paralisado pelo desejo. Talvez tivesse bebido demasiado?... 

Em todo o caso, essas suas inibições, se é que eram inibições, não duraram muito, e Antoine depressa se entregou aos jogos mais variados, até ao momento em que, compreendendo que eu estava demasiado cansada para o acompanhar, se dedicou a me tornar feliz, apenas a mim, sem se preocupar com o seu próprio prazer. 

Adormeci – quanto tempo, não o saberei dizer – mas tive a surpresa de acordar no campo, ao luar, sob o olhar atento do meu amante que, encostado a um cotovelo, me espiava com ternura. 

Logo que me viu abrir os olhos, sorriu-me de uma forma encantadora, cobriu-me de beijos e foi compensado generosamente pela sua paciência e delicadeza. 

Impedi-o de dormir, quando foi a sua vez de sentir-se cansado. 

- Antoine, suplico-lhe, é horrível, já são quase quatro horas da manhã... tenho de regressar a Paris... Antoine! 

Vestiu-se, resmungando – mas depressa. A madrugada já lançava os seus tons pálidos sobre a paisagem. Ainda havia um outro carro perto do nosso, um T.T.X., e a música do juke-box acompanhava o primeiro canto dos pássaros. 

Another love, another spring. 

- Estão loucos – disse-me Antoine. 

O carro estava gelado. Antoine ligou o aquecimento. Encostei-me a ele. Antoine conduzia bem, mas muito devagar. 

- Não vejo o que quer que seja – disse ele. – Sinto-me quase cego de sono, é horrível. 

Cheguei a casa ao mesmo tempo que os primeiros madrugadores saíam para rua. 

- As nossas soirées são sempre diferentes – murmurou Antoine. – Em minha casa, conversamos muito, e depois vamos dormir na casa da boa Jean! Quando regressa esse marido? 

- Creio que amanhã à noite. Telefone-me antes do almoço... sim? Boa noite... 

- Claire? 

- Sim? 

- Oh! Nada... até amanhã, durma bem. 

O sol levantava-se. Eu deitei-me. 

Às sete e meia, as crianças acordaram-me para o desjejum. 

- Não me veio dar um beijo ontem à noite – queixou-se Michèle. 

- Vim, sim... mas a menina dormia. 

- Mas eu fiquei à espera tanto tempo... 

- Sejam bonzinhos – pedi-lhes. – Tomem o desjejum sem mim e não façam barulho. Dormi muito mal, esta noite... 

Às nove horas, fui acordada de novo, desta vez por Georges, que me telefonava de Londres para dizer que só regressaria amanhã à tarde. 

- Que tem você? – perguntou Georges. – Ouço-a tão mal. 

Com efeito, o fumo, a poeira, o álcool e o frio da madrugada haviam-me enrouquecido. 

- Estou um pouco rouca – respondi-lhe –, o tempo não tem estado grande coisa. 

Georges prometeu trazer-me um “remédio maravilhoso”. 

Quando Antoine telefonou, eu estava tão cansada que lhe disse que o meu marido acabara de chegar e que não lhe podia falar naquele momento... 

Maria deu-me um saco de água quente, uma xícara de chá, duas aspirinas. Decidi ficar todo o dia na cama. 

- Madame quer ver as flores que recebeu ontem à noite? 

Maria trouxe-me uma pequena corbeille de flores campestres. 

- Não trouxeram nenhum cartão? 

- Trouxeram, sim, Madame. Está ali sobre a lareira do seu quarto. Não o viu, Madame? 

- Obrigada, Maria... 

Abri o envelope: 

“Não ousando prever o futuro, ainda não sei se estas humildes flores servirão de desculpa para uma noite mal passada, ou se me permitirão, pelo contrário, dizer-lhe, minha querida amiga, quanto lhe agradeço a sua existência... Peço-lhe que decida você própria.” 

- Don Juan... – murmurei. 

As férias haviam terminado. 

Adormeci de novo. 





(O amante dos cinco dias; tradução de Fernando de Castro Ferro)




(Ilustração: Leonid Afremov - Moment of passion)






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