domingo, 30 de junho de 2019

OS PRAZERES DO ÓPIO, de Thomas De Quincey





Faz tanto tempo que tomei ópio pela primeira vez que, se tivesse sido um acontecimento insignificante na minha vida, já teria esquecido a data. Mas acontecimentos decisivos não são para ser esquecidos, e, a partir de circunstâncias a ele ligadas, deve ter ocorrido durante o outono de 1804. Nessa época eu estava em Londres por curto tempo após ter ingressado na universidade. Meu primeiro contato com o ópio aconteceu da seguinte maneira: 

Desde minha infância, acostumei-me a lavar a cabeça em água fria pelo menos uma vez por dia. Tendo sido atacado repentinamente por uma dor de dentes, que logo atribuí a alguma nevralgia que a falta dessa prática havia causado, pulei da cama, enfiei a cabeça em uma bacia de água fria, e com os cabelos ainda molhados voltei a dormir. Na manhã seguinte, nem é preciso dizer, acordei com dores reumáticas excruciantes na cabeça e no rosto, das quais não tive o menor alívio durante vinte dias. No vigésimo primeiro dia, acho que deveria ser isso mesmo e creio que era um domingo, saí pelas ruas, mais para fugir, se possível, das minhas dores, do que com um propósito determinado. Casualmente encontrei um conhecido da universidade que recomendou-me o ópio. Ópio! O terrível agente de inimagináveis prazeres e dores! Havia ouvido falar dele como de maná e ambrosia, mas nada mais além disso. Que som sem significado era essa palavra naquele tempo, e que acordes sonoros ela faz soar agora em meu coração! Que vibrações de terremoto nas minhas lembranças felizes e tristes! Voltando à narrativa, sinto uma importância mística pelos menores detalhes ligados ao lugar, ao tempo e ao homem (se é que ele era um homem) que pela primeira vez me abriram o paraíso dos comedores de ópio. Era uma tarde de domingo, chuvosa e desanimada. Há poucos espetáculos mais entediantes neste planeta do que um domingo chuvoso em Londres. Meu caminho de volta para casa deveria passar por Oxford-street, e perto do Pantheon vi uma farmácia aberta. O farmacêutico, ministro inconsciente de prazeres celestiais, como em harmonia com o domingo chuvoso, parecia insípido e estúpido, exatamente como qualquer farmacêutico mortal esperaria parecer em um domingo. E, quando pedi a tintura de ópio, serviu-me como qualquer outro homem teria feito. Além disso, devolveu-me meio pence em cobre como troco da minha moeda de um shilling, tirada de uma caixa de madeira. Contudo, apesar dessas indicações de cotidianidade, ele desde então passou a existir em minha mente como a visão beatífica de um farmacêutico imortal, mandado à Terra especialmente para nos encontrarmos. Há coisas que confirmam minhas considerações sobre ele, pois, quando voltei a Londres em seguida, tentei encontra-lo perto do Pantheon e não consegui: a mim, que não sabia seu nome (se é que ele tinha um), parecia-me que ele havia se mudado de alguma forma natural. O leitor pode pensar nele como possivelmente nada mais do que um farmacêutico sem paradeiro. Pode ser que assim seja, mas minha fé é maior: acredito que ele tenha desaparecido ou evaporado. Nenhuma de minhas lembranças mortais é superior àquela, como a hora, o lugar, e a pessoa que me pôs em contato pela primeira vez com a droga celestial. 

Chegando às minhas acomodações, pode-se imaginar que não perdi tempo algum em tomar a quantidade prescrita. Eu era evidentemente um ignorante na arte e nos mistérios do ópio, e o que tomei, tomei sob todas as desvantagens. Mas tomei, e dentro de uma hora, oh céus, que revolução! Que ascensão dos mais profundos abismos do meu espírito! Um apocalipse do mundo dentro de mim! O ter-me aliviado das minhas dores era agora insignificante diante de meus olhos: todo aspecto negativo foi tragado pela imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente revelada. Havia encontrado uma panaceia para todos os males humanos: aqui estava o segredo da felicidade, sobre a qual os filósofos haviam discutido durante anos. A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio. Mas, falando desse modo, o leitor poderá pensar que estrou brincando. Posso assegurar, entretanto, que ninguém brincará muito tempo quando estiver mexendo com o ópio. Até seus prazeres têm um caráter grave e solene, e seu estado mais feliz não apresentará o comedor de ópio no papel do Allegro: mesmo assim ele pensa e fala como Il Penseroso[*]. Entretanto, tenho o mau costume de gracejar de vez em quando em meio à minha própria miséria e, a menos que seja atingido por sentimentos mais poderosos, temo ser culpado desta prática indecente até nestes anais de sofrimento e prazer. O leitor deve lembrar-se da minha natureza insegura a esse respeito, mas com alguma tolerância me esforçarei por ser sério, se não sonolento, como pede um assunto como o ópio, tão solene como ele realmente é e tão sonolento como é falsamente reputado. 

Inicialmente, uma palavra a respeito dos seus efeitos, pois tudo aquilo que já foi escrito sobre ópio, seja por viajantes vindos da Turquia (que podem usar seu privilégio de mentir como um direito imemorial), ou por professores de medicina escrevendo ex-cathedra – só tenho uma crítica a fazer – mentiras, mentiras, mentiras! Lembro-me agora que, ao passar por uma livraria, li estas palavras nas páginas de algum autor satírico: “Hoje em dia, estou convencido de que os jornais londrinos dizem a verdade pelo menos duas vezes por semana, isto é, às terças-feiras e aos sábados, e posso me basear nas... listas de falências”. Da mesma maneira não irei negar que algumas verdades foram enviadas para o mundo a respeito do ópio, assim como os eruditos afirmaram repetidamente que o ópio tem uma cor marrom escura, e com isso, notem, eu concordo. Disseram que é bem caro; com o que também concordo, pois em meu tempo o ópio indiano custava três guinéus a libra, e o turco, oito. Também disseram os eruditos que se você comer uma grande parte dele provavelmente morrerá, o que é particularmente desagradável para qualquer homem de hábitos regulares. Todas essas pesadas afirmações são realmente verdadeiras; não posso negá-las, e a verdade sempre foi e será recomendável. Mas, com esses três teoremas, acreditou-se que esgotamos todo o estoque de conhecimento até agora acumulado pelo homem a respeito do ópio. E, entretanto, dignos doutores, permitam-me sair a público para falar sobre o assunto. 

Inicialmente, é mais admitido do que realmente comprovado, por todos aqueles que falam do ópio, formalmente ou acidentalmente, que ele cause ou possa causar intoxicação. Agora, leitor, estejais certo de que nenhuma quantidade de ópio jamais intoxicou ou poderia ter intoxicado. Quanto à tintura de ópio (conhecida comumente como láudano), ela pode certamente intoxicar se um homem tomar grandes quantidades; mas é porque ela contém muito álcool, e não porque contenha ópio. O ópio cru, afirmo peremptoriamente, é incapaz de produzir qualquer estado físico ao menos semelhante àqueles produzidos pelo álcool, e não apenas quanto ao grau mas também quando à qualidade; não é apenas a quantidade de seus efeitos, mas a qualidade que é completamente nova. Os prazeres oferecidos pelo vinho são sempre crescentes e tendem a uma crise, depois da qual eles decaem. Quanto ao ópio, uma vez ingerido, seu efeito demora de oito a dez horas; inicialmente, roubando uma distinção técnica à medicina, é um caso de prazer agudo; depois de prazer crônico. Um é uma chama, o outro apenas um brilho permanente e imutável. Mas a principal diferença está em que, de certa maneira, o vinho perturba as funções mentais; o ópio, ao contrário (se tomado de maneira correta), acrescenta a elas as ordens mais especiais, leis e harmonia. O vinho rouba a autodeterminação, e o ópio revigora grandemente. O vinho embaça e confunde os julgamentos, além de dar um brilho antinatural e exaltar as admirações e desprezos, os amores e os ódios do bebedor. O ópio, ao contrário, dá serenidade e harmonia a todas as faculdades, ativas ou passivas; e com respeito pela índole e sentimentos morais em geral, simplesmente fornece aquele calor vital que é aprovado pelo julgamento e que provavelmente sempre acompanhou a constituição física de uma saúde antediluviana ou ancestral. Assim, por exemplo, tanto o vinho como o ópio causam uma expansão do coração e dos atos benevolentes, mas com uma sensível diferença, pois, na rápida expansão da bondade que acompanha as inebriações, há quase sempre um caráter que expõe o conteúdo de tantas afeições. Os homens trocam apertos de mão, juram fidelidade eterna e derramam lágrimas – sem que nenhum mortal saiba a razão: e a criatura sensual está claramente sobressaindo. Mas a expansão dos sentimentos benignos, causada pelo ópio, não se apresenta em um acesso febril, mas como uma saudável volta àquele estado de espírito que se segue à remoção de uma antiga dor ou irritação, um incômodo que perturbou e criou tensão entre os impulsos originalmente justos e bons do coração. A verdade é que, mesmo o vinho, até uma certa medida, e em determinados homens, geralmente tende a exaltar e sustentar o intelecto; eu mesmo, que nunca fui um grande bebedor de vinho, costumava achar que meia dúzia de copos de vinho afetava vantajosamente as minhas faculdades, deixava a consciência mais brilhante e intensa, e dava à mente um sentimento de ser ponderibus librata suis. Certamente é um absurdo dizer, usando a linguagem popular, que o homem se disfarça com o álcool, pois, ao contrário, maioria se disfarça com a sobriedade; e é quando estão bêbados (como alguns antigos cavalheiros dizem em Athenaeus) que se colocam de acordo com a verdadeira complexidade de seus caracteres, o que certamente não é o mesmo que se disfarçar. Mas, ainda, o vinho costuma levar um homem ao extremo do absurdo e da extravagância, e, depois de um certo ponto, ele com certeza evapora e dispersa as energias intelectuais, onde o ópio parece sempre compor o que estava agitando e concentrar o que estava diluído. Resumindo, um homem que está bêbado é, e sente que é, um indivíduo cuja condição apresenta a supremacia do simplesmente humano, frequentemente a parte brutal de sua natureza; mas o comedor de ópio (falo aqui daquele que não está sofrendo nenhuma doença causada por algum efeito do ópio) sente que está sob o domínio da parte mais divina de seu ser, isto é, as afeições estão em completa serenidade e acima de tudo brilha a luz do majestoso intelecto. 




(Confissões de um comedor de ópio; tradução de Ibañez Filho) 




[*] Allegro e Il Penseroso são dois poemas líricos do poeta inglês John Milton (1608-74), que descrevem os prazeres da Alegria e da Melancolia, encarada não como estado emocional de abatimento ou tristeza, mas estado psicológico de reflexão contemplativa. (Nota do blog) 



(Ilustração: Aquira Kusume - opium eater)



quinta-feira, 27 de junho de 2019

SEHNSUCHT NACH DEM TODE / DESEJANDO A MORTE, de Novalis






Hinunter in der Erde Schooß,

Weg aus des Lichtes Reichen,

Der Schmerzen Wuth und wilder Stoß

Ist froher Abfahrt Zeichen.

Wir kommen in dem engen Kahn

Geschwind am Himmelsufer an.

Gelobt sey uns die ewge Nacht,

Gelobt der ewge Schlummer.

Wohl hat der Tag uns warm gemacht,

Und welk der lange Kummer.

Die Lust der Fremde ging uns aus,

Zum Vater wollen wir nach Haus.

Was sollen wir auf dieser Welt

Mit unsrer Lieb' und Treue.

Das Alte wird hintangestellt,

Was soll uns dann das Neue.

O! einsam steht und tiefbetrübt,

Wer heiß und fromm die Vorzeit liebt.

Die Vorzeit wo die Sinne licht

In hohen Flammen brannten,

Des Vaters Hand und Angesicht

Die Menschen noch erkannten.

Und hohen Sinns, einfältiglich

Noch mancher seinem Urbild glich.

Die Vorzeit, wo noch blüthenreich

Uralte Stämme prangten,

Und Kinder für das Himmelreich

nach Quaal und Tod verlangten.

Und wenn auch Lust und Leben sprach,

Doch manches Herz für Liebe brach.

Die Vorzeit, wo in Jugendglut

Gott selbst sich kundgegeben

Und frühem Tod in Liebesmuth

Geweiht sein süßes Leben.

Und Angst und Schmerz nicht von sich trieb,

Damit er uns nur theuer blieb.

Mit banger Sehnsucht sehn wir sie

In dunkle Nacht gehüllet,

In dieser Zeitlichkeit wird nie

Der heiße Durst gestillet.

Wir müssen nach der Heymath gehn,

Um diese heilge Zeit zu sehn.

Was hält noch unsre Rückkehr auf,

Die Liebsten ruhn schon lange.

Ihr Grab schließt unsern Lebenslauf,

Nun wird uns weh und bange.

Zu suchen haben wir nichts mehr -

Das Herz ist satt - die Welt ist leer.

Unendlich und geheimnißvoll

Durchströmt uns süßer Schauer -

Mir däucht, aus tiefen Fernen scholl

Ein Echo unsrer Trauer.

Die Lieben sehnen sich wohl auch

Und sandten uns der Sehnsucht Hauch.

Hinunter zu der süßen Braut,

Zu Jesus, dem Geliebten -

Getrost, die Abenddämmrung graut

Den Liebenden, Betrübten.

Ein Traum bricht unsre Banden los

Und senkt uns in des Vaters Schooß.



Tradução de Orlando Ferreira:

No seio da terra!

Fora dos domínios da Luz!

As dores da Morte nada mais são

Que a partida, romper-se de grilhões!

Rapidamente, num barco esguio,

Rapidamente navegamos para a costa do Céu!

Bendita seja a Noite eterna,

E bendito o Sono sem fim!

Somos abrasados pelo dia luminoso,

E ressecados pelo tédio!

Estamos cansados da vida que dura:

Venha, agora iremos para casa, para Deus!

Para que permanecer neste mundo sublunar?

Para que nutrir o amor e a verdade aqui?

Se o que é antigo está muito além -

Para nós o novo deve perecer!

Aquele que ama o passado com piedade ardente

Está sozinho, amargurado, em exílio.

Porém, como o espírito humano, o passado

Elevou-se em chamas sublimes;

Onde os homens herdaram do Pai,

O dom de reconhecer sua face;

E, em simplicidade perfeita

Muitos tornaram-se seu arquétipo.

O Passado em rica florescência, no qual

Antigos troncos geraram o fruto glorioso;

E as crianças em busca do mundo futuro,

Buscaram a vitória sobre a dor e a morte;

E, apesar da vida e do prazer fenecerem,

Muitos corações partiram-se de amor.

O Passado no qual o próprio Deus possuiu

O vigor da juventude;

E enfrentou a morte prematura, por amor à verdade

Que os jovens contemplaram, e ousaram -

Enfrentar com paciência a angústia e a tortura

Para provar que o amavam.

Agora vemos com inquietação ansiosa

Aquele passado envolto em trevas;

Com a água deste mundo

Nunca poderemos matar nossa sede:

Precisamos retornar à nossa antiga morada

E conhecer aquele tempo abençoado de novo.

E o que impediria nosso retorno?

Já que repousam aqueles que amamos!



Sua sepultura é o limite de nossas vidas;

Nós recusamos com repugnância esta época odiosa!

Não somos enganados por nenhuma esperança:

O coração está pleno; o mundo vácuo!

Infinito e misterioso,

Vibra em mim um doce tremor,

Como se na distância ecoasse

Um sinal, semelhante ao nosso lamento:

Os amados esperam, assim como eu,

Enviam seu suspiro de saudade.

Abaixo, para a noite amorosa, e mais além

Para o amado Jesus!

Coragem! as sombras do entardecer tornam-se em cinzas,

Assim como nossos planos, e nos acalmam!

Um sonho romperá nossos grilhões,

E nos abrigará no coração do Pai.





(Hymnen an die Nacht / Hinos à noite - 1799/1800)



(Ilustração: Gustav René Hocke - deutsches réquiem)



segunda-feira, 24 de junho de 2019

A IRREPARÁVEL FUGA DO TEMPO, de Dino Buzzati




A noite já havia descido por completo. Drogo estava sentado no quarto desnudo do reduto e mandara vir papel, tinta e caneta para escrever. 

"Querida mamãe", começou, e imediatamente sentiu-se como quando era criança. Sozinho, à luz de um lampião, sem que ninguém o visse, no coração do forte para ele desconhecido, longe de casa, de todas as coisas familiares e boas, parecia-lhe um consolo poder, pelo menos, abrir completamente o seu coração. 

Claro, com os outros, com os colegas oficiais, devia comportar-se como um homem, devia rir com eles e contar histórias ousadas sobre militares e mulheres. A quem mais, senão à sua mãe, podia dizer a verdade? E a verdade de Drogo naquela noite não era uma verdade de soldado valente, talvez não fosse digna do austero forte, os companheiros teriam rido dela. A verdade era o cansaço da viagem, a opressão dos muros sombrios, o sentir-se completamente só. 

"Cheguei esgotado após dois dias de viagem", era o que escreveria, "e ao chegar soube que, se quisesse, poderia voltar à cidade. O forte é triste, não há povoados por perto, não há nenhuma diversão e nenhuma alegria." Era o que iria escrever. 

Mas Drogo lembrou-se da mãe, àquela hora ela estaria pensando justamente nele, consolando-se com a ideia de que o filho passava seu tempo alegremente com amigos simpáticos, quem sabe em agradável companhia. Ela certamente acreditava que ele estivesse contente e sereno. 

"Querida mamãe", sua mão escreveu. "Cheguei anteontem após ótima viagem. O forte é grandioso..." Ah, fazê-la entender a esqualidez daqueles muros, aquele vago ar de punição e exílio, aqueles homens desconhecidos e absurdos... Ao contrário: "Os oficiais daqui me acolheram afetuosamente", escrevia. "Também o ajudante-mor de primeira foi muito gentil e deixou-me completamente livre para voltar à cidade se quisesse. Contudo eu..." 

Talvez naquele momento a mãe andasse pelo seu quarto abandonado, abrisse uma gaveta, pusesse em ordem algumas velhas roupas, os livros, a escrivaninha; já os arrumara muitas vezes, mas parecia-lhe desse modo reencontrar um pouco a presença viva dele, como se ele fosse regressar, como de costume, antes do jantar. Parecia-lhe estar ouvindo o conhecido rumor de seus passos curtos e irrequietos, como se estivessem sempre preocupados com algo. Como ia ter coragem de amargurá-la? Se estivesse junto dela, no mesmo quarto, abrigado sob o teto familiar, aí, sim, Giovanni lhe diria tudo e ela nem teria tempo de afligir-se, pois ele estaria ao seu lado e o mau bocado já teria passado. Mas assim de longe, por carta? Sentado ao lado dela, diante da lareira, na tranquilizadora calma da velha casa, aí, sim, lhe falaria do major Matti e de suas insidiosas blandícias, das manias de Tronk! Diria que tinha sido tolo em aceitar permanecer quatro meses, e provavelmente ambos ririam disso tudo. 

Mas como fazer, assim de longe? 

"Contudo", escrevia Drogo, "achei bom para mim e para minha carreira ficar algum tempo por aqui... A companhia também é muito simpática, o serviço é fácil e nada cansativo." E o seu quarto, o barulho da cisterna, o encontro com o capitão Ortiz e a desolada terra do norte? Não devia explicar-lhe os férreos regulamentos da guarda, no simples reduto em que se encontrava? Não, nem mesmo com a mãe podia ser sincero, nem mesmo a ela podia confessar os obscuros temores que não o deixavam em paz. 

Em sua casa, na cidade, os relógios, um após outro, com toques diferentes, marcavam agora dez horas, as badaladas faziam tinir levemente os copos nas cristaleiras, da cozinha chegava um eco de risada, do outro lado da rua, um toque de piano. Através de uma estreitíssima janela, quase uma vigia, do lugar onde estava sentado, Drogo podia dar uma olhada em direção ao vale do norte, aquela terra desolada; mas agora só se enxergava a escuridão. A caneta arranhava um pouco. Embora a noite triunfasse, o vento começava a soprar por entre as ameias, trazendo desconhecidas mensagens, ainda que dentro do reduto se amontoassem, densas, as trevas, e o ar estivesse úmido e desagradável, "em suma estou muito contente", escrevia Giovanni Drogo. 

Das nove horas da noite até o amanhecer, a cada meia hora um sino tocava no quarto reduto, na extremidade direita do desfiladeiro, onde terminavam as muralhas. Soava um pequeno sino, e logo a última sentinela chamava o companheiro mais próximo; desta ao soldado seguinte e assim por diante, até a extremidade oposta das muralhas, de reduto em reduto, através do forte e ainda ao longo dos bastiões, o chamado corria na noite. "Alerta, alerta!" As sentinelas não punham nenhum entusiasmo no grito, repetiam-no mecanicamente, com estranhos timbres na voz. 

Deitado na cama, sem ter-se despido, Giovanni Drogo, tomado por um crescente torpor, ouvia de vez em quando sobrevir de longe aquele grito. "Aé... aé... aé...", chegava-lhe apenas. Tornava-se cada vez mais forte, passava-lhe por cima, com a máxima intensidade, distanciava-se pelo outro lado, caindo pouco a pouco no nada. Dois minutos depois, ei-lo de volta, reenviado, como contraprova, pelo primeiro fortim à esquerda. Drogo escutava-o ainda aproximar-se, a passos lentos e iguais, "aé. , . aé... aé..." Apenas quando estava sobre ele, repetido por suas sentinelas, conseguia distinguir a palavra. Mas logo o "alerta" confundia-se, numa espécie de lamento que morria finalmente na última sentinela, contra o pedestal dos despenhadeiros. 

Giovanni ouviu chegar o chamado quatro vezes e quatro vezes tornar a descer a orla do forte até o ponto de onde partira. Na quinta vez, chegou à consciência de Drogo apenas uma vaga ressonância, que lhe provocou um breve sobressalto. Veio-lhe à mente que não ficava bem, para o oficial de guarda, dormir; o regulamento o permitia com a condição de não se despir, mas quase todos os oficiais jovens do forte, por uma espécie de elegante altivez, permaneciam acordados a noite inteira, lendo, fumando charutos, visitando abusivamente um ao outro e jogando baralho. Tronk, a quem antes Giovanni pedira informações, dera-lhe a entender que era de bom tom ficar acordado. 

Estirado na cama, fora da zona iluminada pelo lampião de querosene, enquanto devaneava sobre a própria vida, Giovanni Drogo foi repentinamente invadido pelo sono. Entretanto, justamente aquela noite — oh, se o soubesse, talvez não tivesse vontade de dormir —, justamente aquela noite iria começar para ele a irreparável fuga do tempo. 

Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem. Caminha-se placidamente, olhando com curiosidade ao redor, não há necessidade de se apressar, ninguém empurra por trás e ninguém espera, também os companheiros procedem sem preocupações, detendo-se frequentemente para brincar. Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas. 

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retomasse despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente. 

Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar. 

A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar. Mas Giovanni Drogo, naquele momento, dormia, inocente, e sorria no sono, como fazem as crianças. 

Passarão alguns dias antes que Drogo entenda o que aconteceu. Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro. Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte. 

Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça. 

Até Drogo ficar completamente sozinho e no horizonte surgir a estria de um imensurável mar parado, cor de chumbo. Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta. 

Giovanni Drogo agora dorme no interior do terceiro reduto. Ele sonha e sorri. São as últimas vezes que chegarão até ele, na noite, as suaves imagens de um mundo completamente feliz. Ai, se pudesse ver a si mesmo, como estará um dia, lá onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um fio de erva, tudo assim desde um tempo imemorável. 





(O deserto dos Tártaros; tradução de Homero Freitas de Andrade) 



(Ilustração: Livia Valente, O Fluir da Vida)



sexta-feira, 21 de junho de 2019

TERRA FERMA / TERRA FIRME, de Carles Vicent Siscar





Ets just al meu costat.

Perquè tot es desperta.

I creixen atzars i resplendors

a la punta de l’arbre del temps.

Amb tu,

tot lluu per la boca oberta.

Tot pren cos i vida remorosa.

Com un sonall de signes, s’agita, respira,

i s’acobla, carn endins.





Tradução de Lígia Dabul:



Estás justamente ao meu lado.

Porque tudo se desperta.

E crescem acasos e resplendores

na ponta da árvore do tempo.

Contigo,

tudo brilha pela boca aberta.

Tudo toma corpo e vida rumorosa.

Como um chocalho de signos, se agita, respira,

e se acopla, carne adentro.





(Carn endins; 2011)



(Ilustração: Mickelina Mancini – obencrage)





terça-feira, 18 de junho de 2019

O CONTRABANDISTA, de João Simões Lopes Neto





Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí. 

Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiunos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!... 

Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá́ o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. 

Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe. 

Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas. 

Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro. 

Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero. 

Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!... 

Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán... 

Era um pagodista! 

Aqui há poucos anos — coitado! — pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo. 

A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha — pro caso, uma moça —, que era o — santo- antoninho-onde-te-porei! — daquela gente toda. 

E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila. 

E noiva, casadeira, já era. 

E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. 

O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo. 

O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha. 

Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu... 

Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro. 

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. 

Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados. 

Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito. 

Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea! 

Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!... 

Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!. 

Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros... 

Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam. 

Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... 

Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! 

Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis... 

Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!... 

E logo com quem!... Com a gauchada!... 

Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas cousas. 

Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro. 

Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase. 

Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam... 

Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas. 

Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados. 

A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo... 

Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!... 

Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se. 

Rompeu a guerra do Paraguai. 

O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!... 

Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca! 

Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui... 

Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas... 

Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje. 

O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi. 

Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha. 

Passou o dia; passou a noite. 

No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada. 

Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá. 

Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala. 

Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados. 

A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer. 

Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo. 

Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios. 

Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera. 

As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam. 

Entardeceu. 

Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela — tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente. 

A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos... 

E rindo e chorando estava, sem saber porquê... sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro: 

— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!... 

Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva... 

Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. 

E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo. 

E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos. 

Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado... 

Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada... 

Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse: 

— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo! 

A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o. 

Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira... 

Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!... 

Então rompeu o choro na casa toda. 



(Ilustração: Natasha Wright - sem foco)




sábado, 15 de junho de 2019

CATARINA TO CAMOENS / CATARINA A CAMÕES, de Elizabeth Barrett Browning






I



ON the door you will not enter,

I have gazed too long: adieu!

Hope withdraws her peradventure;

Death is near me, — and not you .

Come, O lover,

Close and cover

These poor eyes, you called, I ween,

" Sweetest eyes were ever seen!"



II



When I heard you sing that burden

In my vernal days and bowers,

Other praises disregarding,

I but hearkened that of yours —

Only saying

In heart-playing,

" Blessed eyes mine eyes have been,

If the sweetest HIS have seen!"



III



But all changes. At this vesper,

Cold the sun shines down the door.

If you stood there, would you whisper

" Love, I love you," as before, —

Death pervading

Now, and shading

Eyes you sang of, that yestreen,

As the sweetest ever seen?



IV



Yes. I think, were you beside them,

Near the bed I die upon,

Though their beauty you denied them,

As you stood there, looking down,

You would truly

Call them duly,

For the love's sake found therein,

" Sweetest eyes were ever seen."



V



And if you looked down upon them,

And if they looked up to you ,

All the light which has forgone them

Would be gathered back anew:

They would truly

Be as duly

Love-transformed to beauty's sheen,

" Sweetest eyes were ever seen."



VI



But, ah me! you only see me,

In your thoughts of loving man,

Smiling soft perhaps and dreamy

Through the wavings of my fan;

And unweeting

Go repeating,

In your reverie serene,

" Sweetest eyes were ever seen — "



VII



While my spirit leans and reaches

From my body still and pale,

Fain to hear what tender speech is

In your love to help my bale.

O my poet,

Come and show it!

Come, latest love, to glean

" Sweetest eyes were ever seen."



VIII



O my poet, O my prophet,

When you praised their sweetness so,

Did you think, in singing of it,

That it might be near to go?

Had you fancies

From their glances,

That the grave would quickly screen

" Sweetest eyes were ever seen"?



IX



No reply. The fountain's warble

In the courtyard sounds alone.

As the water to the marble

So my heart falls with a moan

From love-sighing

To this dying.

Death forerunneth Love to win

" Sweetest eyes were ever seen."



X



Will you come? When I'm departed

Where all sweetnesses are hid,

Where thy voice, my tender-hearted,

Will not lift up either lid.

Cry, O lover,

Love is over!

Cry, beneath the cypress green,

" Sweetest eyes were ever seen!"



XI



When the angelus is ringing,

Near the convent will you walk,

And recall the choral singing

Which brought angels down our talk?

Spirit-shriven

I viewed Heaven,

Till you smiled — " Is earth unclean,

Sweetest eyes were ever seen?"



XII



When beneath the palace-lattice

You ride slow as you have done,

And you see a face there that is

Not the old familiar one, —

Will you oftly

Murmur softly,

" Here ye watched me morn and e'en,

Sweetest eyes were ever seen!"



XIII



When the palace-ladies, sitting

Round your gittern, shall have said,

" Poet, sing those verses written

For the lady who is dead,"

Will you tremble

Yet dissemble, —

Or sing hoarse, with tears between,

" Sweetest eyes were ever seen?"



XIV



" Sweetest eyes!" how sweet in flowings

The repeated cadence is!

Though you sang a hundred poems,

Still the best one would be this.

I can hear it

'Twixt my spirit

And the earth-noise intervene —

" Sweetest eyes were ever seen!"



XV



But the priest waits for the praying,

And the choir are on their knees,

And the soul must pass away in

Strains more solemn-high than these.

Miserere

For the weary!

Oh, no longer for Catrine

" Sweetest eyes were ever seen!"



XVI



Keep my riband, take and keep it,

(I have loosed it from my hair)

Feeling, while you overweep it,

Not alone in your despair,

Since with saintly

Watch unfaintly

Out of heaven shall o'er you lean

" Sweetest eyes were ever seen."



XVII



But — but now — yet unremoved

Up to heaven, they glisten fast;

You may cast away, Beloved,

In your future all my past:

Such old phrases

May be praises

For some fairer bosom-queen —

" Sweetest eyes were ever seen!"



XVIII



Eyes of mine, what are ye doing?

Faithless, faithless, — praised amiss

If a tear be of your showing,

Dropt for any hope of HIS !

Death has boldness

Besides coldness,

If unworthy tears demean

" Sweetest eyes were ever seen."



XIX



I will look out to his future;

I will bless it till it shine.

Should he ever be a suitor

Unto sweeter eyes than mine,



Sunshine gild them,

Angels shield them,

Whatsoever eyes terrene

Be the sweetest HIS have seen!



Tradução de Fernando Pessoa:



I



Para a porta onde não surges nem me vês

Há muito tempo que olho já em vão.

A esperança retira o seu talvez;

Aproxima-se a morte, mas tu não.

Amor, vem

Fechar bem

Estes olhos de que dissestes ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos.



II



Quando te ouvi cantar esse bordão

Nos meus de primavera alegres dias;

Todo alheio louvar tendo por vão

Só dava ouvidos ao que tu dizias

- Dentro em mim

Dizendo assim:

"Ditosos olhos de que disse ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos."



III



Mas tudo muda. Nesta tarde fria

O sol bate na porta sem calor.

Se estivesse aí murmuraria

Como dantes tua voz - "amo-te, amor";

A morte chega

E já cega

Os olhos que ontem eram teus desvelos 

O lindo ser dos vossos olhos belos.



IV



Sim. Creio que se a vê-los te encontrasses

Agora, ao pé do leito em que me fino,

Ainda que a beleza lhes negasses,

Só pelo amor que neles eu defino

Com verdade

E ansiedade

Repetirias, meu amor, ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos.



V



E se neles pusesse teu olhar

E eles pusessem seu olhar no teu,

Toda a luz que começa a lhes faltar

Voltaria de pronto ao lugar seu.

Com verdade

E ansiedade

Dir-se-ia como tu disseste ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos.



VI



Mas - ai de mim! - tu não me vês senão

Nos pensamentos teus de amante ausente,

E sorrindo talvez, sonhando em vão,

Trás o abanar do leque levemente;

E, sem pensar,

Em teu sonhar

Iras talvez dizendo sempre ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos,



VII



Enquanto o meu espírito se debruça

Do meu pálido corpo sucumbido,

Ansioso de saber que falas usa

Teu amor pra meu espírito ferido,

Poeta, vem

Mostrar bem

Que amor trazem aos olhos teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



VIII



Ó meu poeta, ó meu profeta, quando

Destes olhos louvaste o lindo ser,

Pensaste acaso, enquanto ias cantando,

Que isso já estava prestes de morrer?

Seus olhares

Deram-te ares

De que breve podias não mais vê-los,

O lindo ser dos vossos olhos belos.



IX



Ninguém responde. Só suave, defronte,

No pátio a fonte canta em solidão,

E como água no mármore da fonte,

Do amor pra a morte cai meu coração.

E é da sorte

Que seja a morte

E não o amor, que ganhe os teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos!



X



E tu nunca virás? Quando eu me for

Onde as doçuras estão escondidas,

E onde a tua voz, ó meu amor,

Não me abrirá as pálpebras descidas,

Dize, amo meu,

"O amor, morreu!"

Sob o cipreste chora os teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



XI



Quando o angelus toca à oração,

Não passarás ao pé deste convento,

Lembrando-te, a chorar, do cantochão

Que anjos nos traziam do firmamento?

No ardor meu

Eu via o céu

E tu: "O mundo é vil, ó meus desvelos,

Ao lindo ser dos vossos olhos belos?"



XII



Devagar quando, do palácio ao pé,

Cavalgares, como antes, suave e rente,

E ali vires um rosto que não é

O que vias ali antigamente,

Dirás talvez

"Tanta vez

Me esperaste aqui, ó meus desvelos

Ó lindo ser dos vossos olhos belos!"



XIII



Quando as damas da corte, arfando os peitos,

Te disserem, olhando o gesto teu,

"Canta-nos, poeta, aqueles versos feitos

Àquela linda dama que morreu",

Tremerás?

Calar-te-ás?

Ou cantarás, chorando, os teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos?



XIV



"Lindo ser de olhos belos!" Suaves frases

E deliciosas quando eu as repito!

Cem poesias outras que cantasses,

Sempre nesta a melhor terias dito.

Sinto-a calma

Entre a minha alma

E os rumores da terra ? pesadelos:

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



XV



Mas reza o padre junto à minha face,

E o coro está de joelhos todo em prece,

E é forçoso que a alma minha passe

Entre cantos de dor, e não como esse.

Miserere

P'los que fere

O mundo, e pra Natércia, os teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



XVI



Guarda esta fita que te mando

(Tirei-a dos cabelos para ti).

Sentir-te-ás, quando o teu choro arda,

Acompanhado na tua dor por mi;

Pois com pura

Alma imperjura

Sempre do céu te olharão teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



XVII



Mas agora, esta terra inda os prendendo,

Desses olhos o brilho é inda alado...

Amor, tu poderás encher, querendo,

Teu futuro de todo o meu passado,

E tornar

A cantar

A outra dama ideal dos teus desvelos:

O lindo ser dos vossos olhos belos.



XVIII



Mas que fazeis, meus olhos, ó perjuros!

Perjuros ao louvor que ele vos deu,

Se esta hora mesmo vos não mostrais puros

De lágrima que acaso vos encheu?

Será forte

Choro ou morte

Se indignos os tornar de teus desvelos

- O lindo ser dos vossos olhos belos.



XIX



Seu futuro encherá meu spírito alado

No céu, e abençoá-lo-ei dos céus.

Se ele vier a ser enamorado

De olhos mais belos do que os olhos meus,

O céu os proteja,

Suave lhes seja

E possa ele dizer, sincero, ao vê-los:

O lindo ser dos vossos olhos belos.



(Fernando Pessoa Obra Poética)


(Ilustração: Nuno Goncalves - paineis de São Vicente de Fora)




quarta-feira, 12 de junho de 2019

UMA MULHER BAIXINHA, de Franz Kafka




É uma mulher baixinha; bem esguia de nascença, mesmo assim seu corpete é fortemente amarrado; eu a vejo sempre no mesmo vestido, ele é de tecido cinzento-amarelado, de certo modo um tom de madeira, e é um pouco provido de borlas ou apliques em forma de botão que são da mesma cor; ela está sempre sem chapéu, seus cabelos louro-embotados são lisos e não exatamente desajeitados, mas mantidos bem soltos. Embora tenha o corpete sempre bem amarrado, ela se movimenta com desenvoltura, e inclusive exagera nessa mobilidade, gosta de botar as mãos à cintura e mover o tronco para o lado com um meneio de modo surpreendentemente rápido. Sou capaz de reproduzir a impressão que sua mão causa em mim apenas se digo que jamais vi uma mão na qual os dedos estivessem separados uns dos outros de maneira tão aguda como estão na dela; ainda assim, sua mão não apresenta qualquer estranheza anatômica, é uma mão completamente normal. 

Eis que essa mulher baixinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a reclamar de mim, sempre lhe acontece uma injustiça por minha causa, eu a incomodo sem parar; caso se pudesse julgar a vida em suas partes mais mínimas e cada um desses pedacinhos separadamente, com certeza cada um dos pedacinhos da minha vida seria uma amolação para ela. Pensei muitas vezes sobre o porquê de eu a amolar tanto assim; pode ser que tudo em mim se contraponha a seu senso de beleza, sua noção de justiça, seus hábitos, suas tradições, suas esperanças; existem naturezas contraditórias como a minha e a dela, mas por que ela sofre tanto por causa disso? Na verdade, nem sequer existe uma relação entre nós que a obrigue a me suportar. Ela precisaria apenas se decidir a me ver como um completo estranho, que, no fundo, também sou, de modo que nem me defenderia contra uma decisão dessas, mas inclusive a saudaria; ela só precisaria se decidir a esquecer da minha existência, que eu, aliás, jamais a obriguei e de modo algum a obrigaria a perceber – e, ao que tudo indica, esse sofrimento todo teria passado. Nisso, inclusive, não dou a mínima para mim mesmo e para o fato de que o comportamento dela naturalmente também me é embaraçoso, não dou bola porque no fundo reconheço muito bem que todo esse embaraço não é nada em comparação com o sofrimento dela. Ainda que eu, de qualquer modo, tenha absoluta consciência de que não se trata de um sofrimento cheio de amor; ela não se importa absolutamente nem um pouco em me melhorar de verdade, na medida em que também tudo o que ela reclama de mim não apresenta uma estrutura a partir da qual meu progresso profissional pudesse ser perturbado. Mas meu progresso profissional também não importa a ela, o que lhe importa é apenas seu interesse pessoal, ou seja, vingar a tortura que eu lhe causo e impedir a tortura vinda de mim que ainda a ameaçará no futuro. Eu já tentei mostrar-lhe uma vez como se poderia botar um fim, da melhor maneira possível, nesse incômodo permanente, mas justamente com isso a deixei em uma irritação tamanha que não mais voltarei a repetir a tentativa. 

Também pesa, caso se queira assim, uma certa responsabilidade sobre mim, pois, por mais estranha que a mulher baixinha me pareça, e por mais que a única relação que existe entre nós dois seja o incômodo que eu lhe causo, ou, muito antes, o incômodo que ela permite que eu lhe cause, não deveria ser indiferente para mim como ela sofre de modo visível, inclusive fisicamente, por causa desse incômodo. Daqui e dali, e isso tem aumentado nos últimos tempos, chegam até mim notícias de que ela mais uma vez se mostrou pálida, tresnoitada, torturada por dores de cabeça e quase incapaz para o trabalho pela manhã; ela causa preocupações a seus parentes com isso, de quando em quando tentam descobrir os motivos de seu estado, e até agora ainda não os encontraram. Só eu os conheço, é o velho e sempre novo incômodo. Mas nem por isso compartilho as preocupações de seus parentes; ela é forte e rija; quem consegue se incomodar assim, provavelmente também consegue superar as consequências do incômodo; inclusive alimento a suspeita de que ela – pelo menos em parte – apenas se apresenta sofrida para desse modo conduzir as suspeitas do mundo a mim. Mas, para dizer de maneira aberta como eu a incomodo com minha existência, ela, por sua vez, é orgulhosa demais; ela tomaria como uma humilhação de si mesma apelar a outros por minha causa; apenas por aversão ela se ocupa comigo; discutir essa questão imunda diante da opinião pública seria demais pa mais força e mais rapidez à inapelabilidade mais completa do que seu incômodo privado – comparativamente mais fraco – seria capaz de conseguir, ao fim e ao cabo; então ela por certo se recolherá, suspirará aliviada e voltará as costas para mim. Pois bem, caso sejam essas, de fato, as suas esperanças, ela se engana. A opinião pública não assumirá o papel dela; a opinião pública jamais terá como reclamar de mim por tantas e tão infinitas coisas, mesmo que me coloque sob a lente de sua lupa mais potente. Eu não sou um homem assim tão inútil quanto ela acredita; não quero me vangloriar, e, sobretudo, não nesse contexto, mas mesmo que eu não me caracterize exatamente por ser útil de modo especial, com certeza também não dou na vista pelo aspecto contrário; só para ela, para seus olhos quase radiantemente brancos, é que eu sou assim, e ela não conseguirá convencer mais ninguém disso. De modo que eu poderia me mostrar completamente tranquilo no que diz respeito a isso? Não, de jeito nenhum; pois se de fato todo mundo ficar sabendo que eu chego a adoecê-la com meu comportamento, e alguns vigilantes, justamente os mais diligentes em levar notícias adiante, já estão perto de descobrir tudo, ou pelo menos se comportam como se o tivessem descoberto, o mundo haverá de chegar e me perguntar por que eu torturo a pobre mulher baixinha com minha incorrigibilidade, se eu tenho a intenção de talvez levá-la à morte, e quando enfim terei o juízo e a simples compaixão humana para parar com isso – se o mundo me perguntar isso, será difícil de responder a ele. Será que deverei confessar, então, que não acredito muito naqueles sinais de doença, e com isso despertar a impressão desagradável de que eu, para me livrar de uma culpa, culpo a outros, e de um modo tão pouco refinado? E se eu pudesse, inclusive, dizer abertamente que, mesmo que acreditasse em uma doença real, eu não teria a menor compaixão, uma vez que a mulher me é de todo estranha e a relação que existe entre nós foi estabelecida apenas por ela, e existe, portanto, apenas da parte dela? Não quero dizer que não acreditariam em mim; muito antes, não acreditariam nem deixariam de acreditar em mim; nem sequer iriam tão longe a ponto de se poder falar disso; simplesmente registrariam a resposta que dei a respeito de uma mulher fraca e doente, e isso seria bem pouco favorável a mim. Nisso, como em qualquer outra resposta, por certo se colocará com obstinação em meu caminho a incapacidade do mundo em não deixar que surja, em um caso como esse, a suspeita de uma relação amorosa, ainda que esteja claro ao extremo que uma relação assim não existe e que, se existisse, ela partiria antes de mim, que de fato seria capaz, pelo menos, de admirar a mulher baixinha no vigor de seu juízo e na infatigabilidade de suas conclusões, se eu não fosse punido logo e sempre justamente pelas preferências dela. Da parte dela, em todo caso, não existe o menor sinal de uma relação amistosa comigo; nesse ponto ela é correta e verdadeira; e é também aí que repousa minha última esperança; nem se fosse adequado a seu plano de guerra fazer acreditar que existe uma relação assim comigo, ela se esqueceria de tudo a ponto de fazer algo semelhante. Mas a opinião pública, completamente embotada nesse sentido, permanecerá com sua opinião e sempre se decidirá contra mim. De modo que, afinal de contas, apenas restaria a mim mudar a tempo, antes que o mundo intervenha e, na medida em que não pudesse eliminar o incômodo da mulher baixinha, o que é impensável, em todo caso, pelo menos, amenizá-lo um pouco. E de fato já me perguntei várias vezes se por acaso minha situação presente me satisfaz de modo a fazer com que eu não queira mudá-la, e se talvez não seria possível encaminhar certas mudanças em mim, ainda que não o fizesse por estar convencido de sua necessidade, mas apenas para acalmar a mulher. E realmente tentei fazê-lo de modo honesto, não sem cansaço e com todo o cuidado, isso, inclusive, me parecia adequado, quase chegou a me divertir; mudanças isoladas acabaram ocorrendo, chegaram a se tornar até bem visíveis, eu não precisava chamar a atenção da mulher para elas, pois ela percebe coisas assim bem mais cedo do que eu mesmo, percebe até a expressão da intenção em meu ser; mas, ainda assim, não fui contemplado com o sucesso. E como ele também poderia se tornar possível? A insatisfação dela comigo é, conforme agora já vejo, uma insatisfação fundamental; nada pode eliminá-la, nem sequer a eliminação de mim mesmo o faria; seus ataques de fúria, por exemplo à notícia de meu suicídio, seriam ilimitados. Não posso sequer imaginar que ela, essa mulher arguta, não perceba isso tão bem quanto eu, e me refiro tanto à desesperança de seus esforços quanto à minha inocência, minha incapacidade de, mesmo com a melhor das vontades, corresponder a suas exigências. É claro que ela o percebe, mas, em sua condição de natureza combativa, ela o esquece em meio à paixão do combate, e meu jeito infeliz, que eu, no entanto, não posso escolher que seja diferente, pois ele me foi dado assim – o que se pode fazer? –, consiste em querer sussurrar uma última advertência a alguém que perdeu todas as estribeiras. Desse modo, nós naturalmente jamais vamos nos entender. Sempre de novo haverei de, na felicidade das primeiras horas da manhã, sair de casa e ver esse rosto amargurado por minha causa, os lábios entreabertos denotando aborrecimento, o olhar examinador e já conhecedor do resultado antes mesmo do exame, que passeia por mim e ao qual, mesmo à maior fugacidade, nada pode escapar, o sorriso amargo que se encrava nas faces de menina, o levantar queixoso dos olhos para o céu, as mãos levadas à cintura para se arvorar segura, e em seguida a palidez e o tremor da indignação. 

Há pouco, fiz, aliás pela primeira vez, conforme confessei surpreso comigo mesmo na oportunidade, algumas insinuações sobre o caso a um bom amigo, apenas de passagem, com toda a leveza, limitando-me a algumas palavras, e reduzi o significado do todo, por menor que ele no fundo seja para mim, no que diz respeito ao exterior, ainda um pouco abaixo da verdade dos fatos. O estranho é que esse amigo ainda assim não deixou de prestar atenção, e até mesmo concedeu de modo próprio um significado maior à questão, não deixou se distrair e insistiu nela. Mais estranho ainda, contudo, foi o fato de ele, apesar disso, subestimar a questão em um ponto decisivo, pois me aconselhou seriamente a viajar um pouco. Nenhum conselho poderia ser mais incompreensível do que esse; embora as coisas se mostrem simples, de modo que qualquer um pode compreendê-las ao se aproximar um pouco, tão simples assim elas, no fundo, não são, a ponto de, com minha partida, tudo ou até mesmo apenas o mais importante voltar à ordem. Pelo contrário, eu preciso, muito antes, me proteger de uma partida; e, se é que devo seguir algum plano, então por certo que é o de manter a questão nos limites em que esteve até agora, estreitos, e sem que o mundo exterior ainda esteja envolvido, portanto, me manter tranquilo e ficar onde estou e não permitir grandes mudanças, causadas por essa questão, que poderiam dar na vista, do que aliás também faz parte não falar com ninguém a respeito; mas tudo isso não porque se trate de algum segredo perigoso, e sim porque é uma questão pequena e meramente pessoal e, como tal, pelo menos fácil de ser conduzida, e inclusive porque é assim que ela deve permanecer. Nisso, aliás, as observações desse amigo acabaram por se mostrar úteis, elas não me ensinaram nada de novo, mas me fortaleceram em meu ponto de vista básico. 

De um modo geral, aliás, fica claro, assim que se reflete com mais exatidão, que as mudanças que o estado das coisas parece ter assumido no decorrer do tempo não são mudanças da coisa em si, mas sim apenas a evolução do meu ponto de vista sobre ela, inclusive na medida em que esse ponto de vista em parte mais tranquilo, mais másculo, mais próximo do cerne, em parte, contudo, também sob a influência impossível de ser superada dos abalos constantes, por mais leves que estes sejam, começa a assumir um certo nervosismo. 

Fico mais tranquilo em relação ao caso quando acredito reconhecer que uma decisão, por mais próxima que pareça estar às vezes, ao fim e ao cabo terminará por não chegar tão logo assim; nós nos sentimos inclinados, principalmente nos anos da juventude, a superestimar a velocidade com que as decisões chegam; se algum dia minha juíza baixinha, enfraquecida por meu olhar, desabasse de lado no assento, segurando-se com uma das mãos no encosto traseiro e mexendo com a outra nas amarras de seu corpete, enquanto lágrimas de ira e de desespero corressem por suas faces abaixo, eu saberia que a decisão havia chegado e que logo eu seria chamado a me responsabilizar. Mas nada de decisão, nada de responsabilização, mulheres se sentem mal com facilidade, o mundo não tem tempo de cuidar de todos os casos. E o que aconteceu, então, ao longo de todos esses anos? Nada, a não ser que tais casos se repetiram, ora mais fortes ora mais fracos, e que seu número total, portanto, se tornou maior. E o fato de pessoas se encontrarem nas proximidades, pessoas que gostariam de intervir caso encontrassem uma possibilidade para tanto; mas elas não encontram nenhuma, por enquanto elas confiam apenas em seu faro, e o faro sozinho, embora baste para ocupar seu dono à farta, não se mostra proveitoso para qualquer outra coisa. Porém, foi assim desde sempre, no fundo; desde sempre existiram esses inúteis vagabundos de esquina e meros respiradores de ar, que sem cessar desculpavam sua proximidade de algum modo bem espertinho, de preferência alegando parentesco; eles sempre vigiaram, sempre encontraram o que farejar com seus narizes, mas o resultado de tudo isso é apenas que continuam parados por aí. A diferença toda está no fato de que eu aos poucos os reconheci, sei distinguir seus rostos; no passado, eu acreditava que eles viriam lentamente de todas as partes e se juntariam, as medidas do caso aumentariam, portanto, e obrigariam por si mesmas à decisão; hoje em dia acredito saber que isso tudo esteve desde sempre aí, e tem bem pouco ou até mesmo nada a ver com a chegada da decisão. E a decisão em si, por que eu a menciono com uma palavra tão grandiosa? Se alguma vez – e com certeza não será amanhã ou depois de amanhã, e provavelmente não será jamais – se chegar ao ponto de a opinião pública, apesar de tudo, se ocupar da questão que, conforme jamais deixarei de repetir, não é de sua competência, embora eu por certo não saia da investigação sem danos, com certeza se levará em consideração que não sou desconhecido da opinião pública, que desde sempre vivo bem às claras debaixo de sua luz, cheio de confiança e merecendo confiança, e que por isso essa mulher baixinha e sofredora que se manifestou retroativamente, e que, para mencionar de passagem, um outro que não eu talvez há tempo já tivesse reconhecido como um carrapicho que não larga da gente, amassando-o debaixo de sua bota sem fazer qualquer ruído diante da opinião pública; que essa mulher, afinal de contas e no pior dos casos, apenas poderia acrescentar um pequeno floreio horrível ao diploma com o qual a opinião pública há muito já me esclareceu como seu membro digno de atenção. Este é o estado atual das coisas, que, portanto, se mostra pouco adequado para me deixar intranquilo. 

Que eu, com os anos, no entanto, tenha me tornado um pouco intranquilo não tem absolutamente nada a ver com a importância da questão; simplesmente não se consegue suportar o fato de incomodar alguém de forma ininterrupta, mesmo quando por certo se reconhece o caráter infundado desse incômodo; fica-se intranquilo, começa-se, de certo modo apenas em termos físicos, a ficar à espreita de decisões, mesmo que com razão não se acredite muito em sua chegada. Em parte, no entanto, também se trata apenas de uma consequência da idade; a juventude concede roupas belas a tudo; detalhes feios se perdem na inesgotável fonte de vigores da juventude; alguém pode até ter tido um olhar um tanto à espreita, mas ele com certeza não foi levado a mal, talvez nem sequer tenha sido percebido, nem sequer por ele mesmo, mas o que sobra com a idade são restos, e cada um deles é necessário, nenhum é renovado, cada um deles se encontra sob observação, e o olhar à espreita de um homem que envelhece é um olhar que está completa e nitidamente à espreita, e não é difícil de constatá-lo. Mas também aqui isso não representa uma piora objetiva e real. 

Por onde quer, pois, que eu a veja, sempre de novo fica claro, e insisto nisso, que se encubro com a mão, ainda que bem de leve, essa pequena questão, eu mesmo assim poderei levar com tranquilidade e por muito tempo adiante, sem ser incomodado pelo mundo, a vida que tenho levado até agora, apesar de todo o espernear da mulher. 



(Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias; tradução de Marcelo Backes) 



(Ilustração: Amedeo Modigliani - portrait of Jeanne Hebuterne)